Capítulo XI
As casas, nos campos, tinham sido abandonadas, e os campos consequentemente,
também haviam sido abandonados. Somente nos depósitos dos tractores, cujas chapas
onduladas brilhavam como prata polida, havia vida e esta vida era alimentada com metal,
gasolina e óleo, enquanto os discos das charruas reverberavam ao sol. Os tractores tinham
luzes brilhantes, visto que, para um tractor, não existe noite ou dia, e os seus discos de arar
revolvem a terra na escuridão e luzem à claridade do dia. Quando um cavalo deixa de
trabalhar e recolhe à cocheira, a vitalidade continua nele, há respiração e calor, e as patas
pisam a palha caída, as mandíbulas trituram o feno e as orelhas e os olhos continuam a
agitar-se. Um calor vital reina na cocheira: o calor e o cheiro da vida. Mas, quando o motor
de um tractor suspende a sua actividade, tudo pára e tudo se torna morto como o metal de
que o tractor é feito. O calor abandona-o, como o calor vital abandona o cadáver. E então
as chapas onduladas fecham-se e o motorista do tractor vai para a cidade de onde veio,
talvez a uma distância de vinte milhas e não precisa de voltar por semanas ou meses, pois
que o tractor está morto. Isto assim é simples e cómodo: Tão simples, que a sensação de
prodígio que o trabalho proporciona desaparece, tão eficiente, que a sensação de
deslumbramento desaparece também dos campos, daí resultando que se esquece a
profunda compreensão que o homem possui da terra bem como a sua ligação com ela. E
no motorista do tractor cresce, vai aumentando o desprezo, que só domina um estranho,
que não tem amor, nem sente a sua comunhão com a terra. E que a terra não é só o nitrato
nem o fosfato, nem mesmo o tamanho que atinge a fibra do algodão. O homem não é
somente. carvão, sal, água ou cálcio. É tudo isto e também muitíssimo mais que o simples
resultado da sua análise. O homem, que é mais do que a sua composição química,
caminhando na terra, desviando a charrua de uma pedra, abaixando a rabiça do arado no
intuito de poupar um rebento temporão, vergando os joelhos na terra para engolir a
merenda - esse homem, que é mais que os elementos que o compõem, sabe também que a
terra é mais que o simples resultado da sua análise química. Mas o homem da máquina,
fazendo rodar um tractor morto através das terras que não ama nem conhece, apenas
entende de química; desdenha da terra e desdenha de si próprio. Quando as portas de
chapa ondulada se fecham, vai para casa e a sua casa nada tem que ver com a terra.
122
As portas das casas vazias pendem abertas; vão e vêm ao sabor do vento. Bandos de
crianças saem das cidades para lhes quebrar as vidraças das janelas e procuram tesouros
ocultos nas ruínas. Aqui está uma faca de lâmina partida. É uma coisa boa. E... olhem,
cheira a ratos mortos aqui. Vejam o que o Whitey escreveu na parede. A mesma coisa
escreveu ele na retrete da escola e o professor obrigou-o a raspar tudo.
Logo na noite que se seguiu ao êxodo daquela gente, os gatos, que andavam a caçar
nos campos, regressaram e ficaram a miar às portas. E, como ninguém atendesse, os gatos
penetraram nas casas vazias e percorreram, miando, os quartos desabitados. Depois,
voltaram para os campos e, desde então, transformaram-se em gatos selvagens e passaram a
caçar coatis e ratazanas e a dormir de dia nas cavidades do solo. Quando a noite chegava,
os morcegos, que se haviam ocultado nos vãos das paredes com medo da luz do dia,
esvoaçavam livremente nos quartos vazios e depois tornavam a ocultar-se nos cantos
escuros e ali ficavam durante todo o dia, com as asas fechadas, de cabeça para baixo, entre
o vigamento, e o cheiro da sua urina enchia as casas vazias.
Os ratos entravam e acumulavam provisões aos cantos, nas caixas e ao fundo das
gavetas, nas cozinhas. E as doninhas entravam e caçavam os ratos, e as corujas pardas
esvoaçavam, guinchando e tão depressa entravam como saíam.
