Capítulo VII

Nas cidades, nos subúrbios das cidades, nos campos, nos terrenos baldios, nos
depósitos de ferro velho e de carros usados, nas garagens ostentavam-se cartazes:
“Automóveis usados quase novos. Transporte barato. Três roulottes Ford, 1927, em perfeito
estado. Carros garantidos. Carros verificados. Rádios de graça. Automóvel com cem galões
de gasolina grátis. Agradece-se uma visita. Carros usados. Livres de despesas
suplementares”.
Um pequeno espaço de terra e uma casinha suficientemente grande para comportar
uma secretária, uma cadeira e um livro de capa azul. Um maço de contratos, de papéis
dobrados e amarrotados nas pontas, seguro por um grampo de aço e uma pilha de
formulários para contratos ainda em branco. A caneta - conservem a caneta sempre cheia,
sempre pronta a trabalhar. - Já se tem deixado de fazer um negócio por causa de uma
caneta falhar.
Aqueles filhos da mãe não compram nada com certeza. Toda a gente os conhece.
Não fazem mais do que olhar. Passam a vida a olhar. Não compram nenhum carro; nem
pensar nisso é bom. O que eles querem é fazer perder tempo aos outros. Aqueles dois...
não, os que estão com as crianças. Mete-os num carro. Começa em duzentos para depois
baixares. Têm cara de quem está bem para cento e vinte e cinco. Teima com eles. Fá-los
girar. Obriga-os a comprar. Estão para aqui a roubar-nos o tempo.
Proprietários de mangas arregaçadas. Vendedores bem arranjados, de olhos
implacáveis, fixos, à espera de um momento de fraqueza por parte do comprador. Repara
na cara da mulher. Se ela gostar, o velhote escorrega. Mostra-lhe esse Cadillac. Depois,
podes levá-los nesse Buick 1926. Se começares com um Buick, eles querem um Ford.
Arregaça as mangas e vamos ao trabalho. Isto não pode durar muito tempo. Mostra-lhes
esse Nash, enquanto eu vou arranjar o rombo daquele Dodge, 1925, Quando estiver
pronto, faço-te um sinal.
O senhor quer um carro para uma viagem, não é? Pois claro, não precisa de um carro
de luxo. Sim, o estofo está um pouco usado, mas não são as almofadas que fazem andar as
rodas.
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Carros enfileirados, com os focinhos para a frente, focinhos ferrugentos, pneus
ressequidos, gastos. Em filas bem unidas.
Quer ver este? Claro que não dá incómodo nenhum. Vamos tirá-lo da fila.
Fá-lo compreender que está a roubar-nos o tempo. Faz com que ele se sinta na
obrigação moral de comprar. As pessoas, em geral, têm sentimentos. Não gostam de
prejudicar ninguém. Faz com que elas sintam que estão a dar prejuízo, a fazer-nos perder
tempo. Depois, impinge-lhes um calhambeque.
Carros enfileirados. Modelo T, alto e quadrado, rodas que chiam, braçadeiras- gastas.
Buicks, Nashes e De Sotos.
Sim, senhor. E um Dodge 22. É o melhor tipo de carro que a Dodge já fabricou.
Dura toda a vida. Compressão baixa. A compressão alta dá grande velocidade, a princípio,
mas, depois, o motor não aguenta. Plymouths, Rocknes e Stars.
Jesus, de onde veio esse Apperson, essa arca? E um Chalmers e um Chandler? Já há
anos que se não fabricam. Não são carros que a gente venda... isso é sucata. Mas, enfim,
sempre é preciso ter alguns calhambeques. Não quero nada que me custe mais do que vinte
e cinco a trinta dólares. Posso-os vender por cinquenta, setenta e cinco. E um bom lucro.
Carros novos para quê? Do que eu preciso é de calhambeques. Vendem-se num abrir e
fechar de olhos. Não quero nada acima de duzentos e cinquenta. Jim, agarra-te àquele
palerma, ali no passeio. É daqueles que não percebem nada disto. Talvez fique com o
Apperson. É verdade, onde está o tal Apperson? Foi vendido? O que convém é a gente
arranjar outros calhambeques desse tipo, senão, acabamos por não ter nada que vender.
Flâmulas, encarnadas e brancas, brancas e azuis, todas enfeitando os radiadores.
Carros usados. Bons carros usados.
Hoje! Uma ocasião excelente - ali no estrado. Nunca me vendas aquilo. É o chamariz
da clientela. Se vendêssemos aquilo pelo preço marcado, não metia um chavo na algibeira.
Diz-lhe que já está vendido. Tira-me daí essa bateria, antes de fazeres a expedição. Põe-me
aí essa pilha. Mas, que querem eles por dez réis de mel coado, Santo Deus?! Arregaça as
mangas e pega-os de caras, anda! Uf! Até que enfim! Se eu tivesse uma boa porção de
calhambeques, daqui a seis meses poderia retirar-me dos negócios.
Olha, Jim, estou a ouvir aquele Chevrolet lá do fim. Parece que está a moer cacos de
garrafa. Despeja-lhe dentro duas libras de serradura. Atira-lhe também um bocado para a
engrenagem. Temos de impingir essa bodega por trinta e cinco dólares. O patife intrujoume
com aquilo. Ofereci-lhe dez, levou a coisa até quinze, e, depois, o filho da mãe bilou-me
as ferramentas. Santo Deus! Ah, que se eu tivesse cem calhambeques! Isso afinal não vai,
hein? Não gosta dos pneus? Diz-lhe que têm dez mil milhas e abate-lhe dólar e meio, anda!
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Pilhas de sucata enferrujada. Fileiras de restos lamentáveis, ao fundo, pára-choques,
peças negras de óleo, blocos pelo chão e ervas crescendo entre os cilindros. Cabos de
travões, tubos de escape enrodilhados como serpentes. óleo e gasolina.
Vê se me encontras aí uma vela em bom estado. Ai, Cristo, que se eu tivesse para aí
uns cinquenta roulottes, estava-me nas tintas para tudo isto! Que diabo quer esse fulano?
Claro que lhos vendemos mas não lhos pomos em casa. Que fique bem entendido! Não há
entregas ao domicílio. Ora! Põe-se isto na “Revista do Automóvel”, até aposto. Não te
parece que ele se resolva? Nesse caso, põe-no a andar. Temos mais que fazer do que perder
o tempo com um tipo que não sabe o que quer. Tira-me o pneu direito da frente a esse
Graham. Volta o lado remendado para a parte de dentro. O resto está catita. Tem tudo o
que é preciso.
Claro que só tem ainda cinquenta mil. Deita-lhe bastante óleo. Bom. Até mais ver,
Boa sorte!
Quer um carro? Que marca desejava? Vê alguma coisa que lhe agrade? Mas, olhe,
tenho a garganta seca. E, se bebêssemos uma pinga? Vamos até ao bar, enquanto a sua
senhora vai examinando? esse La Salle. O senhor decerto não quer nenhum La Salle. É um
carro de aspecto feio. Além disso, gasta muito óleo. Adquira um Lincoln 1924, que o
senhor vai ver. Isso sim, é que é um carro! Corre como o diabo. Tem tanta força como um
caminhão.
Sol ardente sobre os metais enferrujados. óleo entornado no chão. Gente que anda
por ali, desnorteada, à procura de um carro.
Limpe os pés. Não se encoste a esse carro; está muito sujo. Por quanto é que se
compra um automóvel? Quanto custará? Olha, toma cuidado com as crianças. Qual será o
preço deste? Temos de perguntar. Perguntar não custa dinheiro. Acho que perguntar não
ofende ninguém. Não podemos pagar nem um cêntimo além de setenta e cinco dólares,
senão, o dinheiro não nos chegará até à Califórnia.
Santo Deus! Quem tivera aí uns cem calhambeques! Que me importava a mim que
andassem ou não!
Pneus, pneus gastos e avariados, enfiados em grandes cilindros; câmaras-de-ar
vermelhas, cor de cinza, penduradas como salsichas.
Remendos para pneus? Limpadores de radiador? Intensificadores de combustão?
Deite essa pílula no seu tanque de gasolina e conseguirá dez milhas mais por cada galão.
Não quer pintar o carro? Por cinquenta cêntimos, fica como novo. Limpadores? Correias
de ventilador, empanques?
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Talvez seja a válvula. Leve uma nova. - Muito bem, Joe. Manda-me esses tipos, que
eu cá me ajeito com eles. Agarro-me a eles, que hão-de acabar por comprar.
Sim, senhor. Pode entrar. O senhor vai ter um carro que é uma beleza. E sabe por
quanto? Por oitenta dólares apenas. Sim senhor.
Não, só posso pagar cinquenta. Aquele homem que está lá fora disse que por
cinquenta já se pode ter um bom carro.
Cinquenta? Cinquenta? Ele está maluco. Setenta e oito e meio foi quanto eu dei por
ele. Joe, tu estás maluco! Queres rebentar connosco?! Tenho de ter cuidado com este tipo.
Ainda se fossem sessenta, vá lá, Agora, ouça: eu sou negociante, não quero perder tempo.
Tem alguma coisa para dar em troca?
Tenho uma parelha de muares que não me importava de trocar...
O quê?! Trouxe uma parelha de muares para trocar? Muares! O Joe, estás a ouvir
esta? Este tipo quer negociar com muares? Então nunca lhe disseram que vivemos no
tempo da máquina? Hoje em dia, dos machos só se aproveita a pele.
São animais bem bonitos. Cinco e sete anos cada um. É melhor a gente ver noutro
lado...
Ver noutro lado?! O senhor vem aqui roubar-me um tempo tão precioso e depois
vai-se embora? Joe, não sabias que estavas a lidar com gente que não ata nem desata?
Mas eu não quis incomodá-lo, não, senhor. Vim para comprar um carro. - Nós
queremos ir para a Califórnia. Preciso de um carro.
Bem, eu sou um trouxa. Pelo menos, é o que o Joe está sempre a dizer. E diz que só
venho a ter juízo quando perder a camisa ou morrer. Sabe o que lhe digo? Talvez me dêem
cinco dólares por cada um dos machos; vão aproveitar-lhes a carne para dar de comer aos
cães.
Eu não quero que a carne deles seja para os cães.
Bem, talvez me dêem dez ou sete dólares por cada um. Então como vem a ser? Bem,
vou dar-lhe vinte pelos dois machos. A carroça vem incluída, não vem? O senhor
acrescenta mais cinquenta e terá um carro que é uma beleza. Pelo resto, o senhor vai
assinar um contrato, comprometendo-se a pagar dez dólares por mês, até liquidar a dívida.
Mas o senhor disse que eram oitenta.
O senhor nunca ouviu falar em riscos e em seguro e outras taxas? Tudo isso aumenta
um pouco o preço. Em cinco meses fica tudo pago. Assine o nome aqui mesmo. Nós
encarregamo-nos de tudo o mais.
Eu... eu não sei... se... Olhe lá, ouça. já lhe fiz esse preço de amigo, sem ganhar quase
nada. Podia ter feito pelo menos três negócios durante todo o tempo que perdi com o
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senhor. Francamente, já estou aborrecido. Sim senhor, assine aí mesmo. Muito bem. Ó Joe!
Enche o depósito a este senhor. A gasolina é de graça.
Safa, Joe, este tipo era duro de roer. Quanto demos por essa geringonça? Trinta ou
trinta e cinco dólares, não foi? E ele deixou a parelha de muares, que há-de dar, pelo
menos, uns setenta e cinco dólares; se não der isso, podem dizer que não sou negociante. E
arranquei-lhe mais cinquenta à vista e um contrato de quatro prestações mensais de dez
dólares cada uma. Sim senhor! Sei que nem todos eles são honestos, mas chega a espantar
como ainda há tantos que pagam até ao fim. Um parolo, uma vez, veio pagar-me cem
dólares dois anos depois de eu lhe ter escrito a descompo-lo. Ia apostar em como este tipo
manda a massa. O que a gente precisava- caramba! - era de uns quinhentos calhambeques
assim. Anda lá, Joe, arregaça as mangas, vai lá fora e manda-me os trouxas. já ganhaste
vinte neste último negócio. Não estás a ir nada mal, não, Joe.
A pechincha do dia: Bandeiras pendendo molemente ao sol da tarde: Ford 1929. Em
bom estado. Corre que é uma beleza.
O que é que o senhor quer por cinquenta dólares? Um Zefir?
Crina dura, furando os acolchoados dos assentos, fenders amachucados e endireitados
à força de martelo. Pára-choques deslocados e pendentes. Um Ford roadster com luzinhas
coloridas dos lados, no radiador e três atrás. Guarda-lamas e um grande dado sobre o cabo
da alavanca das velocidades. Uma pequena bonita, chamada Cora, pintada a cores num
invólucro de pneu. O sol da tarde incidia nos pára-brisas cobertos de poeira.
Agora me lembro de que nem comi nada. Joe, manda o rapaz ir buscar uma
sanduíche.
Ruído intermitente de velhas máquinas.
Lá está um pacóvio a olhar para aquele Chrysler. Ora vê se é tipo de massa. Ás vezes,
esses saloios têm dinheiro. Passa-lhe a mão por cima do pêlo e manda-mo cá, Joe. já vais
percebendo disto.
Pois claro que lho vendemos. E demos-lhe garantia, sim, senhor. Garantia de que lhe
vendíamos um automóvel. Não lhe dissemos que íamos tratar dele como se fosse um bebé.
Escute; o senhor comprou um carro e agora vem para aqui pôr-se a refilar. Bem me rala a
mim que o senhor não pague as prestações! O seu contrato já aqui não está; mandámo-lo
para a companhia de finanças. Ela agora é que vai tratar do caso. Não temos cá o papel,
ouviu? Se se põe para aí a armar em teso, chamo um polícia. Não senhor, não trocámos os
pneus. Põe-me este tipo daqui para fora, Joe. Comprou um carro e agora não está satisfeito.
P, o mesmo que eu comprar um bife, comer a metade e devolver a outra, querendo
novamente o dinheiro. Isto aqui é uma casa comercial, não é uma instituição de caridade.
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Estás a ver o tipo, Joe! Olha para ali! Tem um dente de EIk (Dente de ELK. Emblema de
membro do círculo dos ELKS. Este círculo é uma das ramificações que, nos Estados Unidos, possui o
Clube dos Rotários). Despacha-te e mostra-lhe esse Pontiac 36. Sim, sim...
Capots quadrados, carros arredondados, ferrugentos, em forma de pá, de compridas
curvas aerodinâmicas e superfícies chatas, anteriores às linhas aerodinâmicas. Velhos
monstros, com os estofos lá no fundo - facilmente transformáveis em caminhões. Roulottes
de duas rodas, com os eixos enferrujados sob a luz crua da tarde. Carros usados. Bons
carros usados. Limpos. Correm bem. Não largam óleo.
Santo Deus! Olha para aquilo! Aquilo é que é um carro bem tratado! Cadillacs. La
Salles, Buicks, Plymouths, Chevrolets, Fords, Pontiacs. Em fileiras cerradas, com os faróis
cintilando à luz do sol. Bons carros usados.
Vai segurando os fregueses, Joe! Jesus, quem me dera ter mil calhambeques! Põe-nos
em condições de fechar o negócio e depois manda-os ter comigo.
Vai para a Califórnia? Então temos aqui o que o senhor precisa. Parece muito gasto,
mas ainda pode fazer alguns milhares de milhas. Lado a lado, filas atrás de filas. Bons
carros usados. Pechinchas. Carros limpos que correm bem.
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Capítulo VIII
O céu tornava-se cinzento entre as estrelas e o quarto crescente, pálido, distante,
diluía-se no espaço. Tom Joad e o reverendo Casy caminhavam rapidamente pela estrada
que fora formada pelos sulcos das rodas do caminhão e do tractor através de um algodoal.
Apenas o céu, de claridade dúbia, um céu que não formava horizonte a oeste e não traçava
mais do que uma linha apagada a leste, denunciava a aproximação da aurora. Os dois
homens caminhavam em silêncio, aspirando a poeira que os seus pés levantavam do chão.
- Deus permita que você conheça bem o caminho - disse Jim Casy. - Seria o diabo
andarmos por aqui perdidos ao alvorecer.
No algodoal, a vida despertava, fervilhando: aves que, alvoroçadas, se precipitavam a
debicar no chão e coelhos que, sobressaltados, se esgueiravam por cima dos torrões. Os
passos mansos dos caminhantes na poeira, o estalido dos torrões secos sob os pés,
dominavam os secretos ruídos do alvorecer.
- Eu até de olhos fechados ia lá ter - disse Tom. - Só me enganaria se me pusesse a
pensar no caminho. Mas, se não pensar nisso, vou lá ter direitinho. Diabo, pois se eu nasci
aqui! Ali adiante deve haver uma árvore. Olhe, ali, vê-a? Até uma vez o meu pai pendurou
um lobo morto naquela árvore. O bicho ficou lá pendurado até cair de podre. É uma coisa
engraçada ver a carne a apodrecer. Agora, por falar nisso, espero que minha mãe tenha
alguma coisa de comer. Tenho o estômago colado às costas.
- Eu também - disse o pregador. - E se mascássemos um bocado de tabaco? Faz
esquecer a fome. Tinha sido melhor se a gente não tivesse partido tão cedo. Devíamos ter
deixado clarear o dia. - Parou para meter um pedaço de tabaco comprimido na boca.-
Estou com um sono danado.
- Foi aquele maluco do Muley - disse Joad. - Deu-me uma sacudidela. Acordou-me e
disse: “Bem, Tom, adeus, eu vou indo. Tenho que ir aí a um sítio. E depois, disse: “É
melhor tu ires também, de modo a estares longe daqui quando for dia.” Está a fazer-se
medroso que nem um coelho, com aquela vida que leva. Dir-se-ia que andam os índios
atrás dele. Não acha que ele perdeu o juízo?
- Bem, para falar verdade, não sei. Você viu aquele carro que chegou quando
acendemos a fogueira? Não viu como a casa estava escangalhada? As coisas estão bem
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feitas. O Muley tem razão e mais que razão para dar em maluco. Ele corria de medo como
um coelho mas tudo aquilo é de dar com uma pessoa em doido. Não tarda muito que ele
não mate por aí alguém, e que lhe façam uma verdadeira caçada. Estou a ver que vai
acontecer isso. Ele vai de mal a pior. Não quis vir connosco, pois não?
- Não - disse Joad. - Acho que está com medo de ver gente. Até estou admirado de
ele ter estado connosco... Antes de o Sol nascer, pomo-nos em casa do tio John.
Caminharam algum tempo em silêncio. As corujas retardatárias sobrevoavam os
campos, em direcção às árvores escavadas, aos celeiros, aos vãos de telhados, fugindo à luz
do dia. Para as bandas do oriente, o Sol ia clareando e já se distinguiam os algodoeiros e a
cor pardacenta da terra,
- Diabos me levem se eu atino como conseguem dormir todos em casa do tio John!
