John Steinbeck - As vinhas da ira
A Carol
... que quis este livro
A Tom
... que o viveu
Capítulo I
Por toda a região vermelha e parte da região cinzenta de Oklahoma, as últimas
chuvas caíram suavemente, sem penetrarem fundo na terra escalavrada. Os arados
cruzaram e recruzaram os campos molhados. As últimas chuvas deram um avanço rápido
ao milho e espalharam à beira das estradas moitas de ervas daninhas e de relva, de modo
que a região vermelha e a região cinzenta começaram a desaparecer sob um tapete verde.
Nos últimos dias de Maio, o céu tornou-se pálido, e as nuvens, que tinham pairado em
altos flocos por tanto tempo, durante a Primavera, dissiparam-se. O Sol faiscava sobre o
milho em crescimento dia após dia até que, ao longo do gume de cada baioneta verde, se
estendeu uma linha acastanhada. As nuvens apareceram e fugiram, e, durante algum tempo,
não voltaram a surgir. As ervas daninhas tornaram-se de um verde mais escuro para se
protegerem e não se alastraram mais. A superfície da terra tornou-se dura, com uma crosta
leve, e, assim como o céu se descorou, assim a terra empalideceu, tornando-se rosada, na
região vermelha, e branca, na região cinzenta.
Nos barrancos cortados pela água, a terra esboroava-se, caindo em pequenos fios
secos. Roedores e formigas pululavam. E, à medida que o sol se tornava mais intenso, as
folhas tenras do milho perdiam rigidez e verticalidade; inclinavam-se a princípio numa
curva, e, depois, quando a força central enfraquecia, cada folha pendia desanimadamente.
Chegou junho. O Sol queimava mais incisivamente. A linha acastanhada das folhas do
milho alargava-se, deslocando-se para o centro. As ervas daninhas tombavam enlanguescidas.
O ar era transparente, e o céu estava mais pálido, e, de dia para dia, a terra perdia cor.
Nas estradas, onde o gado transitava e onde as rodas dos carros moíam o chão e as
patas dos cavalos calcavam a terra, rompia-se a crosta de lama e formava-se a poeira. Tudo
o que se movia lançava a poeira no ar; um viandante levantava uma camada, que lhe
chegava à cintura, uma carroça fazia-a subir até aos taipais e um automóvel deixava uma
nuvem atrás de si. E só muito tempo depois a poeira acabava por assentar.
Em meados de junho, apareceram dos lados do Texas e do Golfo nuvens muito
densas, carregadas de chuva. Os homens, nos campos, olhavam para as nuvens, fungavam
e estendiam os dedos húmidos, a ver de onde soprava o vento. E os cavalos ficavam
nervosos, com as nuvens assim a pairar. Então, estas deixaram cair uns borrifos de água e
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abalaram para outra região. Por detrás delas, o céu ficou outra vez pálido, e o Sol flamejou.
Na poeira havia pequenos buracos abertos pelas gotas de chuva, que tinham enchido o
milho de salpicos, e foi tudo.
Uma brisa suave seguiu-se às nuvens de chuva, impelindo-as para o norte, uma brisa
que sacudiu brandamente o milho em vias de secar. Decorreu um dia, e o vento aumentou,
constante, sem rajadas. A poeira das estradas subiu, espraiou-se e caiu sobre as ervas da
margem dos campos, descendo também em pequena quantidade sobre esses mesmos
campos. O vento agora tornava-se mais forte, soprando sobre a terra húmida nas áreas do
milho. Pouco a pouco, o céu escureceu com as nuvens de poeira, e o vento revolveu a
terra, desprendeu a poeira e levou-a consigo. O vento tornou-se mais forte. A crosta
formada pela chuva ressecou, e a poeira levantou-se dos campos e ergueu no ar plumas cor
de cinza, semelhantes a fumo que se espraiasse lentamente. O milho oscilava com o vento,
emitindo um som seco e tumultuoso. A poeira mais fina não voltou a fixar-se na terra,
desaparecendo no céu enegrecido.
O vendaval tornou-se ainda mais furioso; abalou as pedras, arrebatou as palhas, as
folhas ressequidas e até os pequenos torrões, deixando assinalada a sua viagem através dos
campos. O ar e o céu escureceram, e, através deles, o Sol rompia numa mancha vermelha.
Pairava um cheiro acre na atmosfera. Durante uma noite, a rajada fustigou ainda mais a
terra, ferindo as radículas do milho; as folhas, enfraquecidas, lutaram com o vento, até que
as raízes se desprenderam e depois, cada haste se inclinou indolentemente para o chão, na
direcção do temporal.
Surgiu a madrugada, mas não a claridade do dia. No céu pardo apareceu um sol
sangrento, um círculo vermelho opaco que dava uma luz crepuscular; e, à medida que o dia
avançava, o crepúsculo convertia-se em escuridão e o vento uivava e gemia sobre os grãos
caídos.
Homens e mulheres refugiavam-se precipitadamente nas casas e, quando saíam,
atavam lenços ao nariz e punham óculos para proteger os olhos.
Essa noite foi uma noite negra, porque as estrelas não logravam perfurar a poeira
com o seu clarão, e as luzes das janelas não conseguiam brilhar para além do seu pequeno
círculo. A poeira tinha-se misturado inteiramente com o ar; era uma confusão de ar e de
poeira. As casas estavam hermeticamente fechadas, com trapos a tapar as frestas das portas
e janelas, mas a poeira infiltrava-se tão subtilmente que se não via no ar, depositando-se
como pólen nas mesas, nas cadeiras e nos pratos. As pessoas sacudiam-na dos ombros.
Pequenos riscos de poeira depositavam-se nas soleiras das portas.
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A meio dessa noite, o vento passou e deixou a terra sossegada. O ar, impregnado de
poeira, velava tudo mais completamente que um nevoeiro cerrado. As pessoas, deitadas em
suas camas, ouviram cessar a ventania. Despertaram com o retirar daquele vento
impetuoso. Ficaram quietas, perscrutando intensamente o silêncio. Depois cantaram os
galos, mas o seu canto era abafado, e a gente remexia-se na cama sem descanso, ansiando
pela manhã. Sabiam que, durante muito tempo, o ar se não libertaria daquele pó. Pela
manhã, a poeira pairava como um nevoeiro, e o Sol estava vermelho como sangue fresco.
Todo o dia a poeira se escorreu do céu e, no dia seguinte, continuou a escorrer da mesma
forma. A terra cobriu-se de um manto uniforme. Pousava sobre o milho, amontoava-se nas
estacas das vedações e nos fios telegráficos; assentava sobre os telhados e ocultava as
plantas e as árvores.
As pessoas saíam de suas casas e, depois de aspirarem o ar quente e picante, tapavam
o nariz com desgosto. As crianças também saíam de casa, mas sem correrem ou gritarem,
como fariam se tivesse caído uma bátega de chuva. Os homens postavam-se junto das suas
vedações, a olharem para os milheirais devastados, agora a secarem inteiramente, apenas
com fiapos verdes a mostrarem-se através da camada de pó. Os homens conservavam-se
calados e pouco se moviam. E as mulheres saíam das casas, para se porem ao lado dos
homens a ver se desta vez eles desanimavam. As mulheres perscrutavam os rostos dos
maridos porque o milho podia desaparecer, contanto que o resto ficasse. As crianças
mantinham-se por ali, desenhando figuras na poeira com os dedos dos pés nus, e elas
próprias olhavam às vezes para os homens e para as mulheres, a ver se o desânimo se
estampava na cara dos pais. Os cavalos chegavam-se às selhas e abriam com o focinho as
camadas de pó que cobriam a água. Não tardou muito que os rostos dos homens
perdessem a confusa indecisão e se tornassem duros, irados e persistentes. Então as
mulheres perceberam que estavam salvas e que não havia desânimo. E perguntaram: “Que
vamos fazer?” E os homens responderam: “Não sei.” Mas tudo acabava em bem. As
mulheres sabiam que não havia dúvida e as crianças também sabiam que assim era. As
mulheres e as crianças tinham a convicção profunda de que não havia desgraça, por mais
inclemente, que não fossem capazes de sofrer, se os seus homens se conservassem à altura.
As mulheres foram para dentro das casas trabalhar e as crianças puseram-se a brincar,
embora a princípio o fizessem cautelosamente. À medida que o dia avançava, o Sol perdia a
vermelhidão, faiscando sobre a terra coberta de poeira. Os homens sentaram-se à soleira
das portas; as mãos dedilhando nos gravetos e pedregulhos. Mantinham-se imóveis, sem,
no entanto, deixarem de meditar e de fazer conjecturas.
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Capítulo II
Um enorme caminhão pintado de vermelho parou em frente do pequeno restaurante
que ficava à beira da estrada. O tubo do radiador arfava brandamente, deixando escapar
uma leve fumarada azul-cinzenta, quase invisível. Era um caminhão novo, de um vermelho
brilhante, que trazia dos dois lados, em letras de doze polegadas, a seguinte inscrição:
“Companhia de Transportes da cidade de Oklahoma”. Os pneus duplos eram novos e um
cadeado de metal sobressaía do anel, nas grandes portas traseiras. Dentro do restaurante,
abrigado por um guarda-vento, tocava um rádio, e a música de dança, cadenciada, vibrava
monotonamente, como sucede sempre que ninguém está a ouvir. À entrada, um pequeno
ventilador girava em silêncio no seu nicho circular, e as moscas zumbiam excitadamente em
volta das portas e das janelas, arremetendo contra as vidraças. Dentro, um homem - o
motorista do caminhão - estava sentado num banco, com o cotovelo apoiado no balcão e
olhava por cima da chávena do café para a criada magra e solitária. Falava-lhe na pitoresca e
descuidada linguagem dos transeuntes da estrada.
- Vi-o há três meses. Fez uma operação. Cortaram-lhe não sei o quê. Não me lembro
o que foi.
E ela respondia-lhe:
- Parece-me que ainda não há uma semana que o vi. Estava fino, então. É um bom
tipo quando não está tachado!
De vez em quando, as moscas esvoaçavam de encontro ao guarda-vento. A máquina
de café vomitava vapor e a criada, sem olhar para ela, fechou-lhe a válvula.
Lá fora, um homem que passava na berma da estrada atravessou e aproximou-se do
caminhão. Com passo lento, acercou-se da frente do veículo, poisou a mão no radiador
brilhante e ficou a olhar para o aviso pregado no pára-brisas, onde se lia: “Não se aceitam
passageiros”. Por um momento esteve quase para prosseguir no seu caminho, mas, em vez
disso, sentou-se no estribo que estava do lado contrário ao restaurante. Não devia ter mais
de trinta anos. Os olhos eram castanho-escuros, com uma pigmentação amarelada no globo
ocular; as maçãs do rosto eram altas e largas, e linhas fundas e vigorosas corriam-lhe ao
longo das faces, encurvando-se aos cantos da boca. O lábio superior era comprido, e, como
os dentes sobressaíam, os lábios alongavam-se para os cobrir, porque o homem mantinha9
se de boca fechada. As mãos eram ásperas, com dedos grossos e unhas espessas e estriadas
como pequenas cascas de ostra. O espaço entre o polegar, o indicador e as palmas das
mãos estava coberto de calosidades brilhantes.
As roupas do homem eram novas - todas elas novas e ordinárias. O boné cinzento
era de uso tão recente que a pala ainda se mantinha rígida e o botão no seu lugar, sem
qualquer amolgadura ou deformação, que inevitavelmente adquiriria depois de ter prestado
as serventias habituais de um boné, como sejam as de saco, de toalha e de lenço. O fato era
de pano cinzento grosseiro, e tão novo que ainda conservava o vinco das calças. Na camisa
de cambraia azul, a goma persistia. O casaco era demasiado grande, e as calças muito
pequenas para o homem alto que ele era. Os ombros do casaco descaíam-lhe para os
braços, e, mesmo assim, as mangas ficavam-lhe curtas, e a frente do casaco dançava-lhe no
ventre. Usava um par de sapatos novos, grosseiros, da espécie chamada “alcatruzes”,
brochados e com protectores semelhantes a ferraduras, para preservar do uso as orlas dos
tacões. O homem sentou-se no estribo, tirou o boné e limpou o rosto com ele. Depois,
tornou a pô-lo na cabeça e começou a futura ruína da pala, puxando-a com força.
Lembrou-se então dos pés. Inclinou-se e desapertou os atacadores, não os tornando a atar.
Acima da sua cabeça, o motor Diesel exalava rápidas baforadas de fumo azul.
A música parou no restaurante e a voz de um homem fez-se ouvir do alto-falante,
mas a criada não desligou, porque não dera pela suspensão da música. Os seus dedos
exploradores haviam encontrado um alto atrás do ouvido. Tentava vê-lo num espelho por
detrás do balcão, sem que o motorista desse por isso e fingiu alisar uma madeixa de cabelo.
O motorista disse:
- Houve um baile de arromba em Shawnee. Disseram-me que mataram lá um gajo.
Você ouviu dizer alguma coisa?
- Não - respondeu a criada, ao mesmo tempo que tacteava, cuidadosamente o alto do
ouvido.
Lá fora, o homem sentado levantou-se, olhou por cima da capota do caminhão e
observou o restaurante durante um momento. Em seguida, tornou a sentar-se, tirou uma
bolsa de tabaco e um livro de mortalhas do bolso do casaco. Enrolou o cigarro, lenta e
cuidadosamente, mirou-o, alisou-o. Por fim, acendeu-o e atirou o fósforo aceso para a
poeira a seus pés. O sol varreu a sombra do caminhão ao aproximar-se o meio-dia.
No restaurante, o motorista pagou a conta e meteu as duas moedas de troco num
“caça-níqueis”. Os cilindros giraram sem lhe darem prémio algum.
- Eles arranjam uma tal trapaça que a gente não ganha nunca - disse ele para a criada.
E ela replicou:
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- Um sujeito limpou a máquina ainda não há duas horas. Fez três e oitenta. Quando é
que você volta?
O motorista deteve-se um instante junto da porta entreaberta.
- Daqui a uma semana ou dez dias - respondeu ele. - Tenho de dar uma corrida a
Tulsa e nunca volto tão depressa como quero.
Ela disse mal-humorada:
- Não deixe entrar as moscas. Ou entre ou saia.
- Até à volta - rematou ele, ao sair, batendo com o guarda-vento, que ficou a oscilar.
Deteve-se ao sol, tirando o invólucro de uma pastilha elástica. Era um homem
pesado, largo de ombros, com o ventre enorme. Tinha o rosto vermelho, e os seus olhos
azuis eram fendidos e rasgados por terem olhado sempre de través para a luz crua. Usava
calções de soldado e botas de cano alto com atacadores. Com a pastilha elástica na ponta
dos lábios, gritou ainda para dentro do restaurante:
- Agora tenha juízo, não me vão contar alguma coisa a seu respeito!
A criada estava de costas, voltada para o espelho da parede. Grunhiu uma resposta.
O motorista pôs-se a trincar lentamente a pastilha, abrindo largamente os maxilares e os
lábios a cada dentada. Empastou-a na boca e rolou-a debaixo da língua, enquanto avançava
para o grande caminhão vermelho.
O vagabundo levantou-se e olhou para ele através dos vidros:
- Não me pode dar uma boleia, patrão?
- Você não viu o aviso do pára-brisas? “Não se aceitam passageiros”?
- Decerto que vi. Mas às vezes há camaradas que querem ser fixes, mesmo quando os
ursos dos patrões os obrigam a trazer escritos desses.
O motorista, entrando vagarosamente no caminhão, pôs-se a considerar aquela saída.
Se recusasse o pedido, não só não era um bom camarada, como parecia que era forçado
pelo aviso a viajar sempre sozinho. Se aceitasse o vagabundo, tornava-se automaticamente
um bom camarada e demonstrava também não pertencer ao número daqueles que qualquer
patrão se dá ao luxo de espezinhar. Sabia que estava dentro de um dilema, de onde não via
meio de sair. E ele queria ser bom camarada. Olhou outra vez para o restaurante.
- Acocore-se aí, até passarmos a curva.
O vagabundo agachou-se no estribo e agarrou-se ao manípulo da porta. O motor
rugiu por um momento, as engrenagens começaram a oscilar e o camião entrou em
movimento, adquirindo velocidade a pouco e pouco. Debaixo do homem aferrado ao
manípulo, a estrada fazia remoinhos de entontecer. Era uma milha até à primeira volta e aí
o carro abrandou a marcha. O vagabundo ergueu-se, abriu a porta e deslizou para o
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assento. O motorista mirou-o de soslaio, continuando a mascar, como se os seus
pensamentos e impressões estivessem sendo escolhidos e arranjados pelas maxilas até
finalmente lhe tomarem forma no cérebro. Começou a examinar o passageiro, a partir do
boné novo, descendo depois pelo fato até aos sapatos novos. O vagabundo recostou-se
comodamente no assento, tirou o boné e pôs-se a limpar com ele o suor da testa e do
queixo.
- Obrigado, compincha - disse ele. - Os presuntos estavam avariados.
- Sapatos novos - comentou o motorista. A ironia dos olhos comunicara-se-lhe à voz.
- Você não devia andar de sapatos novos com este calor.
O vagabundo olhou para os sapatos amarelos empoeirados.
- Não tinha outros - explicou. - A gente tem de usar o que tem.
O motorista olhou cautelosamente para a frente e acelerou um pouco a marcha do
carro.
- Vai para longe?
- Hum... Tinha ido a pé se os presuntos não estivessem tão avariados.
As perguntas do motorista assumiam o aspecto de um interrogatório subtil. Parecia
estender redes, abrir alçapões com elas.
- Anda à procura de emprego? - inquiriu.
- Não, o meu velho tem umas terras, uns quarenta acres. É rendeiro, mas já lá
estamos há muito tempo.
O motorista olhou significativamente para os campos ao longo da estrada, onde o
milho pendia com a poeira empilhada sobre as folhas. Por entre o solo empoeirado
rolavam pedrinhas. O motorista disse como para si:
- Um rendeiro de quarenta acres, sem ter sido expulso pela poeira e pelos tractores?
- Há já tempo que não tenho notícias - respondeu o vagabundo.
- Deve ter sido há muito tempo - comentou o motorista.
Uma abelha zumbiu dentro do carro e esvoaçou atrás do pára-brisas. O motorista
estendeu a mão e, com cuidado, expulsou-a para a corrente de ar que zumbia fora do
veículo.
- Os rendeiros estão a abandonar as terras - disse ele. - Cada tractor expulsa dez
famílias. Há tractores por toda a parte, agora. Rasgam a terra e enxotam os rendeiros.
Como é que se aguenta o seu velho?
A língua e as maxilas tornaram a ocupar-se da goma esquecida na boca, revirando-a e
mascando-a. De cada vez que descerrava os dentes, via-se a língua a revolver a pastilha.
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- Sim, já há tempo que não tenho notícias. Nunca fui dado a escrever, nem eu nem o
meu velho.
E acrescentou pressurosamente:
- Mas não é por não sabermos, nem um nem outro. Tem estado empregado? -
perguntou, prosseguindo na mesma forma velada de investigação.
E ficou a olhar os campos, o ar tremeluzente, e, juntando a goma dentro da
bochecha, cuspiu para a estrada.