Veio então um aguaceiro. O joio brotou nos degraus das portas, zona que outrora lhe
fora proibida e a relva crescia por entre as varandas e as portas de entrada. As casas
estavam abandonadas e as casas abandonadas ruem rapidamente, Começaram, pois, a abrir
fendas nos revestimentos de madeira, a partir de buracos de pregos enferrujados. A poeira,
acamando-se no chão, era perturbada apenas pelas pegadas dos ratos, das doninhas e dos
gatos.
Certa noite, o vento arrancou uma ripa, lançando-a ao chão. Outro golpe de vento
penetrou na abertura deixada pela ripa, e arrancou mais três, depois, mais doze. O sol do
meio-dia brilhou e lançou uma mancha doirada no pavimento, através do enorme buraco
do tecto. Os gatos selvagens regressavam à noite dos campos, mas já não miavam nos
degraus. Moviam-se como sombras de nuvens, que passam em frente da Lua, e
esgueiravam-se para dentro dos quartos. E, nas noites de ventania, as portas batiam com
estrondo nos umbrais e as cortinas esvoaçavam, esfarrapadas, de encontro às vidraças
partidas.
123
Capítulo XII
A estrada 66 é a rota principal das populações em êxodo. A estrada 66-a longa faixa
de cimento que corta as terras, ondulando para cima e para baixo, no mapa, de Mississipi a
Bakersfield - atravessa as terras vermelhas e as terras pardas, galga as elevações, cruza as
Montanhas Rochosas, penetra no luminoso e terrificante deserto e, cruzando este, torna a
entrar nas regiões montanhosas até alcançar os férteis vales da Califórnia.
A 66 é o caminho de um povo em fuga, a estrada dos refugiados das terras da poeira
e do pavor, do trovejar dos tractores, dos proprietários assustados com a invasão lenta do
deserto pelas bandas do norte e com os ventos que vêm ululando aos remoinhos do lado
do Texas, com as inundações que não traziam benefícios às terras e ainda acabavam com o
pouco de bom que ainda possuíam. De tudo isso os homens fugiam e encontravam-se na
estrada 66, vindos dos caminhos tributários e das estradas sulcadas de calhas e de marcas
fundas de rodas, que cortavam todo o interior. A 66 é a estrada-mãe, a estrada do êxodo.
Clarksville e Ozark e Van Buren e Fort Smith na estrada 64, e aí finda o Arkansas. E
todos os caminhos vão dar a Oklahoma City - a estrada 66, que desce de Tulsa, a 270, que
vem de MacAlester, a 81, de Wichita Falls, ao sul, de Enid, ao norte. Edmond, McLoud,
Purcell. A 66, à saída de Ok1alioma City, El Reno e Clinton vão dar, a oeste, à 66. Hydro,
EIk City e Texola, e eis o fim de Oklahoma. A 66, através do Cabo de Frigideira do Texas.
Shamrock e McLean. Conway e Amarillo. Wildorado, Vega e Boise, e chega-se ao fim do
Texas. Tucunicari e Santa Rosa e, depois, pelas montanhas do Novo México até
Albuquerque, onde a estrada vem de Santa Fé. Daí para baixo, até ao desfiladeiro do Rio
Grande e até Los Lunas, e novamente para oeste, pela 66, até às fronteiras do Novo
México.
E então surgem as altas montanhas. Holbrook, Winslow e Flagstaff, nos cumes
elevados do Arizona. Depois, o Grande Plateau, que se alteia como uma forte
intumescência. Seguem-se Aslifork e Kingman e, de novo, montes pedregosos, onde a água
vem de longe e se consegue à força de dinheiro. Depois, pelas montanhas batidas de sol do
Arizona até ao Colorado, de margens bordadas de verdes canaviais; então termina o
Arizona. A Califórnia fica logo junto ao rio e tem uma cidadezinha por marco: Needles,
mesmo à beira do rio. Mas o rio, nessas paragens, é um estranho. Acima de Needles, surge
124
uma cordilheira calcinada, a anunciar o deserto. E a 66 corta o terrível deserto, onde o ar
tremula a distâncias incríveis? e as negras montanhas se alcandoram na lonjura
insuportável. Finalmente, vem Barstow e depois mais deserto, até que as montanhas de
novo se perfilam, as boas montanhas pelas quais serpenteia a 66. Depois, de repente, uma
garganta e, lá em baixo o vale maravilhoso com os seus pomares, vinhedos e casinhas e, à
distância, uma cidade. E acabou-se a jornada, Santo Deus!