Lá só há um quarto, uma cozinha imunda e um celeiro pequeno. Deve ser uma balbúrdia
danada.
- Não me recordo se o John é casado. Ele vive sozinho, não vive? - perguntou Casy. -
Não me lembro muito bem dele.
- É o tipo mais solitário do mundo - disse Joad.- É um maluco, aquele filho da mãe,
como o Muley, mas muito pior em certas coisas. Quem o quer ver é bêbedo lá para
Shawnee, ou de visita a uma viúva que mora a vinte milhas de distância, ou então a
trabalhar no que é dele à luz de uma lanterna, É maluco. Toda a gente pensava que ele não
viveria muitos anos. Um homem só não vive muito tempo. Mas o tio John é mais velho
que o pai e, no entanto, está cada vez mais forte e mais selvagem. Mais selvagem que o meu
avô.
- Olhe, o Sol está a romper - disse o pregador. - Até parece prata.. O John nunca teve
família?
- Ora, tinha, sim e isso mostra que qualidade de tipo ele é... e a maneira como se
conduz, O meu pai é que costuma contar. O tio John tinha mulher, e bastante nova.
Estavam casados havia quatro meses. Ela ficou prenhe e, então, uma noite, teve uma dor
de barriga e disse para o meu tio: “Olha, John, o melhor chamares o médico.” Pois o tio
John nem se mexeu. Só disse: “O que tu tens é uma dor de estômago. Comeste muito.
Toma uma pílula. Encheste o estômago e agora dói-te.” Pois na manhã seguinte, ela piorou
e acabou por morrer às quatro horas da tarde.
- Morreu de quê? - perguntou Casy. - Envenenou-se com alguma coisa que comeu?
- Não, foi qualquer coisa que lhe rebentou. Ap... apendricique ou qualquer coisa
assim. Então o tio John, que era um tipo que se não ralava com coisa nenhuma, teve um
grande abalo com aquilo. Achou que tinha cometido um pecado. Durante muito tempo
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não falou com ninguém. Só andava para trás e para diante e às vezes parecia que rezava.
Levou dois anos para se recompor e, mesmo assim, nunca ficou bom de todo. Ficou como
um selvagem, e difícil de aturar. Cada vez que uma criança, lá em casa, aparecia com
lombrigas ou dores de barriga, chamava logo o médico. As crianças andavam sempre com
dores de barriga. O pai teve de lhe dizer que acabasse com aquilo. O tio John tem a mania
de que teve a culpa da morte da mulher. É um tipo engraçado. Está sempre a querer ajudar
os outros, dá guloseimas às crianças e deixa sacos de provisões ou de comida à porta dos
mais necessitados. Dá, quase tudo o que tem e, mesmo assim, não vive nada feliz. As vezes,
anda por aí a rondar, sozinho, de noite. Mas é um bom lavrador: sabe cuidar da terra.
- Coitado! - disse o pregador. - Coitado, tão só! Ele passou a ir mais vezes à igreja
quando a mulher lhe morreu?
- Não, senhor. Nunca mais se quis aproximar muito das pessoas. Queria estar
sozinho. Mas as crianças, isso sim, nunca vi uma criança que não gostasse dele! Às vezes,
ele ia lá a casa, de noite, e, quando vinha, já a gente sabia que, com certeza, havia um
cartucho de pastilhas na cama para cada um de nós. As crianças julgavam que era Jesus em
pessoa.
O pregador foi caminhando de cabeça baixa. Não disse mais nada. E a luz da
madrugada iluminava-lhe a testa, e as mãos, balouçando ao ritmo dos seus passos, tão
depressa surgiam à luz como saíam dela.
Tom mantinha-se igualmente silencioso, com o aspecto da pessoa arrependida de ter
contado uma coisa demasiado íntima. Apressou o passo e o pregador imitou-o. já podiam
avistar o caminho. uma cobra saiu, coleando lentamente dos renques de algodão, para a
estrada. Tom parou perto dela a observá-la. “É uma cobra rateira, vamos deixá-la em paz.”
Passaram ao lado da cobra e continuaram o seu caminho. Um débil colorido despontou a
oriente, e, quase sem transição, veio a solitária luz do amanhecer estender-se pelo campo.
Os algodoeiros retomaram a cor verde e a terra o seu tom castanho acinzentado. As faces
dos homens perderam a tonalidade pardacenta. O rosto de Joad parecia escurecer à medida
que o dia clareava.
- É uma boa hora, esta - disse Joad, mansamente. - Quando eu era criança, gostava de
me levantar cedo e de andar à solta pelos campos, por estas alturas do dia. Que é aquilo ali
adiante?
Um bando de cães reunira-se na estrada em honra de uma cadela. Cinco machos,
mestiços de cão de pastor e de galgo da serra, cujas raças se haviam confundido, graças à
liberdade da sua vida social, empenhavam-se em cortejar a fêmea. Cada um dos cães
fungava delicadamente e, depois, de pernas rígidas, caminhava para uma planta de algodão,
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e regava-a, alçando cerimoniosamente uma das pernas traseiras. Depois, voltava-se, a
cheirá-la. Joad e o pregador pararam para olhar a cena e, de repente, Joad pôs-se a rir com
todo o gosto.
- Ih, que pândega! - disse. Agora, os cães reuniam-se, de dentes arreganhados. Todos
rosnavam, empertigados, prontos ao combate. Finalmente, um deles encavalitou-se na
cadela, e agora, que o facto ia consumar-se, os outros cediam, observando com interesse,
de línguas pendentes, a gotejar. Os dois homens seguiram o caminho.
- Meu Deus! - exclamou Joad. - Aquele cão que apanhou a cadela é o nosso Flash.
Pensei que já tinha morrido. Vamos, Flash! - e riu novamente. - Ora! Ora! - Se alguém me
chamasse numa ocasião daquelas, também não ia. Isto faz-me lembrar uma coisa que
aconteceu com o Willy Feely, quando ele era um rapazinho, ainda. O Willy era
espantosamente tímido. Ora, um dia, ele levou uma novilha para o touro do Graves. Toda
a gente tinha saído, a não ser a Elsie Graves e a Elsie, essa, não tem vergonha nenhuma. O
Willy ficou para ali apalermado e vermelho que nem um pimentão e sem coragem para
falar. E vai a Elsie diz-lhe assim: “Já sei para que vieste cá. O touro está atrás do celeiro.”
Bem, levaram a novilha e sentaram-se na vedação a ver. Claro que o Willy daí a pouco
perdia a cabeça. Elsie olhou para ele e disse, como se não percebesse a coisa: “Que é isso,
Willy?” O Willy estava de tal maneira que nem podia estar quieto, “Meu Deus! - disse ele -
até eu estou com vontade de fazer o mesmo.” E a Elsie disse: “Então faz, Willy. A novilha
é tua.”
O pregador riu brandamente.
- Sabe que é uma coisa boa a gente já não ser pregador? Quando eu era ainda o
reverendo Casy, ninguém contava histórias dessas na minha presença, ou, quando alguém
as contava, eu não podia rir, porque não me ficava bem. E também não podia praguejar.
Agora, praguejo quando quero e ainda bem; é uma coisa que alivia a gente.
Um clarão vermelho cresceu das bandas do oriente, e os passarinhos, no solo,
começaram a chilrear, alegremente.
- Olhe - disse Joad. - Ali mesmo em frente é o poço da casa do tio John. Ainda não
vejo o moinho de vento, mas aquilo ali é o poço dele, com certeza. Não o vê de encontro
ao céu? - Acelerou o passo. - Estarão lá todos?
O rebordo do poço via-se no alto de uma elevação. Joad, que ia quase a correr,
levantou uma nuvem de poeira até aos joelhos.- Quem sabe se a minha mãe...- Eles viam,
agora, a cegonha do poço tosco, e a casa, uma pequena construção parecida com um
caixote sem pintura, e o celeiro, de tecto baixo e mal amanhado. O fumo ascendia pela
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chaminé da casa. No terreiro ia uma desordem: peças de mobiliário amontoadas, as hélices
e o motor de um nicinho de vento, armações de camas, cadeiras e mesas.
- Deus do céu, eles estão de abalada! - exclamou Joad.
Um caminhão estacionava também em frente da casa, um caminhão de taipais altos,
mas muito esquisito, porque a frente era a de um Sedan, cuja parte de cima fora cortada a
meio para se lhe adaptar a carrosserie de um caminhão. E, à medida que se aproximavam
mais, os dois homens iam distinguindo marteladas vindas do terreiro; e, quando o rebordo
deslumbrante do Sol surgiu no horizonte, iluminando o caminhão, viram um homem e o
fulgurar de um martelo que ora se baixava ora se erguia no ar. E o Sol ofuscante incidia
agora nas janelas da casa, fazendo rebrilhar o madeiramento. Duas galinhas ruças
esgaravatavam o chão e as suas penas vermelhas reflectiam os raios solares.
- Não dê nenhum grito - disse Joad.- Vamos até lá.
E pôs-se a andar tão depressa que levantava poeira até à cintura. Assim chegou à
extremidade do algodoal. Encontravam-se agora junto do terreiro, de chão duro, batido e
reluzente, com alguns pés de grama cobertos de pó. Então, Joad afrouxou o andamento,
como se receasse avançar. O pregador, notando isso, acertou o passo com ele. Tom
continuou lentamente, e deu a volta ao caminhão. Era um Hudson Super-Six, Sedan, cuja
parte de cima fora cortada a meio com um escopro. O velho Tom Joad estava na carrosserie
do caminhão, batendo pregos nos varões cimeiros dos lados do veículo. O rosto, coberto
por uma barba grisalha, estava debruçado sobre o trabalho e os seus dentes apertavam um
punhado de pregos de seis pence. Assentou um, fazendo o martelo trovejar sobre ele, De
casa, veio o som do bater da tampa do fogão e o choro de uma criança. Joad. encostou-se
ao caminhão. Seu pai olhou-o sem o ver. Pegou noutro prego e meteu-o na madeira. Um
bando de pombos ergueu voo da beira do poço, esvoaçou e veio de novo poisar no
rebordo, em atitude de observação; eram pombos brancos, azuis e cinzentos, com asas da
cor do arco-íris.
Joad segurava-se à borda do caminhão com os dedos convulsos; fixou a vista no
homem grisalho, que começava a envelhecer e que via instalado na carrosserie do caminhão.
Passando a língua pelos lábios grossos, balbuciou:
- Pai!
- Que é que tu queres? - grunhiu o velho Tom Joad, por entre os dentes que
seguravam os pregos.
Usava um chapéu preto, sujo, de abas reviradas e uma camisa azul de trabalho, sem
colarinho, sobre a qual trazia um colete de botões ausentes. As calças de fustão
mantinham-se no seu lugar, graças a um largo cinto de couro, fechado por uma enorme
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fivela quadrada de metal, tudo polido por longos anos de uso, e sapatos rebentados, de
solas inchadas, completamente deformados por anos de sol, de humidade e de poeira. As
mangas arregaçadas da camisa mantinham-se presas nos antebraços pelos músculos
salientes e poderosos. O ventre e as ancas do velho eram enxutos de carnes e as pernas,
curtas, grossas e fortes. As faces, emolduradas por uma rude barba sal e pimenta, descaíam
para o queixo voluntarioso - um queixo proeminente, acentuado pela barba hirsuta, menos
grisalha naquela parte do rosto. Nos malares, sem pêlo, a epiderme morena, cor da espuma
das boquilhas tinha-se coberto de rugas divergentes em torno dos olhos, de tanto que estes
haviam piscado. Tinha os olhos castanhos, cor de café e inclinava a cabeça para a frente
cada vez que tinha de examinar bem qualquer coisa, porque aqueles olhos escuros e
brilhantes começavam a enfraquecer. Os lábios que retinham os pregos eram delgados e
vermelhos.
O velho suspendeu o martelo pronto a descarregar a pancada e lançou a Tom um
olhar por cima do caminhão? com o ar contrariado de quem se vê interrompido a meio de
uma tarefa. Depois, o queixo deslocou-se para a frente e os seus olhos encararam o rosto
de Tom; então, gradualmente, o cérebro foi compreendendo aquilo que os olhos
enxergavam. Pousou o martelo devagar e os dedos da mão esquerda tiraram os pregos
todos da boca. E o velho falou, admirado, hesitante, como se estivesse a contar a si mesmo
aquele caso:
- Mas é o Tommy... - E, logo, como se continuasse aquela espécie de auto-afirmação:
- O Tommy voltou para casa.- A boca abriu-se-lhe novamente e um lampejo de temor
surgiu nos seus olhos. - Tommy - disse brandamente - tu não fugiste, pois não? Não tens
de te esconder? - E ficou à espera da resposta, ansiosamente.
- Não - disse Tom. - Fui perdoado. Liberdade condicional. Tenho aqui os documentos.
Tudo em ordem. Segurou-se às traves inferiores do caminhão e olhou para cima.
O velho Tom Joad colocou o martelo mansamente no chão e meteu os pregos no
bolso. Passou as pernas pela borda do caminhão e deixou-se cair agilmente no solo, mas,
uma vez ao lado do filho, ficou-se alheado e cheio de embaraço. Tom seguiu-o.
- Tommy – disse - nós vamos para a Califórnia. Mas íamos escrever-te uma carta
antes. - E falou, ainda incrédulo: - Tu voltaste, Tommy. Então podes ir com a gente. Tu
podes vir!
Ouviu-se, vindo de casa, o estampido de uma tampa de cafeteira. O velho olhou por
cima dos ombros.
- Vamos fazer-lhes uma surpresa - disse, e os seus olhos brilhavam de excitação. -
Tua mãe teve um pressentimento; ela disse para aí que nunca mais te via. Andava-me com
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aquele olhar fixo próprio dos mortos. Nem queria ir para a Califórnia, com medo de nunca
mais te ver. Uma tampa de cafeteira estrondeou novamente em casa.- Ele vai ter uma
destas surpresas! - repetiu o velho Tom. - Vamos entrar corno se nunca te tivesses ido
embora daqui. Vamos ver o que a tua mãe diz... - Tocou finalmente no ombro do filho
com timidez, retirando a mão logo em seguida. Olhou para Jim, Casy.
- O senhor lembra-se do reverendo, não se lembra, pai? Ele veio comigo - disse
Tom.
- Esteve na cadeia também? - Não. Encontrei-o na estrada. Andava sozinho por aí.
O velho apertou gravemente as mãos do pastor.
- Seja bem-vindo, senhor - disse.
- Gostei muito de vir aqui - disse Casy. - É coisa digna de se ver um filho que
regressa a casa. É uma linda coisa.
- A casa, - disse o velho.
- Sim, isto é, que volta para junto da família - emendou o pregador, rapidamente.- A
gente esteve na outra casa a noite passada.
O queixo do velho avançou e ele olhou pela estrada fora um instante. Depois, virouse
para Tom.
- Como é que a gente vai fazer? - começou, excitado.- Talvez seja melhor eu entrar
primeiro e dizer assim: “Olha, estão aqui uns camaradas; pediram qualquer coisa de
comer”. Ou então, tu entras e ficas lá até ela te reconhecer. Que é que te parece melhor,
hem? - E as suas faces reflectiam uma emoção intensa.
- É melhor a gente evitar-lhe um choque - disse Tom.? - Pode fazer-lhe mal.
Dois cães de pastor, muito semelhantes, chegaram, correndo alegremente mas, ao
farejarem os estranhos, estacaram cautelosos e vigilantes a distância, movendo lentamente
as caudas, porém, com os olhos e os focinhos prontos para a agressão ou para enfrentarem
o perigo. Um dos animais, esticando o pescoço, avançou, pronto no entanto a fugir,
chegando-se a pouco e pouco das pernas de Tom que, ruidosamente, farejou. Depois,
voltou para trás e ficou a olhar o velho, como que à espera de um sinal. O outro cão era
menos audaz. Foi procurar qualquer coisa que o divertisse e encontrou-a numa galinha de
penas vermelhas, atrás da qual começou a correr afectadamente. Ouviu-se então o cacarejar
estridente próprio de uma galinha ameaçada; penas vermelhas redemoinharam no ar e
finalmente o animal conseguiu escapar-se, batendo as asas atarracadas num esforço de
velocidade. O cão olhou emproado para os homens e deitou-se na poeira, batendo
alegremente com a cauda no chão.
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- Vamos entrar - disse o velho. - Ela tem que te ver de qualquer forma. Sempre quero
ver a cara dela quando der por ti. Vamos. A comida deve estar pronta, com certeza. Há um
bocado que a vi às voltas com o porco salgado na frigideira.
E foi-os encaminhando através do terreiro coberto de fina camada de pó. Naquela
casa não havia varanda: apenas um degrau e uma porta e, ao lado desta, um cepo de
carniceiro de superfície amassada e polida por anos e anos de uso. Via-se distintamente o
grão da madeira; a poeira havia arruinado a parte mais macia. Um aroma de folhas de
salgueiro queimadas pairava no ar; à medida que os três homens se aproximavam da porta,
a esse aroma ia-se misturando o da carne frita, do pão de centeio fresco e do café,
fervilhando na cafeteira. O velho subiu o degrau bloqueou a porta de entrada com o corpo
atarracado e largo. E disse:
- Ó velhinha, estão aqui uns camaradas que chegaram agora mesmo e perguntam se
não há por aí umas sobras para eles.
Tom ouviu a voz de sua mãe, voz calma e arrastada, amigável e humilde, que tantas
vezes recordara:
- Que entrem - disse ela. - Há comida que chegue. Dize-lhes que vão lavar as mãos.
O pão está pronto. Estou agora às voltas com a carne. - Do fogão irrompia o sibilar agudo
da banha quente.
O velho entrou em casa, entreabrindo a porta e Tom pôde ver a mãe, que estava a
tirar da frigideira as fatias de porco meio enroladas e fritas. A porta do forno estava aberta,
à espera de um grande tabuleiro de pães escuros. A velha deu uma olhadela à porta, mas o
sol incidia por detrás de Tom, de modo que ela não viu mais do que um vulto escuro que
se recortava na luz solar, de um amarelo brilhante. Fez um sinal amistoso e disse:
- Entrem, rapazes. Tiveram sorte porque fiz bastante pão esta manhã.