- Pois claro! - respondeu o vagabundo.
- Foi o que pensei ao ver as suas mãos. Tem manejado uma picareta, um machado ou
um malho. Bem se vê, pelas mãos. É uma coisa que eu descubro logo à primeira vista. E
tenho orgulho nisso.
O vagabundo encarou-o. Os pneus cantavam na estrada.
- Quer saber mais alguma coisa? Não faço questão em lha dizer. E escusa de se pôr a
adivinhar.
- Não se abespinhe. Não me queria meter na sua vida.
- Digo-lhe tudo sem fazer caixinha.
- Não se abespinhe. Gosto apenas de saber coisas. Ajuda a passar o tempo.
- Vou dizer-lhe tudo. Chamo-me Joad, Tom Joad. O velho é o velho Tom Joad.
Os seus olhos mediram o motorista.
- Não se abespinhe. Não foi por mal.
- Eu também não foi por mal - disse Joad. - Estou apenas tentando seguir o meu
caminho sem importunar ninguém.
Parou e olhou para os campos ressequidos, para as árvores famintas, a penderem
penosamente na distância escaldante. Da algibeira do casaco tirou o tabaco e as mortalhas.
Enrolou o cigarro entre os joelhos para que o vento lhe não chegasse.
O motorista mascava ritmicamente, pensativamente, como uma vaca. Esperou até
desaparecer a má impressão do que havia dito. Por fim, quando lhe pareceu que o ambiente
voltara a ser neutral, disse:
- Um tipo que nunca guiou um caminhão não sabe o que isto é. Os patrões não
querem que a gente leve ninguém. E assim temos de andar sempre sozinhos, a não ser que
nos arrisquemos a ser despedidos, como pode suceder agora, por causa do que lhe fiz.
- E que muito lhe agradeço - replicou Joad.
- Tenho conhecido tipos que fazem coisas do arco-da-velha quando guiam. Lembrome
de um que até fazia versos. Passava assim o tempo.
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Olhou de soslaio para ver se Joad ficara interessado ou surpreso. Mas Joad mantinhase
calado, olhando em frente, ao longo da estrada branca, que ondulava suavemente. O
motorista retomou a palavra:
- Lembro-me de uma poesia que o tal gajo escreveu. Falava dele e de mais outros
dois que andavam a correr mundo, a beber, a zaragatear e a fazer partidas. Tinha palavras
que nem Jesus Cristo seria capaz de compreender. Uma parte era assim: “E ali avistámos
um negro com uma alavanca que era maior que o probóscide de um elefante.” Probóscide
é uma coisa parecida com nariz. O tipo mostrou-me isso no dicionário. Levava sempre o
dicionário para toda a parte. Consultava-o até quando estava a comer e a tomar o café.
Parou, sentindo-se desacompanhado no seu longo discurso. Volveu os olhos
enigmáticos para o seu passageiro. Joad continuava calado. Novamente o motorista tentava
forçá-lo a participar da conversa.
- Já conheceu algum tipo que dissesse palavras tão arrevesadas como estas?
- Os pregadores - respondeu Joad.
- Sim, mas ficamos malucos quando ouvimos um tipo a falar assim difícil. Sem
dúvida que comum pregador é diferente, porque ninguém se põe a magicar no que diz um
pregador. Mas este tipo era engraçado. A gente não se danava quando ele dizia esses
palavrões, porque era de paródia. Não era lá para armar em sabichão.
O motorista ficou mais satisfeito. Sabia que, pelo menos, Joad o estava escutando.
Virou o carro abruptamente numa curva e os pneumáticos guincharam.
- Como ia dizendo - prosseguiu este - um tipo que guia um caminhão faz coisas do
arco-da-velha. E tem de as fazer. Senão, dá em doido, aqui sentado, com a estrada a fugir
debaixo das rodas. Há quem diga que os motoristas de caminhão andam sempre a comer
nas tabernas ao longo da estrada.
- Costumam parar - sentenciou Joad.
- Decerto que param, mas não para comer. Quase nunca têm fome. O que estão é
fartos de guiar. As tabernas são o único lugar onde a gente pode esticar as pernas e, quando
paramos, somos obrigados a comprar qualquer coisa, senão, o homem que está ao balcão
atira-nos olhares de fogo. E assim tomamos uma chávena de café e uns bolos. E
descansamos um pouco.
Mascou lentamente a pastilha e virou-a com a língua.
- Deve ser uma chatice - observou Joad, sem convicção.
O motorista lançou-lhe um rápido olhar, para ver se o outro estava zombando.
- Sim, não é lá muito agradável - insistiu. - Parece fácil ficar aqui umas oito, dez e às
vezes catorze horas. Mas a estrada chateia um homem. Tem de se fazer qualquer coisa.
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Alguns cantam; outros assobiam. A Companhia não nos deixa trazer rádio. Alguns bebem a
sua pinga, mas esses não se aguentam,
E acrescentou com presunção:
- Eu nunca bebo em serviço.
- O quê? - ironizou Joad.
- É o que lhe digo. Um homem tem de progredir. Ando a pensar em seguir um
daqueles cursos por correspondência. Engenharia mecânica. É fácil. Basta estudar algumas
lições fáceis em casa. Ando cá a magicar nisso. Depois, não torno a guiar caminhões. Os
outros que os guiem.
Joad tirou um frasco de whisky do bolso do casaco.
- Tem a certeza de que não quer um golo? A sua voz era provocante.
- Não, Deus me livre de lhe tocar. Um homem não pode andar sempre a beber e
então quem tem de estudar como eu tenciono.
Joad desrolhou o frasco, tomou duas goladas rápidas, tornou-o a rolhar, metendo-o
depois na algibeira. O cheiro quente e aromático do whisky espalhou-se no carro.
- Vocês estão todos atados de pés e mãos. Há mulher no caso, não?
- Sim, também é verdade. Mas, de qualquer maneira, quero progredir. já ando a
treinar o cérebro há uma porção de tempo.
O whisky pareceu animar Joad. Enrolou outro cigarro e acendeu-o.
- Já não falta muito para chegar - declarou ele.
- Não me quero emborrachar - atalhou precipitadamente o motorista. Ando sempre a
treinar o cérebro. Tirei um curso desse género há dois anos. - Acariciou o volante com a
mão direita. - Suponha que eu passo por um sujeito na estrada. Olho para ele, e, quando já
estou distante, tento lembrar-me de tudo o que vi: das roupas, dos sapatos e do chapéu, da
forma como ele andava, da altura, do peso provável e de alguma cicatriz. E faço isso muito
bem. Sou capaz de fazer um perfeito retrato do homem, de cabeça. Às vezes, penso que
devia ter tirado um curso de perito em impressões digitais. Você ficaria admirado de ver
como a gente pode ter boa memória.
Joad bebeu outra rápida golada do frasco. Expeliu a última baforada do cigarro quase
desfeito e, então, com o polegar e o indicador, esmagou a ponta acesa. Fê-la numa bola, e,
depois, atirou-a pela janela, deixando que a brisa lha arrebatasse dos dedos. Os pneus
enormes entoavam uma canção estrídula sobre o caminho. Os olhos tranquilos e escuros
de Joad tornaram-se maliciosos enquanto olhava ao longo da estrada. O motorista esperou
e lançou à sua volta um olhar inquieto. Por fim, o comprido lábio inferior de Joad
arreganhou-se e ele riu-se silenciosamente, com o peito sacudido de riso.
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- Você tem andado a ver se descobre, seu macacão.
O motorista nem olhou.
- Se descubro o quê? Que quer você dizer?
Os lábios de Joad cerraram-se por um momento sobre os grandes dentes, e depois
lambeu-os como um cão, com duas lambedelas, uma em cada direcção, partindo do meio.
A voz tornou-se-lhe áspera.
- Você sabe o que eu quero dizer. Você pôs-se a sondar logo que eu entrei. Bem
percebi.
O motorista olhou bem em frente; apertou o volante de tal maneira que as palmas
das mãos fizeram bojo e as costas das mãos empalideceram.
- Você sabe de onde eu venho?
O motorista manteve-se calado.
- Não sabe? - insistiu Joad.
- Sim, decerto. Isto é: talvez. Mas nada tenho com isso. Trato da minha vida. O resto
não é da minha conta. - E continuou precipitadamente: - Não meto o nariz onde não sou
chamado.
De repente, calou-se e esperou. As mãos continuavam brancas sobre o volante. Um
gafanhoto adejou através das janelas e pousou sobre o quadro dos instrumentos, onde se
instalou e se pôs a limpar as asas com pernas angulosas e saltitantes. Joad estendeu a mão e
esmagou-lhe a cabeça dura e semelhante a um crânio com os dedos, lançando-o à corrente
do vento, pela janela fora. Joad riu-se outra vez, enquanto sacudia, das pontas dos dedos,
os restos do insecto.
- Você enganou-se comigo - disse ele. - E não descanso enquanto lho não disser.
Estive em MacAlester (Penitenciária do Estado de Oklahoma). Estive lá quatro anos. Estas
roupas deram-mas eles quando saí. E não me importa que saibam. Vou para casa do meu
velho e por isso não tenho de mentir para arranjar trabalho.
- Bem, isso não é da minha conta. Não sou intrometido - atalhou o motorista.
- Não é o diabo! Esse grande nariz andou a farejar a mais de oito milhas à frente da
sua cara. Não se despegou de mim como um carneiro se não despega de um campo
relvado.
O rosto do motorista endureceu.
- Você está enganado - começou ele com voz sumida. Joad soltou uma risada.
- Você foi bom camarada. Deu-me uma boleia. E depois, já cumpri a pena. então?
Quer saber porque fui condenado, não?
- Não tenho nada com isso.
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- Você não tem senão que guiar essa geringonça para a frente, e, no fim de contas, é
o que menos lhe importa. Agora escute. Vê aquele caminho, ali adiante?
- Hum...
- Bem, é ali que eu me apeio. Eu sei que você tem estado para aí a moer a cabeça
para saber o que eu fiz. Mas não quero deixá-lo intrigado.
O ronco do motor entorpeceu e o canto dos pneus afrouxou. Joad sacou do whisky e
tomou outra golada. O caminhão estacou num sítio onde um caminho de terra
desembocava na estrada real.
Joad saiu e postou-se ao lado da janela. Do tubo de escape saíam golfadas de um
vapor azulado, quase imperceptível. Joad inclinou-se para O Motorista.
- Homicídio - disse rápido. - É uma palavra levada da breca. Quer dizer que matei
um homem. Sete anos. Mas só fiz quatro por me ter portado bem lá dentro.
Os olhos do motorista fixaram-se no rosto de Joad para o reter na memória.
- Não lhe perguntei nada da sua vida - replicou ele. - Só me importo com a minha.
- Você pode assoalhar isso em todas as tabernas daqui até Texola. - E sorriu-se. - Até
à vista, compadre. Você foi um camaradão. Mas, olhe, quando a gente já esteve preso,
fareja uma Pergunta, nem que venha da boca do inferno. Você começou a meter o nariz
assim que abriu o carro. - Bateu na porta de metal com a mão. - Obrigado pela boleia -
disse ele. - Até mais ver. - Voltou-se e meteu pelo caminho de terra.
Durante um momento, o motorista ficou-se a olhá-lo e depois gritou: .
- Boa sorte!
Joad acenou com a mão, sem se virar. Então o motor tornou a roncar; a engrenagem
emitiu uma série de sons rápidos e o grande caminhão vermelho foi rolando pesadamente
pela estrada fora.
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Capítulo III
De ambos os lados da estrada de cimento corria um tapete de erva emaranhada, seca
e partida, com as pontas carregadas de fiozinhos ténues, daqueles que se prendem ao rabo
dos cães, de “rabos de raposa” prontos a penetrar nos cascos dos cavalos e de ouriços
hábeis em insinuar-se na lã dos carneiros; a vida, adormecida, aguardava que a sacudissem e
dispersassem; todas as sementes armadas com uma força de dispersão, arremessavam
dardos e pára-quedas ao vento; os espíritos arvoravam-se em pequenas lanças e balas
minúsculas, e tudo isto aguardava o vento ou a passagem de um animal, uma vira de calça
de homem, uma bainha de saia de mulher, tudo passivo e, no entanto, bem apetrechado
para uma futura actividade; quieto, mas carregado de ânsia de movimento.
O sol brilhava sobre a erva, penetrando-a com o seu calor, e, na sombra, sob a
vegetação, os insectos moviam-se enquanto as formigas lhes armavam ratoeiras; os
gafanhotos davam pulos no ar, sacudindo por um instante as asas amarelas e os
escaravelhos, semelhantes a pequenas armadilhas, debicavam afanosamente as hastes
tenras. E sobre a relva, à beira da estrada, avançava um cágado, virando-se de lado sem
qualquer razão aparente, arrastando a concha abaulada na erva. As suas pernas duras e as
patas de unhas amarelas moviam-se lentamente sobre a relva, não para propriamente
caminharem, mas para arrastarem a concha. As praganas de cevada resvalavam-lhe pela
concha e as folhas de trevo caíam sobre ela e rolavam para o chão. Avançava com a boca
coriácea semiaberta e os olhos vivos e ferozes olhavam para a frente sob as pálpebras em
forma de unha. Ia pela relva, deixando atrás de si um trilho bem vincado, e a colina, que era
à margem da estrada, surgia-lhe na frente. Parou por um momento, com a cabeça bem
esticada para cima. Pestanejou e olhou para cima e para baixo. Por fim, dispôs-se a transpor
a colina. As patas da frente deixaram ver as garras, mas não tocaram no chão. As patas
traseiras impeliram a concha, que se arrastava dificultosamente pela erva e pelo cascalho. À
medida que a colina se tornava mais íngreme, mais frenéticos eram os esforços do cágado.
As patas traseiras moviam-se esforçadamente, escorregavam, puxando a concha, e a cabeça
córnea esticava-se, tanto quanto lho permitiam as dimensões do pescoço. Pouco a pouco, a
concha subiu a colina, até que, por fim, na sua linha de marcha, surgiu um parapeito, o
contraforte da estrada - um muro de cimento de quatro polegadas de altura. Como se
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trabalhassem independentemente, as patas traseiras impeliram a concha contra o muro. A
cabeça soergueu-se e espreitou por cima do muro para a superfície larga e lisa de cimento.
Agora as patas, ferradas no cimo da parede, içavam-se penosamente; a concha subiu
devagar e apoiou-se por diante na parede. Durante um momento, o cágado descansou.
Uma formiga vermelha insinuou-se-lhe por debaixo da concha, na pele macia; de
repente, cabeça e pernas sumiram-se na armadura, enquanto o rabo couraçado se escapulia
de lado. A formiga vermelha foi esmagada entre o corpo e as pernas. Um pé de aveia brava
meteu-se dentro da concha, impelido por uma pata dianteira. Durante um longo momento,
o cágado ficou quieto, e depois a cabeça avançou de novo cautelosamente; os olhos piscos
e franzidos miraram em redor, e as pernas e o rabo saíram, aparecendo por seu turno. As
pernas traseiras puseram-se em acção, movendo-se como pernas de elefante, e a concha
elevou-se tanto que as pernas da frente não alcançavam a superfície de cimento. Mas as
pernas traseiras ergueram-se tanto e tanto que, por fim, o cágado conseguiu equilibrar-se e,
com a cabeça inclinada para baixo e as pernas dianteiras a roçarem pelo pavimento,
conseguiu içar-se completamente. Mas o pé de aveia brava enrolara-se-lhe às pernas da
frente.
Agora o caminho era fácil; todas as pernas trabalhavam, e a concha movia-se para a
frente, meneando-se para um e outro lado. Nessa altura, surgiu um Sedan guiado por uma
mulher de uns quarenta anos. Ela viu o cágado e desviou-se para a direita, já fora da
estrada, provocando um guinchar de rodas e um turbilhão de poeira. As duas rodas
ergueram-se por um momento e depois assentaram. O carro voltou novamente para a
estrada e prosseguiu mais lentamente. O cágado tinha-se metido dentro da concha, mas
agora andava mais depressa porque a estrada escaldava como lume.
Depois surgiu um caminhão ligeiro, e, ao aproximar-se, o motorista, vendo o cágado,
desviou-se, no intuito de o atropelar. A roda da frente apanhou a orla da concha, atirou
com o animal ao ar com a rapidez de um relâmpago e fê-lo rodopiar, como se fosse uma
moeda, para fora da estrada. O caminhão manobrou, a fim de retomar a direita. Deitado de
costas, o cágado manteve-se muito tempo dentro da concha. Mas, por fim, as pernas
oscilaram no ar, à procura de uma coisa onde pudessem firmar-se. O pé dianteiro agarrouse
a um pedaço de quartzo e, pouco a pouco, o cágado conseguiu voltar-se. O pé de aveia
brava desprendeu-se, deixando cair no chão três sementes. E, ao arrastar-se na descida da
colina, a concha foi carreando estrume para as sementes. Depois, entrou numa estrada
poeirenta, saracoteando-se e desenhando com a concha um trilho ondulado na poeira. Os
olhos trocistas e experientes olharam em frente e a boca, couraçada, abriu-se um pouco. Os
dedos amarelos das patas soltaram uma camada de pó.
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Capítulo IV
Quando Joad ouviu o caminhão afastar-se, com a engrenagem a resfolegar e fazendo
estremecer o solo batido pelos pneus, parou e voltou-se, a vê-lo desaparecer. Depois de o
perder de vista, ainda observava o horizonte e a luz azul e vacilante do ar. Pensativo, sacou
o frasco do bolso, libertou-o da rolha e sorveu delicadamente o whisky, metendo a língua
no gargalo da vasilha e depois passando a língua pelos lábios, para não deixar escapar nem
uma sombra de gota da esplêndida bebida. E disse, à laia de experiência: “Ali avistámos um
negro” e era tudo quanto podia evocar. Por fim, voltou-se e meteu-se na estrada poeirenta,
que cortava, recta, os campos de cultura. O sol estava quente e nenhum vento movia a
poeira fina, que se diria peneirada. Via-se a estrada cheia de sulcos, de onde a poeira
resvalara para se instalar nas marcas das rodas dos caminhões. Joad deu alguns passos e a
poeira, fina como farinha, esparrinhou-se-lhe à frente dos sapatos amarelos, tornando-lhos
pardacentos.
Abaixou-se, desapertou os atacadores; descalçou primeiro um sapato, depois o outro.
E mergulhou os pés suados com ar de alívio na poeira quente, até que pequenas partículas
se lhe infiltraram entre os dedos e a pele dos pés se encortiçou de todo. Tirou o casaco e
enrolou nele os sapatos, metendo o embrulho debaixo do braço. Por fim, pôs-se a
caminho, sacudindo a poeira na sua frente, deixando uma nuvem de poeira caindo atrás de
si.
À direita do caminho, atadas a varas de salgueiros, corriam duas filas de arame
farpado. As varas eram curtas e mal ajeitadas. Onde os ganchos chegavam à altura
conveniente, o arame assentava neles; mas onde os não havia, a vedação farpada fora
simplesmente ligada aos postes com arame ferrugento de fardos. Atrás da cerca, o milho
jazia abatido pelo vento, pelo calor e pela seca, e as pontas, nos sítios onde as folhas se
uniam aos caules, estavam cobertas de pó.