Os homens em êxodo rompiam na 66; às vezes, um carro solitário, outras vezes, uma
pequena caravana. Andavam o dia inteiro vagarosamente pela estrada e, à noite, paravam
onde houvesse água. De dia, velhos radiadores expeliam colunas de vapor e frouxas varetas
de ligação matraqueavam os ouvidos no seu contínuo martelar. E os homens que guiavam
os caminhões e os carros sobrecarregados escutavam, apreensivos. Quanto falta para
chegarmos à cidade mais próxima? Há um verdadeiro terror pelas distâncias entre as
cidades. Se alguma coisa se quebra... Bem... nesse caso temos de acampar por aqui mesmo,
enquanto o Jim vai a pé até à cidade, para comprar a peça que falta e torna a voltar... Que
comida temos ainda?
Ouve o motor. Dá atenção às rodas. Examina com os olhos e com os ouvidos e com
as mãos a roda do volante. Observa com a palma da mão a alavanca das velocidades e
apreende com os pés o tremor do pavimento. Escuta com todos os sentidos concentrados
o velho calhambeque ruidoso, porque uma alteração de ruídos, uma variação de ritmo pode
significar uma semana de atraso na viagem. Esse matraquear? São as válvulas. Não tem
importância. As válvulas podem fazer barulho até ao dia em que Jesus torne à terra, que
não haverá dúvida. Mas essas pancadas que a gente ouve quando o carro anda, não tens
ouvido? - isso sim. Talvez o óleo não chegue a todas as peças. Talvez uma das molas esteja
gasta. Meu Deus, se for uma mola, que é que a gente vai fazer? O dinheiro some-se tão
depressa!
E por que raio está hoje o motor assim tão quente?! Não estamos a fazer nenhuma
subida. Deixa ver. Deus todo poderoso. Rebentou a correia do ventilador. Olha, faz uma
correia desse pedaço de corda. Deixa ver que tamanho é preciso. Eu ajusto as pontas. Bem,
agora vamos devagarinho, para ver se chegamos a alguma cidade. Esta corda mão vai
aguentar muito. Oh, se a gente chegasse à Califórnia onde as laranjas nascem, antes que
esta geringonça se desfizesse! Se a gente conseguisse chegar!
E os pneus - duas camadas já estão gastas, e, ao todo, só há quatro. Talvez a gente
ainda arranque umas cem milhas com eles, se antes não dermos nalguma pedra. Que é que
havemos de fazer? Viajar essas cem milhas assim mesmo e arriscarmo-nos a furar as
câmaras-de-ar? Sim. Bem, vocês é que sabem. A gente tem remendos para pneus. Talvez,
125
quando rebentar, o furo seja pequeno e a gente possa aguentar umas quinhentas milhas.
Pois vamos andando até rebentar!
Temos de arranjar um pneu novo, mas- Deus do céu! - eles querem tanto dinheiro
por um pneu usado! Eles põem-se a olhar para nós e sabem que a gente tem de viajar de
qualquer maneira, que não podemos perder tempo. Então, aumentam o preço.
É pegar ou largar! Pensa que eu estou aqui no negocio para me divertir? Estou aqui
para vender pneus. Não lhos posso dar de presente. Não tenho culpa nenhuma do que lhes
aconteceu. Eu também tenho cá as minhas arrelias.
A que distância fica a próxima cidade?
Ontem passaram por aqui quarenta e dois carros, cheios de gente como vocês. De
onde vêm eles? E aonde vão?
Bem, a Califórnia é um grande estado.
Mas também não é assim tão grande. Os Estados Unidos juntos não são assim tão
grandes como isso. Não há lugar para vocês e para mim, para a sua gente e para a minha,
para ricos e pobres, todos num só país, ladrões e gente honesta. Para os esfomeados e para
os fartos. Porque não voltam para o sítio de onde vieram?
Isto aqui é um país livre... A gente vai para onde quiser.
Isso é o que você pensa! já ouviu alguma vez falar das patrulhas da polícia na
fronteira da Califórnia? É a polícia de Los Angeles - prende-os e manda-os voltar para trás.