Tom parou, olhando-a. A mãe era corpulenta, mas não gorda; simplesmente
engrossara devido aos muitos filhos e ao excesso de trabalho que tivera na vida. Trazia uma
bata cinzenta, onde outrora houvera flores coloridas, agora desbotadas, de modo que as
flores miúdas se tinham tornado cinzentas, embora mais claras que o tom fundamental. A
bata descia-lhe até aos tornozelos, e os pés robustos, largos, descalços, moviam-se rápida,
vivamente, no chão. Os cabelos ralos, de um cinzento cor de aço, estavam apanhados na
base do crânio, formando um nó largo e bojudo. Os braços grossos e sardentos estavam
nus até ao cotovelo, e as mãos eram polpudas mas delicadas como as das meninas
gorduchas. Ela olhou para fora, contra a luz do Sol. O seu rosto cheio não era flácido, mas
sim firme, conquanto de expressão indulgente. Os olhos, cor de avelã, parecia terem
experimentado todas as tragédias possíveis e terem atingido a dor e o sofrimento subindo,
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degrau a degrau, até alcançarem uma calma elevada e uma sobre-humana compreensão. Ela
parecia saber aceitar e acolher alegremente a sua posição como baluarte da família, lugar
que ninguém saberia ocupar como ela. E, visto que o velho Tom e as crianças não
conheciam moléstia ou receio, desde que a mãe os não sentisse, ela acabara por não
conhecer, praticamente, hesitações. E, corno, quando algo de alegre ou de agradável se lhes
deparava, eles olhavam primeiro para ela, a fim de ver se ela se mostrava alegre, a mãe
habituara-se a extrair alegria das coisas menos alegres. Melhor que a alegria, era porém a
calma que ela demonstrava. Sabia mostrar-se imperturbável. E, dessa sua posição
simultaneamente grande e humilde, extraíra não só dignidade como uma calma superior,
Da sua posição de médica de almas, haurira segurança, tranquilidade e domínio de gestos;
pela sua posição de árbitro, tornara-se distante e impecável como uma deusa. Parecia saber
que dependia dela o edifício da família; e que, se ela se mostrasse verdadeiramente
perturbada ou dominada pelo desespero, todo esse edifício se desmoronaria ao menor
sopro de ventos adversos.
Olhou outra vez para fora, para o vulto escuro do homem. O pai mantinha-se
próximo, tremendo de excitação.
- Entrem! - gritou ele. - Vão entrando, senhores! E Tom, um pouco envergonhado,
atravessou a soleira. A mãe desviou, com ar amável, a atenção da frigideira. As suas mãos
desceram lentamente e o garfo que segurava caiu com estrondo no chão. Os olhos abriramse-
lhe desmesuradamente e as pupilas dilataram-se-lhe. Respirava ofegante, pela boca
aberta. Depois, fechou os olhos:
- Graças a Deus! - disse. - Oh, graças a Deus!- E logo o seu rosto assumiu um ar
preocupado. - Tommy, tu fugiste, Tommy? Tu não fugiste, pois não?
- Não, mãe. Fui perdoado. Tenho aqui os papéis. - E indicou o peito.
Então, ela aproximou-se do filho rapidamente, sem fazer barulho com os pés
descalços, e a sua fisionomia reflectiu todo o seu encantamento. A mão pequena procurou
o braço do filho, a tocar-lhe a rijeza dos músculos. E então os dedos ascenderam até ao
rosto, com um tactear próprio de cego. E a sua alegria parecia aproximar-se da mágoa.
Tom prendeu o lábio inferior com os dentes e mordeu-o. Os olhos da mãe seguiram, numa
interrogação, o gesto do filho e ela viu o pequeno fio de sangue que lhe tingia os dentes e
descia pelo canto dos lábios. Então compreendeu; tomou posse de si mesma, deixando cair
a mão. Respirou ofegante e disse, num suspiro:
- Bem! Quase nos íamos embora sem ti. E quem sabe se nos tornarias a encontrar? -
Apanhou o garfo do chão, meteu-o na banha que fervia na frigideira, retirando-o com um
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rolo escuro de carne de porco espetado na ponta. E puxou a cafeteira, em riscos de cair,
para a beira do fogão.
O velho Tom Joad disse, abafando o riso:
- Então, velhota, enganámos-te, hein? Queríamos enganar-te e enganámos mesmo.
Ficaste aí quieta que nem uma ovelha com uma bordoada. Só queria que o avô visse!
Parecia que tinha levado uma paulada com um malho entre os dois olhos. O avô daria tanta
pancada nas coxas que até desconjuntaria as cadeiras... como ele fez quando viu o Al aos
tiros àquele avião do exército que passou por aqui - lembras-te? Pois foi assim, Tommy.
Um dia, ele passou por nós - era quase do tamanho de meia milha! - e o Al pôs-se aos tiros
a ele. O avô gritou: “Não atires, Al, espera que passe um já crescido!” E deu uma palmada
nas coxas que desconjuntou as cadeiras.
A mãe riu e tirou da prateleira uma pilha de pratos de estanho.
- Onde está o avô, aquele velho diabo? - perguntou Tom. A mãe dispôs os pratos
sobre a mesa da cozinha e colocou copos ao lado de cada um. E disse confidencialmente:
- Oh, ele e a avó dormem no celeiro! Tinham de ir lá fora muitas vezes de noite e
estavam sempre a tropeçar nos pequenos.
O pai intrometeu-se:
- Hum... todas as noites o avô ficava fulo. Caía sobre o Winfield e, se o Winfield
berrava, o avô ficava danado e urinava nas ceroulas e então mais danado ficava; daí a pouco
acordava toda a gente aos berros. Os seus ralhos chocavam-se com as nossas gargalhadas.
Oh, às vezes, fartávamo-nos de rir! Uma noite, quando toda a gente gritava e praguejava,
em casa, o teu irmão Al, que é agora um rapagão crescido, disse assim: “Diabo, avô, porque
e que não foge e dá em pirata?” Ora o avô ficou danado; até quis pegar na espingarda. O
Al, naquela noite, até teve de dormir no campo. E agora o avô e a avó dormem ambos no
celeiro.
- Ali podem dormir e acordar quando quiserem - disse a mãe. - O pai, vai lá e diz que
o Tommy está aqui. O avô sempre gostou mais do Tommy que dos outros netos.
- Vou, sim - disse o pai. - Até já devia ter ido. - E saiu porta fora, atravessando o
terreiro, balouçando largamente os braços.
Tom viu-o afastar-se e depois a voz de sua mãe chamou-lhe a atenção. Ela deitava
café nas chávenas, e não olhava para o filho.
– Tommy - disse, hesitante e tímida.
- Que é? - A timidez da mãe contagiou-o, deixando-o embaraçado. Sabiam daquela
mútua timidez, o que mais concorria para a aumentar.
- Tommy - disse ela - tenho de te perguntar isto: tu não sentes ódio, não?
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- Ódio a quê, mãe.
- Não te fizeste um revoltado? Não odeias ninguém? Não te fizeram mal lá na prisão,
que pudesses ter ódio às pessoas?
Tom olhou-a de esguelha, pôs-se a observá-la com olhos que pareciam perguntar-lhe
onde é que ela aprendera coisas como aquelas.
- Não - disse. - Estive lá pouco tempo. Não sou orgulhoso como certos homens.
Deixo as coisas passar. Mas, que foi, mãe?
Ela olhava para o filho de boca aberta, como para ouvir melhor; os olhos bem
mergulhados nos dele para bem apreender tudo. Esperava descobrir a resposta que a
linguagem sempre oculta. Disse confusa:
- Eu conheci o Floyd-Cara-Bonita. Conheci também a mãe dele. Era boa gente.
Naturalmente, o rapaz era endiabrado como todos são. - Fez uma pausa e depois as
palavras escoaram-se com mais fluência: - Não sei bem como é que aquilo aconteceu, mas
foi mais ou menos assim: O rapaz fez qualquer coisa, e eles bateram-lhe e meteram-no na
cadeia; bateram-lhe de tal maneira que ele ficou furioso; estava nesse estado de espírito,
quando tornou a fazer outra coisa má e então bateram-lhe de novo. Atiraram-lhe como a
um bicho ruim e ele fez o mesmo; depois deram-lhe caça como a um coiote e ele mordia e
rosnava como um lobo. Estava doido. já não era um rapaz nem um homem, era um animal
perigoso. Mas os que o conheciam, não lhe faziam mal nenhum. Para eles, o rapaz não era
mau. Finalmente, deitaram-lhe a mão e mataram-no. Os jornais disseram que ele era mau,
mas assim é que se passaram as coisas.- Ela parou de falar e molhou a língua com os lábios
secos e todo o seu rosto era um doloroso ponto de interrogação.- Eu tenho de saber,
Tommy - disse. - Eles também te bateram muito? Também te tornaste mau?
Tom apertou os lábios e baixou o olhar para as mãos enormes e, chatas.
- Não - disse. - Eu não sou assim. - Parou e ficou a olhar as unhas curtas e partidas.-
Durante o tempo em que estive na cadeia, portei-me sempre bem, Não tenho raiva a
ninguém.
- Graças a Deus! - Aliviada, a mãe suspirou.
Tom ergueu a cabeça rapidamente.
- Mãe – disse - quando vi o que fizeram à nossa casa...
Ela aproximou-se do filho e disse com inflexão apaixonada:
- Tommy, não vais lutar contra eles sozinho. Eles apanhavam-te como a um coelho,
Tommy. O que eu tenho pensado e repensado! Disseram-me que são mais de cem mil as
pessoas que eles expulsaram desta terra. Tommy, se todos juntos tivessem lutado, eles não
conseguiam expulsar ninguém. Mas, sozinho, nada consegues...
81
Tommy, olhou-a, foi gradualmente baixando as pálpebras, até que somente um
furtivo clarão se lhe coava entre elas.
- Há muita gente que pensa desse modo? - perguntou. - Não sei. Eles estão
atordoados. Andam por aí como se estivessem a dormir.
De fora, do fundo do pátio, vinha uma voz lamurienta e aguda de velha:
- Louvado seja Deus pela vitória!... Louvado seja Deus pela vitória!
Tom voltou a cabeça em direcção à voz e fez um trejeito.
- A avó já sabe que eu estou cá em casa. Mãe - disse-a senhora dantes não era assim.
O rosto dela endureceu enquanto os olhos se tornavam gélidos.
- É que dantes, ninguém tentara derrubar a minha casa. É que a minha família nunca
tinha sido posta na estrada desta maneira. Nunca tive de vender tudo o que me pertencia.
Aí vêm eles.- Voltou para junto do fogão e colocou o grande tabuleiro de pão em dois
pratos de estanho. Deitou depois farinha na frigideira cheia de gordura a ferver, e as mãos
ficaram brancas de farinha.
Tom ficou a olhá-la por um instante, depois, dirigiu-se para a porta.
Quatro pessoas atravessavam o terreiro. O avô de Tom à frente. Era um velho
magro, vivaz e esfarrapado, que andava apressadamente, arrastando a perna direita, que
tinha deslocada. Vinha atarefado, a abotoar as calças, e as mãos enrugadas e trémulas
tinham dificuldade em realizar a tarefa, porque enfiara o botão de cima na casa de baixo e,
assim, o último botão não tinha onde ser enfiado. Trajava calças escuras, muito rotas, e
camisa azul, aberta de alto a baixo, que deixava à mostra a camisola, muito comprida e
igualmente desabotoada. O peito magro e branco, em que se emaranhavam fios de cabelo
branco, via-se através da abertura da camisola. O velho desistiu de abotoar as calças, para
se ocupar da camisola, mas depressa abandonou também essa tentativa e pôs-se a puxar os
suspensórios castanhos. Possuía um rosto magro, facilmente excitável, de olhinhos
brilhantes e maldosos como os de uma criança endiabrada. Era um rosto desagradável,
rabugento, maldoso e escarninho; um rosto que combatia e argumentava, que contava
histórias feias. Tinha traços de luxúria, vício, crueldade e impaciência. E, acima de tudo, de
satisfação. Era um velho que, quando podia, bebia até cair, comia o mais que podia,
quando para tal se lhe proporcionava ocasião e falava sem cessar.
Atrás dele, vinha a avó coxeando: era uma criatura que apenas sobrevivera porque era
tão má como o marido. Mantinha-se numa religiosidade aguda, feroz; era tão luxuriosa e
selvagem como o próprio marido. Certa vez, depois do culto, ainda em êxtase, agarrou na
espingarda do marido e fez fogo contra ele, com ambos os canos e quase lhe ia levando as
nádegas, mas, daí em diante, ele passou a respeitá-la e não tentou torturá-la como as
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crianças torturam os bichinhos. Coxeando atrás do marido, levantava a bata até aos joelhos
e soltava, em tom agudo, o grito de guerra:
- Louvado seja Deus pela vitória!...
Os dois velhinhos esforçavam-se cada qual por atravessar rapidamente o pátio.
Disputavam por qualquer motivo; sentiam o prazer e a necessidade da disputa.
Atrás deles, movendo-se com passos iguais e vagarosos, vinham o velho Tom Joad e
seu filho Noah, o primogénito, alto, tranquilo e extravagante e que andava sempre com ar
de pasmo no rosto tranquilo e perplexo. Nunca se irritava. Olhava admirado para as
pessoas encolerizadas, admirado, inquieto como uma pessoa normal olha para um louco.
Noah movia-se devagar, raramente falava e, quando o fazia, era com tamanha lentidão que
os que o não conheciam bem o julgavam um idiota. Era pouco orgulhoso e não tinha
problemas sexuais. Trabalhava e dormia segundo um ritmo curioso que, não obstante, o
satisfazia. Gostava imensamente da família, mas nunca lhe demonstrava o seu amor.
Embora o observador não pudesse dizer por quê, Noah dava a impressão de que era um
aleijado, aleijado de corpo; da cabeça, das pernas, ou do espírito, mas a verdade é que
ninguém podia apontar-lhe qualquer membro disforme. O velho Tom Joad pensava que
sabia a razão por que Noah assim era, mas o velho Tom Joad tinha vergonha de o dizer.
Na noite em que Noah havia nascido, seu pai, apavorado com a distensão das coxas da
mulher, sozinho em casa, horrorizado com os gritos agudos do sofrimento dela, ficou
louco de apreensão. Usando as próprias mãos e os dedos robustos como forceps, puxou e
deu um estorcegão à criança. A parteira, que chegara atrasada, viera encontrar a cabeça do
menino deformada, o pescoço distendido, o corpo torcido; colocara então a cabeça no seu
lugar e moldara com as mãos o corpinho frágil. O velho Tom Joad, sempre que se
lembrava dessa cena, sentia vergonha. E era mais carinhoso com Noah do que com os
outros filhos. Por detrás daquela face larga, de olhos muito apartados um do outro e de
queixo alongado e frágil, o velho pensava ver ainda o crânio torcido e deformado do
recém-nascido. Noah poderia fazer o que lhe apetecesse; sabia ler e escrever, trabalhar ou
ficar a magicar no que quisesse, que nunca parecia ligar importância a essas coisas; não
apreciava nada do que as outras pessoas apreciam ou precisam. Vivia enclausurado numa
torre de silêncio, de onde olhava para fora com olhos calmos. Era um estranho para todos,
mas não podia ser considerado um solitário.
Os quatro atravessavam o terreiro e o avô perguntava:
- Onde está ele? Diabo, onde é que ele está?
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Os seus dedos procuravam os botões das calças e esqueciam-nos; depois remexiam
as algibeiras. Finalmente viu o neto, Tom, parado à porta. Parou e fez com que os outros,
que vinham atrás dele, também parassem. Os seus olhitos brilhavam maliciosos.
- Vejam! - disse. - Um que esteve engaiolado. Há muito que um Joad não estava na
cadeia. - Os seus pensamentos deram uma reviravolta. - Prenderam-no injustamente. Fez o
que eu também faria. Esses filhos da mãe não tinham razão para o prender.- Os seus
pensamentos deram um novo salto.- E o velho Turnbull, esse zorrilho fedorento, a pensar
que te havia de matar, quando saísses da prisão! Disse que tinha sangue dos Hatfield. Bem,
eu também não o deixei sem resposta. Disse-lhe assim: “Olhe não se meta com os Joad,
ouviu? Eu tenho sangue dos MacCoy, está a ouvir? Meta-se com o Tommy e há-de
arrepender-se. Pego numa espingarda e dou-lhe um tiro no rabo”. E é que ficou cheio de
medo.
A avó, sem prestar atenção às palavras do avô, continuou a berrar:
- Louvado seja Deus pela vitória!
O avô aproximou-se de Tom e deu-lhe uma palmada no peito, contemplando-o com
afecto e orgulho.
- Como vais, Tommy?
- Bem - disse Tom. - E o senhor?
- Cheio de mijo e de vinagre - disse o avô. O seu pensamento voou outra vez. - E
como disse, eles não iam conservar o Tommy engaiolado por muito tempo. Sempre disse:
o Tommy vai sair daquela cadeia; vocês vão ver, vai sair que nem um touro derrubando
uma cerca. E tu fizeste isso mesmo. Bem, sai daí, que estou com fome.- Entrou, sentou-se
à mesa, encheu o prato de estanho de carne de porco, pegou em duas grossas fatias de pão,
pô-las também no prato e espargiu sobre tudo aquilo o molho gorduroso. E, antes que os
outros começassem a comer, já ele estava com a boca cheia.
Tom fez um trejeito afectuoso.
- Esse velho não vale nada - disse. - Mas o avô estava com a boca tão cheia que nem
sequer gaguejar podia; porém os olhitos maus sorriram, e meneou a cabeça violentamente.
A avó disse, pomposamente:
- Nunca existiu homem mais perverso do que o teu avô, Tom. Ele vai direitinho para
o inferno, que Deus seja louvado. Agora, até quer guiar o automóvel, mas isso é que eu não
deixo - disse com desdém.
O avô engasgou-se, lançou um bom pedaço de comida mastigada sobre as pernas.
Tossiu fracamente.
A avó sorriu para Tom.
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- É um trapalhão, não é? - observou com inflexão satisfeita. Noah estava parado no
patamar e olhava para Tom; os seus olhos muito apartados do nariz pareciam não o ver. As
feições continuavam como sem expressão.
- Como vais tu, Noah? - perguntou Tom.
- Bem - respondeu Noah. - Tu como vais? - Não era muito, mas já era reconfortante.
A mãe enxotou as moscas do prato do molho da carne.
- Não há lugar para todos - disse. - O melhor é cada um encher o prato e sentar-se
onde puder. No quintal ou em qualquer outro lado.
De repente, Tom exclamou:
- Espera! Onde está o reverendo? Ele estava aqui agora mesmo. Aonde é que ele foi?
- Eu vi-o - disse o pai. - Mas agora não sei onde está.
E a avó falou em voz aguda:
- Reverendo? Tu trouxeste um reverendo? Trá-lo para aqui. Pode rezar-nos a acção
de graças.- Apontou para o marido. - Para ele já não adianta, já comeu. Traz para cá o
reverendo.
Tom foi à porta.
- Eh Jim! - gritou. - Jim Casy! - E saiu para o terreiro, chamando: - Ó Casy!
O pregador saiu de trás da cisterna, endireitou-se e foi andando em direcção da casa.
- Que é que o senhor estava ali a fazer? - perguntou-lhe Tom.
- Bem, não estava a fazer nada. Mas um camarada não deve meter o nariz numa
reunião íntima de família. Estava sentado, a pensar.
- Vamos entrar e comer - convidou-o Tom.- A minha avó quer uma reza.
- Mas eu já não sou pregador - protestou Casy. - Ora, deixe-se disso. Que é que custa
rezar uma oração.