Joad foi caminhando penosamente, arrastando a nuvem de poeira atrás de si. Um
pouco adiante, viu a concha abaulada de um cágado, a arrastar-se lentamente através da
poeira, num esforço obstinado e espasmódico. Parou a observá-lo e a sua sombra incidiu
sobre o animal. Imediatamente, a cabeça e as pernas se recolheram e a cauda curta e grossa
se uniu à concha. Joad pegou nela e virou-a. As costas eram de um trigueiro acinzentado
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como a poeira, mas a parte inferior da concha era de um amarelo creme, limpo e uniforme.
Joad puxou o embrulho mais para cima e premiu a parte inferior e lisa da concha com o
dedo. Era mais mole do que as costas. A cabeça, velha e dura, do bicho surgiu e tentou
olhar para o dedo que a premia enquanto as pernas oscilavam inquietas. O cágado urinou
na mão de Joad, lutando desesperada e inutilmente para se desprender. Joad tornou a virálo
de costas para cima e enrolou-o no casaco com os sapatos. Sentia-o agitar-se e lutar
debaixo do braço. Continuou a andar mais apressado agora, arrastando um pouco os
calcanhares na areia fina.
Mais adiante, ao lado da estrada, um salgueiro ressequido, poeirento, projectava uma
sombra mosqueada. Joad via-o bem na sua frente, com as pobres ramadas tombando sobre
o caminho, com as folhas fendidas e ásperas como uma galinha na muda. Joad estava agora
a suar; a camisa azul escurecia nas costas e nos sovacos. Puxou pela pala do boné,
vincando-a, ao meio, quebrando de tal maneira o forro de cartão que nunca mais pareceria
novo. E os seus passos apressaram-se em direcção à sombra do salgueiro distante. Ali sabia
que haveria sombra, pelo menos uma orla de verdadeira sombra projectada pelo tronco,
visto que o sol tinha passado o zénite. Agora os raios solares castigavam-lhe a nuca,
causando-lhe um certo zumbido na cabeça. Não podia ver a base do tronco, porque ele
irrompia de uma pequena depressão pantanosa que conservava a água mais tempo do que
os lugares planos, Joad dirigiu-se para o lado do sol e começou a descer o declive, mas teve
de abrandar a marcha cautelosamente, porque a sombra estava ocupada. No chão sentavase
um homem, encostado ao tronco da árvore. Tinha as pernas cruzadas e um dos pés,
descalço, elevava-se quase ao nível da cabeça. Não ouviu Joad aproximar-se assobiava
solenemente a melodia de “Sim senhor, esta é pequena”. Movia o tal pé ao compasso da
música. Mas aquilo não ia em ritmo de dança. Parou de assobiar e cantou numa voz
agradável de primeiro tenor:
Sim, senhor, este é o meu Salvador,
Jesus é o meu Salvador.
Jesus é o meu Salvador agora.
Na minha vida não está o diabo,
Jesus é o meu Salvador agora.
Joad parou sob a sombra escassa das folhas enlanguescidas antes que o homem desse
por ele, parasse de cantar e voltasse a cabeça. Era uma cabeça comprida, ossuda, de pele
esticada, assente num pescoço tão enrugado e musculoso como um pé de aipo. Os olhos
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eram grandes e salientes e as pálpebras, vermelhas e descarnadas, esforçavam-se por cobrilos.
Tinha as faces morenas, lustrosas e imberbes e uma boca grossa, alegre ou sensual. O
nariz, adunco e duro, esticava-lhe tanto a pele que se viam as cartilagens brancas. Não se
lhe via suor no rosto, nem mesmo na testa alta e pálida. Era uma testa anormalmente alta,
sulcada de velas delicadas nas fontes. Quase metade da cabeça estava por cima dos olhos.
Tinha os cabelos duros, grisalhos, repuxados para trás, em desordem, como se os tivesse
penteado com os dedos. Vestia um fato-macaco e camisa azul. A seu lado, no chão, estava
um casaco de algodão grosseiro e riscado, com botões de latão e um chapéu castanho,
manchado e amarrotado como um salpicão; perto, uns sapatos de lona cobertos de poeira,
demonstravam, pela posição, que o homem os atirara de qualquer maneira ao
desembaraçar-se deles.
O homem lançou um olhar prolongado a Joad. A luz parecia inundar-lhe os olhos
castanhos salpicados de pontinhos doirados. Os músculos retesados do pescoço
sobressaíam.
Joad deteve-se na sombra, aqui e acolá manchada de luz. Tirou o boné; enxugou o
rosto suado com ele e deixou-o cair no chão, juntamente com o casaco enrolado.
O homem que estava na sombra descruzou as pernas e escavou o chão com os dedos
dos pés.
Então Joad disse:
- Hi! Está um calor dos diabos na estrada!
O homem sentado encarou-o interrogativamente:
- Você não é o Tom Joad, filho do velho Tom?
- Sim, sou eu - respondeu Joad. - Em toda a parte, Vou para casa.
- Aposto que você já se não lembra de mim.
O homem sorriu-se e os seus lábios grossos mostraram grandes dentes de cavalo.
- Oh, não, não se lembra! Você estava sempre entretido a puxar as tranças de uma
rapariguinha quando eu lhe dava a Sagrada Comunhão. Você até parecia que lhe queria
arrancar as tranças pela raiz. Talvez se não recorde, mas recordo-me eu. Por causa dessas
tranças, vieram ambos, você e ela, a presença de Jesus; foram baptizados untos na vala de
irrigação, Esbracejavam e bramiam como dois gatinhos.
Joad olhou para ele com ar pensativo e depois desatou a rir.
- Ah, o senhor é o pregador! Ainda não há uma hora que me referi ao senhor numa
conversa com um sujeito.
- Fui pregador - declarou o homem em tom sério. - Reverendo Jim Casy da Sarça
Ardente (Seita religiosa escocesa, fundada em fins do século XVIII e conhecida pelo nome de Burning
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Busle. O ritual consiste, especialmente, na invocação do Espírito Santo por meio de línguas estranhas, tal
como no milagre do Pentecostes) para glorificar o nome de Jesus. Costumava ter a vala de
irrigação tão cheia de pecadores em penitência que metade deles morriam afogados. Mas
isso acabou. Agora sou apenas Jim Casy e mais nada, e cheio de ideias que são um pecado...
contudo parecem-me razoáveis.
- Se a gente pensa, decerto que há-de ter ideias. Claro que me recordo do senhor.
Fazia belas pregações. Lembro-me de uma vez que o senhor fez um sermão a andar de
gatas e a berrar como um possesso. A minha mãe gostava muito de si. E a avó dizia que o
senhor estava tocado pelo Espírito.
Joad remexeu no casaco e tirou o wisky. O cágado moveu uma perna, mas ele
envolveu-o com mais cuidado, Destapou o frasco e ofereceu-o a Jim Casy.
- Vai uma gota?
Casy pegou na vasilha e olhou-a pensativo.
- Já não prego mais sermões. O Espírito já não está com o povo, e, pior ainda, o
Espírito já não está comigo. Sem dúvida que, de vez em quando, ainda o Espírito me
sacode e, nessa altura, faço uma reza, ou, quando me dão comida, dou-lhes a benção, mas o
meu coração fraqueja. Faço isso apenas porque o povo assim mo pede.
Joad tornou a limpar o rosto com o boné.
- O senhor já não é tão santo que recuse uma bebida, não é assim? - perguntou.
Casy parecia ver uma garrafa pela primeira vez. Inclinou-a e tornou três boas goladas.
- Esplêndida bebida - elogiou ele.
- Pudera não! É bebida de fábrica. Custou um dólar.
Casy tomou outra golada antes de entregar a garrafa.
- Sim, senhor! Sim, senhor! - exclamou ele.
Joad pegou na vasilha e, por delicadeza, não limpou o gargalo com a manga antes de
beber. Acocorou-se e pôs a garrafa junto do rolo do casaco. Achou então uma varinha boa
para escrever os seus pensamentos no chão. Varreu as folhas, fazendo um quadrado e
alisou a poeira. E pôs-se a desenhar ângulos e pequenos círculos.
- Há muito que o não via - disse ele.
- Ninguém me tem visto - explicou o pregador. - Tenho andado por aí sozinho, a
meditar... O Espírito ainda é forte em mim, embora já não seja o mesmo. já não estou tão
convencido de muita coisa.
Encostou-se mais à árvore. A sua mão ossuda penetrou como um esquilo no bolso
do fato-macaco e tirou de lá um cigarro de tabaco negro, picado. Cuidadosamente, limpou
o cigarro a que palhinhas e cotão haviam aderido, antes de morder uma das pontas e de
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meter o pedaço cortado na boca. Joad respondeu negativamente com a vara quando o
cigarro lhe foi oferecido. O cágado agitou-se no casaco enrolado. Casy olhou para a roupa
em movimento e perguntou:
- Que tem você ali? Uma galinha? Assim, morre abafada.
- Um cágado velho - respondeu. - Apanhei-o na estrada. Levo-o ao meu irmãozito.
As crianças gostam de cágados.
O pregador abanou a cabeça vagarosamente.
- Todas as crianças arranjam um cágado em qualquer altura. Mas ninguém o conserva
sempre. Tanto fazem, tanto fazem, até que, um dia, encontram uma aberta e safam-se por
onde calha. São corno eu. Não me satisfiz com o velho Evangelho, que me estava à mão.
Tanto lhe mexi, tanto lhe fiz, até que o rasguei. As vezes ainda sinto o Espírito, mas já não
tenho nada para pregar. Tenho a vocação de guiar o povo, mas não sei para onde o guiar.
- Guie-o para onde calhar - disse Joad. - Mergulhe-o na vala de irrigação. Diga-lhe
que vai arder no inferno se não pensa como o senhor. Para onde diabo quer o senhor guiálo?
A sombra recta do tronco da árvore alongara-se pelo terreno. Joad instalou-se
agradavelmente, acocorou-se e alisou de novo a terra, para nela escrever os seus
pensamentos, com a vara. Um cão de gado, de pêlo espesso e amarelo, descia a estrada a
trote, de focinho baixo, com a língua pendente, a gotejar. Trazia o rabo caído, embora
ligeiramente encurvado na ponta e arquejava profundamente. Joad assobiou-lhe, mas ele
apenas olhou de lado e continuou a trotar como se levasse um rumo definido.
- Vai para qualquer lado - explicou Joad um pouco contrariado. - Talvez para casa.
O pregador voltara à sua preocupação.
- Vai para qualquer lado - repetiu ele. - Está bem, vai para qualquer lado. Eu não sei
para onde vou. Quer que lhe diga? Eu fazia aquela gente pular e falar e proclamar a glória
de Deus até todos caírem no chão exaustos. E a alguns, baptizava-os. E depois, sabe você o
que eu fazia? Levava uma daquelas raparigas para o mato e deitava-me com ela. Era o que
sempre fazia. Depois, arrependia-me e rezava, rezava, mas sem proveito. Daí a pouco ela e
eu estávamos cheios do Espírito e acontecia a mesma coisa. Pensei que nada havia a
esperar de mim, que era um rematado hipócrita. Mas era sem querer.
Joad sorriu-se e, mostrando os dentes grandes e ralos, lambeu os beiços.
- Não há nada como uma reunião de culto bem animada para aquecer as raparigas -
disse ele. - Já tenho experimentado isso. - Casy inclinou-se para a frente excitado. - Você
está a ver; eu compreendi que era assim e pus-me a pensar. - Agitou a mão ossuda e nodosa
num movimento de vaivém semelhante a uma carícia. - Pus-me a pensar desta maneira:
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aqui estou eu pregando a graça divina. E eis aqui gente que obtém tanta graça que até salta
e grita. Mas há quem diga que dormir com uma rapariga é obra do diabo. Mas, quanto mais
cheia de graça se sente uma rapariga, mais depressa quer ir para o mato. E pus-me a pensar
como diabo - desculpe a expressão! - é que o espírito do mal entra numa moça tão cheia do
Espírito Santo que até este lhe jorra do nariz e dos ouvidos. justamente quando o diabo
não devia ter oportunidade para tal! E, no entanto, era quando ele mais se manifestava.
Os seus olhos brilhavam de excitação. Revolveu as bochechas por um momento e
depois cuspiu na poeira, e o jacto de cuspo rolou, aderindo ao pó, até formar uma pequena
bola seca e redonda.
O pregador estendeu a mão e olhou para a palma como se estivesse lendo um livro.
- E eis o que eu fiz - prosseguiu ele. - Eis o que eu fiz com todas aquelas almas de
gente na minha mão, responsável e sentindo a, responsabilidade, e sempre a deitar-me com
uma das raparigas.
Olhou para Joad e no seu rosto havia uma expressão de desânimo. Parecia que pedia
socorro.
Joad desenhou o tronco de uma mulher na poeira, peitos, ancas e pélvis
- Nunca fui pregador - disse ele. - Nunca deixei fugir nada que pudesse agarrar. E
sobre isso nunca tive outras ideias senão que me sentia muito contente quando arranjava
uma rapariga.
- Mas você não era pregador - insistiu Casy. - Uma rapariga, para você, era apenas
uma rapariga. Não era mais nada. Mas, para mim, elas eram vasos sagrados. Andava a
salvar-lhes as almas. E, com essa responsabilidade em cima de mim, incutia-lhes o Espírito
Santo e depois levava-as para o mato.
- Talvez que eu desse um bom pregador - disse Joad.
Tirou para fora o tabaco e as mortalhas e enrolou o cigarro. Acendeu-o e, através das
fumaças, disse ao pregador:
- Já há muito que estou sem mulher. Tenho de ver se engato uma.
Casy continuou:
- A coisa apoquentava-me tanto que cheguei ao ponto de não dormir. E, de cada vez
que ia pregar, dizia para mim: Meu Deus, desta vez não faço isso. Mas, mesmo enquanto o
dizia, eu sabia o que ia acontecer.
- O senhor devia ter-se casado - observou Joad. - Na nossa casa esteve uma vez um
pregador e a mulher. Eram jeviotas. Dormiam na parte de cima da casa. Faziam as
pregações no celeiro. Nós, os garotos, escutávamos. A mulher do pregador, depois de cada
sermão, levava pancada de criar bicho.
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- Folgo muito que me dissesse isso - declarou Casy. - Pensava que tosse só eu.
Finalmente, afligi-me tanto que não fazia outra coisa senão magicar.
Dobrou as pernas e pôs-se a esgaravatar entre os dedos dos pés secos e poeirentos.
- Dizia para mim: o que é que te está a roer? É uma broca? Não; é o pecado. E eu
dizia: porque é que quando um homem está quase à prova de fogo contra o pecado e cheio
de Jesus, é que lhe dá para desapertar os botões das calças?
Pôs-se a bater ritmicamente com dois dedos na palma da mão, como se ali estivesse
colocando cada palavra lado a lado.
- E eu dizia: Talvez não seja pecado. Talvez seja a maneira de ser natural da gente.
Talvez que estejamos a sacudir o diabo de nós mesmos para nada. E eu pensei como
algumas irmãs se flagelavam com um açoite de pontas de arame que é quase do tamanho de
um metro. E pensei que, como elas gostavam de se mortificar, talvez também eu gostasse.
Estava debaixo de uma árvore, quando me pus a magicar nisto, e adormeci. E veio a noite e
era ainda escuro quando acordei. Perto uivou um lobo. E eu, sem pensar, disse em voz alta:
Que vão para o inferno! Não há pecado nem virtude. Há apenas o que a gente quer fazer.
Tudo z parte da mesma coisa. E algumas das coisas que a gente faz são boas e outras não
são boas, mas isto é como cada um as aprecia.
Parou e ergueu os olhos da palma da mão, onde parecia ter colocado as palavras.
Joad fixava-o, arreganhando os dentes, mas os seus olhos mostravam-se penetrantes
e interessados.
- O senhor acabou com isso. Deixou de magicar.
Casy voltou a falar com voz dolente e confusa:
- E eu dizia: o que é este chamamento, este Espírito? E eu dizia: é o amor; amo tanto
esta gente, a ponto, às vezes, de rebentar. Eu dizia: não amas Jesus? Então pensava, tornava
a pensar e finalmente dizia: não, não conheço ninguém com o nome de Jesus. Conheço um
chorrilho de histórias, mas eu só amo o povo. E, algumas vezes, amo-o a ponto de
rebentar, e, por isso, tenho pregado alguma coisa que eu pensava que o faria feliz. E depois
creio que já falei demais. Talvez você se espante de eu empregar palavras más. São apenas
palavras que o povo usa, e nada de mau quero dizer com elas. E, seja como for, tenho de
lhe dizer mais uma coisa que pensei; dita por um pregador é a coisa mais irreligiosa que
pode haver; já não posso ser pregador exactamente porque a pensei e acreditei.
- Que foi? - perguntou Joad.
Casy olhou-o acanhado.
- Se não lhe soar bem, você não se ofende, não?
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- Eu nunca me ofendo, a não ser que me dêem um murro no nariz. Que pensou o
senhor?
- Pensei qual seria o caminho para o Espírito Santo e para Jesus. Pensei: porque é que
nós devemos depender de Deus ou de Jesus? Talvez - pensei eu - seja melhor amar todos
os homens e todas as mulheres; talvez que o Espírito Santo seja apenas o. espírito humano.
Talvez que todos os homens tenham em conjunto uma ú nica alma grande de que toda a
gente faz parte. Sentei-me ali a magicar nisso e, de repente, vi tudo. Vi perfeitamente que
isso era verdade e continuo a ver da mesma forma.
Os olhos de Joad abaixaram-se, como se não pudesse enfrentar a honestidade crua
do pregador.
- O senhor não pode ter igreja com ideias como essa - disse ele. - O povo correria
consigo. Eles querem é saltar e gritar. É disso que o povo gosta. Sente-se bem assim.
Quando a avó se punha a falar de religião, ninguém a podia segurar. Era capaz - e derrubar
uma parede com um murro.
Casy olhou-o pensativo.
- Queria perguntar-lhe uma coisa. Uma coisa que me anda cá a morder.
- Diga; não se acanhe.
- Olhe-o pregador falava vagarosamente- aí está você que eu baptizei quando ainda
estava em plena glória. Nesse dia, Jesus até me saía aos pedaços pela boca. Você não se
lembra porque estava a puxar pela trança da tal pequena.
- Lembro-me - afirmou Joad. - Era a Suzy Little. Um ano depois trincou-me o dedo.
- E então, você tirou algum partido desse baptismo? Correu-lhe a vida melhor?
Joad, pensou um bocado.
- Não, nem dei por isso.
- Então, e mal? Você ficou pior? Pense bem.
Joad pegou na garrafa e tomou um trago.
- Nem bem nem mal. Para mim, foi uma brincadeira.
Entregou o frasco ao pregador. Este suspirou, bebeu, olhou para o nível baixo do
whisky e tomou outro pequeno gole.
- Ainda bem - disse ele. - Estava com receio de que, nessas práticas, eu tivesse
prejudicado alguém.
Joad olhou para o casaco e viu o cágado livre do embrulho e caminhando pressuroso
na direcção que seguia quando o havia encontrado. Joad observou-o por um momento e
apanhou-o, tomando a envolvê-lo no casaco.