Eles dizem: se vocês não vêm para cá com a ideia de comprar terras, não os queremos cá.
E dizem: você tem carta de motorista? Deixe ver. Então, rasgam a carta e dizem: sem carta
de motorista, você não pode entrar no estado com esse caminhão.
Mas estamos num país livre!
Vá atrás disso, vá! Já houve alguém que disse: a liberdade depende da massa que a
gente pode pagar por ela.
Mas na Califórnia, eles pagam salários altos. Eu tenho até um impresso que diz isso
mesmo.
Ora! Isso não passa de uma cantiga! Vi gente que regressava de lá. Vocês foram
intrujados. Afinal, quer levar esse pneu ou não quer?
Tenho de o levar, tenho mas - por Deus! - Isso leva-nos o dinheiro quase todo.
Bem, isto aqui não e nenhuma casa de caridade. Leva-o ou não?
Sim, acho que tenho de o levar. Deixe-me primeiro vê-lo melhor. E melhor abri-lo
um Pouco. Quero ver como está o forro. ó seu filho da mãe, você não disse que o forro
estava perfeito? Olhe para aqui, está quase furado!
Diabo, você tem razão! Como é que eu não vi isto?
126
Viu, sim, seu filho da mãe! E quer arrancar-nos quatro dólares por um pneu quase
furado. Tenho vontade de lhe pregar com tudo na cara!
Ora deixe-se de armar em valente. Já lhe disse que não tinha visto isso. Sabe uma
coisa? Dou-lhe este por três dólares e cinquenta; pode levá-lo.
Levo o diabo! Vou mas é chegar até à cidade mais próxima de qualquer maneira.
Você acha que o pneu aguentará até lá?
Tem de aguentar. Prefiro gastar o pneu até à jante a dar um tostão que seja àquele
bandido.
Que é que você pensa afinal que seja um negociante? Ele já disse que não estava ali
para se divertir. E isto é que é negócio. Pois o que é que você pensava? Um negociante tem
que... o que é chama-lhe outra coisa. Olhe: vê ali aquela tabuleta, à margem da estrada?
“Service Club”. Almoço às terças-feiras. Hotel Colmado? Seja bem-vindo. É um clube de
refeições. Faz-me lembrar uma história que ouvi a um tipo. Ele tinha ido a uma daquelas
reuniões e então contou a tal história a todos aqueles homens de negócios que lá estavam.
Quando eu era miúdo - disse ele - O meu pai mandou-me levar uma vitela pela arreata e
disse-me: “Anda, leva-a lá abaixo para que a cubram (Trocadilho entre to get serviced: ser servido e
to get served: ser coberto). E eu assim fiz. E agora, depois daquela partida, quando um
negociante se põe a falar de serviço, pergunto sempre aos meus botões quem é que ele
pretende levar com aquela cantiga. Quem está metido nos negócios, tem de mentir e de
aldrabar; o que é chama-lhe outra coisa. Isso é que interessa. Se você roubasse o pneu, seria
considerado um ladrão e ia preso; ele tentou roubar-nos quatro dólares em troca de um
pneu furado: a isso chama-se negócio.
Danny, ali no assento traseiro, quer um copo de água.
Tem que esperar. Aqui não há água. Escute... aquele barulho na parte de trás do
carro. Parece o telégrafo nos postes. Lá se vai o remendo da jante! Mas temos de continuar.
Olhe como assobia! Quando encontrarmos um sítio bom, vamos parar e reparar tudo isso.
Mas, meu Deus, a comida é cada vez menos e o dinheiro também está no fim! Como
iremos nós arranjar-nos quando já não pudermos comprar gasolina?
O Danny, no assento traseiro, quer um copo de água. O rapazinho está com sede. Lá
está a jante a chiar. O remendo parece que não foi bem feito. Bolas! Pronto, lá se foi tudo!
Pneu, câmara-de-ar e tudo! É preciso fazer a reparação. E vamos aproveitar esse material
para pôr isto à prova de pregos. Corta-se e mete-se por dentro, a reforçar as partes mais
fracas.