Para si não tem importância e a ela faz-lhe bem. - Entraram os dois na cozinha.
- Seja bem-vindo -, cumprimentou a mãe.
O pai disse:
- Seja bem-vindo. Ora coma qualquer coisa.
- Primeiro vamos rezar - clamou a avô. - Primeiro a reza.
O avô assestou ferozmente os olhos até que reconheceu Casy.
- Oh, eu conheço este pregador - disse. - Ele é dos bons. Sempre gostei dele; desde
que o vi. - E pestanejou tão libidinosamente que sua mulher pensou que ele tivesse dito
outra coisa e replicou:
- Cala a boca, meu bode velho!
Casy passou, nervoso, as mãos pelos cabelos.
85
- É preciso que saibam que eu já não sou pregador. Se é só para dizer algumas
palavras de gratidão, por me encontrar aqui, no meio de gente boa, generosa, está certo...
mas... está bem, vou fazer do meu agradecimento uma prece. Mas, repito, já não sou
pregador.
- Então diga - pediu a avó. - E diga umas palavras sobre a nossa viagem para a
Califórnia.
O pregador baixou a cabeça e todos os outros fizeram o mesmo. A mãe cruzou os
braços sobre o ventre e baixou a cabeça. A avó baixou-a tanto que quase tocou com o nariz
no prato de pão com molho gorduroso. Tom encostado à parede, com o prato na mão,
baixou-a com força, e o avô inclinou-a de lado, de maneira que pudesse observar o
reverendo com os olhos maliciosos e alegres. Nas faces do pregador havia traços, não de
quem reza, mas de quem está cismando pensativo; e no tom da sua voz não havia súplica,
mas apenas reflexão.
- Estive a pensar - disse o reverendo. - Eu estava nas colinas, cismando, tal qual Jesus
devia ter cismado quando se internou no deserto para encontrar uma solução para as suas
aflições.
- Deus seja louvado pela vitória! - disse a avó, e o pregador olhou-a surpreendido.
- Jesus estava atormentado de aflições e não sabia como havia de sair delas; então
ficou a pensar para que diabo, afinal, valeria a pena lutar e pensar. Ficou fatigado, então, e o
Seu espírito consumiu-se. Foi por isso que Ele chegou à conclusão de que não valia a pena
ralar-se. E internou-se no deserto.
- A... mém - disse a avó, numa espécie de balido. Tinha a mania de se meter sempre
nas pausas. Assim fizera sempre, quer compreendesse ou não o que ouvia. .
- Não quero dizer que eu seja como Jesus - continuou o pregador.- Mas eu também
me senti fatigado como Ele, e estava aturdido como Ele e meti-me nos ermos como Ele
sem nada para me abrigar. À noite, deitava-me de costas e olhava para as estrelas; pelas
madrugadas, sentava-me à espera que o Sol nascesse; pelo meio-dia, contemplava, do alto
de uma colina, a extensão de terras vastas e secas; pela tarde, acompanhava com os olhos o
pôr do Sol. Às vezes, rezava, como fazia antigamente. Só não sabia o que rezava e porquê.
Ali estavam os outeiros e ali estava eu e não havia separação entre nós. Éramos uma só
coisa. E essa coisa unida era uma coisa sagrada.
- Aleluia - disse a avó, balouçando a cabeça para a frente e para trás, tentando
assumir uma posição de êxtase.
- E eu fiquei a pensar, mas não era bem a pensar, era mais profundo que o simples
pensar. Fiquei a cismar em como é que nós éramos sagrados quando éramos uma só coisa,
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e o género humano era sagrado quando era uma só coisa. E só deixava de ser sagrado,
quando um mísero companheiro cerrava os dentes e ia para a frente, seguindo o seu
caminho, batendo com os pés, aos arrancos e a lutar. Criaturas assim perturbam a
santidade. Mas, quando eles trabalham em conjunto, não um para o outro, mas um só para
toda a comunidade - então sim, está tudo certo; é sagrado. E depois fiquei a pensar que,
afinal, nem sei o que quero dizer com isto de sagrado. - Parou, mas as cabeças continuaram
baixas, porquanto estavam treinados, como cães, a erguerem-se apenas ao sinal de “amém”.
- Eu não sei dizer preces como antigamente. Estou satisfeito com a santidade desta
refeição. Estou satisfeito por encontrar o amor neste lugar. É tudo.- As cabeças
continuaram baixas. O pregador olhou em redor. - Fiz com que a comida esfriasse - disse; e
depois, lembrou-se. - Amém. - concluiu, e as cabeças ergueram-se todas.
- Amém - disse a avó, e caiu sobre a comida, mordendo o pão com as gengivas
desdentadas.
Tom comia depressa e o pai empanturrou-se. Ninguém falou até acabar a comida e
engolir o café: só se ouvia, nesse meio tempo, o mastigar da comida e o borbulhar do café a
descer pelas gargantas. A mãe observava o pregador a comer, com olhos interrogadores de
investigação compreensiva. Ela observava-o como se o reverendo se tivesse transformado
de repente num espírito, não fosse um ser humano, mas uma voz oriunda das profundezas.
Os homens acabaram de comer; foram poisar os pratos sobre a mesa e entornaram
pela garganta o último gole de café; depois, saíram, o pai e Tom, o reverendo, Noah e o
avô, e foram andando direitos ao caminhão, evitando o montão de móveis, as armações de
madeira das camas, o maquinismo do moinho de vento e a velha charrua. Pararam ao lado
do caminhão, junto dos taipais, de pinho novo, do veículo.
Tom abriu a tampa e olhou para o grande motor todo besuntado de óleo. O pai
aproximou-se e disse:
- O teu irmão Al esteve a examiná-lo antes de o comprarmos e disse que era bom.
- Que é que ele sabe disso? - perguntou Tom. Ele é ainda um garoto.
- Trabalhou numa companhia. Andou a guiar caminhões o ano passado. já sabe um
bocado do ofício. É um rapaz desempenado; até sabe ajustar um motor; o Al é entendido,
isso é.
- Onde é que ele está agora? - perguntou Tom.
- Bem - disse o pai - anda por aí... já está um rapagão dos seus dezasseis anos; só
pensa em raparigas e em máquinas. Um belo rapaz! Há uma semana que não vem a casa.
87
O avô, apalpando o peito, conseguiu enfiar os botões da camisa azul nas casas da
camisola. Os dedos sentiram que qualquer coisa não estava certa, mas não se preocupou
muito com isso. E continuou a explorar o labirinto das roupas.
- Eu era pior - disse alegremente. - Era um demónio que nem calculas. Sabes? Havia
uma reunião campestre em Sallisaw quando eu tinha a idade de Al, um pouco mais do que
ele. Ele é uma criança ainda, não entende nada, mas eu era um pouco mais velho. Havia
umas quinhentas pessoas nessa reunião e uma boa porção de raparigada.
- O senhor continua sendo um demónio, avô - disse Tom.
- Bem, na verdade sou, mas já não sou o que era, nem por sombras. Deixem-me ir
para a Califórnia, onde a gente pode apanhar laranjas quando quer. Ou então uvas. São
coisas de que nunca consegui fartar-me. Vou apanhar um grande cacho de uvas e esfregá-lo
na cara até que o sumo me escorra pela barba abaixo.
- Onde está o tio John? Onde está a Rosasharn? E a Ruthie e o Winfield? - inquiriu
Tom. Ninguém me falou deles ainda.
- É porque ninguém perguntou - disse o pai.- John foi a Sallisaw com um
carregamento de mercadorias para vender: uma bomba, ferramentas, galinhas, tudo o que a
gente trouxe de lá de nossa casa. Levou a Ruth e o Winfield com ele. Saiu de madrugada.
- E engraçado; não o encontrei - disse Tom.
- Bem, foi porque vieste pela estrada, não foi? Ele foi por outro caminho, por
Cowlington. E a Rosasharn está em casa do Connie. E verdade, tu não sabes que a
Rosasharn casou com o Connie Rivers. Lembras-te do Connie? É um bom tipo. E a
Rosasharn está para ter uma criança, daqui a três, quatro ou cinco meses. Já se conhece
bem. Mas está fina.
- Jesus - exclamou Tom. - Rosasharn era uma criança! E já à espera de um bebé!
Quantas coisas aconteceram nestes quatro anos em que estive fora! Quando é que o senhor
pensa em partir para o Oeste, meu pai?
- Bem, a gente primeiro tem de vender as coisas. Se o Al voltar logo, eu acho que a
gente pode carregar o caminhão e partir amanhã ou depois. Ainda não temos bastante
dinheiro, e o pessoal diz que são perto de duas mil milhas daqui à Califórnia. Quanto mais
cedo a gente partir, mais cedo lá chegará. O dinheiro escorre das mãos que nem água. Tu
trouxeste algum?
- Pouca coisa. Como foi que o senhor conseguiu dinheiro?
- Bem - disse o pai - vendemos as coisas de casa e andámos todos na safra do
algodão, até o avô.
88
- Se andei! - disse o avô. - Juntámos uns duzentos dólares. O caminhão custou
setenta e cinco, e eu e o Al serrámo-lo ao meio e fizemos-lhe nova carrosserie. O Al ia ajeitar
as válvulas, mas, como andou para aí na brincadeira, ainda não teve tempo. Acho que
temos uns cento e cinquenta dólares para sair daqui, O diabo são esses pneus velhos; não
sei se vão aguentar a viagem toda. Temos dois sobresselentes que não valem um caracol.
Vamos ter saxilhos pela estrada fora, com certeza.
O sol, caindo. a prumo, queimava como lume. As sombras da carrosserie do camião
desenhavam-se em barras negras no solo, e o veículo tresandava a óleo quente e a panos
sujos e engordurados. As poucas galinhas que esgaravatavam no chão deixaram o terreiro e
procuraram abrigo contra o sol no alpendre das ferramentas. No chiqueiro, os porcos
jaziam arquejantes, encostados à cerca, que projectava uma sombra estreita, e, de vez em
quando, grunhiam em tom lamentoso e agudo. Os dois cães achavam-se estirados na poeira
vermelha, debaixo do caminhão, com a língua gotejante coberta de pó. O pai puxou o
chapéu para os olhos e acocorou-se no chão. E, como se esta fosse a sua natural atitude de
observação e pensamento, encarou Tom com ares de crítica, examinando-lhe o boné novo,
mas já deformado, o fato e os sapatos novos.
- Gastaste dinheiro nessas roupas? - perguntou. - São boas para te incomodar.
- Não, deram-mas - disse Tom.- Deram-mas quando saí. - Pegou no boné e olhou-o
com admiração, depois limpou com ele a fronte e pô-lo descuidadamente na cabeça,
puxando pela pala.
O pai observou-o:
- São bonitos esses sapatos que te deram.
- São - concordou Tom. - São muito bonitos, mas não prestam para caminhar num
dia quente como o de hoje. - E acocorou-se ao lado do pai.
Noah entrou na conversa, falando arrastadamente: - Era melhor se a gente pusesse as
coisas todas no caminhão... Assim, quando o Al chegar, já...
- Eu sei guiar, se é isso que vocês querem - disse Tom. - Guiei caminhões em
MacAlester.
- Bom - disse o pai, e os seus olhos fixaram-se na estrada. - Se não me engano, vem
aí esse vagabundo do Al. Olhem, parece que está cansado.
Tom e o pregador olharam para a estrada. E o femeeiro do Al, vendo que já tinha
sido notado, levantou os ombros, e entrou, todo empertigado e alegre, como um galo de
briga, pronto para cantar. Muito direito, aproximou-se até reconhecer Tom; então, mudou
a expressão de fanfarronice; admiração e respeito surgiram nos seus olhos. Toda a sua
bazófia caiu por terra. As calças de lustão bem esticadas e um pouco levantadas, para
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mostrarem as botas de salto, o cinturão de três polegadas com incrustações de cobre e
mesmo as braçadeiras vermelhas sobre a camisa azul e a inclinação boémia do chapéu não
conseguiam elevá-lo à envergadura do irmão, pois que este matara um homem e ninguém
esqueceria semelhante feito. Al sabia que tinha inspirado alguma admiração aos rapazes da
sua idade, pelo facto de o irmão ter morto um homem. Vira em Sallisaw olharem-no e
apontarem-no a dedo, dizendo: “Vêem, aquele é o Al; o irmão dele matou um tipo com
uma pá.”
E agora Al via ao aproximar-se humildemente, que o irmão não era o valentão, o
fanfarrão que ele supunha que fosse. Al via os olhos sombrios e pensativos do irmão, a
calma fria, o rosto duro e inexpressivo, treinado no sentido de nada indicar aos guardas da
prisão; nem resistência, nem submissão. E, instantaneamente, Al mudou. Inconscientemente,
imitou o irmão, e o rosto bonito tomou uma expressão meditativa; os ombros
descaíram. Não se lembrava de como Tom era.
- Olá! - disse Tom. - Viva, Al, estás alto que nem uma árvore! Quase que te não
reconheço.
Al, com a mão pronta para a estender, a fim de que o irmão a apertasse, parou,
esboçando um gesto de pessoa compenetrada. Tom estendeu a mão e a de Al avançou
igualmente para a receber. Era uma prova de amor fraternal entre os dois.
- Disseram-me que tu eras um alho para guiar um caminhão - disse Tom.
E Al, sentindo que o irmão não era um fanfarrão, quis imitá-lo:
- Nada disso; conheço muito pouco de caminhões - respondeu.
- Andaste por aí na paródia, Al - disse o pai. - Pareces estoirado. Bem, ainda tens que
levar umas coisas para vender em Sallisaw.
Al olhou para o irmão.
- Vens comigo? - perguntou, esforçando-se por dizer aquilo com naturalidade.
- Não, não posso - disse Tom. - Tenho de ajudar aqui. Mas vamos viajar juntos.
Al fingiu dar pouca importância à pergunta que ia fazer:
- Tu fugiste da cadeia, hein, Tom?
- Não - disse Tom. - Fui perdoado.
- Ah! - E Al ficou um pouco desapontado.
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Capítulo IX
Nas casinhas em que moravam, os arrendatários examinavam o que lhes pertencia e
o que pertencera a seus pais e a seus avós. Reuniam tudo para a grande viagem lá para o
Oeste. Os homens mantinham-se impassíveis porque o passado fora destruído, mas as
mulheres sabiam que o passado clamaria por elas nos dias futuros. Os homens entravam
nos celeiros e nos alpendres.
Aquele arado, aquela grade - lembram-se? Durante a guerra, quando plantámos a
mostarda? Lembras-te daquele tipo que nos queria meter era cabeça que plantássemos
aquela planta de borracha a que eles chamam guayule? Ficam ricos - dizia ele - comprem
essas ferramentas. Podem render alguns dólares, mas verão... Oitenta dólares pelo arado
mais as despesas do transporte. São Sears-Roebuck.
Carroças, arreios, semeadores, enxadas em pilha. Tragam tudo. Juntem tudo.
Ponham tudo no caminhão. Levem tudo para a cidade. Vendam tudo por quanto puderem.
Vendam a parelha dos animais e a carroça também. Não precisamos deles para nada.
Cinquenta cents não é bastante por um arado. Esse semeador aí custou trinta e oito
dólares. Dois dólares é muito pouco. Mas não o posso levar... bem, fique com ele, que o
diabo o leve. Fique com essa bomba e com os arreios também. Fique com os cabrestos,
cabeçadas, cangalhas e rédeas.
Os objectos usados empilhavam-se no pátio.
Já se não consegue vender arados manuais; ninguém os compra. Apenas dou
cinquenta cents pelo peso do metal. Tractores é só o que se usa agora.
Bem, leve tudo, toda essa tralha, dê-me cinco dólares por tudo. Está bem? O senhor
não está a comprar só velharias, o senhor está a comprar vidas arruinadas. O senhor está a
comprar amargura. A comprar um arado para esmagar os seus próprios filhos, aquilo que
poderia salvar-lhe a alma. Cinco dólares, a comprar aqui não, quatro. Não posso levar tudo,
bem, aceito os quatro dólares. Mas eu estou a preveni-lo: o senhor está a comprar aquilo
que há-de esmagar os seus próprios filhos. O senhor não vê isso, não vê, não. Bem, leve
tudo por quatro dólares. E, agora, quanto é que o senhor dá pela carroça e pela parelha dos
animais? Esses baios são bons a valer, iguaizinhos, iguais na cor, iguais no trotar! Puxam
que é uma beleza - retesando as pernas o a garupa - velozes e certos, que até dá gosto! De
91
manhã, quando lhes dava a luz! Ficavam atrás da cerca, de orelhas fitas para ouvir a gente.
E as crinas pretas! Tenho uma filhinha. Ela gostava de lhes entrançar a crina com listinhas
vermelhas. O que ela gostava daquilo! E agora acabou-se. Eu poderia contar ao senhor uma
história engraçada sobre essa minha filhinha e aquele cavalo baio. O senhor havia de rir-se
à farta. O de lá tem oito anos; o outro, dez, mas dir-se-ia que são gémeos, tão bem puxam
ao lado um do outro! Olhe os dentes deles. Todos sãos. E os pulmões, então, nem se fala!
Pulmões fortes! As pernas também; são bem rijas, finas e musculosas. Quanto? Dez
dólares? Pelos dois? E pela carroça?... Oh, Jesus Cristo! Prefiro matá-los e dar a carne aos
cães. Vá lá, fique com eles pelos dez dólares. Leve-os depressa. O senhor está a comprar
uma menina que entrançava a crina deles, tirando a fita dos seus próprios cabelos para a
amarrar à crina dos cavalos, uma menina de cabecinha encostada ao pescoço dos animais,
de cabeça erguida, a esfregar-lhes o focinho no rosto dela. O senhor está a comprar anos de
trabalho e de lides de sol a sol; está a comprar uma aflição que nem eu sei contar. Mas olhe,
há uma coisa que vai junto com esse montão de objectos que o senhor comprou, junto
com esses baios tão lindos - é uma carga de amarguras, que crescerá na sua casa e florescerá
um dia. Nós poderíamos salvá-lo, mas o senhor desprezou-nos, esmagou-nos e também
será esmagado; então, nenhum de nós estará aqui para o salvar.
E os arrendatários iam-se embora, de mãos nos bolsos e chapéus puxados para os
olhos. Alguns compravam aguardente e sorviam-na com sofreguidão, para resistir com
ânimo ao golpe. Não riam, não se alegravam. Não cantavam, nem tocavam viola. Voltavam
para as fazendas, de mãos nos bolsos, cabeça baixa, as botas rangendo raivosamente na
poeira vermelha.
Quem sabe se a gente pode começar de novo, lá naquela terra tão rica, na Califórnia,
de onde brotam frutos saborosos? Sim, vamos recomeçar.
Mas vocês já não podem recomeçar! S6 uma criança pode encetar uma tarefa assim.