- Não tenho presente para levar aos miúdos. Nada, além deste velho cágado.
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- É engraçado - interpôs o pregador. - Estava a pensar em Tom Joad quando você
chegou. Pensava em lhe fazer uma visita. Eu antigamente supunha que ele era um homem
sem Deus. Como está Tom?
- Não sei. Há quatro anos que não vou a casa.
- Mas ele não lhe escreveu?
Joad ficou embaraçado.
- Sabe, o meu pai não é homem para escrever. Assinava o seu nome tão bem como
qualquer outro e até lambia o lápis. Mas cartas, nunca escreveu. Dizia muitas vezes que
aquilo que se não podia dizer de boca, também não valia a pena pôr no papel.
- Você tem andado a viajar? - perguntou Casy.
Joad olhou-o desconfiado.
- Ninguém lhe disse nada de mim? Pois olhe que o meu nome veio em todos os
jornais.
- Não, nunca. Porquê?
Passou uma perna sobre a outra e chegou-se mais à árvore. A tarde avançava
rapidamente e o sol adquirira uma tonalidade mais rica.
Joad falou em ar de brincadeira:
- É melhor que eu lho diga agora para acabar com isto. Mas, se o senhor ainda
andasse na pregação, nada lhe dizia, com medo que se pusesse a rezar por mim.
Esvaziou o resto do whisky e atirou fora a garrafa castanha e achatada que rolou no
pó.
- Estive em MacAlester, estes quatro anos.
Casy voltou-se para ele e as suas sobrancelhas desceram tanto que a testa parecia
ainda mais alta.
- Não há necessidade de falar nisso, hein? Não quero fazer perguntas se você fez
alguma coisa de mal...
- Tornava a fazer o que fiz - asseverou Joad. - Matei um gajo numa briga. Estávamos
bêbedos num baile. Apontou-me uma navalha e eu matei-o com uma pá que apanhei ali à
mão. Rachei-lhe a cabeça de meio a meio.
As sobrancelhas de Casy subiram ao nível normal.
- Você não tem então nada de que se envergonhar?
- Não - respondeu Joad. - Não tenho. Gramei sete anos por via da navalha que ele
me apontou. Mas saí ao fim de quatro anos, sob liberdade condicional.
- Então você já não sabe da sua gente há quatro anos?
28
- Oh, soube! A minha mãe mandou-me um postal há dois anos, e, no Natal passado,
a avó mandou-me um cartão. Jesus, como se riram os gajos lá do chilindró! Tinha uma
árvore e uma coisa brilhante que parecia neve. E os versos eram assim:
Alegre total, criança pura,
Jesus meigo, Jesus doce,
Sob a árvore do Natal,
Há um presente para ti.
Creio que a avó nunca leu aquilo. Naturalmente, comprou-o a algum vendedor
ambulante e escolheu o mais vistoso. Os tipos lá da minha camarata quase se mijaram a rir.
Começaram depois a chamar-me o Jesus meigo. A minha avó, coitada, não queria rir-se à
minha custa, ela pensou que o cartão era tão inocente que nem valia a pena incomodar-se a
lê-lo. Perdeu os óculos no ano em que eu fui catrafilado. Talvez que nunca os tornasse a
achar.
- Como é que o trataram em MacAlester?
- Oh, muito bem! Come-se regularmente, tem-se roupa limpa e há muito onde tomar
banho. E muito bom em alguns sentidos. Mas o que custa é não haver mulheres.
Nesta altura riu-se.
- Havia lá um gajo que saiu em liberdade condicional. Ainda não tinha passado um
mês e já estava de volta por ter quebrado a palavra. Um outro gajo perguntou-lhe porque
quebrara a palavra. “Foi por isto - disse ele -: Não há comodidades em casa do meu velho.
Não há luz eléctrica nem chuveiro. Não há livros e a comida é asquerosa.” E disse que
voltara para onde tinha algumas comodidades e onde comia regularmente. Sentia-se
desolado em liberdade, sem saber o que havia de fazer. E, por isso, roubou um automóvel
para voltar.
Joad puxou pelo tabaco, tirou uma mortalha do livro e enrolou um cigarro.
- O tipo tem razão - continuou ele. - A noite passada, ia ficando maluco, a pensar
onde havia de dormir. Pus-me a pensar na minha tarimba, no que faria o meu companheiro
de cela. Eu e alguns tipos tínhamos lá uma orquestra. E boa. Um deles disse que devíamos
ir para a rádio. E esta manhã não sabia a que horas me levantar. Fiquei deitado, à espera do
toque da sineta.
Casy riu-se.
- Quando a gente se habitua, até o barulho de uma serração nos faz falta.
29
A luz amarelada, poeirenta, da tarde estendeu sobre a terra um colorido de ouro. As
hastes do milho pareciam doiradas. um bando de andorinhas passou no ar, em direcção a
alguma poça de água. O cágado ensaiou nova tentativa de escapar do casaco de Joad. Joad
dobrou a pala do boné, que parecia agora a curva do longo bico de um corvo.
- Vou-me chegando - disse ele. - Não gosto de andar ao sol, mas já não está tão
quente.
Casy endireitou-se.
- Há que tempos que não vejo o velho Tom! Tenho de estar com ele, seja como for.
Preguei Jesus à sua gente durante muito tempo e nunca exigi dinheiro nem nada, a não ser
uma côdea para comer.
- Venha daí - convidou Joad. - O meu pai vai ficar satisfeito de o ver. Ele sempre
disse que o senhor era passarão de mais para ser pregador.
Levantou a trouxa do casaco e apertou bem o cágado à volta dos sapatos.
Casy agarrou os sapatos de lona e meteu neles os pés.
- Nunca tive a vossa confiança - disse ele. - Ando sempre com medo de que haja
arame ou vidro debaixo do pó. Não há nada que me aborreça tanto como ter um dedo do
pé cortado.
Hesitaram na orla da sombra e depois mergulharam na luz amarela do sol, como dois
nadadores apressados em chegar à praia. Após algumas passadas rápidas, abrandaram a
marcha, num ritmo compassado, meditativo. As hastes do milho projectavam sombras
acinzentadas, oblíquas, e no ar havia o cheiro cru da poeira quente. Acabara o campo de
milho e começava o do algodão, verde-escuro, folhas verde-escuras através de uma cortina
de poeira, com os casulos em formação. Era algodão sujo, denso, nos lugares baixos, onde
tinha havido água, e falho nos lugares altos. As plantas lutavam com o Sol. E, à distância, o
horizonte tornava-se quase invisível. A estrada estendia-se na frente deles, serpeando em
subidas e descidas. Os salgueiros de um regato alinhavam-se a oeste, e, a noroeste, uma
mancha de terra inculta começava a cobrir-se de mato. Mas havia no ar um odor de poeira
e tamanha secura que o muco do nariz se endurecia numa crosta e os olhos choravam para
evitar que as pupilas secassem.
Casy observou:
- Veja como o milho cresceu até vir a poeira. Tinha sido uma estupenda colheita.
- Todos os anos - comentou Joad - todos os anos, desde que me lembro, havia
promessas de uma boa colheita que nunca vinha. O avô diz que foi boa nas primeiras cinco
lavras, enquanto havia mato nas terras.
A estrada descia uma colina e subia em direcção a outra.
30
Casy disse:
- A casa do velho Tom não pode estar a mais de uma milha. Ela não fica para lá
daquela terceira subida, pois não?
- Não, não fica - disse Joad. - A não ser que alguém a tivesse roubado, como meu pai
a roubou.
- O seu pai roubou-a?
- Roubou, sim. Topou-a a milha e meia a leste daqui e levou-a. Vivia lá uma família
que a abandonou. O meu avô, o meu pai e o meu irmão Noah queriam levar a casa toda,
mas não era possível. Só levaram parte. É por isso que ela tem um aspecto tão engraçado
de um lado. Racharam-na ao meio e trouxeram-na às costas de doze cavalos e de duas
mulas. Voltaram à procura da outra metade, para a juntarem à primeira, mas, quando
chegaram, já o Wink Matiley tinha vindo com a gente dele e roubado essa metade. O pai e
o avô ficaram danados, mas, pouco depois, o Wink apareceu e emborracharam-se todos,
rindo a bandeiras despregadas do caso. O Wink disse que a casa dele era o garanhão e que
podíamos trazer a nossa casa para a cruzar com a dele e assim parir uma ninhada de casas.
O Wink era um grande pândego quando estava tachado. Depois disso, ele, o meu pai e o
meu avô ficaram amigos. Embebedavam-se sempre que se encontravam.
- O Tom era um camaradão - afirmou Casy.
Tinham alcançado, embora a custo, o fundo de uma encosta afrouxaram o passo para
a subida. Casy limpou a testa com manga do casaco e pôs outra vez o chapéu de copa
amarrotada na cabeça.
- Sim - repetiu. - Tom era um camarada. Para um homem sem religião, era um bom
camarada. Via-o às vezes nas rezas, quando o Espírito entrava nele um poucochinho e vi-o
dar saltos de três metros e mais. É o que lhe digo: quando o velho Tom tomava uma dose
de Espírito Santo, toda a gente tinha de correr para não ser derrubada e pisada. Pulava
corno um garanhão no picadeiro!
Chegaram ao cimo da outra encosta. A estrada descia em direcção a um regato feio e
agreste, de curso desigual, com cicatrizes na terra de ambas as margens, a atestar antigas
inundações. Joad passou em bicos de pés as pedras que o atravessavam.
- O senhor fala assim do meu pai - disse ele. - Talvez não tivesse visto o tio John na
ocasião em que o baptizaram em casa dos Polks. Pôs-se a pular e a saltar. Saltou sobre um
arbusto do tamanho de um piano. Saltou e tornou a saltar, uivando como um cão à Lua.
Então, o meu pai viu-o, o meu pai, que imagina que é o melhor saltador em honra de Jesus
nestes sítios. O que há-de ele fazer? Escolhe um arbusto duas vezes do tamanho do do tio
John e, soltando uns grunhidos como uma porca, que estivesse parir cacos de sangue, corre
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para ele, salta-lhe em cima e quebra perna direita. Isso tirou o Espírito todo ao meu pai. O
pregador queria curá-lo com rezas, mas ele disse que não, por Deus, o que queria era um
médico. Bem, médico não havia, mas arranjou-se um dentista ambulante e foi esse que o
tratou. O pregador sempre fez qualquer reza, lá como ele entendeu.
Subiram a pequena elevação do outro lado do regato. Agora, que o Sol estava no
ocaso, dissipara-se parte da sua força, e, apesar e o ar estar quente, os raios fustigantes
tornavam-se mais fracos. A estrada era ainda marginada por cercas de arame, com paus
torcidos. A linha de arame estendia-se do lado direito, através de um campo de algodão e o
algodão, verde e empoeirado, tinha o mesmo aspecto de ambos os lados, seco, verdeescuro
e coberto de pó.
- Aquela terra cercada é a nossa - informou Joad, apontando para lá. - Nós,
verdadeiramente, não precisávamos de cerca, mas, como tínhamos o arame, o meu pai quis
aproveitá-lo de qualquer maneira. Ele disse que aquilo lhe dava um sentido de posse. Não
teria posto a cerca se o tio John não tivesse vindo uma noite com seis rolos de arame na
carroça. Vendeu-lhos por um porco. Nunca soubemos onde ele arranjou aquele arame.
Afrouxaram o passo na subida, movendo os pés na poeira funda e mole, sentindo o
contacto da terra. Os olhos de Joad, achavam-se concentrados nas suas recordações.
Parecia estar-se a rir interiormente.
- O tio John era um grande ratão - disse ele. - O que ele fez com aquele porco!
E, rindo, continuou a andar.
Casy esperou impacientemente pelo fim da história que não vinha. Por fim,
perguntou, um tanto irritado:
- Bem, mas que fez ele com o porco?
- Anh? Ora! Matou o porco ali mesmo e fez com que a mãe acendesse o forno.
Cortou umas fatias, pô-las na caçarola e pôs costeletas e uma perna no forno. Comeu as
fatias enquanto as costeletas assavam e engoliu as costeletas enquanto a perna aloirava.
Nós, os miúdos estávamos de roda, a babar-nos, e ele deu-nos uns pedaços, mas não quis
dar nada ao meu pai. Comeu tanto que teve de ir para a cama. Enquanto estava a dormir,
nós, os miúdos, e o nosso pai acabámos com a perna. Pois, quando o tio John acordou, de
manhã, meteu a outra perna no forno. Então, o meu pai disse-lhe: “John, tu vais comer o
porco todo sozinho?” E ele respondeu: “Sim, faço tenção disso, Tom, porque tenho medo
que ele se estrague, antes de eu o comer, danado como sou por carne de porco. Agora, se
tu quiseres, torna-me a passar dois rolos de arame que eu dou-te um prato bem cheio.” Mas
o meu pai não era tanso. Deixou o tio John comer do porco até se enfastiar e, quando ele
se foi embora, com a carroça, pouco mais de metade tinha engolido. O pai disse-lhe:
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“Porque não o salgas tu?” Mas isso não era com o tio John; quando ele quer porco, há-de
ser um porco inteiro, e, quando está farto, nem admite que lhe falem em porco sequer. E,
assim que ele se foi, o pai salgou o que restava.
Casy comentou:
- Quando eu tinha ainda o espírito de pregador, teria tirado disso uma lição para lha
dar a você. Mas agora isso já lá vai. Você faz uma ideia do que teria levado seu tio a fazer
isso?
- Não sei - respondeu Joad. - Era muito guloso de carne de porco. Quando me
lembro disso, até fico com fome. Em quatro anos, apenas comi quatro fatias de carne de
porco assada, uma fatia em cada Natal.
Cassy sugeriu delicadamente:
- Talvez o Tom mate o bezerro gordo, como na parábola do filho pródigo, quando
você chegar.
Joad teve um sorriso de desdém:
- O senhor não conhece o meu pai. Se ele matar uma galinha, quem chia, não é a
galinha, é ele. A experiência não lhe serve de nada. Anda sempre a poupar um porco para o
Natal e o bicho morre em Setembro, inchado de, tanta comida ou com qualquer doença
que não deixa meter-lhe o dente. Quando o tio John queria trabalho, comia carne de porco.
E arranjava-a sempre.
Chegaram, enfim, à curva da colina e viram a casa de Joad lá em baixo. Joad parou.
- Já não é a mesma - exclamou. - Olhe para aquela casa. Aconteceu alguma coisa.
Não há lá ninguém.
Os dois homens pararam, de olhos fixos no pequeno grupo de edifícios.
33
Capítulo V
Os senhores chegavam às terras ou, mais frequente mente, mandavam alguém por
eles. Vinham em carros fechados, e apalpavam a terra ressequida com os dedos, mas
algumas vezes traziam brocas grandes, que perfuravam o solo para o analisar. Os rendeiros,
à porta dos seus pátios, batidos pelo sol, observavam, inquietos, a marcha dos carros
através dos campos. E, por fim, os proprietários entravam nos pátios e, sentados nos seus
carros, falavam para fora das janelas. Os rendeiros paravam ao lado dos carros por um
momento e, depois, punham-se de cócoras a esgravatar a poeira com paus.
Nas portas abertas, as mulheres olhavam para fora e, por detrás delas, as crianças -
crianças de cabelo cor de milho e de olhos muito abertos, com um pé descalço por cima do
outro pé descalço, remexendo os dedos. As mulheres e as crianças observavam os homens
a falar com os senhorios. Mantinham-se silenciosas.
Alguns dos senhorios eram afáveis, porque detestavam o que estavam a fazer; outros
mostravam-se irritados, porque lhes repugnava serem cruéis, e ainda outros eram frios,
porque de há muito tinham descoberto que se não podia ser proprietário de terras sem se
ser frio. Mas todos eles se sentiam apanhados numa teia mais poderosa do que eles
próprios. Alguns odiavam os algarismos que os impeliam, outros tinham medo, e outros
adoravam os algarismos porque lhes serviam de refúgio para não pensarem nem sentirem.
Se um banco ou uma empresa financeira era o dono da terra, o seu delegado dizia: “O
Banco - ou a Companhia - precisa, quer, insiste, exige”, como se o Banco ou a Companhia
fosse um monstro, com ideias e sentimentos, que os tivesse apanhado na rede. Estes não
tomavam responsabilidades em nome dos bancos ou das companhias porque eram homens
e escravos, ao passo que os bancos eram ao mesmo tempo máquinas e patrões. Alguns dos
delegados sentiam-se um tanto orgulhosos de serem escravos de patrões tão frios e tão
poderosos. Os senhorios ou os seus representantes sentavam-se nos carros e explicavam:
- Vocês sabem que a terra é pobre. Vocês já a revolveram bastante tempo, como
Deus sabe.
Os rendeiros, acocorados no chão, acenavam com a cabeça, meditavam e
desenhavam figuras no pó. Sim, eles sabiam, Deus sabia também. Se não fosse a poeira! Se,
ao menos, eles pudessem adubar a terra, não seria tão mau.
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Os senhorios continuavam a chegar a brasa à sua sardinha:
- Vocês sabem que a terra está cada vez mais pobre. Vocês sabem o que o algodão
faz à terra: rouba-a, suga-lhe todo o sangue.
Os colonos acenavam com a cabeça, que sabiam, que Deus sabia. Se pudessem
alternar as plantações, podiam tornar a insuflar sangue na terra.
- Sim, mas é muito tarde. E os senhorios explicavam os actos e os pensamentos do
monstro, que era mais forte que eles. Um homem pode ter terra de renda, se ela lhe dá para
comer e pagar impostos: assim pode tê-la.
Sim, pode tê-la até que um dia as colheitas falham e ele tem de pedir dinheiro
emprestado ao banco.
- Vocês bem vêem; um banco ou uma companhia não podem viver assim, porque
essas entidades não respiram ar, não comem carne. Respiram lucros; comem os juros sobre
o dinheiro. Se os não obtiverem, morrem do modo por que vocês morrem: sem ar e sem
carne. É uma coisa triste, mas é assim mesmo. Precisamente assim.
Os homens, agachados, erguiam os olhos para compreender. Não seria possível
esperar mais algum tempo? Talvez que o próximo ano seja um bom ano. Sabe Deus se
haverá muito algodão no próximo ano? E, com todas as guerras, sabe Deus o preço a que o
algodão chegará. Não se fazem explosivos de algodão? E uniformes? Arranjem bastantes
guerras e o algodão subirá até ao tecto. No próximo ano, talvez. Olhavam para os
senhorios com ar interrogativo.
- Não podemos estar atidos a isso. O banco - o monstro - tem de recolher sempre
lucros. Não pode esperar. Senão, morre. Não, os juros estão continuamente a subir.
Quando o monstro pára de crescer, morre. Não pode estar sempre no mesmo tamanho.
Dedos finos começavam a tamborilar no peitoril da janela do carro e dedos calosos
apertavam mais os paus que esgaravatavam nervosamente no chão. Às portas das casas
batidas pelo sol, onde moravam os rendeiros, as mulheres suspiravam e mudavam os pés,
de modo que o que tinha estado para baixo, estava agora para cima, com os dedos a bulir.