Carros estacionando nas estradas, motores desmontados, pneus remendados. Carros
estropiados, arrastando-se ao longo da 66, como animais feridos, arquejantes, mas ainda
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assim lutando. Motores sobreaquecidos, de juntas frouxas, mancais bambos, carrosseries
barulhentas.
O Danny quer um gole de água.
Gente que emigra pela estrada 66. O espelho de cimento armado reflecte os raios
solares e, à distância, a estrada parece cheia de poças de água.
O Danny quer um copo de água.
Ele tem que esperar, coitadinho. Está cheio de calor. No primeiro posto de gasolina.
Posto de serviço, como dizia o tal tipo.
Duzentos e cinquenta mil homens na estrada. Cinquenta mil calhambeques
fumegantes, mais ou menos avariados. Carcaças de automóveis abandonados ao longo da
estrada. Que lhes teria acontecido? E que teria acontecido aos donos daqueles carros?
Teriam ido para diante, a pé? Onde estarão eles? Como é que possuem tanta coragem? De
onde lhes veio uma tamanha fé?
Eis uma história em que mal se pode acreditar - no entanto, é verdadeira, engraçada e
linda. Era uma vez uma família composta de doze pessoas que foi forçada a deixar a sua
terra. A família não possuía nenhum veículo. Construíram então uma roulotte com material
de sucata e carregaram-na com todos os objectos que lhes pertenciam. Arrastaram-na
depois até à margem da estrada 66 e ficaram à espera. Daí a pouco apareceu uma possante
limousine, que se encarregou da tal família. Cinco foram no automóvel e sete ficaram na
roulotte. Sete pessoas e mais um cão na roulotte.
O homem que os levou até de comer lhes deu. E olhem que isto é a pura verdade.
Mas de onde vem essa coragem e essa fé na solidariedade humana? Bem poucos são os
factos capazes de ensinarem tamanha fé.
Os homens em êxodo, fugindo do terror que campeava atrás deles, sofreram coisas
estranhas, algumas cruelmente amargas, é certo, mas outras tão belas que a fé se lhes
reanimou para sempre.
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Capítulo XIII
O velho Hudson transbordante de carga, arrastou-se, gemendo, até atingir a estrada
principal em Sallisaw e voltou para o oeste.
O sol cegava. Mas, sobre a faixa de cimento armado, Al calcou o acelerador, porque
as molas, demasiado apertadas, já não ofereciam perigo. De Sallisaw a Gore são vinte e
uma milhas, e o Hudson fazia trinta e cinco milhas por hora. De Gore a Warner, treze
milhas; de Warner a Checotali, catorze milhas; de Checotali, é um bom bocado até
Henrietta - trinta e quatro milhas - mas, ao fim, encontra-se uma cidade autêntica. De
Henrietta a Castle dezanove milhas, e o Sol brilhava alto, e, sobre os campos vermelhos,
batidos pelos raios de sol, vibrava o ar.
Al, ao volante, rosto concentrado, todo o corpo atento aos ruídos, os olhos sempre
inquietos, fixando, ora a estrada, ora o instrumental. Al formava um só corpo com o seu
motor, com todos os nervos vigiando todas as fraquezas daquele, os estampidos, os
guinchos, os rangidos que pudessem denunciar uma falha qualquer, que fosse susceptível
de determinar uma avaria. Tornara-se a alma do veículo.
A avó, sentada ao lado dele, estava meio adormecida e gemia fracamente em sonho.
Às vezes, abria os olhos, olhava em frente e tornava a fechá-los. A mãe estava sentada ao
lado da avó, com um dos cotovelos fora da janela do caminhão, deixando que o sol,
implacável, lhe queimasse a pele. Também a mãe olhava em frente, mas os seus olhos,
vazios de expressão, parecia nada verem, nem o caminho, nem os campos, nem os postos
de gasolina, nem os barracões de comida. Nem sequer erguera os olhos quando o Hudson
passara por eles.
Al ajeitou-se no banco de molas avariadas e mudou a forma de segurar o volante.
Suspirou:
- Faz um barulho dos diabos, mas acho que vai bem. Mas só Deus sabe o que
acontecerá se tivermos de subir uma colina com esta carga toda. õ mãe, há algumas
elevações daqui até à Califórnia?
A mãe voltou a cabeça lentamente e os seus olhos voltaram à vida.