O senhor e eu, bem; nós somos o passado. A irritação de um momento, as mil visões - eis
o que nós somos. Esta terra, esta terra vermelha, eis o que nós somos; e os anos de chuva e
os anos de seca; eis o que nós somos. Não podemos começar de novo. A amargura que
vendemos com os nossos bens ao ferro-velho, ele comprou-a, sim, mas nós ficámos
também com ela. Somos apenas a raiva que sentimos quando nos expulsaram das nossas
terras, quando o tractor derrubou as nossas casas. E assim seremos até à morte. Para a
Califórnia ou para outra região qualquer - cada um de nós é um tambor a dirigir uma carga
de amarguras, caminhando com a nossa desgraça. E, algum dia, os exércitos de amargura
irão pelo mesmo caminho. E todos caminharão juntos, e haverá, então, um terror de
morte.
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Os arrendatários arrastavam-se até às suas terras, através da poeira avermelhada.
Depois de vendido tudo o que podia ser liquidado: fogões e camas, cadeiras e mesas,
pequenos armários de canto, canos e tanques, ainda havia pilhas de tralha, e as mulheres
sentavam-se em torno dessas pilhas, remexendo-as e olhando-as pela frente e por detrás,
fotografias, espelhos quadrados e olha, está ali um vaso!
Bem, vocês sabem o que a gente pode levar e o que não pode levar, Nós vamos
acampar sempre ao ar livre - algumas panelas para se cozinhar, colchões e outras
comodidades, uma lanterna, baldes e uma peça de lona. É para fazer a tenda. Esta lata de
querosene vai. Sabe o que é isto? É o fogão. E roupas... levem todas as roupas. E... a
espingarda? Não nos vamos embora sem a espingarda. Quando tudo se for, calçado e
roupas e comida e até mesmo a esperança- teremos ainda a espingarda. Quando o avô veio
para aqui -j à lhes contei? - só trazia sal, pimenta e uma espingarda. Mais nada. Isso vai. É
uma garrafa com água. É o que basta para satisfazer uma pessoa. Dá um jeito a esse
caminhão; os miúdos vão no atrelado e a avó vai no colchão. Ferramentas: uma enxada,
uma serra, uma chave de parafusos e alicates. E uma machadinha também. Temos esta
machadinha há mais de quarenta anos. Vejam como está gasta. O resto? Deixem-no para aí
ou queimem-no.
Depois, vinham as crianças.
Se a Mary levar aquela boneca, aquela boneca velha, e suja, então também eu levo o
meu arco indiano. Isso é que eu levo. E esse bordão grande, quase do meu tamanho. Posso
precisar dele. Tenho-o há tanto tempo; há um mês ou talvez um ano. Tenho de o levar,
isso é que tenho. Como será a Califórnia?
As mulheres sentavam-se junto das coisas condenadas, que não poderiam levar e
viravam-nas por todos os lados. Esse livro! já era de meu pai. Ele gostava tanto de livros! A
Marcha do Peregrino. Gostava muito de o ler. Escreveu o nome dele na capa de dentro. E
esse cachimbo, ainda a cheirar a fumo! E esse quadro,... um anjo. Eu olhava para ele
sempre que os três primeiros estavam para nascer... mas não lucrei nada com isso. Acham
que podemos levar este cachorrinho de porcelana? A tia Sadie trouxe-o da feira de S. Luís.
Vêem o que ela escreveu nele? Não, acho que não. Aqui está uma carta que o meu irmão
escreveu na véspera da sua morte. E aqui, um chapéu de outros tempos. E estas penas.
nunca as usámos. Não, não há lugar.
Como poderemos viver sem tudo isto que representa a nossa vida? Como é que
havemos de continuar a ser os mesmos sem o nosso passado? Não, deixem tudo.
Queimem tudo.
93
Ficavam sentadas, olhavam todos esses restos e gravavam-nos na memória. Que
futuro as esperaria lá longe? Como poderão acordar todas as manhãs, sabendo que já não
têm o velho salgueiro no pátio? Poderemos viver sem o salgueiro? Não, não poderemos.
Aquela mancha - prova de uma dor - no colchão - aquela dor horrível - aquilo que faz parte
de mim mesma.
E as crianças... se o Sam levar o arco indiano e o bastão comprido, eu também hei-de
levar duas coisas. Eu escolho aquela almofada de penas. E minha.
De repente, todos ficavam nervosos. Tinham de abalar rapidamente. Não nos
podemos demorar mais. Não podemos ficar aqui mais tempo. E amontoavam os restos no
terreiro e largavam fogo a tudo. E quedavam-se a olhar as labaredas; depois,
freneticamente, carregavam os carros e metiam pelas estradas poeirentas. A poeira ficava
no ar muito tempo depois da passagem dos carros ajoujados.
94
Capítulo X
Quando o camião se fora, carregado de utensílios, cheio de ferramentas pesadas, de
camas e de colchões com possibilidades de venda, Tom deu uma volta pela casa. Vagou
pelo celeiro ' pelas cocheiras vazias, entrou no alpendre das ferramentas, deu um pontapé
no montão de restos inúteis e empurrou com o pé o dente quebrado de uma máquina de
cortar a erva. Andou pelos lugares de que se recordava-a encosta vermelha onde as
andorinhas construíam os ninhos, o salgueiro atrás do curral dos porcos. Dois leitões
grunhiram e roncaram do lado de lá da vedação, como se o cumprimentassem, dois leitões
de pêlo preto, que gozavam, confortavelmente estirados, as carícias do sol.
Logo depois, terminou a peregrinação e sentou-se nos degraus da porta, cobertos de
sombra fresca. Atrás dele, na cozinha, sua mãe andava atarefada a lavar numa selha as
roupas dos filhos e os seus braços fortes e cobertos de sardas escorriam água de sabão até
aos cotovelos. Parou de trabalhar quando o filho se sentou à porta. Olhou-o por longo
tempo, fixando-lhe a nuca quando ele se voltou de costas para ela e se pôs a contemplar a
claridade do Sol. Depois, voltou ao trabalho.
- Tom - disse ela, por fim - espero que as coisas lá na Califórnia sejam boas.
Tom voltou-se e encarou-a.
- Porque supõe que não sejam? - inquiriu.
- Bem, por nada. É que tudo me parece bom demais. Vi passar os distribuidores de
impressos, que havia lá muito trabalho e bons salários e tudo o mais; li no jornal que
precisam de gente para a colheita das laranjas e dos pêssegos. Isso seria um belo trabalho,
Tom, apanhar pêssegos. Mesmo que não nos deixem comer nenhum, sempre se há-de
poder deitar a mão a um já tocado. E seria bom ficar debaixo das árvores, a trabalhar à
sombra. Mas tudo isso é bonito demais, Tom. Tenho medo. Não tenho fé nisso. Acho
muita sorte junta.
- Não eleves a fé até à altura do voo dos pássaros e não rastejarás depois como os
vermes - recitou Tom.
- Sim, eu sei que é assim. Está nas Escrituras, não está?
- Suponho que sim - disse Tom.- Confundo sempre as Escrituras com um livro
chamado A Vitória de Bárbara Worth.
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A mãe riu suavemente, passando a roupa na selha. Ia torcendo “macacos” e camisas
e os músculos dos antebraços retesavam-se.
- O pai de teu pai vivia sempre às voltas com as Escrituras, fazendo citações. Fazia
cada confusão! Misturava sempre as frases das Escrituras com coisas do Almanaque do Dr.
Mile. Costumava ler alto tudo o que vinha no almanaque: cartas de pessoas que não
conseguiam dormir ou que eram marrecas. Depois tirava pedaços dessas cartas e dizia: isto
vem nas Escrituras. Teu pai e o tio John riam a valer e ele ficava danado. - Empilhou a
roupa torcida como cordas sobre a mesa. - São duas mil milhas daqui até ao lugar para
onde vamos. Tu achas que isso é verdade, Tom? Vi a Califórnia no mapa; tinha montanhas
altas como num postal que eu vi, e a gente tem de passar por essas montanhas todas.
Quanto tempo achas que levaremos até lá, hein, Tommy?
- Não sei - disse o filho. - Duas semanas, talvez dez dias se a gente tiver sorte. Olhe,
mãe, não se preocupe, ouviu? Faça como eu, como todos os que estão na cadeia. A gente
não pode pôr-se a pensar no dia em que será solto. Endoidecia. A gente pensa no dia de
hoje, no dia de amanhã, depois, no jogo de futebol de sábado e assim por diante. É o que a
senhora deve fazer. Os mais velhos fazem assim. Só os novatos encostam a cabeça às
grades da cela e ficam a cismar, a pensar quanto tempo ainda vai durar aquele inferno. A
senhora faça como os presos antigos; pense só rio dia de hoje.
- E um bom processo, esse - disse a mãe, enchendo a selha com a água que estivera a
aquecer em cima do fogão. Meteu mais roupa suja na selha e começou a esfregá-la na
espuma. - Sim, é um bom processo. Mas eu gosto de pensar que talvez seja bom para nós
irmos para a Califórnia. Lá nunca faz frio. E há tanta luta, em toda a parte, e as pessoas
moram em casas bonitas, em casas pequeninas e brancas no meio de laranjeiras! Eu
imagino que, se nós arranjássemos trabalho e todos trabalhassem, talvez pudéssemos
comprar uma casinha assim. E às crianças, bastava-lhes pôr o pé fora de casa para
apanharem quantas laranjas quisessem. Seria demais para elas; passavam a vida a gritar por
causa disso.
Tom via a mãe trabalhar e os seus olhos sorriam.
- Faz-lhe bem pensar assim. Tive um camarada que era lá da Califórnia. Não falava
como nós. Bastava ouvi-lo falar para se ver que ele não era daqui, que era de longe. E então
contava que havia gente de mais à procura de trabalho lá na terra dele. E disse que o
pessoal que trabalha na safra das frutas vive em lugares imundos e que mal arranja o
suficiente para comer. Os salários são baixos e, mesmo assim, é difícil arranjar trabalho.
Uma sombra perpassou pelo rosto dela.
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- Oh, não, não é assim! - disse.- O teu pai recebeu um impresso em papel amarelo,
dizendo que procuravam gente para trabalhar. Eles não iam escrever isso se não tivessem
bastante trabalho. Custa muito dinheiro mandar fazer esses impressos. Não iam mentir e
gastar dinheiro em mentiras!
Tom sacudiu a cabeça.
- Não sei, mãe. A gente não pode saber porque fazem isso. Quem sabe?... - Olhou
para fora; o sol quente torrava a terra vermelha.
- Quem sabe o quê?
- Talvez aquilo lá seja bom como a senhora diz. Aonde foi o avô, hein? E o
reverendo?
A mãe saiu para o pátio com os braços cheios de roupa; Tom afastou-se para o lado,
a fim de a deixar passar.
- O reverendo disse que ia dar uma volta. O teu avô está a dormir aí dentro. Ele
costuma vir aqui durante o dia e deitar-se para dormir uma soneca. - Dirigiu-se a um fio
estendido no terreiro e pendurou nele calças de fustão e camisas azuis a secar.
Tom ouviu umas passadas cautelosas atrás de si e virou-se a ver quem seria. Era o
avô, que safa do quarto de dormir, e, como de manhã, mostrava-se atrapalhado com os
botões das calças.
- Ouvi-os falar - disse. - Não deixam um velho dormir, seus filhos da mãe. Quando
vocês também forem velhos, seus velhacos, vão aprender a deixar os outros dormir. - Os
seus dedos furiosos procuravam desabotoar os dois únicos botões da braguilha que ainda
se mantinham abotoados. E as mãos esqueceram-se do que pretendiam fazer, e penetraram
no vão das calças para coçarem regaladamente os testículos.
A mãe, com as mãos húmidas e as palmas enrugadas e inchadas pela acção da água
quente e do sabão, tornou a entrar em casa.
- Pensei que o senhor estivesse a dormir. Espere aí; deixe-me abotoar-lhe as calças. -
E embora o velho recusasse, ela segurou-o firmemente e abotoou-lhe as calças, a camisa e
o colete.- Com franqueza, sempre estava numa figura... - disse ela, libertando-o.
E o velho resmungou, colérico:
- Bonito... bonito, quando a gente já tem que ser abotoado pelos outros, Eu não
quero que ninguém me abotoe as calças, ouviu?
- Lá na Califórnia, não deixam ninguém andar assim - retrucou ela, brincando.
- Ai, não deixam? Pois eu lhes direi como é que se anda. Se pensam que podem
mandar na gente, estão muito enganados. Se me der na gana, até posso andar com a coisa
de fora e ninguém tem nada com isso.
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- A língua dele está cada vez pior - observou a mãe.
O velho espetou o queixo áspero e encarou-a com os olhinhos astutos e brilhantes.
- Bem – disse - daqui a pouco estamos de abalada. E, Deus do céu, as uvas, ali,
chegam a debruçar-se sobre as estradas. Têm cada cacho! Sabes o que eu vou fazer? Encho
um balde de uvas, sento-me no balde e esfrego-me todo até o suco escorrer pelas calças.
Tom riu.
- O avô é assim mesmo - disse. - Ninguém o endireita. Então, avô, está mesmo
decidido a vir connosco, hein?
O velho puxou de um caixote e deixou-se cair sobre ele, pesadamente.
- Sim, senhor - respondeu - E quanto mais depressa, melhor. O meu irmão também
para lá foi há mais de quarenta anos. Nunca mais ouvi falar dele. Além disso, levou um
bom Colt que eu tinha. Mas, se eu o encontrar agora, ou os filhos dele, se os tiver, a
primeira coisa que vou fazer é perguntar pelo meu Colt. Mas, da maneira como eu o
conheço, se ele fez algum filho, entregou-o a alguém para o criar. De qualquer maneira,
estou satisfeito por sair daqui. Acho que até vou ficar diferente saindo daqui. Tratarei logo
de ir apanhar fruta.
A mãe acenou com a cabeça.
- E está disposto a isso. Aqui também trabalhou até há uns três meses, mas, quando
deslocou a anca, teve de parar.
- Pois foi - disse o avô.
Tom lançou um olhar para fora da porta.
- Aí vem o reverendo - disse. - Ali, por detrás do celeiro.
A mãe informou:
- A reza que ele fez esta manhã foi a reza mais engraçada que ouvi na minha vida. Na
verdade, nem foi uma reza. Foi só um discurso, mas parecia uma oração.
- Ele é muito engraçado - disse Tom.- Está sempre a dizer coisas engraçadas. E
muitas vezes fala sozinho. Mas não quer tornar ao que foi.
- Vejam o olhar dele - disse a mãe. - Parece inspirado. Tem um olhar que, como se
diz, atravessa tudo. Sim, sim, é um inspirado. E anda sempre de cabeça baixa, de olhar no
chão. É, com toda a certeza, um homem inspirado.- E calou-se porque Casy se aproximara
da porta.
- O senhor, a andar assim exposto de um lado para o outro, apanha uma insolação
pela certa - disse Tom.
Casy respondeu:
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- Sim, é possível. De repente, dirigiu-se a todos, à mãe, ao avô e a Tom. - Tenho de ir
para o Oeste. Tenho de ir. Gostaria de saber se me permitem que vá com vocês. E deixouse
ali ficar, como que embaraçado pelo próprio discurso.
A mãe olhou para Tom, à espera de que ele falasse, visto que era um homem. Deralhe
essa oportunidade, que era afinal o seu direito, e depois disse:
- É claro que nos sentiremos muito honrados com a sua companhia. Mas, por agora,
não posso dizer nada de positivo. O pai disse que os homens se vão reunir hoje à noite
para combinarem a data da partida. Acho que é melhor não dizermos nada antes de os
homens regressarem todos. John e o pai, o Noah, o Tom, o avo, o Al e o Connie vão tratar
disso logo que chegarem. Mas eu acho que, se houver lugar, o senhor poderá vir connosco;
teremos muito prazer com isso.
O pregador suspirou.
- Eu vou de qualquer maneira - disse. - Vai acontecer alguma coisa. Eu subi àquele
alto e fiquei a olhar; todas as casas estão vazias e toda a terra está vazia. Não posso
continuar mais tempo aqui. Tenho de ir para onde vão os outros. Trabalharei nos campos e
talvez então me sinta feliz.
- Então não faz mais prédicas? - inquiriu Tom.
- Não, não tenciono pregar.
- Nem tenciona baptizar? - perguntou a mãe.
- Não vou baptizar, não. Vou trabalhar nos campos, nos campos verdes e ficar mais
perto de toda a gente. Não vou tentar ensinar-lhes nada. Eu é que vou tratar de aprender.
Vou saber porque é que os homens andam pelos campos, vou ouvi-los falar e cantar. Vou
observar as crianças a comerem papas e os homens e as mulheres moerem os colchões à
noite. Vou comer com eles e aprender com eles.- Os seus olhos tornaram-se húmidos e
brilhantes.- Vou deitar-me na relva, aberta e honestamente, com quem me queira. Vou
gritar e praguejar à vontade e vou ouvir as canções populares. E isto que é sagrado, isto
tudo que eu não pude até agora compreender. Isto é que está certo e bem feito.
A mãe disse:
- A... mém.
O pregador sentou-se humildemente no cepo, ao lado da porta.
- Que é que um homem sozinho pode fazer?
Tom tossiu com delicadeza:
- Para um homem que já não prega... - começou.
99
- Oh, sou muito falador - disse Casy. - Este meu feitio já não pode mudar. Mas não
quero pregar para o povo. Pregar é contar coisas. Mas eu não conto nada, eu faço
perguntas. Isto não é pregar, pois não?
- Não sei - disse Tom. - Pregar é ter um tom especial na voz e um modo diferente de
ver as coisas. Pregar é fazer bem às pessoas, mesmo quando as pessoas se sentem capazes
de matar quem lhes faz o sermão. Na última noite de Natal, o Exército de Salvação foi a
MacAlester para nos distrair. Três horas de música de cornetim e nós ali sentados, a ouvir.
Foram muito gentis para connosco. Mas, se um de nós tentasse sair da sala, daí a pouco
irão haveria lá ninguém. Isto é que é pregar. Fazer bem a alguém que está mal o que não
pode evitar de qualquer maneira que lho façam. Não, o senhor não é um pregador. O
senhor não obriga ninguém a ouvir a música de cornetim.
A mãe atirou algumas achas para o fogão. - Vou-lhe arranjar de comer, mas não será
grande coisa.
O avô levou o caixote para fora e sentou-se em cima dele; encostou-se à parede, e
também Casy e Tom se encostaram à parede. E a sombra da tarde abandonou a casa.