Os cães chegavam, farejavam perto dos carros dos senhorios e mijavam sucessivamente em
todos os pneumáticos. E as galinhas agachavam-se na poeira quente e sacudiam as penas
para que a poeira lhes descesse até à pele. Nas pequenas pocilgas, os porcos grunhiam,
pedindo qualquer coisa, remexendo os restos enlodados das lavagens.
Agachados, os homens tornavam a ferrar os olhos no chão.
- Que querem os senhores que a gente faça? Não podemos tirar partilha menor da
colheita; estamos quase a morrer de fome. As crianças andam sempre esfomeadas. Não
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temos roupas ; só farrapos. Se todos os vizinhos não estivessem na mesma, teríamos
vergonha de ir ao culto.
E, por fim, os senhorios chegaram ao ponto crucial.
- O sistema de arrendamento não pode vigorar mais. Um só homem a guiar um
tractor pode fazer o trabalho de doze ou catorze famílias Paguem-lhe um salário e ele toma
para si toda a colheita. Temos de ver isso. É contra a nossa vontade. Mas o monstro exigeo.
Não nos podemos opor a ele.
- Mas vão matar a terra com algodão.
- Bem sabemos. Temos de cultivar algodão depressa, antes que a terra morra. Depois
vendemos a terra. Há centenas de famílias no Este que querem possuir um bocado de terra.
Os rendeiros olharam para os carros, alarmados.
- E, depois, o que vai suceder? Como havemos de comer?
- Vocês têm de deixar a terra. Os arados rasgarão os vossos quintais.
E agora os homens agachados ergueram-se, coléricos.
O avô havia-se apoderado da terra; tivera de matar os índios e de os expulsar. E o pai
nascera ali e matara ervas ruins e cobras. Depois, viera um ano mau e ele tivera de pedir
algum dinheiro emprestado.
- E nós nascemos aqui. Esses que estão ali às portas - os nossos filhos - nasceram
aqui. E o pai teve de pedir dinheiro emprestado. O banco achou-se então dono da terra, e
nós ficámos, mas apenas com uma pequena parte daquilo que colhíamos.
- Nós sabemos isso, tudo isso. Não somos nós, é o banco. Um banco não é um
homem. E um proprietário de cinquenta mil acres também não é como um homem. É um
monstro.
- Decerto - exclamaram os rendeiros - mas é a nossa terra. Medimo-la e rasgámo-la.
Nela nascemos; fazemo-nos matar nela; Morremos nela. Apesar de não ser boa, mesmo
assim é nossa. E isso que faz que ela seja nossa: termos nascido nela, trabalhado nela,
morrido nela. Isto é que justifica o direito de propriedade e não um papel com algarismos
escritos.
- Sentimos muito. Mas não somos nós. É o monstro. O banco não é como um
homem.
- Sim, mas o banco só se compõe de homens.
- Não, vocês enganam-se nisso; enganam-se redondamente. O banco é alguma coisa
mais do que homens. Acontece que todos os homens odeiam o que o banco faz, e todavia
o banco fá-lo. O banco é alguma coisa mais do que os homens, acreditem. É o monstro.
Os homens fizeram-no mas não podem controlá-lo.
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Os rendeiros bramaram:
- O avô matou índios, o pai matou cobras por causa da terra. Talvez nós possamos
matar os bancos; são piores do que os Índios e as cobras. Talvez nós nos disponhamos a
combater para conservar a nossa terra, corno fizeram o pai e o avô.
E então chegou a vez de os senhorios ficarem zangados.
- Vocês têm de sair daqui.
- Mas a terra é nossa - vociferavam os rendeiros. - Nós...
- Não é. O banco, o monstro, é o dono. Vocês têm de sair daqui.
- Pegamos nas nossas espingardas, como o avô quando os Índios vieram. Que é que
nos poderá acontecer?
- Primeiro vem o xerife e depois a tropa. Serão ladrões se teimarem em ficar; serão
assassinos se matarem para ficar. O monstro não é homem, mas pode arranjar homens para
fazerem o que ele quer.
- Mas, se sairmos daqui, para onde iremos? E como iremos? Estamos sem dinheiro.
- Sentimos muito - disseram os senhorios. - O banco, o dono de cinquenta mil acres,
nada tem com isso. Vocês estão em terra que não é vossa. Talvez que, para lá da divisa,
vocês consigam arranjar trabalho no Outono, na colheita do algodão. Talvez consigam ser
socorridos como indigentes. Porque não vão para o Oeste, para a Califórnia? Há lá muito
trabalho e nunca faz frio. Ali, em qualquer parte, podem estender a mão e apanhar uma
laranja. Ali há sempre uma ou outra plantação onde trabalhar. Porque não hão-de vocês de
ir?
E os senhorios puseram os carros em movimento e foram-se embora.
Os rendeiros agachavam-se de novo para fazerem garatujas na poeira, para pensarem,
para ponderarem. Os seus rostos queimados estavam sombrios e os olhos batidos de sol
coruscavam. As mulheres saíram cautelosamente das portas das casas para o pé dos
homens e as crianças arrastavam-se atrás das mães, cautelosas, prontas e fugir. Os rapazes
mais crescidos agachavam-se ao lado dos pais, porque isso os fazia homens. Daí a pouco,
as mulheres perguntavam:
- Que é que eles querem?
E os homens olhavam para elas um instante, com uma sombra de dor nos olhos.
- Temos de sair daqui. Um tractor e um capataz. Como nas fábricas.
- Para onde vamos? - perguntavam as mulheres.
- Não sabemos. Não sabemos.
E as mulheres iam-se embora, muito de mansinho, para dentro das casas, levando as
crianças â sua frente. Sabiam que um homem assim aflito e embaraçado até é capaz de se
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zangar com as pessoas que ama. Deixavam os homens sozinhos, a pensar e a desenhar na
poeira.
Passado um bocado, o rendeiro ia dar uma vista de olhos à bomba posta há dez anos,
com um manípulo em forma de pescoço de ganso e flores de ferro na boca, a um cepo
onde centenas de galinhas tinham sido mortas, a um arado de mão pousado no telheiro e a
uma grade suspensa por cima dele, nas vigas.
As crianças arrebanhavam-se junto das mães, nas casas.
- Que vamos fazer, mãe? Para onde vamos?
As mulheres diziam:
- Não sabemos ainda. Vão brincar. Mas não se aproximem do vosso pai. É capaz de
vos bater se vocês se chegarem para o pé dele.
E as mulheres continuavam a trabalhar, mas sem perderem de vista os homens
agachados na poeira - perplexos e pensativos.
Os tractores calcaram as estradas e invadiram os campos, como se fossem grandes
répteis de ferro que se moviam como insectos e que tinham a força incrível dos insectos.
Rastejavam pelo chão, cavando sulcos, rolando sobre eles e levantando-os tractores Diesel,
vibrando quando parados, trovejando quando se moviam, baixando depois para uma zoada
monótona. Monstros, de nariz chato, erguendo a poeira e enterrando o focinho nela,
marchando a direito pelas terras, cruzando as terras através de cercas, de portais, dentro e
fora de barrancos, em linhas rectas. Não corriam pelo solo, mas por estradas que eles
próprios cavavam. Não faziam caso de colinas, nem de barrancos, de correntes de água, de
valados ou de casas.
O homem que se sentava no assento de ferro não parecia um homem; enluvado, de
óculos, com uma máscara de borracha empoleirada sobre o nariz e a boca, era uma parte
do monstro, um autómato no assento. O estrondo dos cilindros reboava pelos campos
fora, em comunhão com o ar e com a terra, e assim, o ar e a terra ecoavam numa só
vibração. O condutor não o podia controlar, ia através dos campos, cortando por uma
dúzia de quintas e voltando horizontalmente. Um puxão nas alavancas podia desviar o
monstro, mas as mãos do condutor eram impotentes para isso, porque o monstro que
construíra o tractor, o monstro que expedira o tractor, tinham-se de qualquer modo
introduzido nas mãos do condutor, no seu cérebro e nos seus músculos; tinham-no torcido
e açamado - torcido o espírito, açamado a fala, torcido a sua percepção e açamado o seu
protesto. Ele não podia ver a terra tal qual era, não podia sentir o cheiro que ela exalava; os
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seus pés não calcavam os torrões nem sentiam o calor nem a força do solo. Sentava-se num
assento de ferro, e calcava pedais de ferro. Ele não podia estimular, fustigar, amaldiçoar ou
incitar a extensão do seu poder, e, por causa. disso, não se podia estimular, fustigar,
amaldiçoar ou incitar a si mesmo. Não conhecia nem possuía a terra, e nem nela confiava
nem por ela implorava. Se uma semente lançada não germinasse, eis uma coisa que nada
lhe dizia. Se uma tenra planta brutalizada secasse, mirrada pela estiagem. ou afogada numa
avalanche de chuva, tanto caso fazia disso o condutor como a sua máquina.
Ele nutria pela terra a mesma indiferença que o banco tinha por ela. Podia admirar o
tractor - a sua estrutura mecânica, a plenitude da sua força, o rugido dos seus cilindros de
detonação; mas o tractor não era seu. Atrás do tractor rolavam os discos brilhantes,
cortando a terra com as lâminas - não era lavragem mas cirurgia, que repuxava a terra para
a direita, quando a segunda fila de discos cortava e repuxava para a esquerda - lâminas
brilhantes e aguçadas, polidas pela terra dilacerada. E, impelidas atrás dos discos, as grades
penteavam com dentes de ferro os pequenos torrões, quebrando-os e deixando a terra lisa.
Por detrás das grades, os semeadores compridos - doze ganchos recurvos de ferro saídos
da fundição - ligados por engrenagens, movendo-se metodicamente, movendo-se sem
paixão. O condutor sentava-se no seu assento de ferro e sentia-se orgulhoso das linhas
rectas que ele não traçara, do tractor que ele não possuía nem amava e do poder que ele
não podia controlar. E, quando aquela plantação crescia e era colhida, nenhum homem
havia esmagado um torrão quente nem peneirado a terra por entre as pontas dos dedos.
Nenhum homem tinha tocado a semente ou sentido alegria com a maturação. Os homens
comiam o que não tinham cultivado não tinham ligação com o pão. A terra gerava debaixo
de ferro e debaixo de terra gradualmente morria, porque não era amada nem odiada; não
recebia bênçãos nem maldições.
Ao meio-dia, o condutor do tractor parava, às vezes perto da casa de um rendeiro e
abria a bolsa onde trazia a merenda: sanduíches embrulhadas em papel encerado, pão
branco, conservas, queijo, um bocado de empada marcada como uma peça de máquina.
Comia sem apetite. Os rendeiros, que se não tinham ainda mudado, vinham observá-lo,
olhando curiosamente, enquanto ele tirava os óculos e a máscara de borracha, que lhe
deixavam círculos brancos à volta do nariz e da boca. O escape do tractor baforava, porque
o combustível é tão barato que é mais prático deixar o motor a trabalhar do que aquecer o
Diesel para nova empreitada.
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Crianças curiosas apinhavam-se perto, crianças esfarrapadas, que comiam massa de
farinha frita, a observarem. Observavam esfomeadamente o desembrulhar das sanduíches e
os seus narizes, aguçados pela fome, aspiravam o cheiro da conserva, do queijo e da
empada. Não falavam para o condutor. Observavam a mão dele ao levar o alimento à boca.
Não o observavam quando mastigava; os seus olhos seguiam a mão que segurava a
sanduíche. Decorrido algum tempo, um rendeiro que não se decidia a deixar aquele sítio,
aproximou-se, acocorando-se na sombra, ao lado do tractor.
- Olhe lá, você não é o filho do Joe Davis?
- Pois claro que sou - respondeu o condutor.
- Então porque anda a fazer esse maldito trabalho contra a sua própria gente?
- Três dólares por dia. Estava farto de me consumir para conseguir o jantar. Tenho
mulher e filhos. Precisamos de comer. Três dólares por dia, sem falhar um dia.
- Não há dúvida - disse o rendeiro. - Mas, por causa dos seus três dólares por dia,
ficam quinze ou vinte pessoas sem comer. Perto de uma centena de pessoas tem de sair
daqui e de vaguear pelas estradas por via dos seus três dólares por dia. Acha justo?
- Não quero saber disso. Tenho de pensar nos meus filhos. Três dólares por dia, sem
falhar um único. Os tempos mudaram, amigo. Você não sabe? Não se pode viver da terra,
a não ser que se possuam dois, cinco ou dez mil acres e um tractor. As plantações já não
são para pobretanas como nós. Você não se põe a gemer porque não pode fabricar Fords
ou porque não é a companhia dos telefones. A agricultura, agora, é assim. Não se pode
fazer nada. A gente tem de ver se obtém três dólares por dia nalguma parte. É a única
forma.
- Sim, tudo isso é muito estranho - ponderou o rendeiro.
- Mas, se um homem possui uma pequena propriedade, essa propriedade é parte dele,
é semelhante a ele. Se ele possui uma propriedade assim, pode andar sobre ela, tratar dela e
ficar triste quando ela não produz e sentir-se alegre quando a chuva a rega; essa
propriedade é ele, é parte dele, é semelhante a ele. Mesmo que não seja bem sucedido, ele
sente-se grande com a sua propriedade isto.
E, parando um pouco, prosseguiu:
- Mas, se um homem adquire uma propriedade que não vê, nem dispõe de tempo
para lhe pôr os dedos, nem lá pode ir para a sentir debaixo dos pés, então, a propriedade
sobrepõe-se ao homem. A propriedade é mais forte do que ele. E ele, em vez de ser grande,
torna-se pequeno. Só as suas possessões são grandes e ele é o servo da sua propriedade.
Esta é que é a verdade.
O condutor devorou o resto da empada e atirou a côdea fora.
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- Você não vê que os tempos estão mudados? A pensar assim, você não dá de comer
aos filhos. Veja se consegue ganhar três dólares por dia, para matar a fome aos filhos.
Ninguém lhe passou procuração para se ralar com os filhos dos outros. Trate mas é dos
seus. Daqui a pouco está para aí tudo cheio do que você diz e assim nunca chega a ganhar
três dólares por dia. Os patrões não lhe dão três dólares por dia se se incomodar com outra
coisa que não seja os seus três dólares por dia.
- Por causa dos seus três dólares há bem umas cem pessoas na estrada. Para onde
havemos de ir?
- Isso faz-me lembrar que é melhor você tratar depressa da mudança. Tenho de
atravessar o pátio da sua casa depois do jantar.
- Você obstruiu o poço esta manhã.
- Bem sei. Tinha de seguir em linha recta. Mas? depois de jantar, vou atravessar o
pátio. Tenho de manter as linhas rectas. E, enfim, eu aviso-o disto por você conhecer o Joe
Davis, lá o meu velho. Tenho ordens para, em toda a parte onde haja uma família que ainda
se não tenha mudado, me chegar para bem perto assim como que seja por acidente,
percebe você? - e escavacar um bocadito a casa, e, deste modo, meto no bolso uns dois
dólares. E o meu filho mais novo ainda não soube o que eram sapatos.
- Construi-a por minhas mãos. Endireitei pregos velhos para lhe pôr o forro. Liguei
os barrotes às traves com arame de rolo. É minha. Construí-a eu. Se você vem para a
derribar, eu apareço à janela com uma espingarda. Se você se aproxima muito, mato-o
como a um coelho.
- Mas se não sou eu o culpado! Nada posso fazer. Perco o meu emprego se não
cumpro as ordens. E, olhe: suponhamos que você me mata. Que acontece? Enforcam-no a
você, mas muito antes mesmo de você ser enforcado, aparece outro sujeito no tractor e ele
então deitará a casa abaixo. Você não pode matar o verdadeiro responsável.
- Sim, tem razão - assentiu o rendeiro. - Então quem lhe deu ordens? Vou procurá-lo.
É esse tipo que eu devo matar.
- Ai é que você se engana. Esse recebeu ordens do banco. O banco disse-lhe: expulse
essa gente toda, senão, perde o seu emprego.
- Sim, mas deve haver um presidente do banco. Deve haver um conselho de
administração. Vou encher a espingarda de balas e entro no banco.
- Mas ouvi dizer que o banco recebeu as ordens do Este - explicou o condutor. - E
essas ordens eram: fazer com que a terra dê lucro ou então fechamo-vos a porta.
- Aonde vai então isso parar? Quem devemos alvejar? Não quero morrer de fome
sem matar o homem que me está a tirar o pão.
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- Não sei. Talvez que não haja ninguém a alvejar. Talvez que não seja de modo algum
questão de homens. Talvez, como você disse, seja culpa da propriedade. Seja como for, já
lhe disse as ordens que me deram.
- Deixe-me pensar - disse o rendeiro. - Todos nós temos de pensar. Talvez haja
maneira de evitar isto. Não pode ser como o relâmpago e o terramoto. Se os homens
fizerem uma coisa má, haverá, por Deus, alguma coisa que se possa alterar.
O rendeiro sentara-se à porta de sua casa e o condutor pôs o maquinismo, em
movimento. Trilhos a abrirem-se e a encurvarem-se, as grades desterroando e os falos do
semeador perfurando o solo. O tractor cortou através do pátio da casa, e o terreno duro,
pisado pelos pés, tornou-se campo semeado, e o tractor continuou a retalhar; o espaço não
cortado tinha dez pés de largo. E voltou para trás. A guarda de ferro enfiou no ângulo da
casa, derrubou a parede e arrancou a pequena casa dos seus alicerces, de modo que ela caiu
de lado, esmagada como um percevejo. E o condutor tinha óculos e uma máscara de
borracha cobria-lhe o nariz e a boca. O tractor prosseguiu para a frente em linha recta; o ar
e a terra vibraram com o seu fragor. O rendeiro olhava espantado para aquilo, de
espingarda na mão, com a mulher ao lado e os filhos, quietos, atrás. E todos eles ficaram de
olhos pasmados para o tractor.
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Capítulo VI
O reverendo Casy e o jovem Tom detiveram-se na colina, a olhar para a habitação
dos Joads. A pequena casa, que nunca havia sido pintada, achava-se esmagada num dos
cantos e tinha sido de tal modo deslocada dos seus alicerces que se afundara num dos
ângulos, com. as janelas da frente apontando para um ponto do céu bastante acima do
horizonte. As cercas tinham desaparecido; o algodão crescia no pátio, encostado à casa e
também em volta do celeiro. Ao lado via-se o telheiro e, mesmo cosido com ele o algodão
ia-se desenvolvendo. Onde o pátio tinha sido bem pisado pelos pés descalços das crianças,
pelos cascos dos cavalos e pelas grossas rodas dos carros, o terreno achava-se agora
cultivado, crescendo aí o algodão verde-escuro e coberto de poeira. O jovem Tom olhou
espantado durante algum tempo para o salgueiro esgalhado ao lado do bebedouro seco do
cavalo e para a base de cimento onde outrora existia a bomba.
- Jesus! - exclamou ele por fim. - Andou por aqui o inferno. Não há por cá ninguém
vivo.
Depois, desceu pressurosamente a colina, com Casy atrás dele. Olhou para o celeiro
abandonado, com um pouco de palha pelo chão e para o estábulo da mula a um canto. E,
ao espreitar para dentro, viu uma família de ratos, que brincava no chão, esgueirar-se para
debaixo da palha.