A tarde já ia avançada quando o camião voltou, roncando e bufando, através do pó;
havia um lençol de poeira a cobrir a carrosserie e a tampa do motor; a luz dos faróis
obscurecera-se sob um véu de poeira vermelha. Punha-se o Sol quando o caminhão
chegou, e a terra sangrava à luz do poente. Al vinha sentado ao volante, sério e diligente; o
pai e o tio John, numa atitude condigna de chefes de clã, ocupavam o lugar de honra, ao
lado do motorista. De pé, na carrosserie, segurando-se às bordas do caminhão, vinham os
outros: Ruthie, de doze anos; Winfield, de dez, selvagem de cara suja; ambos de olhos
cansados, mas cheios de entusiasmo, dedos e cantos da boca negros e pegajosos das bagas
de alcaçuz que lhes dera o pai na cidade, Ruthie, com um bonito vestido de musselina
rosada que lhe chegava abaixo dos joelhos, parecia uma senhorita, muito compenetrada.
Mas Winfield continuava a ser um pouco o rapaz ranhoso que aproveitava qualquer
oportunidade para se esconder atrás dos outros e fumar uma beata de cigarro. E, enquanto
Ruthie sentia a força da responsabilidade que lhe davam os pequeninos seios a eclodir,
Winfield mostrava-se malcriado e sonso. Ao lado deles, apoiando-se levemente nas grades,
estava Rosa de Sharon, que se bamboleava, apoiada nos calcanhares e aparava nos joelhos e
nas coxas os solavancos do veículo. É que Rosa de Sharon estava grávida e mostrava-se
prudente. Os seus cabelos, entrançados e enrolados em volta da cabeça, pareciam uma
coroa cendrada. O rosto redondo e suave, que fora voluptuoso e convidativo havia poucos
100
meses, trazia as marcas da gravidez, o sorriso dos que se consideram importantes, o olhar
de quem se sabe perfeito, e o seu corpo arredondado-os seios rijos e o ventre firme, as
ancas e as nádegas duras, que ela havia meneado tão deliberada e provocadoramente, como
que convidando a palmadas ou carícias - todo o seu corpo adquirira um ar de reserva e de
seriedade. Até os seus pensamentos convergiam totalmente para a criança que estava para
nascer. Ela balouçava-se nos dedos dos pés para dar mais conforto ao bebé. E o mundo
inteiro - para ela - estava grávido - pois ela só pensava em gravidez, nas funções da
reprodução da espécie e da maternidade. Connie, o seu marido de dezanove anos, que se
casara com uma rapariga gorducha, atrevida e ardente, ainda se mostrava algo assustado e
confundido com a mudança que nela se operara, pois agora já não havia aquelas lutas
bravias na cama; não havia arranhões nem mordeduras, entre risos abafados, que
terminavam em lágrimas. Havia, sim, uma criatura de gestos cuidadosos, de atitudes
discretas, que lhe sorria meiga e firmemente. Connie sentia orgulho e, ao mesmo tempo,
receio de Rosa de Sharon. Cada vez que podia, colocava as mãos nos ombros da mulher ou
postava-se ao lado dela, bem junto, de maneira que os ombros e as coxas se tocassem e
sentia que assim se mantinha uma ligação que, de outra maneira, poderia vir a ser abalada.
Era um rapaz magro, de rosto afilado, originário do Texas, e os seus olhos, de cor azul
pálida, eram às vezes inquietantes; outras vezes mansos ou assustados. Era um bom
trabalhador e devia dar um bom marido. Bebia bastante, mas não demais; brigava quando o
não podia evitar, mas nunca provocava ninguém. Numa reunião qualquer, mantinha-se
calado, e, embora não desse mostras da sua presença, fazia-se notar de modo indubitável.
Se o tio John não tivesse cinquenta anos, e não fosse por isso mesmo um dos
naturais chefes da família, teria preferido não se sentar no lugar de honra ao lado do
condutor. Por vontade dele, seria Rosa de Sharon quem ali estaria sentada. Isso era
impossível, porque ela, além de muito jovem, ainda por cima era mulher. Mas o tio John
não se sentia à vontade; os seus olhos, que se diria assombrados de solidão, não achavam
paz e o corpo magro agitava-se. Quase sempre, o espírito solitário do tio John mantinha-o
afastado dos homens e dos apetites. Comia pouco, bebia, e vivia em estado de celibato.
Mas, sob esta crosta de aparências, os apetites martirizavam-no tanto que acabavam por se
expandir. As vezes, comia coisas indigestas, ao ponto de cair doente, ou então bebia
aguardente ou whisky, até ficar como um paralítico agitante, de pernas trémulas e olhos
lacrimosos e vermelhos; ou então afundava-se no deboche com uma meretriz qualquer de
Sallisaw. Contava-se que, uma vez, fora a Shawnee e se deitara com três mulheres ao
mesmo tempo, demorando-se uma hora inteira, a resfolegar e a bramar, às voltas com os
corpos insensíveis das meretrizes. Mas, quando satisfazia um dos seus apetites, sentia-se
101
novamente triste, solitário e cheio de vergonha. Escondia-se das pessoas e procurava
conquistar-lhes a amizade, enviando-lhes presentes. Então, entrava nas casas e colocava
pastilhas elásticas sob os travesseiros das crianças, depois, cortava lenha e não deixava que
lhe pagassem o trabalho. Por fim, desfazia-se de tudo o que possuía: a sela, o cavalo, um
par de sapatos novos. Não se lhe podia falar nessas ocasiões, pois fugia de todos, ou, se lhe
era possível, enfronhava-se dentro de si mesmo, mostrando somente os olhos cheios de
inquietação. A morte da mulher, seguida de meses de isolamento, deixar-lhe um sentimento
de culpa e de vergonha, transformando-o num solitário sem remédio.
Mas havia coisas a que não podia escapar. Sendo um dos chefes da família, tinha de
governar, e, naquele momento, não tinha outro remédio senão sentar-se no lugar de honra,
ao lado do motorista.
Os três homens, no assento da frente, mostravam-se de mau humor, enquanto o
caminhão os levava para casa, através da estrada poeirenta. Al, debruçado sobre o volante,
ora olhava o caminho, ora o quadro, vigiando o amperómetro, cuja agulha oscilava de
modo suspeito; o mostrador de óleo e o termómetro. O seu cérebro registava todos os
aspectos fracos do veículo. Escutava os queixumes do motor, resultantes provavelmente do
estado ressequido do diferencial, e ouvia atentamente o vaivém dos pistões. Punha a mão
sobre a alavanca das velocidades, para sentir o girar da engrenagem, às vezes, verificava se a
embraiagem se fazia normalmente e se o travão não prendia. Ele podia, de vez em quando,
levar vida de vagabundo, mas, agora, a responsabilidade era sua: o caminhão, a maneira
como funcionava e a sua conservação. Se a viagem não corresse bem, a culpa seria dele, e,
embora ninguém o culpasse, todos - e principalmente Al - sentiriam que a culpa era
realmente dele. Por isso, se mostrava atento e cuidadoso, de rosto tenso à força de atenção.
E todos o respeitavam, bem como à sua responsabilidade. Até o pai, que era o chefe,
agarraria uma chave inglesa e receberia ordens de Al.
Vinham todos fatigados no caminhão. Ruthie e Winfield estavam cansados de ver
tanto movimento e tantas caras, cansados de tanto brigarem por causa das bagas de alcaçuz
e por causa da excitação causada pelo facto de o tio John lhes ter secretamente introduzido
pastilhas elásticas nos bolsos.
Os homens, no assento da frente, estavam cansados, aborrecidos e indignados por
terem recebido apenas dezoito dólares por todos os objectos que tinham levado de casa
para vender: os cavalos, a carroça, as ferramentas e os móveis. Dezoito dólares! Tinham
procurado obter mais; tinham procurado convencer o comprador, mas haviam capitulado
quando este declarara que não lhe interessava a mercadoria, fosse por que preço fosse.
Então, deram-se por vencidos e fecharam o negócio, vendendo tudo por dois dólares a
102
menos do que o preço previamente oferecido. E agora estavam cansados e cheios de susto
porque se tinham revoltado contra um sistema cujo mecanismo não conheciam e que os
vencera. Sabiam que a carroça e a parelha de animais valia mais, muito mais. Sabiam que o
comprador iria ganhar muito dinheiro, revendendo os objectos que lhes comprara, mas não
sabiam como deveriam ter agido para obter preço melhor. Negociar, para eles, era um
segredo.
Al, com os olhos saltando da estrada para o quadro, disse:
- Aquele tipo não é daqui. Não falava como a gente da região. E também usava
roupas diferentes das da nossa gente.
O pai explicou:
- Quando eu estava na loja de ferragens, falei com uns sujeitos que conheço. Eles
disseram-me que estes homens vieram de propósito para comprar as coisas que a gente tem
de vender. Disseram que fazem verdadeiros negócios da China. Mas, que havemos nós de
fazer? Talvez tivesse sido bom que Tommy tivesse vindo connosco. Talvez ele tivesse
conseguido mais.
John disse:
- Mas o fulano já não queria nada. Não podíamos trazer aquilo tudo outra vez.
- As pessoas com quem falei disseram que eles fazem isso sempre- esclareceu o pai.
Eles assustam a gente, de modo que um tipo nem sabe o que há-de fazer. A mãe vai ficar
desiludida. Desiludida e arreliada.
- Quando podemos partir, pai? - perguntou Al.
- Não sei. Vamos falar sobre isso hoje à noite e combinar tudo. Estou satisfeito por o
Tom ter regressado. É um consolo. O Tom é uma jóia de rapaz.
Al disse:
- Pai, houve aí uns sujeitos que falaram do Tom; disseram que ele estava em
liberdade condicional. E disseram que isso significa que ele não pode sair do Estado. Se o
fizer, apanha mais três anos de cadeia.
O pai mostrou-se alarmado.
- Disseram isso? Achas que eles terão razão? Ou estariam apenas a brincar?
- Não sei - disse Al - Eles disseram isso e eu não dei a perceber que era irmão do
Tom. Fiquei só a ouvir.
- Deus do Céu! - disse o pai - espero que isso não seja verdade. Nós precisamos do
Tom. Vou perguntar-lhe. Já temos bastantes encrencas mesmo sem isso. Espero que não
seja verdade. Temos de tirar o caso a limpo.
O tio John disse:
103
- O Tom deve saber isso. Recaíram em silêncio enquanto o caminhão rodava sobre a
estrada. O motor fazia muito barulho; de momento a momento, ouviam-se pequenos
estouros e a bracagem dos freios emitia som de pancadas. Sentia-se um ranger como de
madeira que vinha das rodas, e um esguicho de vapor escapou-se pela abertura do radiador.
O caminhão levantou um turbilhão de poeira vermelha atrás de si. Subiram a última
elevaçãozita já o Sol estava semi-oculto no horizonte e, ao chegarem defronte da casa, já ele
se havia sumido completamente. Os freios chiaram quando o veículo estacou, e o som que
emitiram gravou-se no cérebro de Al - as cintas dos freios estavam gastas.
Ruthie e Winfield saltaram, aos gritos, pelos lados do caminhão. E, em terra,
desataram a berrar:
- Onde está ele? Onde está o Tom?
Depois, viram-no parado perto da porta e quedaram-se embaraçados; caminharam
lentamente na sua direcção, olhando com acanhamento.
E quando ele disse: «Olá, meninos, como vão?» - responderam em voz baixa: «Olá!
Bem»
E ficaram imóveis, um pouco afastados, olhando-o disfarçadamente, ao irmão
crescido que matara um homem e que estivera na prisão. E lembravam-se de como
brincavam às cadeias lá no galinheiro e de como brigavam porque ambos queriam ser o
preso.
Connie Rivers baixou um dos lados da carrosserie; desceu e ajudou a mulher a descer;
ela aceitou o auxílio com muita dignidade, arregaçando afectadamente os cantos da boca
num sorriso de satisfação compenetrada.
Tom falou:
- Olhem, é a Rosasharn! Não sabia que tu também vinhas com eles.
- Vínhamos andando a pé e o caminhão alcançou-nos na estrada - disse ela.- E
acrescentou, com ar majestoso: Este é o Connie, o meu marido.
Os dois apertaram as mãos, examinando-se mutuamente, olhando fundo nos olhos
um do outro, e, num instante, ambos ficaram satisfeitos com o exame, e Tom comentou:
- Bem, vejo que vocês não perderam tempo.
Ela olhou para o chão.
- Mas ainda não se percebe. Não se percebe nada.
- Foi a mãe que me disse. Está para quando?
- Oh, ainda vai demorar. Só lá para o Inverno.
Tom riu.
104
- Então ele vai nascer mesmo nos laranjais, hein? Numa dessas casinhas brancas
cercadas de laranjeiras.
Rosa de Sharon apalpou o ventre com as mãos.
- Não se vê nada. - Deu um risinho complacente e fugiu para dentro de casa.
A tarde estava quente, e, de leste, jorrava ainda um facho de luz. Sem aviso algum,
reuniram-se todos em torno do caminhão e o congresso, a reunião do conselho de família,
começou.
A luz do crepúsculo fazia brilhar a terra vermelha, de maneira que as suas dimensões
se aprofundavam. Uma pedra, um poste, uma construção adquiriam mais profundidade e
mais consistência então do que à luz do dia; e todos esses objectos se tornavam
estranhamente mais individuais: um poste era mais essencialmente um poste; elevava-se
com mais firmeza da terra e destacava-se melhor do campo de milho que lhe servia de
fundo. E as plantas adquiriam mais individualidade. Não eram apenas um conjunto de
cereais, e o salgueiro desfolhado era mais ele próprio, bem diferente dos outros salgueiros.
A terra também contribuía com uma parte de luz para a tarde. A frontaria da casa, parda,
sem pintura, voltada a oeste, brilhava palidamente com um fulgor semelhante ao da lua. O
caminhão cinzento e empoeirado, imóvel no terreiro, destacava-se magicamente àquela luz,
na perspectiva exagerada de um estereoscópio.
Os homens também surgiram alterados ao anoitecer - estavam como que
apaziguados. Parecia fazerem parte de uma organização do inconsciente. Obedeciam a
impulsos que mal se registavam nos seus cérebros. Dir-se-ia que olhavam para dentro de si
próprios, e também os seus olhos brilhavam na luz da tarde, brilhavam-lhes nos rostos
cobertos de poeira.
A família reunira-se no local mais importante, junto do caminhão. A casa estava
morta, mortos os campos, mas aquele caminhão era algo de activo, como um princípio
vital. O velho Hudson, de radiador torcido e riscado, com verrugas de óleo e de pó em
todos os pontos gastos do mecanismo, sem tampões de rodas e com tampões de poeira a
substituí-los, era agora o novo coração, o centro vivo da família; meio automóvel, meio
caminhão, tão desproporcionado como tosco.
O pai andava à volta do veículo, olhando-o e tornando a olhá-lo; depois, sentou-se
no chão, na poeira, e procurou um graveto para desenhar garatujas. Tinha um dos pés bem
assentes no chão; o outro descansava sobre o calcanhar, de maneira que um dos joelhos
ficava mais alto do que o outro, O antebraço esquerdo repousava no joelho esquerdo que
ficava mais baixo; o antebraço direito apoiado no joelho direito, e, portanto mais alto; o
punho direito servia de apoio ao queixo. Deixou-se ficar assim, a olhar para o caminhão. E
105
o tio John aproximou-se dele, devagarinho e acocorou-se a seu lado. Os olhos de ambos
estavam pensativos. O avô saiu de casa e viu-os ali acocorados; foi no seu passo desigual
até ao caminhão e sentou-se no estribo, defronte deles. Estava formada a sessão. Tom,
Connie e Noah vieram juntos e também se acocoraram, formando todos um semicírculo,
em cuja abertura se via o avô sentado. Depois, a mãe veio também de dentro de casa com a
avó e, atrás, vinha Rosa de Sharon, andando com passinhos curtos, cuidadosos. Tomaram
lugar atrás dos homens acocorados, de pé, com as mãos nas ancas. E as crianças - Ruthie e
Winfield - andavam aos saltinhos diante delas; distraíam-se, metendo os pés na poeira
vermelha, mas não diziam nada. Somente o pregador se não encontrava ali presente. Por
delicadeza, fora sentar-se no chão, atrás da casa. Era um bom pregador, e conhecia aquela
gente.
A luz da tarde tornara-se mais branda, e, por alguns instantes, a família manteve-se
calada. Depois, o pai, não se dirigindo a ninguém em especial, mas ao grupo todo, fez o seu
relatório.
- Fomos comidos com a venda dessa trapalhada. Aquele bandido sabia que a gente
não podia esperar. Não conseguimos mais de dezoito dólares por tudo.
A mãe esboçou um gesto de indignação, mas dominou-se.
Noah, o filho mais velho, perguntou:
- Quanto dinheiro temos ao todo?
O pai desenhou garatujas na poeira e murmurou para si qualquer coisa de
ininteligível.
- Cento e cinquenta e quatro - disse. - Mas aqui o Al diz que temos de comprar pneus
melhores. Ele acha que estes aqui não vão aguentar muito tempo.
Esta era a primeira conferência em que Al tomava parte. Dantes, ele ficava sempre
atrás, junto das mulheres. E assim. a sua informação revestiu-se de solenidade:
- Esta geringonça que nós temos é velha e bem ordinária - disse com gravidade... -
Examinei-a antes de a termos comprado. Nem prestei atenção ao sujeito que dizia que era
um veículo bom, perfeito. Meti o dedo no diferencial e não havia limalha nele. Também
não havia limalha na engrenagem. Experimentei o travão e fiz girar as rodas. Também me
meti por baixo e verifiquei que o chassis estava em ordem. Vi que a bateria tinha uma pilha
partida, mas fiz com que o tipo a substituísse por outra. Os pneus não valem um caracol,
naturalmente, mas são de bom tamanho. Podem substituir-se facilmente em qualquer parte.
Vai balançar que nem um barco, mas não gasta muito óleo. Comprei-o porque era um
camião bom para essas estradas Os cemitérios de automóveis estão cheios de Hudsons
Super-Sixes e a gente pode comprar peças baratas. Pelo mesmo dinheiro, podia ter-se
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comprado um carro maior e mais elegante, mas, depois, as peças seriam mais difíceis de
arranjar e mais caras. Por isso, eu pensei: o melhor é a gente comprar este mesmo.- Esta
sua observação era uma forma de submissão à autoridade da família. Ficou calado, à espera
da opinião dos mais velhos.
O avô era ainda o cabeça da família, mas já não tinha voz ,activa. Era uma peça
honorária, uma obediência à tradição. Porém, tinha o hábito de se manifestar primeiro, por
mais atontado que estivesse. E os homens acocorados e as mulheres de pé estavam à espera
que ele falasse.
- Fizeste bem, Al - disse o avô. - Eu também já fui um rapazola brincalhão como tu,
mas, quando se tratava de alguma coisa séria, eu sabia ser sério. Tu agora estás um homem,
Al. Muito bem.
O velho terminou num tom de quem abençoava, e Al corou de satisfação.
A seguir, falou o pai:
- Também me parece que foi bem resolvida esta história do carro. Se se tratasse de
cavalos, a gente não precisava de meter nisto o Al, mas Al é o único que percebe de
automóveis.