Joad. parou à entrada do depósito de ferramentas onde nada viu, além do seguinte:
um bico de arado partido, um molho de arame a um canto, uma roda de ferro de um
ancinho e uma cabeçada de mula roída pelos ratos, uma lata achatada em que o óleo e a
sujidade haviam depositado uma crosta e dois fatos-macacos pendurados num prego.
- Não resta nada - disse Joad. - Tínhamos boas ferramentas. Não resta nada.
- Eu, se ainda fosse pregador, diria que o golpe fora desferido pelo braço do Senhor -
observou Casy. - Mas agora não sei o que aconteceu. Tenho andado por longe. Não ouvi
falar em nada.
Caminharam para a boca do poço de cimento, atravessando o algodão para lá chegar;
as cápsulas estavam-se formando nos algodoeiros e a terra estava cultivada.
- Nós nunca plantámos aqui - asseverou Joad. - Sempre conservámos este terreno
limpo. Não podemos agora atrelar um cavalo neste sítio sem que ele pise os algodoeiros.
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Pararam junto ao manancial seco e as próprias ervas que deviam crescer à sua beira
tinham desaparecido e a velha e densa vegetação encontrava-se ressequida e mutilada. Na
boca do poço, os parafusos que rendiam a bomba estavam despregados com as
enferrujadas e ás porcas desaparecidas. Joad olhou para do poço, cuspiu e escutou. Atirou
um torrão para dentro do poço e escutou.
- Era um bom poço - disse ele. - Não ouço a água. Pareceu pouco disposto a entrar
em casa. Lançou torrão sobre torrão para o poço.
- Talvez tivessem morrido todos. Mas, se fosse assim, alguém mo teria mandado
dizer. Alguém me havia de informar de qualquer maneira.
- Talvez tivessem deixado alguma carta ou indicação dentro de casa - observou Casy.
- Eles sabiam que você estava para chegar?
- Não sei. Não é natural. Nem eu mesmo o sabia antes da semana passada –
respondeu Joad.
- Vamos ver dentro de casa. Está toda fora dos eixos. Parece que andou o diabo por
aqui.
Desceram lentamente para a casa escalavrada. Dois dos suportes do telhado da
varanda haviam sido arrancados, de modo que o telhado pendia para um lado. E o canto da
casa estava metido para dentro. Através de uma barafunda de madeira esfrangalhada, via-se
o quarto do canto. A porta da frente descaía para dentro e uma cancela baixa e forte, ligada
à porta da frente, pendia para fora, nos seus gonzos de couro.
Joad parou num degrau, um degrau de madeira de doze polegadas por doze.
- Estão aqui os degraus da porta - disse ele. - Mas ou eles se foram, ou a mãe morreu.
- Apontou para a cancela da porta da frente. - Se a minha mãe andasse por aqui perto,
aquela cancela estaria fechada com a aldraba. Era uma coisa que ela fazia sempre: ver se
aquela cancela estava fechada. - Os seus olhos estavam vermelhos. - Foi desde que o porco
se escapuliu para casa do Jacobs e comeu a criança. Milly Jacobs tinha saído naquele
momento para o celeiro. Quando voltou, ainda o porco estava a comer o menino. Milly
Jacobs, que estava outra vez grávida, nunca mais recuperou o juízo. Mas a mãe apanhou
uma lição. Nunca deixava a cancela do porco aberta, a não ser que ela estivesse em casa.
Nunca mais se esqueceu. Não; eles, ou tinham ido embora ou morreram.
Trepou à varanda desmantelada e olhou para a cozinha. As janelas estavam partidas e
havia pedras dispersas pelo chão; as paredes e o soalho estavam desencaixados da porta e
as tábuas cobertas de fina poeira.
Joad apontou para os vidros quebrados e para as pedras, dizendo:
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- Os miúdos! São capazes de andar vinte milhas para quebrar uma janela. Eu também
já fiz isso. Adivinham quando uma casa está vazia; oh, se adivinham! É a primeira coisa que
os garotos fazem quando alguém se muda.
A cozinha não tinha mobília; o fogão tinha-se ido, e o buraco do cano do fogão na
parede deixava entrar a luz. Na prateleira da pia estava um abridor velho de garrafas de
cerveja e um garfo partido sem o cabo de madeira. Joad entrou cautelosamente no quarto e
o soalho rangeu sob o seu peso. Um exemplar velho do Cura de Filadélfia, estava no chão,
encostado à parede, com as Páginas amarelecidas e enroladas. Joad olhou para o quarto de
dormir, sem cama, sem cadeiras, sem nada. Da parede, pendia uma estampa a cores de uma
rapariga indiana, com o título: “Asa vermelha”. Havia, encostada à parede, uma tábua de
cama. A um canto, uma bota de mulher, das de botões até acima, retorcida na frente e
rachada no peito do pé. Joad apanhou-a e pôs-se a mirá-la.
- Bem me lembro - disse ele. - Era da mãe. Está toda rota agora. A mãe gostava
destas botas. Usou-as durante anos. Não; eles foram-se e levaram tudo.
O Sol tinha baixado, ao ponto de entrar agora pelas janelas de canto, faiscando nos
recortes do vidro quebrado. Joad voltou-se por fim e saiu atravessando a varanda. Sentouse
à entrada e descansou os pés descalços no degrau de doze por doze. A luz da tarde
incidia sobre os campos e as plantas de algodão projectavam longas sombras no solo; o
mesmo acontecia com o salgueiro esgalhado.
Casy sentou-se ao lado de Joad.
- Eles nunca lhe escreveram nada? - perguntou.
- Não. Como disse, não era gente para escrever. O meu pai sabia - escrever, mas não
escrevia. Não gostava. Quase lhe davam calafrios só de pensar nisso. Sabia encomendar um
catálogo tão bem como qualquer outro, mas lá cartas é que não escrevia.
Estavam sentados lado a lado, olhando ao longe. Joad pôs o casaco enrolado na
varanda, ao seu lado. Com as mãos livres enrolou um cigarro, alisou-o e acendeu-o; engoliu
fundo o fumo e deitou-o pelo nariz.
- Aconteceu coisa grave - disse ele. - Mas não consigo adivinhar o que foi. Cheira-me
a catástrofe. Esta casa desmantelada e a minha gente desaparecida!
- Ali mesmo era o fosso onde eu f azia os baptizados - observou Casy. - Você não era
mau mas era muito teimoso. Agarrou-se à trança da rapariguinha como um buldogue.
Baptizei-os a ambos em nome do Espírito Santo, mas você não largava a trança. O velho
Tom disse: “Mergulhe-o debaixo de água.” E, assim, eu afocinhei-lhe a cabeça até que você
começou a fazer bolhas debaixo de água e só então é que largou a rapariga. Você não era
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mau, mas era muito teimoso. Às vezes um rapaz teimoso cresce com uma grande dose de
espírito dentro de si.
Um gato magro e cinzento saiu do celeiro e arrastou-se através dos algodoeiros até à
entrada da varanda. Pulou silenciosamente para cima e arrastou-se de barriga baixa para
junto dos homens. Parou atrás dos dois e então sentou-se com o rabo estendido e direito
no chão, com a ponta a chicotear cadenciadamente o chão. O gato olhava para o ponto
distante para que os homens olhavam também...
Joad voltou-se e viu-o.
- Por Deus! Veja o que está ali. Houve alguém que ficou. Estendeu a mão, mas o
gato fugiu do seu alcance e sentou-se a lamber as calosidades da pata levantada. Joad olhou
para ele meditativo.
- Já sei o que houve - exclamou. - Este gato acaba de anunciar o que aconteceu.
- Parece que aconteceram muitas desgraças - sentenciou Casy.
- Sim, mas há mais famílias que saíram além da minha. Porque é que este gato se não
mudou para cá com os vizinhos, com os Rance, por exemplo? Porque é que ninguém veio
arrancar uns bocados de madeira a esta casa? já não mora aqui ninguém há uns três ou
quatro meses e ninguém roubou nada. Belas pranchas no alpendre do celeiro, pranchas de
estalo na casa, caixilhos de janela e ninguém os levou. Isto não está certo. E isto que me
está a fazer confusão, e que eu não posso perceber.
- Então o que é que você tira disto tudo?
Casy curvou-se, tirou os sapatos de lona e revolveu os dedos dos pé s no degrau.
- Não sei. O que me parece é que já não há vizinhos. Se houvesse, estariam aqui
todas essas belas pranchas? Não, por Jesus Cristo! Alberto Rance levou uma ocasião, pelo
Natal, toda a família: crianças, cães e tudo para a cidade de Oklahoma. Foram visitar UM
primo de Alberto. Então a gente daqui pensou que o Alberto se tinha mudado sem dizer
nada; imaginou talvez que ele tinha dívidas ou que trazia alguma mulher à perna. Quando o
Alberto voltou uma semana depois, nada restava na casa: o fogão desaparecera, as camas
também, os caixilhos das j anelas e oito pés de tabuado do lado sul da casa sumiram-se, de
modo que se podia ver a luz por ela. Apareceu precisamente quando o Muley Graves se
estava escapulindo com as portas e a bomba do poço e Alberto levou duas semanas a
farejar pelas casas dos vizinhos, a fim de lhe restituírem o que era seu.
Casy esfregou os dedos dos pés com volúpia.
- Ninguém se opôs a isso? Todos lhe restituíram o que tinham levado?
- Sem dúvida. É que eles não tinham roubado. Pensaram que aquilo estava
abandonado e pegaram-lhe. Apanhou tudo menos uma almofada de sofá, de veludo com
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uma ânfora de índio. Alberto afirmava que quem a tinha era o avô. Dizia que o avo tinha
sangue índio e que, por isso, é que gostava daquela ânfora. Sim, o avô é que a tinha, mas
queria ele lá bem saber da ânfora pintada! Do que gostava, e muito, era da almofada.
Costumava andar com ela e colocava-a onde se ia sentar. Nunca a restituiu ao Alberto.
Dizia: “Se o Alberto tem tanto empenho nesta almofada, que ma venha tirar. Mas é melhor
que venha armado, porque lhe dou um tiro naquela cabeça fedorenta se ele se atreve a
mexer na minha almofada.” E foi assim que o Aberto cedeu e fez presente daquela
almofada ao avô. Mas meteu-lhe uma cisma na cabeça. Pôs-se a juntar penas de frango.
Dizia que ia arranjar uma cama toda de penas. Mas nunca a arranjou. Um dia, o pai ficou
maluco com um zorrilho que andava debaixo da cama. O pai matou-o à paulada e a mãe
teve de queimar todas as penas que o avô juntara para que nós pudéssemos continuar a
viver na casa. - E riu-se. - O avô era um tipo teimoso como um raio. Mal se sentava na
almofada, dizia: “Que o Alberto ma venha tirar. Pego naquele gasnete e torço-o como um
par de ceroulas.”
O gato tornou a arrastar-se pelo meio dos dois homens com o rabo estendido e os
bigodes eriçados de quando em quando. O Sol descia, avizinhando-se do horizonte, e o ar
poeirento tornou-se vermelho e doirado. O gato estendeu uma pata interrogativa e tocou
no casaco de Joad. Este olhou em redor.
- Diabo, esqueci-me do cágado! Não vou carregar com ele toda a vida!
Desenrolou o animal e empurrou-o para dentro da casa. Mas, num momento, o
animal estava cá fora, com a cabeça virada para sudoeste, como estivera desde o princípio.,
O gato pulou sobre ele, bateu-lhe na cabeça resistente, e deu-lhe sapatadas nos pés, que se
agitavam. A cabeça velha, dura e escarninha enfiou-se para dentro, o rabo abrigou-se
debaixo da concha, e, quando o gato se cansou de esperar e se raspou, o cágado tornou a
voltar-se para sudoeste.
O jovem Tom Joad e o pregador observavam o cágado a marchar, ondeando as
pernas e carregando com a concha pesada e abaulada rumo a sudoeste. O gato seguiu-o de
rastos por algum tempo, mas, dentro de umas doze jardas, arqueou o dorso numa grande
curva, escancarou a boca num bocejo e regressou furtivamente para junto dos homens
sentados.
- Para onde diabo supõe o senhor que ele vá? - interrogou Joad.
- Tenho visto cágados toda a minha vida. Levam sempre qualquer destino. Parece
que têm sempre pressa de lá chegar.
O gato cinzento tornou a sentar-se entre eles. De vez em quando, piscava os olhos.
A pele das espáduas estremeceu à mordedura de uma pulga e depois assentou de novo. O
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gato levantou uma pata, examinou-a, moveu as garras e lambeu os bigodes com a língua
rosada como uma concha. O sol escarlate tocava o horizonte e espraiava-se como uma
actínea; o céu, em cima, parecia muito mais brilhante e mais vivo do que anteriormente.
Joad desenrolou o casaco, tirou os sapatos novos e, antes de os calçar, escovou os pés
empoeirados com a mão.
O pregador, espraiando o olhar ao longo dos campos, disse:
- Vem ali gente. Olhe! Ali em baixo, mesmo no meio do algodoal.
Joad olhou para onde o dedo de Casy apontava.
- Vem a pé. Não o vejo por causa da poeira que ele levanta. Quem diabo virá para
aqui?
Observaram a figura a aproximar-se à luz da tarde e a poeira que ela levantava
tomava os reflexos do sol poente.
- É um homem - anunciou Joad.
O homem aproximou-se e, quando ia a passar o celeiro, Joad disse:
- Mas eu conheço-o. O senhor conhece-o. É o Muley Graves. - E chamou. - Ó
Muley! Como estás?
O homem que vinha a aproximar-se estacou sobressaltado pelo chamamento e pôsse
a andar mais depressa. Era um sujeito magro, um tanto baixo. Tinha movimentos
sacudidos e rápidos. Trazia um saco de juta na mão. As suas calças azuis estavam
desbotadas nos joelhos e no assento, e usava um casaco preto, velho, sujo e manchado,
com as mangas quase arrancadas dos ombros e com grandes buracos nos cotovelos. O
chapéu preto estava tão sujo como o casaco, e a fita, quase solta, ondeava ao vento
conforme ele caminhava. O rosto de Muley era liso e sem rugas, mas o seu olhar era
agressivo como o de uma criança mal comportada, com a boca pequena e cerrada, os olhos
meio escarninhos, meio petulantes.
- Lembra-se do Muley? - perguntou Joad, em voz baixa, ao pregador.
- Quem está aí? - interrogou o homem que avançava.
Joad não respondeu. Muley chegou-se mais perto, muito perto, antes de conseguir
identificar os rostos.
- Oh, quem havia de dizer! - bradou ele. - É o Tom Joad. Quando é que saíste,
Tommy?
- Há dois dias - respondeu Joad. - Levou-me pouco tempo a chegar a casa. Consegui
que me dessem umas boleias pelo caminho. E olha o que eu venho encontrar! Onde pára a
minha gente, Muley? Porque é que a casa está toda mutilada e há algodão plantado no
pátio?
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- Por Deus, felizmente que te encontro! - disse Muley. - Porque o velho Tom ficou
muito apoquentado. Quando se estavam a mudar, eu estava sentado aí na cozinha. Eu dizia
a Tom que não me mudava nem por ordem de Deus. Dizia-lhe isso e Tom ia-se queixando:
“Estou muito apoquentado por causa do Tommy. Suponhamos que ele chega e não acha
ninguém aqui. Que irá ele pensar?” E eu digo: “Por que não lhe escreve você uma carta?”
E o Tom disse: “Talvez escreva. Vou pensar nisso. Mas, se não escrever, fica de olho alerta
ao Tommy, se ainda por aqui estiveres.” “Estarei por aqui”, disse eu. “Estarei por aqui, até
que o inferno se gele de todo. Não há ninguém com forças de expulsar desta terra um
homem com o nome de Graves.” E ninguém se atreveu a isso.
Joad inquiriu impacientemente:
- Mas onde está a minha gente? Disseste que estiveste com eles até ao fim; mas onde
está a minha gente?
- Bem, eles estiveram até à última, quando o banco meteu o tractor por dentro do
terreno. O teu avô saiu para a rua com uma espingarda e estilhaçou os faróis do tractor,
mas este fez a sua obra na mesma. O teu avô não quis matar o homem que o conduzia, que
era o Willy Freely. E o Willy bem o sabia? por isso ele avançou e pintou a manta em volta
da casa, dando-lhe uma sacudidela como um cão sacode um rato. Foi um golpe tremendo
para o Tom. Nunca mais foi o mesmo.
- Mas onde pára a minha gente? - bramiu Joad, em tom irado.
- É o que te ia a dizer. Levaram tudo em três viagens na carroça do tio John.
Levaram o fogão, a bomba e as camas. Devias tê-los visto com todos os miúdos em cima
das camas, a tua avó e o teu avô encostados ao espaldar, o teu irmão Noah sentado a fumar
um cigarro e a cuspir para o lado da carroça.
Joad abriu a boca para falar.
- Estão todos em casa do tio John - informou. finalmente Muley.
- Oh! Todos em casa do John. Mas que estão a fazer lá? Espera um segundo, Muley.
Daqui a um minuto podes continuar o teu caminho. Que estão eles lá a fazer?
- Olha, estiveram a colher algodão, todos eles - até as crianças e o teu avó. A ver se,
trabalhando todos, arranjavam dinheiro, para se mudarem para o Oeste. - comprar um
carro e mudar-se para o Oeste, onde a vida é mais fácil. Aqui não presta para nada.
Cinquenta centavos por um acre de algodoeiros e a gente anda a pedir trabalho por amor
de Deus.
- Mas ainda não foram?
- Não - respondeu Muley. - Não, que eu saiba. Da última vez que tive notícias deles
foi há quatro dias, quando encontrei o teu irmão Noah a caçar lebres e que me disse que
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faziam tenção de partir dentro de duas semanas. O John também recebeu ordem de
despejo, São oito milhas daqui até à casa do John. Encontras a tua gente empilhada como
esquilos numa lura de inverno.
- Bem - disse Joad. - Agora podes seguir o teu caminho. Não estás nada mudado,
Muley. Se pretendes dar informações de alguma coisa que aconteceu no Noroeste, viras
logo o nariz para o Sudoeste.
Muley replicou, em represália:
- E tu também não mudaste. Eras um garoto muito atrevido e ainda és muito
atrevido. Não me queiras ensinar a tirar as castanhas do lume, não?
Joad arreganhou os dentes.
- Decerto que não. Se magicares em meter a cabeça numa pilha de vidros partidos,
ninguém te pode desviar disso. Não conheces este pregador, Muley? O reverendo Casy.
- Oh, muito bem. Não tinha dado por ele. Lembro-me perfeitamente.
Casy ergueu-se e os dois homens apertaram as mãos.
- Muito prazer em tornar a vê-lo - cumprimentou Muley. - Há um ror de tempo que
não aparece por aqui.
- Tenho andado por fora, a ver o mundo - disse Casy. - Que aconteceu aqui? Porque
estão escorraçando a gente desta terra?
A boca de Muley cerrou-se tão hermeticamente que a parte central do lábio superior
se sumiu dentro do inferior. E vociferou:
- Esses filhos da mãe! Esses malvados desses filhos da mãe! É o que eu lhes digo: eu
cá, fico. Não se vêem livres de mim. Se me expulsarem, volto, e, se imaginam que me
podem tirar o fôlego, levo três filhos da mãe comigo de companhia. - Bateu num volume
grosso que trazia num dos bolsos do casaco.- Eu não vou. Meu pai veio para aqui há
cinquenta anos. E eu, não saio.