E depois, Tom:
- Eu também percebo um pouco disso. Trabalhei com carros em MacAlester. O Al
tem razão. Fez o que devia. - Al, agora, estava todo vermelho de prazer. Tom continuou: -
Eu queria dizer ainda... bem... se o reverendo... ele quer vir connosco. - Ficou calado; as
suas palavras caíram no meio dos homens e das mulheres, e todo o grupo permaneceu
calado. - Ele é bom sujeito. - acrescentou Tom. - A gente já o conhece há muito tempo. Ás
vezes é um pouco extravagante, mas só diz coisas inteligentes. - E, com aquelas frases,
estava a proposta apresentada à família.
A luz desaparecia aos poucos. A mãe deixou o grupo e entrou em casa, da qual em
breve chegava aos homens o bater das tampas de ferro do fogão. Um instante depois, ela
estava de volta à reunião em que toda a gente meditava. O avô disse:
- A coisa pode encarar-se por dois lados. Antigamente todos diziam que um pregador
dava azar.
Tom retorquiu:
- Mas ele diz que já não é pregador.
O avô agitou a mão num gesto de vaivém:
- Quem uma vez foi pregador, será sempre pregador. Disso podem vocês estar
certos. Mas também muita gente dizia antigamente que era bom ter um pregador sempre
connosco. Quando alguém morre, pode ele fazer o enterro. Quando alguém casa, lá está o
107
pregador. Quando nasce uma criança, é o pregador quem a baptiza. Eu sempre disse que há
pregadores e pregadores. E só saber escolher o que presta. E este aqui, até eu gosto dele.
Não é nada burro.
O pai enfiou o gravato que tinha na mão debaixo de um montículo de poeira e ficou
a girá-lo entre os dedos, abrindo um pequeno túnel.
- Não se trata de saber somente se ele traz sorte ou azar - disse lentamente. -
Precisamos de fazer os cálculos. É o diabo quando a gente precisa de fazer cálculos assim
tão apertados. Ora vamos a ver: estão aí o avô, a avó - são duas pessoas. E eu, o John e a
mãe... são cinco, E Noah e Tommy e Al, são oito. E Rosasharn e Connie, são dez. E a
Ruthie e o Winfield, são doze. E também temos de levar os cães. Senão, que é que vamos
fazer deles? Não se pode dar um tiro num bom cão, e por aqui não há ninguém a quem os
dar. Então, são catorze ao todo.
- Não contando com as galinhas e os dois porcos - disse Noah.
Mas o pai sugeriu:
- Acho melhor a gente salgar os dois porcos para a viagem. Vamos precisar de carne.
E, assim, só temos que levar as barricas de carne salgada. Mas a questão é saber se nós
todos cabemos no caminhão, nó s e o pregador também. E se podemos dar comida a mais
uma pessoa. - Sem virar a cabeça, perguntou à mulher: - Achas que podemos?
A mãe respirou profundamente:
- A questão não é saber se podemos; a questão é saber se queremos - disse com
firmeza. - Quanto a poder, acho que não podemos nem ir para a Califórnia nem para outro
lado qualquer. Mas, quanto a querer, a gente, querendo, faz o que pode. E, por falar nisso,
vivemos aqui muitos anos e nunca ninguém disse que um Joad ou um Wazlet recusasse
comida, tecto ou transporte a alguém necessitado. Houve Joads maus, mas não tanto como
isso.
O pai interrompeu-a:
- Mas, se não houver lugar para ele? - Virara a cabeça para olhar para ela e estava
envergonhado por causa do tom da mulher. - Se a gente não couber toda no camião?
- Nem agora há lugares que cheguem, com ele ou sem ele - replicou ela. - O
caminhão só dá bem para seis pessoas, e são doze, pelo menos, que têm de viajar dessa
maneira. uma pessoa a mais não faz diferença, e um homem forte e saudável nunca é
demais. De qualquer maneira, a gente, tendo dois porcos, e mais de cem dólares, não deve
ficar a pensar se pode sustentar mais uma pessoa...- Ela interrompeu-se e o pai sentou-se,
mortificado com aquela lição. Tinha sido vencido.
E a avó comentou:
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- É uma coisa bonita termos um pregador na nossa companhia. Ele fez uma bonita
reza, hoje de manhã.
O pai olhou o rosto de cada um dos presentes, à espera de qualquer protesto e
depois disse:
- Chama-o para aqui, Tommy. Se ele for, deve estar aqui junto de nós.
Tom levantou-se e dirigiu-se para casa, gritando:
- Casy! ó Casy!
Uma voz abafada respondeu detrás da casa. Tom foi até ao canto da construção e viu
o pregador sentado, encostado à parede, mirando a estrela da tarde no céu luminoso.
- Chamou? - perguntou Casy. - Sim. já que o senhor vem com a gente, é melhor vir
para o pé de nós e ajudar a combinar a viagem.
Casy ergueu-se. Ele conhecia os regulamentos de família e viu que tinha sido
admitido nesta e com uma posição elevada, pois que o tio John se afastava para o lado, a
fim de lhe dar lugar no conselho, entre a sua pessoa e a do pai de Tom. Casy também se
acocorou como os outros, em frente do avô, que estava entronizado no estribo do
caminhão.
A mãe tornou a entrar em casa. Ouviu-se o riscar de um fósforo e logo a luz amarela,
fraca de uma lanterna iluminou a cozinha escura. Quando ela ergueu a tampa do panelão, o
odor excitante da carne cozinhada com legumes espalhou-se através da porta aberta.
Esperaram que a mãe regressasse ao quintal cada vez mais escuro, pois que a mãe tinha
posição de relevo na reunião.
O pai continuou:
- Precisamos de combinar o dia da partida. Quanto mais cedo, melhor. O que a gente
tem de fazer antes, é matar e salgar os porcos e embrulhar as nossas coisas. Agora, quanto
mais depressa, melhor.
Noah concordou:
- Se a gente se apressar, podemos. terminar tudo amanhã mesmo e partir depois de
amanhã.
Mas o tio John não foi do mesmo parecer:
- Um dia não dá para a carne esfriar. Agora não é época de matança. E a carne vai-se
estragar, se não esfriar bem.
- Bom, então vamos matar os porcos esta noite mesmo. Já haverá mais tempo para a
carne esfriar. Vamos comer e começar depois. Há sal suficiente?
- Há sim. E temos também duas boas barricas.
- Bem, então é só começar - disse Tom.
109
O avô começou a querer agarrar-se a qualquer coisa que lhe servisse de apoio para se
erguer do estribo.
- Está a escurecer - disse. - E estou com fome. Quando a gente chegar à Califórnia,
vou ter cachos de uvas nas mãos para comer quando quiser, sim senhor. - Levantou-se e os
homens imitaram-no. Como dois maluquinhos, Ruthie e Winfield saltitavam alegres na
poeira. Ruthie sussurrou numa voz rouca:
- Matar porcos e ir para a Califórnia. Matar porcos e ir para a Califórnia...
Winfield estava louco de alegria. Meteu os dedos na garganta, fez uma careta terrível
e começou guinchando debilmente e aos tropeções:
- Eu sou um porco velho. Olhem. Eu sou um porco velho. Olha o sangue, Ruthie! -
E cambaleou e caiu no chã o, agitando molemente os braços e as pernas.
Mas Ruthie era mais velha e já compreendia a seriedade da situação.
- E ir para a Califórnia - disse ela, outra vez. E sabia que era esse o momento mais
importante da sua vida.
Os adultos foram andando em direcção à cozinha iluminada, na escuridão crescente
do crepúsculo, e a mãe serviu-lhes carne e hortaliça em pratos de estanho. Mas, antes que
ela própria comesse, colocou sobre o fogão a grande banheira redonda para aquecer água.
Carregou baldes e baldes de água até encher a banheira, e, depois, colocou baldes cheios de
água à volta dela. Meteu mais lenha no fogão, para alimentar as chamas. A cozinha em
breve ficou quente e cheia de vapor de água. Toda a família comeu à pressa. Depois, saíram
para o terreiro, e ficaram à espera que a água fervesse. Olhavam para a escuridão,
contemplando o quadrilátero de luz que a cozinha iluminada projectava na noite e no meio
da qual se desenhava a sombra recurvada do avô. Noah limpava os dentes com uma palha.
A mãe e Rosa de Sharon lavaram os pratos e empilharam-nos sobre a mesa. E, de repente,
lançaram-se todos ao trabalho. O pai trouxe outro lampião e acendeu-o. Noah tirou de
uma gaveta da cozinha uma faca curva e aguçada usada nas matanças, e começou a afiá-la
numa pedra de amolar gasta e pequena. Colocou a raspadeira sobre o cepo e pôs a faca ao
lado. O pai trouxe dois paus fortes, de três pés de comprimento cada um, afiou-lhes as
extremidades com a machadinha e amarrou-os uns aos outros a meio, com cordas
resistentes de dupla meia volta.
Pôs-se então a murmurar:
- Não se deviam ter vendido os varais todos.
A água na panela fervia e borbulhava.
- Vamos trazer os porcos para aqui, ou levamos a água para lá? - perguntou Noah.
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- Trazemos os porcos para aqui - disse o pai.- Aqui a gente. pode escaldá-los melhor.
A água está pronta?
- Está a ferver - disse a mãe.
- Bom. Noah, tu, o Tom e o Al, venham daí. Eu levo a luz. Vamos matá-los lá e
depois trazemo-los para aqui.
Noah pegou na faca; Al, na machadinha, e os quatro homens caminharam em
direcção ao chiqueiro; o lampião iluminava-lhes frouxamente as pernas. Ruthie e Winfield
corriam e saltavam por ali. Ã porta do chiqueiro, o pai debruçou-se sobre a cerca,
segurando o lampião. Os porcos, sonolentos, puseram-se de pé com esforço, grunhindo,
desconfiados. O tio John e o reverendo Casy chegavam, dispostos a ajudar.
- Bem, vamo-nos a eles - disse o pai.- A gente mata-os aqui e deixa escorrer o sangue;
depois, escaldamo-los em casa.
Noah. e Tom saltaram a cerca. Fizeram o serviço rápida e eficientemente. Tom
desferiu dois golpes com o gume rombo da machadinha e Noah, debruçando-se sobre os
animais atordoados, sangrou-os, rasgando-lhes a veia com a faca curva e deixando que o
sangue escorresse em liberdade; depois arrastaram os dois porcos, que guinchavam
medonhamente, para fora, erguendo-os sobre a cerca. O pregador e o tio John arrastaram
um dos porcos pelas pernas traseiras e Tom e Noah fizeram o mesmo ao outro. O pai
iluminava o caminho com a lanterna e o sangue negro traçou dois carreiros no pó.
Chegados a casa, Noah enfiou a faca entre o tendão e os ossos das pernas traseiras;
as varas aguçadas mantinham as pernas bem afastadas uma da outra; pouco depois, os
porcos estavam pendurados nos caibros, do lado de fora da casa. Os homens trouxeram da
cozinha a panela da água a ferver e despejaram-na sobre os corpos negros dos animais.
Noah abriu-lhes as barrigas de alto a baixo e extraiu-lhe as entranhas, deixando-as cair no
chão. O pai aparou mais dois paus para manter os corpos bem abertos, enquanto Tom,
com a raspadeira, e a mãe, com uma faca sem ponta, lhes raspavam os pêlos. Al trouxe um
balde e juntou nele as entranhas dos dois porcos e deitou-as para o mato, longe de casa.
Dois gatos seguiram-no, miando, e os cães também lhe foram na cola, rosnando
sumidamente por causa dos gatos.
O pai, sentado nos degraus da porta, olhava os porcos pendurados no terreiro, à luz
da lanterna. A raspagem já tinha terminado, e apenas algumas gotas de sangue continuavam
a cair das carcaças na poça negra que se formara no chão. O pai ergueu-se, abeirou-se dos
porcos e pôs-lhes a mão, a ver como estavam; tornou depois a sentar-se no mesmo lugar.
O avô e a avó iam a caminho do celeiro para dormir; o avô levava uma vela na mão. Os
restantes quedaram-se em volta da porta, Connie, Al e Tom, no chão, encostados à parede
111
da casa; o tio John sentado num caixote e o pai no limiar da porta. Somente a mãe e Rosa
de Sharon ainda andavam atarefadas. Ruthie e Winfield lutavam contra o sono. Noah e o
reverendo acocoraram-se lado a lado, em frente da casa. O pai coçava-se nervosamente;
tirou o chapéu e passou os dedos pelos cabelos.
- Amanhã, bem cedo, vamos tratar de salgar a carne de porco e depois carregamos o
camião; só deixamos de fora as camas e, depois de amanhã, partimos, hein? Com um dia de
trabalho, faz-se tudo - disse excitado.
Tom interveio:
- Vamos ficar, então, todo o dia sem fazer nada... - O grupo agitava-se
desassossegado. - A gente podia terminar tudo até de madrugada e partir depois -
acrescentou Tom. - O pai esfregou o joelho com a mão. O desassossego comunicava-se a
todos.
Noah. disse:
- Talvez a carne se não estragasse se a metêssemos já no sal. É cortá-la, que arrefece
mais depressa.
Foi o tio John quem, incapaz de se conter por mais tempo, agarrou a ocasião pelos
cabelos:
- Para que andamos nós aqui a perder o tempo? O melhor é acabar com isto. Se
temos de ir, porque é que não vamos o mais depressa possível?
O espírito revolucionário comunicou-se aos outros.
- Sim, porque não Vamos? Podemos dormir pelo caminho.
Um sentimento de pressa dominava-os a todos.
O pai disse:
- Dizem que são duas mil milhas. É uma caminhada longa como o diabo. A gente
tem de ir. Noah, tu e eu vamos cortar a carne e depois carregamos o caminhão.
A mãe assomou à porta:
- E se nos esquecemos de alguma coisa? Não se vê nada nesta escuridão.
- A gente pode verificar tudo ao romper do dia - disse Noah.
Então ficaram todos silenciosos a pensar no caso. De repente, Noah ergueu-se e
começou a amolar a faca de lâmina curva na pedra gasta.
- Desembarace a mesa, mãe. - E foi-se a um dos porcos; rasgou-lhe as costas, junto
da espinha, de ponta a ponta, e começou a separar a carne das costelas.
O pai levantou-se, excitado:
- Temos de reunir as coisas - disse. - Vamos, gente!
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Agora, que estavam decididos a partir, a pressa comunicava-se a todos. Noah. levou
os pedaços de carne para a cozinha e cortou-os para os salgar. A mãe passou-os pelo sal e
colocou-os lado a lado, nas barricas, com cuidado, para que os pedaços não ficassem em
contacto uns com os outros; dispô-los como tijolos e encheu de sal os intervalos que os
separavam. Então Noah. cortou a carne dos lados e as pernas. A mãe alimentou o lume do
fogão e, à medida que Noah. ia limpando de carne as costelas, a espinha e os ossos das
pernas o melhor que podia, ela ia pondo no fogão esses ossos a assar para se roerem os
pedaços de carne que tinham ainda agarrados.
No pátio e no celeiro moviam-se os círculos luminosos das lanternas, e os homens
juntavam todos os objectos que iriam levar na viagem e empilhavam-nos ao lado do
caminhão. Rosa de Sharon trouxera para fora todas as roupas que a família possuía: os
fatos-macacos, os sapatos de sola grossa, as botas de borracha, os fatos melhores, os
sweaters, e os casacos de pele de carneiro. Meteu todas essas coisas bem apertadas dentro
de um caixote, e, saltando para dentro dele, pisou tudo muito bem, para arranjar mais
espaço. Depois, trouxe os vestidos de fantasia, os chales, as meias pretas de algodão, as
roupitas das crianças - macaquitos e vestidos de chita; meteu tudo no caixote e pisou tudo
muito bem outra vez.
Tom foi ao depósito de ferramentas e trouxe todos os utensílios que valia a pena
levar - um serrote, uma colecção de chaves de parafusos, um martelo, um sortimento de
pregos de diversos tamanhos, dois alicates, uma lima plana e dois limatões redondos.
Rosa de Sharon trouxe para fora um grande rolo de lona e desenrolou-o no chão,
atrás do carro. Teve dificuldade em cruzar a porta com os colchões, três colchões de casal e
um de pessoa só. Empilhou-os sobre a lona e trouxe depois braçadas de velhos cobertores
dobrados e pô-los também uns por cima dos outros.
A mãe e Noah afadigavam-se à volta das carcaças dos porcos; da cozinha vinha o
cheiro da carne agarrada aos ossos que a mãe pusera a assar no forno. As crianças tinham
adormecido alta noite. Winfield dormia enrodilhado na poeira em frente da porta e Ruthie,
sentada num caixote da cozinha, aonde fora ver esquartejar o porco, de cabeça encostada à
parede. Respirava tranquilamente e tinha os lábios ligeiramente entreabertos.
Tom acabou de arrumar as ferramentas e entrou na cozinha com a lanterna na mão,
seguido do reverendo Casy.
- Deus do céu! - exclamou ele. - Que cheiro formidável! E oiçam como ela crepita!
A mãe achava-se ainda ocupada em colocar os pedaços de carne nas barricas; cobria
de sal todas as camadas enchendo bem com ele os espaços vazios, entre cada uma delas;
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punha-lhes bastante sal e apertava-as bem contra o fundo da barrica. Levantou a vista para
Tom e sorriu-se ligeiramente, mas os seus olhos, esses, estavam cansados e sérios.
- E bom a gente ter ossos de porco para o almoço - disse ela.
O pregador aproximou-se:
- Deixe-me salgar essa carne - disse ele.- Eu sei fazer isso. E a senhora tem outras
ocupações.
Ela interrompeu o trabalho e lançou um olhar singular ao pregador, como se este
tivesse sugerido algo de extraordinário. As mãos dela estavam sujas de sal molhado e
avermelhadas pelo sangue da carne fresca.
- Não, isto é trabalho de mulher - disse, finalmente.
- É trabalho – replicou o pregador. – Há muito que fazer, para estabelecer diferenças
entre trabalho de homem e de mulher. A senhora tem muitas outras coisas a resolver.
Deixe, que eu salgo esta carne.
Durante mais alguns segundos, ela encarou-o e depois deitou um balde de água numa
pequena bacia de folha de lavar as mãos e começou a lavar-se. O pregador pegou nos
pedaços de carne de porco e foi deitando sal sob as vistas dela. Colocava-os na barrica, tal
como, ela fizera antes. Só depois de ver que ele acabava uma camada, procedendo
exactamente como ela, é que se sentiu tranquila. Então enxugou as mãos ásperas e
vermelhas.
- Mãe, que é que a gente vai levar daqui da cozinha? - perguntou Tom.
Ela olhou rapidamente em volta.