Joad perguntou:
- Que ideia foi essa de escorraçarem a gente?
- Oh! Treta não lhes falta. Tu sabes que anos nós temos tido. A poeira a estragar
tudo e um homem sem colheita que chegue para encher um cesto. E toda a gente fez
dívidas na mercearia. Sabes como isso é. Bem, os tipos que possuem a terra, dizem: “Não
podemos ter rendeiros.” E dizem: “A parte que um rendeiro tem é precisamente a margem
de lucro que não podemos perder.” E dizem: “Se pusermos a terra num bloco, nem assim
o rendimento dela é vantajoso.” E, por isso, enxotaram com o tractor todos os rendeiros
da terra. Todos, excepto eu, que, por Deus, não saio. Tommy: tu conheces-me. Toda a tua
vida me tens conhecido.
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- Não há dúvida, Muley, toda a minha vida.
- Bem, tu sabes que não sou nenhum parvo. Bem sei que esta terra pouco presta.
Para quase mais nada serve senão para pastagens. Nunca produziu bem. E agora quase a
matam com o algodão. Se me não dissessem que devia ir-me embora, era provável que eu,
a estas horas, estivesse na Califórnia, a papar uvas e a descascar uma laranja quando me
apetecesse. Mas, mandarem-me embora esses filhos da mãe, isso não, por Jesus Cristo. Um
homem como eu não se submete assim.
- Certamente - disse Joad. - A mim admira-me como o meu pai saiu com tanta
facilidade. Espanta-me como o meu avô não matou ninguém. Nunca ninguém fez
imposições ao avô. E a minha mãe também não é para brincadeiras. Uma vez vi-a bater
desalmadamente num funileiro ambulante com uma galinha viva, porque ele se pôs a berrar
com ela. Tinha a galinha numa mão e o machado na outra, pronto para lhe cortar a cabeça.
Ela tencionava alvejar o funileiro com o machado, mas esqueceu-se em que mão o tinha e
pespegou-lhe com a galinha em cima. Deu cabo da galinha a zurzir o homem e não a pôde
comer, porque lhe ficaram só as pernas na mão. O avô quase se mijou a rir. Como se foi
então a minha gente embora com tanta facilidade?
- O tipo que veio falava com a doçura de um pastel de nata. “Vocês têm de sair. A
culpa não é minha.” “Então, disse eu, de quem é a culpa, que eu vou dar cabo do sujeito?”
“E da Companhia Shawnee de Terras e de Gado. Eu apenas recebi ordens.” “Quem é a
Companhia Shawnee de Terras e de Gado?” “Não é ninguém. É uma companhia.”
Punham um homem maluco. Não havia ninguém a quem a gente pudesse deitar a mão.
Toda a gente se cansou de andar à procura de alguém contra quem se assanhar. Todos
excepto eu. Eu conservei-me sempre assanhado. E por isso fiquei.
Uma faixa larga e vermelha de sol demorou-se no horizonte, depois estreitou-se e
desapareceu. O céu ficou brilhante no lugar onde ela havia desaparecido, e uma nuvem,
esfarrapada como um trapo ensanguentado, ficou suspensa sobre o ponto onde o sol se
sumira. O crepúsculo começou, pouco a pouco, a invadir o céu, vindo de leste, e a
escuridão assenhoreava-se da terra, vinda do oriente. A estrela da tarde faiscava e cintilava
no crepúsculo. O gato cinzento esgueirou-se para o celeiro aberto e passou para dentro
como uma sombra.
Joad disse:
- Bem, nós não vamos esta noite andar oito milhas para chegar a casa do tio John.
Tenho os pés a arder. E se nós fôssemos para tua casa, Muley? É apenas uma milha.
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- Não sei como há-de ser. - parecia embaraçado. - A minha mulher, os pequenos e
meu cunhado foram todos para a Califórnia. Não havia nada que comer. Não estavam tão
assanhados como eu, e, por isso, foram-se. Não havia nada que comer aqui.
O pregador mexeu-se, nervoso.
- Você também devia ter ido. Não devia ter deixado a família dividir-se.
- Não pude - respondeu Muley Graves. - Havia o que quer que fosse que me prendia.
- Por Deus, que estou com fome - disse Joad.- Há quatro anos inteirinhos que eu
comia a horas certas. Estou com tanta fome que até me parece que comia um homem. Que
vais tu comer, Muley? Como é que arranjas de jantar?
Muley confessou envergonhado:
- Durante algum tempo comi rãs, esquilos e algumas vezes cães do mato. Não tive
outro remédio. Mas, agora, ponho armadilhas de arame no matagal do riacho seco. Apanho
coelhos e, às vezes, uma galinha do mato. Também apanho zorrilhos e coatis.
Abaixou-se, pegou no saco e esvaziou-o na varanda. Dois coelhos e uma lebre caíram
do saco e rolaram, macios e felpudos, molemente pelo chão.
- Deus do céu! - exclamou Joad. - Há mais de quatro anos que não como carne assim
fresca!
Casy pegou num dos coelhos e segurou-o na mão.
- Vamos comer contigo, não, Muley Graves? - perguntou ele.
Muley mostrou-se embaraçado.
- Não há outro remédio. - Inquietou-se com o tom pouco delicado das suas palavras.
- Não é bem isso o que eu queria dizer. Não é bem isso - gaguejou-o que eu queria dizer é
que, se um sujeito está com fome, então o primeiro sujeito não tem outro remédio. Quero
dizer: suponhamos que eu apanho os meus coelhos e vou para qualquer lado e os como.
Compreendes?
- Compreendo muito bem - respondeu Casy. - Compreendo muito bem. O Muley
teve qualquer ideia. Mas nem ele a pode explicar nem eu posso percebê-la.
O jovem Tom esfregou as mãos.
- Quem tem uma navalha? Vamos esfolar esses miseráveis roedores. Vamos a eles!
Muley procurou no bolso das calças e tirou uma grande navalha de cabo de chifre.
Tom Joad pegou nela, abriu a lâmina e cheirou-a. Enterrou mais de uma vez a lâmina no
chão e tornou a cheirá-la, limpou-a à perna da calça e experimentou-lhe o fio no polegar.
Muley tirou uma garrafa de água do bolso traseiro da calça e pô-la na varanda.
- Poupa essa água - advertiu ele. - É tudo o que há. Este poço aqui está obstruído.
Tom tomou um coelho na mão.
52
- Um de vocês vai buscar um pouco de arame de enfardar ao celeiro. Faremos lume
com um bocado de madeira da casa. - Olhou para o coelho morto. - Não há nada tão fácil
de aprontar como um coelho.
Levantou a pele das costas do animal, golpeou-a, meteu os dedos no buraco e puxoua.
Escorregava do corpo como uma meia; assim esfolou o corpo até ao pescoço e as pernas
até às patas.
Joad tornou a pegar na navalha e cortou a cabeça e as patas. Pôs a pele de lado,
golpeou o coelho ao longo das costelas, tirou os intestinos para fora, atirou-os para cima da
pele e depois jogou toda aquela miscelânea para o meio dos algodoeiros. E o pequeno
corpo de músculos nus estava pronto. Joad retalhou as pernas e a carne do dorso em duas
partes. Estava deitando a mão ao segundo coelho quando Casy voltou com um rolo de
arame de fardo na mão.
- Agora preparem um lume e preguem umas estacas no chão - ordenou Joad. - Jesus
Cristo, que fome eu tenho destes bichos!
Limpou e cortou o resto dos coelhos e enfiou a carne no arame. Muley e Casy
racharam tábuas do canto arruinado da casa e principiaram a fazer lume; pregaram também
uma estaca no chão de cada lado, para segurar o arame.
Muley voltou-se para Joad.
- Vê lá se a lebre tem algum tumor - disse ele. - Não gosto de comer lebres com
tumores.
Tirou uma pequena saca de pano da algibeira e pô-la na varanda.
Joad respondeu:
- A lebre estava tão limpa como um assobio. Também trazes sal, graças a Deus! Não
terás também pratos e uma barraca de campanha no bolso? Tirou uma porção de sal e
espalhou-o sobre os pedaços de coelho esticados no arame,
O fogo pulava, lançando sombras vermelhas pela casa e a madeira seca estalava,
crepitando. Agora o céu escurecia quase por completo e as estrelas brilhavam com
limpidez. O gato cinzento saiu do alpendre do celeiro e trotou, a miar, para o pé do fogo,
mas, quase ao chegar ali, voltou-se e correu para um dos pequenos montes de entranhas de
coelho que estavam no chão. Mastigava e engolia as entranhas que lhe pendiam da boca.
Casy sentou-se no chão, ao lado do fogo, alimentando-o com gravatos, metendo as tábuas
grandes para dentro, à medida que as chamas lambiam os ramos. Os morcegos atiravam-se
para a luz do fogo, mas depressa tornaram a afastar-se. O gato tornou a aproximar-se do
lume, lambeu os beiços e lavou o focinho e os bigodes.
53
Joad segurou o arame cheio de carne de coelho entre as mãos e caminhou para o
lume.
- Pega aqui nesta ponta, Muley! Enrola a tua ponta naquela estaca. Fixe! Estica daí.
Devíamos esperar até que o fogo estivesse em brasido, mas não tenho coragem, para isso.
Retesou o arame, depois pegou num pau e espalhou os bocados de carne ao longo
do arame até ficarem todos bem ao calor, do lume. As chamas subiam em volta da carne e
endureciam e vidravam as superfícies. Joad sentou-se ao pé do lume; com o pau movia e
virava o coelho para que ele se não colasse ao arame.
- Isto é um banquete - disse ele. - O Muley trouxe tudo: o sal, a água e os coelhos. Só
faltou trazer um prato de papas de milho na algibeira. Tornara-o eu!
Muley falou do lado de lá do lume:
- Vocês hão-de pensar talvez que eu ando maluco, por causa da maneira como vivo.
- Maluco, tu? Quem pensa nisso? - atalhou Joad. - Se estás maluco, então toda a
gente está maluca.
Muley continuou:
- Sim, é um caso curioso. Realmente fiquei quase fora de mim quando me intimaram
a abandonar estes sítios. Primeiro, só me davam ganas de matar uma porção de gajos.
Depois, toda a minha família debandou para o Oeste. E eu pus-me a vaguear por estas
redondezas. A vaguear sem destino. Mas nunca ia para longe. Dormia onde calhava. Esta
noite ia dormir aqui. Eis a razão por que vim. Dizia de mim para mim: “Ando a fazer
guarda para que, quando todos voltarem, encontrem tudo em ordem.” Mas eu sabia que
isso não era verdade. Não há nada a que fazer guarda. E a gente nunca mais volta.
Continuo a vaguear por aqui como uma alma penada.
- Quando um homem se acostuma a um lugar, custa-lhe a deixá-lo. já não sou
pregador, mas ando sempre a fazer pregações, sem mesmo saber que as estou a fazer.
Joad revirou os pedaços de carne no arame. A gordura pingava e cada gota que caía
no lume levantava um esguicho de chama. A superfície lisa da carne engelhava e adquiria
um tom bronzeado.
- Cheirem-na! - convidou Joad. - Abaixem a cabeça e cheirem-na.
Muley prosseguiu:
- Como uma alma penada. Andei a frequentar os lugares onde a coisa aconteceu. Para
lá da nossa casa há um barranco com uma mata. A primeira vez que estive com uma
rapariga foi ali. Tinha catorze anos e pulava, corria e resfolegava como um veado e
espirrava como um bode. E, por isso, fui ali, deitei-me no chão e tornei a ver tudo tal como
tinha acontecido. Ainda lá está o lugar ao pé do celeiro onde o meu pai foi ferido de morte
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por um touro. E o seu sangue ainda tinge aquele chão. Ainda deve tingir. Ninguém o lavou.
E eu pus a mão naquele terreno ensopado pelo sangue de meu pai. - Parou inquieto. -
Vocês pensam talvez que eu ando maluco?
Joad virou a cara e ficou a meditar. Casy, de pés erguidos, olhava para o fogo. A
quinze pés dos homens, o gato, regalado, sentara-se, com o rabo cinzento e comprido
muito bem arrumado sobre as patas da frente. Uma coruja grande guinchou ao passar e o
lume iluminou-lhe o ventre branco e o leque das asas.
- Não - comentou Casy. - Podes estar desolado, mas maluco, não.
O pequeno rosto contraído de Muley imobilizara-se:
- Pus a mão no terreno onde aquele sangue ainda se vê. E vi o meu pai com um
buraco no peito, e senti-o tremer contra o meu corpo, exactamente como tremeu, e vi-o
cair, inteiriçando as mãos e os pés. E vi os seus olhos enevoados pela dor, e ficar depois
sem se mexer e com os olhos tão claros a olhar para cima... E eu, que era um garoto, ali
estava sentado à beira, sem chorar nem nada, para ali sentado.
Sacudiu a cabeça bruscamente. Joad virou e revirou a carne.
- E entrei no quarto onde nasceu o meu Joe. A cama já lá não estava, mas estava o
quarto. E todas estas coisas eu vi, precisamente no lugar onde aconteceram. O Joe veio ali à
luz. Soltou um suspiro e depois deu um berro que se podia ouvir a uma milha e a avó, que
estava lá, disse: “Que beleza de menino, que beleza!” Ficou tão inchada que até partiu três
chávenas nessa noite.
Joad pigarreou:
- E melhor irmos já a essa comida.
- Deixa-a assar bem, como deve ser, até ficar quase preta - obtemperou Muley, um
tanto irritado. - Preciso de falar. já há muito que não falo com ninguém. Se estou maluco,
estou maluca e pronto. Tenho andado para aí como uma alma penada, a visitar as casas dos
vizinhos, de noite. A do Peter, a do Jacob, a do Rance, a do Joad, e estavam todas escuras
como tocas miseráveis de ratos. Mas houve lá bons jantares e bailes; rezas e cânticos
sagrados. Houve casamentos em todas essas casas. Quando me lembrava disto, apetecia-me
ir à cidade e dar cabo de uma porção de gente. Que é que eles vão ganhar, expulsando a
gente da terra com o tractor? Que fazem eles para que lhes fique a tal margem de lucro?
Escorraçam-me do terreno onde meu pai morreu, onde Joe soltou o primeiro vagido e da
mata onde eu de noite espinoteava como um bode. Que lucram eles? Deus sabe que a terra
não presta. Há anos que ninguém consegue uma colheita. Mas esses filhos da mãe, à
secretária, acabam por cortar-nos ao meio por causa da sua margem de lucro. É isso:
cortam a gente ao meio. O lugar onde as pessoas vivem - isso é que é a família. Agora,
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sozinhas na estrada, as pessoas, num carro apinhado de gente, já não são bem elas. já não
estão vivas. Esses filhos da mãe mataram-nas.
E ficou calado, com os lábios delgados ainda a agitarem-se, e com o peito a arfar.
Sentou-se e olhou para as mãos, à luz do fogo.
- Há muito tempo que não falo com ninguém - disse ele com o ar amável de quem
pede desculpa. - Tenho estado perdido para aí como um fantasma.
Casy empurrou as tábuas grandes para o lume; logo as chamas as lamberam, pulando
outra vez em direcção à carne. A casa rangeu alto quando o ar mais frio da noite contraiu a
madeira. Casy disse compassadamente:
- Tenho de ir ao encontro dessa gente que anda por essas estradas. Sinto que tenho
de ir ter com eles. Eles precisam de auxílio, que nenhum pregador lhes pode dar. Esperança
no Céu, quando as suas vidas já não são vidas? Espírito Santo, quando o seu próprio
espírito está abatido e triste? Precisam de auxílio. Precisam de viver antes que lhes seja dado
morrer.
Joad exclamou nervosamente:
- Jesus Cristo, comamos esta carne antes que ela fique mais pequena do que um rato
assado. Olhem para ela. Cheirem-na. - Pôs-se em pé e fez escorregar os pedaços de carne
ao longo do arame até os afastar do fogo; pegou na navalha de Muley e cortou um pedaço
de carne até o libertar do arame. - Esta é para o pregador - disse ele.
- Já lhe disse que não sou pregador.
- Bem, então aqui está para o homem. - Cortou outro pedaço. - Este é para ti, Muley,
se não estás demasiado acabrunhado para comeres. Isto é lebre. Mais dura que carne de
vaca. - Voltou a sentar-se, fincou os dentes na carne, arrancou um pedaço e pôs-se a
mastigá-lo. - Jesus Cristo! Corno ela está gostosa! - E, arrancando outro pedaço, mordeu-o
sofregamente.
Muley ainda estava a olhar para o pedaço dele.
- Talvez que não devesse ter falado assim - disse. - Devia talvez ter guardado isto só
para mim.
Casy olhou-o com a boca atafulhada de coelho. Mastigava, e a sua garganta
musculosa convulsionava-se ao engolir.
- Não, você fez bem em falar. Às vezes, um homem que está triste deita com a
conversa a tristeza pela boca fora. Ás vezes, um homem que se encontra a pontos de matar,
deita com o falar, o assassínio pela boca fora e já não mata. Você fez bem. Não mate
ninguém se o puder evitar.
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E mordeu outra lasca de coelho. Joad jogou os ossos ao lume, ergueu-se e tirou mais
um bocado de carne do arame. Muley comia agora compassadamente, e os seus olhitos
nervosos corriam de um dos companheiros ao outro. Joad comia, carrancudo como um
animal, enquanto um anel de gordura se lhe formava em torno da boca.
Durante muito tempo, Muley olhou para ele quase timidamente. Abaixou a mão que
segurava a carne.
- Tommy! - disse ele.
Joad olhou sem parar de deglutir.
- Que é? - interrogou com a boca cheia.
- Tommy, tu não ficaste zangado por eu falar em matar gente? Não ficaste zangado,
Tom?
- Não - respondeu Tom.- Não estou zangado. São apenas coisas que acontecem.
- Toda a gente sabe que a culpa não foi tua. O velho Turnbull disse que te ia esperar
quando saísses da cadeia. Que ninguém podia matar um filho dele sem mais nem menos.
Toda a gente da vizinhança lhe tirou isso da cabeça.
- Nós estávamos bêbedos - explicou Joad afavelmente. E bêbedos num baile. Nem
sei como começou. Do que me lembro é de a navalha vir sobre mim, e de me ter passado
logo a bebedeira. A primeira coisa que vejo é o Herb a crescer novamente para mim com a
navalha. Havia uma pá encostada à casa da escola e eu peguei nela e apontei-lha à cabeça.
Nunca tinha tido nada contra o Herb. Era bom rapaz... Brincava com a minha irmã
Rosasharn quando era pequeno. Não, eu gostava do Herb.
- Sim, toda a gente disse isso ao pai, até que ele esfriou. Há quem diga que, pelo lado
da mãe, há sangue de Hartfield no velho Turnbull. E que ele tem de lhe sofrer as
consequências. Nada sei a esse respeito. Ele e a sua gente emigraram para a Califórnia há já
uns seis meses.
Joad tirou o último pedaço de coelho do arame e passou-o em roda. Tornou a sentarse
e comia agora mais devagar, mastigando mais compassadamente e limpando a gordura
da boca com a manga do casaco. E os seus olhos, escuros e meio cerrados, pareciam
meditativos, a olhar para o fogo moribundo.
- Agora toda a gente vai para o Oeste - disse ele. - Eu estou sob liberdade
condicional. Não posso deixar o Estado.
- Liberdade condicional? - perguntou Muley. - Já ouvi falar nisso! Que é?
- É que saí três anos antes. Tenho de obedecer a certas regras, senão prendem-me de
novo. E tenho que dar notícias de vez em quando.
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- Como te trataram lá em MacAlester? O primo de minha mulher esteve em
MacAlester e disse que aquilo era o inferno.
- Não é assim tão mau como isso - explicou Joad. - É como todas as outras prisões.
É inferno para quem provoca o inferno. Um sujeito tem de se portar bem. Senão, os
guardas caem-lhe em cima. Então é que é o inferno. Eu portei-me sempre bem. Não me
metia em nada que me não dissesse respeito e deixava correr. Aprendi a escrever muito
bem. A desenhar pássaros e outras coisas; não apenas a escrever palavras. O meu velho vai
ficar maluco quando me vir fazer um pássaro de um traço. O pai vai ficar maluco quando
me vir fazer isso. Ele não gosta de fantasias como essa. Nem gosta de escrita de palavras.
Parece que tudo isso lhe mete medo. Todas as vezes que o pai via alguém a escrever,
tinham de lhe tirar alguma coisa que lhe estivesse ao alcance da mão.
- Nunca te bateram nem maltrataram?
- Nunca. Eu só tratava do que tinha a fazer. Sem dúvida que a gente se chateia de
fazer sempre a mesma coisa todos os dias, durante quatro anos. Se a gente fez alguma coisa
de que se envergonha, tem tempo para pensar e arrepender-se. Mas - diabo! - se visse o
Herb Turnbull a crescer agora mesmo para mim com uma faca, tomava a abrir-lhe a cabeça
com uma pá.
- E quem o não faria? - comentou Muley.
O pregador fitava o lume e a sua testa alta branquejava na escuridão. A cintilação das
pequenas chamas punha-lhe em relevo as cordas do pescoço. Nas mãos, cruzadas em volta
dos joelhos, avultavam os nós dos dedos. Joad jogou os últimos ossos para o lume, lambeu
os dedos e depois limpou-os às calças. Levantou-se, da varanda, trouxe a garrafa de água,
bebeu um gole parcimoniosamente e passou a garrafa antes de voltar a sentar-se. E
prosseguiu:
- A coisa que me preocupou mais foi que aquilo não tinha pés nem cabeça. A gente
não se põe a pensar se a coisa está certa quando um raio mata uma vaca ou nos cai em cima
uma inundação. já se sabe que é assim mesmo. Mas, quando uma porção de homens nos
agarram e nos fecham à chave durante quatro anos, deve haver nisso alguma significação.
Dizem que os homens meditam sempre no que fazem. Para ali me meteram, me
conservaram e me alimentaram durante quatro anos. Isso, ou deve fazer com que eu não
queira voltar a praticar o crime, ou então deve ser um castigo para que eu fique com medo
de voltar a praticá-lo. - Aqui Tom fez uma pausa... - Mas, se o Herb ou qualquer outro se
virasse contra mim, tornava a fazer o mesmo. Fazia-o até antes de poder pensar.
Especialmente se estivesse bêbedo. Essa falta de sentido é que aborrece um homem.
Muley observou:
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- O juiz disse que te dava uma pena leve porque a culpa não era toda tua.
- Sim - confirmou Joad. - Há um tipo em MacAlester por toda a vida. Passa o tempo
a estudar. Secretaria o director, escreve as cartas dele e outras coisas que é preciso escrever.
É um tipo muito atilado, que sabe Direito e muitas coisas mais. Um dia, falei-lhe acerca do
meu caso, por ele ter lido tantos livros. E ele disse-me que a leitura de livros não serve para
nada. Que já tinha lido tudo sobre as prisões, agora e nos tempos antigos, e disse que lhes
achava menos sentido agora do que quando começara a ler. Que as leis eram uma coisa que
nos fazia ir ao inferno e voltar, e ninguém parecia ter força para lhes pôr freio, e que
ninguém tinha juízo bastante para as modificar. Pediu-me por amor de Deus que as não
lesse, porque ele diz que, por um lado, a gente mete-se numa embrulhada e fica a ver
navios e, por outro, perde o respeito pelos tipos que estão no governo.
- Pouco respeito posso ter por eles agora - disse Muley.
- Só temos uma espécie de governo: aquele que nos esmaga por causa da margem de
lucro. Houve uma coisa que me indignou: foi ver esse Willy Feely a guiar aquele bicho e a
armar em patrão -uma espécie de espantalho na terra que os seus próprios pais cultivaram.
Isso, é que me indignou. Não me custava tanto se fosse um indivíduo de fora, que nada
soubesse destas coisas, mas o Willy, que nasceu aqui, não. Indignei-me tanto que fui ao pé
dele perguntar-lhe porque é que ele fazia aquilo. E ele danou-se todo. “Tenho dois filhos
pequenos”, disse ele. “Tenho mulher e sogra. Essa gente precisa de comer.” E ainda se pôs
mais danado. a única coisa em que tenho de pensar é na minha própria família”? disse. “O
que acontece às outras pessoas é lá com elas”. Parece que estava envergonhado e por isso
se escamou todo.
Jim Casy tinha estado a fitar o fogo moribundo; os olhos haviam-se-lhe dilatado e os
músculos do pescoço sobressaíam mais. De repente, exclamou:
- Cá está ele! Se alguma vez um homem sentiu o Espírito Santo a inspirá-lo, esse
homem fui eu!
Ergueu-se e pôs-se a andar para diante e para trás, balouçando a cabeça.
- Eu já tive a minha congregação. Reunia umas quinhentas pessoas todas as noites.
Isto foi antes de vocês me conhecerem. - Parou e encarou-os. - Lembram-se que eu nunca
fiz peditórios enquanto pregava aqui, em celeiros e ao ar livre?
- Por Deus que nunca! - confirmou Muley.- A gente daqui estava por isso tão
habituada a não dar dinheiro que ficava danada quando outro pregador estendia o chapéu.
Sim, senhor!
- Eu aceitava qualquer coisa de comer - prosseguiu Casy. - Aceitava um par de calças
quando as minhas estavam rotas e um par de sapatos velhos quando andava descalço, mas
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não era como quando eu tinha a congregação. Havia dias em que recebia uns dez ou vinte
dólares. Não me sentia feliz? de modo que acabei com aquilo, e durante algum tempo fui
feliz. Mas, agora, parece-me que achei o que precisava. Não sei se o deva dizer. Mas será
melhor dizer: talvez haja lá lugar para um pregador. Talvez eu possa voltar a pregar. Anda
gente tão desolada nas estradas, gente sem terra, sem casa para onde ir! Eles precisam de ter
alguma espécie de casa. Talvez...
Parou diante do lume. A centena de músculos daquele pescoço desenhava-se em alto
relevo e a luz do fogo penetrava fundo nos seus olhos, palhetando-os de cintilas vermelhas.
Especou-se a olhar para o lume, com o rosto tenso, como se estivesse a escutar, e as mãos,
que tinham estado activas, a gesticular, a agitar ideias, imobilizaram-se e, de repente,
sumiram-se nos bolsos. Os morcegos esvoaçavam, entrando e saindo da zona do fogo em
vias de esmorecer, e, dos campos, vinha o pio de uma coruja, que soava brando como
escorrer de água.
Tom meteu a mão no bolso e, tirando o tabaco, enrolou vagarosamente um cigarro, a
olhar para as brasas. Não fez caso do discurso do pregador, como se este fosse coisa
privada que lhe não interessasse. E disse:
- Todas as noites, na minha tarimba, eu pensava em como tudo estaria quando eu
chegasse. Pensava que talvez o avô ou a avó tivessem morrido, e que talvez houvesse mais
crianças. Talvez que o pai não estivesse tão rijo. Talvez que a mãe se achasse mais Irada e
deixasse que a Rosasharn fizesse o trabalho. Eu bem sabia que não iria encontrar o mesmo.
Bem, será melhor dormirmos aqui e, de madrugada, vamos até casa do tio John. Eu, pelo
menos, tenho de ir. O senhor não quer vir, Casy?
O pregador ainda estava a olhar para as brasas. Respondeu arrastadamente:
- Sim, vou consigo. E quando a sua gente se puser a caminho na estrada, irei também
com eles. E onde houver gente na estrada, irei com eles.
- O senhor será bem-vindo - disse Joad. - A mãe sempre gostou do senhor. Dizia que
o senhor era um pregador em quem se podia acreditar. Rosasharn ainda não era crescida. -
Voltou a cabeça. - Muley, não queres vir connosco?
Muley olhou para a estrada de onde eles tinham vindo.
- Vens connosco, Muley? – repetiu.
- Hum? Não. Não vou para parte nenhuma, nem deixo isto. Vês aquela luzinha acolá,
a dançar para cima e para baixo? Se calhar, é o superintendente desta plantação de algodão.
Talvez que visse o fogo que nós fizemos.
Tom olhou. A luz aproximava-se.
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- Não estamos a fazer mal nenhum - disse ele. - Apenas nos sentámos aqui. Não
estamos a fazer nada.
Muley cacarejou:
- Ai, não? Pois estamos a fazer alguma coisa só pelo facto de estarmos aqui. Estamos
a transgredir. Não podemos ficar. Andam a ver se me apanham há dois meses. Agora olha:
se aquilo que ali vem for um automóvel, metemo-nos no meio do algodoal e deitamo-nos.
Não precisamos de ir para longe. Então, por Deus! - que nos procurem, a ver se nos
encontram! Têm de esquadrinhar as leiras uma por uma. O que é necessário é conservar a
cabeça bem baixa.
Joad perguntou:
- Que bicho é que te mordeu, Muley? Nunca foste homem para fugires e te
esconderes. Foste sempre valente.
Muley observava a aproximação das luzes.
- Sim - disse ele. - Era valente como um lobo. Agora sou valente como uma doninha.
Quando andas à caça de qualquer coisa, és caçador; és forte. Ninguém se pode atrever com
um caçador. Mas quando és tu o caçado, o caso muda de figura. já não és o mesmo. Não és
forte; talvez sejas feroz, mas não és forte. Ando a ser caçado há muito tempo. já não sou
caçador. Talvez seja capaz de dar um tiro a um sujeito na escuridão, mas já não sou capaz
de malhar em ninguém com um fueiro. Não vale a pena enganar-te a ti, ou a mim. É assim
mesmo.
- Bem, então vai-te esconder - assentiu Joad. - Deixa-me a mim e ao Casy para
dizermos algumas coisas a esses malandros.
A irradiação da luz estava agora mais perto e projectava-se no céu. Tão depressa
desaparecia como tornava a resplandecer. Os três homens observavam.
Muley disse:
- Há mais uma coisa a respeito de ser caçado. A gente põe-se a magicar em todas as
coisas perigosas. Se a gente anda a caçar, não pensamos nelas e não sentimos medo. É
como aquilo que tu me disseste: se te meteres em sarilhos, mandam-te outra vez para
MacAlester completar o teu tempo.
- Está bem - assentiu Joad. - Foi isso o que lá me disseram, mas sentar-me aqui a
descansar ou a dormir no chã o, isso não é meter-me em sarilhos. Não é patifaria nenhuma.
Não é como embebedar-se a gente ou armar zaragatas.
Muley riu-se.
- Verás. Fica aí sentado à espera do carro. Talvez seja o Willy Feely e Willy é agora o
delegado do sheriff. “Porque estão vocês aí, sabendo que é proibido?”, perguntará o Willy.
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Bem, tu bem sabes que o Willy foi sempre um pulha, e então dizes: “Que é que você tem
com isso?” Willy fica danado e há-de dizer: “ou você sai ou eu o prendo”. E tu não vais
deixar que nenhum Feeley te empurre para diante, lá porque ele está danado e com medo.
Ele. põe-se a fazer um berreiro dos diabos, porque tem de ir com a coisa por diante; tu
ficas na tua e arranjas um sarilho. Olha; é melhor ficares deitado no algodoal e deixá-los
farejar. É também mais engraçado porque eles ficam piores que uma barata, sem poderem
fazer nada e tu ficas-te a rir deles. Mas, se deres trela ao Willy ou a qualquer outro mandão,
catrafilam-te e levam-te outra vez para MacAlester, a cumprir mais três anos.
- Tens razão no que dizes - concordou Joad. - Tudo o que dizes está certo. Mas -
Santo Deus! - repugna-me que me expulsem. Prefiro dar um soco no Willy.
- Ele traz espingarda - disse Muley. - Pode usá-la porque é autoridade. E então, ou ele
te mata, ou tu tens de lhe tirar a espingarda e de o matar. Vem daí. Tommy. Regala-te em
dizer com os teus botões que os estás logrando, bem escondido entre os algodoeiros. E o
que tem valor é aquilo que a gente diz consigo próprio. As luzes fortes voltavam-se agora
para o céu e ouvia-se o ronco uniforme do motor.
- Vem daí, Tommy. Não tens de ir muito longe, apenas umas catorze ou quinze
fieiras daqui, e de lá podemos observar o que eles fazem.
Tom levantou-se.
- Por Deus! Tens razão! - disse ele. Não tenho nada a perder nem a ganhar.
- Vem então, Tommy. Por aqui.
Muley rodeou a casa e meteu-se nos algodoeiros, percorrendo umas cinquenta jardas.
- Aqui está mesmo a calhar - indicou ele. - Agora deita-te. A única coisa que tens a
fazer é abaixar a cabeça se eles puserem os faróis a girar. Olha que tem piada.
Os três homens estenderam-se ao comprido e apoiaram-se nos cotovelos. Muley
pôs-se de pé de um salto e correu para casa, voltando daí a pouco, com uma trouxa de
casacos e sapatos.
- Podiam levá-los com eles só para se vingarem - explicou.
As luzes haviam atingido o monte e baixavam agora sobre as paredes da casa.
Joad disse:
- São muito rapazes de vir aqui à procura da gente com os holofotes. Quem me dera
ter um pau nas unhas!
Muley sufocou uma risada.
- Não, não vêm. Eu disse-te que era valente como uma doninha. Willy fez isso uma
noite e eu ataquei-o por detrás com uma estaca de vedação. Dei-lhe uma paulada que o
deixou zonzo. Foi depois dizer que tinha sido assaltado por cinco homens.
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O carro aproximou-se da casa e a luz dos faróis varreu-a toda
- Abaixem as cabeças! - ordenou Muley.
A faixa de luz crua e branca dançou-lhes sobre as cabeças e cruzou o campo. Os
homens escondidos não podiam ver nenhum movimento, mas sentiram bater a porta do
carro, e um rumor de vozes.
- Apagaram a luz - murmurou Muley. - Uma vez, atirei uma pedra aos faróis. Agora,
o Willy tem mais cuidado. Traz alguém consigo esta noite.
Ouviram passadas no soalho e, depois, viram o clarão de uma lâmpada eléctrica.
- Querem que atire uma pedra para dentro de casa? - cochichou Muley.- Não ficavam
a saber de onde vinha. Dava-lhes que pensar.
- Sim, atira - assentiu Joad.
- Não atire- aconselhou Casy. - Não servia de nada. Era tempo perdido. Temos mas é
de pensar em alguma coisa que nos seja útil.
Estalidos soaram perto da casa.
- Estão a apagar o lume - segredou Muley. - Estão a cobri-lo de terra.
As portas do carro bateram com força, os faróis iluminaram-se, tornando a enfrentar
a estrada.
- Abaixem-se agora! - ordenou Muley.
Abaixaram as cabeças, e a faixa de luz passou por cima deles; cruzou e recruzou o
campo de algodão, e depois, o carro partiu, subiu o monte e desapareceu.
Muley ergueu o tronco.
- Willy faz sempre no fim esse truque dos faróis. Tem feito isso tantas vezes que eu já
sei quando ele o vai fazer. E ainda pensa que é um tipo esperto!
Casy ponderou:
- Pode ser que tivessem deixado alguns tipos na casa, para nos prenderem ao
voltarmos.
- Talvez. Esperem vocês aqui. Eu já conheço o jogo.
Pôs-se a caminhar com tanta cautela que apenas um ligeiro esmagamento de torrões
se ouvia à sua passagem. Os dois homens, à espera, tentavam captar qualquer ruído mas ele
já se fora. Pouco tardou que lhes falasse de dentro de casa.
- Não deixaram ninguém. Podem voltar.
Casy e Joad levantaram-se e avançaram para a massa negra da casa. Muley encontrouse
com eles junto da pilha fumegante que restava da fogueira.
- Não me cheira que deixassem alguém - disse ele orgulhosamente. - A paulada que
ferrei no Willy e a pedrada que atirei aos faróis meteram-nos nos eixos. Não sabem ao certo
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quem foi, e eu não caio em me deixar apanhar. Nunca durmo perto das casas. Se vocês
querem vir comigo, eu mostro-lhes onde podemos dormir, sem que ninguém vá dar
connosco.
- Vai à frente, então - assentiu Joad. - Nunca me passou pela cabeça que tivesse de
andar escondido nas terras do meu pai.
Muley meteu através dos campos, com Joad à frente e Casy atrás. Tropeçavam nos
algodoeiros ao caminharem.
- Ainda terás de te esconder de muitas coisas - disse ele.
Puseram-se a marchar em fila indiana e, por fim, chegaram a um barranco, e
deixaram-se resvalar até ao fundo.
- Por Deus, ia a apostar que sei onde estou! - exclamou Joad. - Não há uma caverna
aí na margem?
- Há. Como é que sabes?
- Fui eu que a abri - respondeu Joad. - Eu e o meu irmão Noah. Dizíamos que
andávamos a pesquisar ouro, mas era apenas para nos divertirmos a escavar cavernas como
os rapazes costumam fazer.
As paredes do barranco ficavam-lhes acima das cabeças.
- Deve estar bem perto - acrescentou Joad. - Lembro-me que era bem perto daqui.
Muley disse:
- Cobri-a de mato. Ninguém é capaz de a descobrir.
O fundo do barranco aplanara-se e o piso era de areia. Joad. sentou-se na areia limpa.
- Não vou dormir em nenhuma caverna. Durmo mesmo aqui. - Enrolou o casaco e
pô-lo debaixo da cabeça.
Muley puxou o mato para fora e arrastou-se para a sua caverna.
- Sinto-me bem aqui. Aqui ninguém me pode incomodar.
Jim Casy sentou-se na areia, ao lado de Joad.
- Durma um bocado - disse Joad. - Partimos de madrugada para casa do tio John.
- Não tenho sono - respondeu Casy. - Tenho muito em que pensar.
Levantou os pés e dobrou as pernas. Deixou pender a cabeça para trás e pôs-se a
contemplar as estrelas reluzentes. Joad bocejou e pôs uma mão debaixo da cabeça. Ficaram
em silêncio e, de novo, começou gradualmente a vida oculta da terra; das covas, das luras e
do mato; os esquilos do prado agitavam-se e os coelhos punham-se a roer coisas verdes; os
ratos pulavam sobre os torrões e os caçadores alados esvoaçavam silenciosamente no ar.
2ª parte »»»