- O balde - disse. - Tudo o que for preciso para comer: pratos, copos, colheres,
garfos e facas. Põe tudo na gaveta e leva-a para o caminhão. E também aquela frigideira, a
chaleira e a cafeteira. E, quando a grelha esfriar, tira-a do fogão. Podemos precisar dela,
quando fizermos carne assada. Por mim, também levava a tina, mas acho que já não há
lugar. Vou ter de lavar a roupa no balde. As outras coisas nem vale a pena levá-las. Pode-se
cozinhar coisas pequenas em vasilhas grandes, mas não se pode cozinhar coisas grandes em
vasilhas pequenas. O que convém é levar todas as formas do pão. Cabem umas dentro das
outras. - Ficou parada, a olhar demoradamente a cozinha. - Bom, Tom, traz as coisas que te
disse. Eu vou ver o resto, a lata grande da pimenta, o sal, a noz-moscada e o ralador. Pegou
numa lanterna e caminhou pesadamente para o quarto de dormir; os seus pés nus não
produziam som algum ao pisar o chão.
O pregador disse:
- Parece que ela está cansada.
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- As mulheres andam sempre cansadas - disse Tom. - São assim mesmo. Só não se
cansam quando estão no culto.
- Sim, mas ela está demasiado cansada. Como se estivesse doente até.
A mãe ainda não tinha fechado a porta atrás de si, por isso, ouvira aquelas palavras.
Lentamente, o relaxamento dos músculos das suas faces sumiu-se, para dar lugar à antiga
expressão de energia. Os olhos brilhavam-lhe e os ombros endireitaram-se. Lançou um
olhar ao quarto nu. já não havia nada ali dentro, a não ser trastes sem o menor valor. Os
colchões, que haviam sido postos no chão, já tinham sido levados para fora. As mesas
tinham sido vendidas. Via-se um pente quebrado caído no chão; ao lado, uma caixa de pó
de talco - vazia e um montículo de fezes de rato. Ela colocou a lanterna no chão. Meteu a
mão por detrás de um caixote que servira de cadeira e tirou de lá uma caixa de papel de
escrever, já bastante velha e suja e quebrada nos cantos. Sentou-se e abriu s caixa. Lá
dentro havia cartas, recortes, fotografias, um par de brincos, um anel de ouro, pequeno, de
sinete, uma corrente de relógio feita de cabelos entrançados e entremeados de fios de ouro.
Pegou nas cartas com os dedos, tocou-as ao de leve e alisou um recorte de jornal que
tratava do julgamento de Tom. Segurou durante algum tempo a caixa, olhando-a; depois os
seus dedos espalharam o maço de cartas e tornaram a ordená-lo. Mordeu o lábio inferior,
pensativa, recordando coisas. E, por fim, tomou uma decisão. Tirou da caixa o anel, a
corrente de relógio, os brincos, meteu a mão por baixo do maço de coisas e achou o elo de
uma pulseira de ouro. Tirou uma carta de um sobrescrito e pôs todos esses pequenos
objectos no sobrescrito. Fechou-o e guardou-o no bolso do vestido. Depois, delicada,
ternamente, tornou a pôr a tampa na caixa, e acariciou-a com dedos subtis. Os seus lábios
entreabriram-se. Em seguida, levantou-se, pegou na lanterna e voltou à cozinha. Ergueu
uma das tampas de ferro do fogão e enfiou, devagar a caixa para dentro do braseiro.
Depressa o calor chamuscou a caixa de papelão. Tornou a fechar o fogão e imediatamente
o fogo espirrou, tomando posse da caixa. Uma chama viva envolveu-a.
Fora, no terreiro escuro, trabalhando à luz de uma lanterna, o pai e Al carregavam o
caminhão. As ferramentas por baixo de tudo, no entanto, fáceis de localizar para o caso de
avaria do motor. Depois, os caixotes com as roupas e os utensílios de cozinha num saco de
juta; a seguir, o caixote com os pratos e os talheres. Depois, o cântaro atado atrás.
Esforçavam-se por tornar esta base do carregamento tão nivelada quanto possível,
enchendo os vãos com cobertores enrolados. Depois, cobriram tudo com os colchões e
assim ficou cheio todo o fundo do caminhão. Finalmente, estenderam a lona por cima da
115
carga e Al fez buracos nas extremidades, à distância de dois pés uns dos outros, enfiou-lhes
pequenas cordas e atou-as às barras laterais do veículo.
- Agora, se chover - disse ele - podemos amarrar a lona nas barras de cima e nós
ficamos debaixo sem nos molharmos. Quem for à frente, ficará bem abrigado.
E o pai aplaudiu:
- É uma boa ideia.
- Ainda não é tudo - disse Al - Assim que puder, compro uma prancha e faço dela
um mastro e coloco-lhe em cima o encerado. Assim, não apanharemos sol.
E o pai tornou a dizer:
- É uma boa ideia, Mas, porque é que tu não pensaste logo nisso?
- Não tive tempo.
- Não tiveste tempo? Mas para andar por aí a vadiar, tiveste tempo. Deus sabe por
onde andaste estas duas semanas.
- A gente tem de tratar de muita coisa quando se despede da sua terra - disse Al.
Depois perdeu um pouco da sua firmeza. - Pai - perguntou - o senhor está satisfeito por
nos irmos embora?
- Hein? Sim... naturalmente. Pelo menos, assim me parece. A vida aqui não foi nada
fácil. E lá na Califórnia, vai ser tudo diferente... há muito serviço para se ganhar dinheiro, e
lá tudo é verde e bonito e as casas são branquinhas e cercadas de laranjeiras.
- É verdade, que há lá laranjeiras por toda a parte?
- Bom, talvez não seja por toda a parte, mas em quase todos os lugares, há, isso de
certeza.
O primeiro véu cinzento da madrugada surgiu e espalhou-se pelo céu. O trabalho já
estava feito: ao carne salgada e os galinheiros prontos para irem no cimo do camião. A mãe
abriu o forno e tirou os ossos de porco, que tinham bastante carne e carne bem assada e
apetitosa. Ruthie estava meio acordada; depois, escorregou do caixote e adormeceu de
novo. Mas os adultos estacionavam junto da porta, a tremerem de frio e a roerem os ossos
de porco tostados.
- Acho que devemos acordar o avô e a avó - disse Tom. - Vamos partir logo que seja
mais dia.
A mãe opinou:
- É melhor acordá-los só no fim. Eles precisam de descansar. E também a Ruthie e o
Winfield não dormiram convenientemente.
- Bem, eles podem dormir em cima da carga, depois - disse o pai.- Aquilo está muito
bem preparado.
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De repente, os cães ergueram-se da poeira e ficaram à escuta, de orelhas espetadas.
Depois, latindo raivosamente, lançaram-se na escuridão.
- Que diabo é isto agora? - perguntou o pai.
Um instante depois ouviram uma voz que procurava apaziguar os cães e os latidos
enfraqueceram. Soaram passos e então um homem surgiu diante deles. Era Muley Graves,
com o chapéu muito puxado para os olhos.
Aproximou-se timidamente:
- Bom dia, gente! - disse.
- Mas é o Muley! - exclamou o pai, fazendo um gesto de saudação com a mão, que
ainda segurava o osso.- Entra, Muley, e come qualquer coisa com a gente.
- Não, obrigado - disse Muley. - Não tenho fome.
- Ora, deixa-te disso, Muley. Toma lá! - E o pai entrou em casa e trouxe de lá uma
mão-cheia de costeletas.
- Não vim para comer do que é vosso - disse ele - Passei por aqui, e então lembreime
de ver como estavam todos e de me despedir.
- Daqui a pouco vamos partir - disse o pai. - Se tivesses vindo daqui a uma hora, já
não encontravas ninguém. Está tudo pronto para a viagem, vês?
- Tudo pronto.- Muley olhou para o caminhão carregado. - Às vezes, também tenho
vontade de ir à procura da minha gente.
A mãe perguntou:
- Tu não tiveste notícias deles lá da Califórnia?
- Não - disse Muley.- Não tenho notícias nenhumas. Mas talvez seja porque nem fui
ao correio saber se tinha alguma coisa. Qualquer dia tenho de lá ir.
O pai disse:
- Al, vai acordar o avô e a avó. Dize-lhes que venham comer. Daqui a bocadinho
vamos partir.- E, quando Al já ia em direcção ao celeiro, o pai virou-se para o recémchegado:
- Muley, se tu quiseres, podes vir com a gente. Há-de arranjar-se mais um
lugarzinho.
Muley deu uma dentada numa das costeletas e ficou a mastigar a carne.
- Às vezes, sinto vontade de ir. Mas sei que nunca irei - disse. - No último instante,
desapareço que nem um fantasma.
Noah disse:
- Aqui no campo acabas por esticar o pernil qualquer dia, Muley.
- Eu sei. já pensei nisso também. Às vezes sinto-me sozinho que nem o diabo, e isso
não me custa nada; até gosto. Não tem importância. Mas, se falarem lá com a minha gente
117
na Califórnia, digam-lhe que estou bem. Digam-lhe que passo bem. Não lhes contem como
eu vivo aqui. Digam-lhe que vou ter com eles assim que arranjar dinheiro.
A mãe perguntou:
- Mas sempre vais, Muley?
- Não - disse Muley, brandamente. - Não quero, nem posso sair daqui. Agora tenho
de ficar por aqui. Há pouco tempo, ainda seria capaz de ir. Agora já não. Uma pessoa
começa a matutar e acaba por saber o que quer. Nunca irei para a Califórnia.
A luz da alvorada, agora mais viva, empalidecia a das lanternas. Al voltara e, ao lado
dele, agitado e coxeando, vinha o avô.
- Ele não estava a dormir - disse Al - Estava sentado no chão, atrás do celeiro. Acho
que lhe aconteceu qualquer coisa.
Os olhos do avô, baços, não reflectiam aquela antiga maldade que lhe era peculiar.
- Não tenho nada - disse ele. - Já não quero ir.
- Não vem? - perguntou o pai. - Que é que o senhor quer dizer com isso? Mas a
gente já arrumou tudo. Temos de ir. já não temos onde ficar.
- Eu não disse para vocês ficarem - disse o avô. - Vocês podem ir à vontade. Eu é
que fico. Estive quase toda a noite a pensar nisso. A minha terra é esta. Eu sou daqui. E
tanto se me dá que as laranjas e as uvas por lá até caiam na cama de uma pessoa como não.
Não vou. Esta região não presta, mas é a minha terra. Vão vocês. Eu fico aqui na terra a
que pertenço.
Reuniram-se todos em volta do avô. O pai disse:
- Não pode ser, avô. Os tractores vão ocupar estas terras. Quem é que há-de
cozinhar para si? Como é que o senhor vai viver? Não pode ficar aqui. Sem ninguém que
tome conta de si, vai morrer de fome.
O avô gritou:
- Que diabo! Eu sou um velho, mas ainda posso tomar conta de mim! O Muley como
é que se arranja? Posso tratar tão bem de mim como ele. Já lhes disse que não vou. Agora
peguem-lhe com um trapo quente. Podem levar a avó, se quiserem, mas a mim é que
ninguém me arranca daqui. E acabou-se!
- Mas escute, avô - disse o pai desalentado. - Escute só um instantinho.
- Não tenho nada que escutar. já disse o que tenciono fazer.
Tom tocou no ombro do pai.
- Ó pai, vamos lá dentro. Quero dizer-lhe uma coisa. E, quando iam direitos a casa,
chamou:
- Mãe, venha cá um momentinho, sim?
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Uma lanterna iluminava a cozinha e o prato de costeletas estava bastante cheio ainda.
Tom disse:
- Olhe, eu sei que o avô tem o direito de dizer que não quer ir com a gente, mas ele
não pode ficar. É uma coisa que toda a gente sabe.
- Claro que não pode ficar - disse o pai.
- Olhe, eu pensei o seguinte: se a gente o agarrar e o amarrar à força, podemos
magoá-lo, ou ele fica tão danado que se magoa a si mesmo. Também não adianta estar a
discutir com ele agora. Mas, se se embebedar, muda de ideias. O senhor tem whisky, pai?
- Não - disse o pai.- Nem uma gota... - O John também não tem. Quando não bebe,
é porque não tem whisky.
A mãe disse:
- Tom, eu tenho meia garrafa daquele remédio calmante que comprei para o
Winfield, quando ele tinha aquela dor de ouvidos. Talvez sirva. O Winfield, mesmo com
muitas dores, dormia logo que tomava aquilo.
- Quem sabe? - aventurou Tom. - Não custa nada a gente experimentar. Traga-o lá.
- Já deitei a garrafa ao lixo - disse a mãe. - Pegou na lanterna e saiu, e, um momento
depois, voltou com a garrafa de remédio cheia até metade, de um líquido escuro.
Tom tirou-lha das mãos; desarrolhou-a e bebeu um gole.
- Não tem mau gosto - disse. - Faça uma chávena de café forte. Deixe ver... Aí diz
para se tomar uma colher de chá. Mas é melhor a gente deitar mais, pelo menos, duas
colheres de sopa.
A mãe tirou a tampa do fogão e pôs-lhe dentro uma chaleira, mesmo em cima das
brasas, e deitou-lhe água e café.
- Tem de tomar o café numa lata de conserva vazia - disse. - As chávenas já estão
todas embrulhadas.
Tom e o pai tornaram a sair da cozinha.
- A gente tem o direito de falar naquilo que tenciona fazer. Eh lá, quem é que está a
comer costeletas? - disse o avô.
- Fomos nós - disse Tom.- A mãe está a preparar uma chávena de café para si e
também lá tem carne de porco.
O avô entrou, bebeu o café e comeu a carne de porco. O grupo, lá fora, na claridade
crescente, ficou a vigiar-lhe os movimentos, através da porta aberta. Viu-o bocejar,
cambalear um pouco, estender em seguida os braços sobre a mesa, inclinar a cabeça e
adormecer profundamente.
- Estava cansado - disse Tom. - Deixem-no agora...
119
Estava tudo pronto. A avó, um tanto atordoada e estranha, perguntou:
- Que é isto, afinal de contas? Que é que vocês todos andam aqui a fazer tão cedo!?
Mas ela estava vestida e com bom aspecto. E Ruthie e Winfield estavam também
acordados, mas ainda se mantinham quietos, devido aos efeitos do cansaço, e a um estado
de semi-adormecimento. A claridade espalhava-se rapidamente sobre os campos. O vaivém
da família cessara. Ali estavam todos, sem coragem para esboçar o primeiro movimento de
abalada. Agora, que chegara a hora, estavam todos com medo... sentiam o mesmo temor
que se apossara do avô. Viram o alpendre tomar forma contra a luz e viram as lanternas
empalidecerem a ponto de o facho amarelo que projectavam se desfazer por completo. As
estrelas sumiam-se umas atrás das outras, para os lados do ocidente. E a família continuava
no mesmo lugar, como um grupo de sonâmbulos, com os olhos mergulhados no vácuo,
sem nada verem em pormenor, mas agarrados ao aspecto geral da madrugada, a toda a
terra, ao conjunto panorâmico daquela região.
Somente Muley Graves rondava sem descanso, olhando para o interior do caminhão,
através das frestas do lado, batendo nos pneus de reserva, pendurados nas traseiras do
veículo. Afinal, Muley aproximou-se de Tom:
- Tu vais passar a fronteira do Estado, hein? Vais quebrar a liberdade condicional.
Tom sacudiu o torpor que o dominara e disse em voz alta:
- Jesus! já é quase dia claro! Temos de ir andando... - E os outros também saíram
daquela apatia que os acometera e foram andando em direcção ao caminhão.
- Venham - disse Tom.- Vamos buscar o avô. - O pai, o tio John, Tom e Al entraram
na cozinha, onde o avô dormia com a cabeça repousada nos braços. Na mesa escorria um
fio de café. Seguraram-no pelas axilas e puseram-no em posição vertical; ele resmungou,
praguejando com a voz entaramelada de um bêbedo. Arrastaram-no para fora e, ao
chegarem junto do caminhão, Tom e Al subiram para o carro e, passando-lhe as mãos por
debaixo dos braços, puxaram-no cuidadosamente para cima, depondo-o sobre a carga. Al
desatou o toldo de lona e fizeram-no deslizar para baixo, colocando-lhe um caixote ao lado,
para que o pesado toldo lhe não caísse sobre o rosto e lhe impedisse a respiração.
- Tenho de arranjar o tal mastro - disse Al - Vai ser esta noite, quando a gente parar
para descansar.
O avô grunhiu qualquer coisa, mas, assim que se ajeitou na posição do costume,
tornou a adormecer pesadamente.
O pai disse:
- Mãe, tu e a avó vão um bocado ao lado do Al, no assento da frente. Depois,
trocam-se os lugares; assim é mais fácil viajar. - As mulheres subiram para o assento do
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motorista e os outros treparam para a carrosserie: Connie e Rosa de Sharon, o pai, o tio John,
Ruthie e Winfield Tom e o pregador. Noah ficou em baixo, a olhar aquela carrada no alto
do caminhão.
Al deu uma volta em torno do veículo, examinando as molas.
- Deus do céu! - exclamou. - Estas molas estão frouxas corno o diabo! Foi uma sorte
eu deixá-las bem suspensas.
- E os cães, pai? - perguntou Noah.
- Ai, que me ia esquecendo deles! - disse o pai. Deu um assobio agudo e um dos cães
veio a correr. Noah pegou nele e atirou-o para cima; o animal deixou-se ficar rígido e
trémulo, com medo da altura.
- Os outros têm de ficar - disse o pai.- Muley, queres olhar por eles? Senão, morrem
de fome.
- Pois não! - disse Muley. - Até fico satisfeito por ter dois cães comigo. Podes ficar
descansado, que eu tomarei conta deles.
- Fica também com as galinhas - disse o pai.
Al sentou-se no lugar do condutor. Calcou o arranque; o motor roncou, parou e
tornou a roncar. Depois, ouviu-se o matraquear rítmico de seis cilindros e um fumozinho
azul libertou-se do escape.
- Até mais ver, Muley - disse Al.
E toda a família gritou:
- Adeus, Muley!
Al engrenou em primeira e destravou. O caminhão estremeceu e começou a rodar
pesadamente pelo terreiro fora. E Al engrenou em segunda. Começaram a subir a pequena
encosta e a poeira vermelha elevou-se atrás deles.
- Eia, pai, que carregamento tão pesado! - disse Al.- Assim, não vamos andar muito
depressa, não!
A mãe tentou olhar para trás, mas a altura da carrosserie impedia a visão. Endireitou a
cabeça e pôs-se a observar, de olhos fixos, a estrada que se desenrolava à sua frente. E o
seu olhar reflectia um imenso cansaço.
Os outros, que estavam na carrosserie, puderam olhar para trás. Viram a casa e o
celeiro e um ténue fio de fumo que se desprendia da chaminé. Viram as janelas tingirem-se
de vermelho aos primeiros fulgores da manhã. Viram Muley com um ar de abandono, de
pé, no limiar da porta, a acompanhá-los com o olhar. Depois, a colina encobriu tudo. Os
campos de algodão marginavam a estrada. E o caminhão rodava vagarosamente, através da
poeira, rumo a oeste.

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