- Acho que sim - disse.- Mas não tenho a certeza disso. Parece-me que ouvi dizer que
há umas colinas e até umas montanhas bem grandes, antes de chegarmos à Califórnia.
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A avó emitiu um longo suspiro, queixosa e sonolenta.
Al disse:
- O caminhão é capaz de arder se tiver de subir uma montanha. Só se a gente atirar
fora algumas coisas. Talvez fosse melhor não trazer o reverendo.
- Não! A gente ainda vai dar graças a Deus por o ter trazido - disse a mãe.- Ele vai
ajudar-nos bastante.- E pôs-se de novo a olhar para a frente, fixando a estrada fulgurante.
Al ia guiando com uma mão e colocara a outra na vibrante alavanca das mudanças.
Falava com dificuldade. A boca formava silenciosamente as palavras antes que as
pronunciasse em voz alta.
- Mãe... - Ela encarou-o devagar, e a cabeça tremia-lhe um pouco por causa da
trepidação do veículo.- Mãe ... a senhora está com medo da viagem, não está? Está com
medo desses sítios que não conhece?
Os olhos dela tornaram-se pensativos e brandos.
- Um pouco, sim - disse. - Mas não tanto como tu estás aí a pensar. Estou à espera.
Quando houver alguma coisa a fazer, cá estou para isso.
- E não pensa no que nos vai acontecer quando lá chegarmos? Não tem medo de que
não seja tão bom como a gente imagina?
- Não - respondeu ela rapidamente. - Não tenho medo. Não há-de ser assim. Nem
quero pensar nisso. Seria o mesmo que viver muitas vidas ao mesmo tempo. Há mil vidas
que nós poderíamos viver, quando chega o momento de escolhermos uma, apenas. Se eu
me puser a pensar em tudo o que poderá acontecer, não aguento. Tu podes viver do
futuro, porque és muito novo ainda, mas, para mim, o futuro resume-se na estrada que
corre a meus pés. E em pensar que, daqui a pouco, chega a hora de se comerem mais umas
costeletas de porco. - As feições dela tornaram-se duras. - Mais do que isso não posso
fazer. Tudo caminhará mal se eu fizer mais do que isso. Eles dependem do que eu fizer
nesse sentido.
A avó bocejou em tom agudo e abriu os olhos. Lançou em volta um olhar esgazeado.
- Tenho de ir lá fora! Meu Deus, tenho de ir lá fora! - disse.
- Um momento. Deixe a gente chegar a umas moitas - disse Al. - Ali adiante.
- Haja moitas ou não, não quero saber disso. Tenho de ir lá fora... já te disse... tenho
de ir lá fora. - E começou a guinchar: - Quero sair! Quero sair!
Al acelerou a marcha., indo estacar em frente de umas moitas. A mãe abriu a porta e
arrastou a velhota, que barafustava, para dentro do mato. Segurava-a bem, enquanto ela se
acocorava, para que não caísse.
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No alto do caminhão, os outros começavam a remexer-se. As suas faces reluziam sob
a acção escaldante do sol a que não podiam escapar. Tom, Casy, Noah e o tio John
estenderam-se fatigados. Ruthie e Winfield precipitaram-se pelos bordos do caminhão
abaixo e sumiram-se entre as moitas. Connie ajudou a cautelosa descida de Rosa de Shawn.
Debaixo do encerado, o avô acordara e deitava a cabeça de fora, mas os seus olhos, ainda
chorosos, sob o efeito da droga, não revelavam compreensão. Olhava os outros, mas não
parecia reconhecê-los.
Tom chamou-o:
- Quer descer, avô?
Os velhos olhos cansados voltaram-se inexpressivos na sua direcção.
- Não - disse o avô. Por um momento, a antiga malícia pareceu iluminá-los. - Já disse
que não vou com vocês. Quero ficar aqui como o Muley. - Depois, tornou a desinteressarse.
A mãe estava de volta, ajudando a avó a subir para a estrada.
- Tom - disse ela - vai buscar a panela que tem as costeletas. Está ali, debaixo do
toldo, mesmo atrás. Precisamos de comer qualquer coisa. - Tom chegou a panela, fê-la
circular em volta e a família quedou à margem da estrada, a mastigar as aparas de carne de
porco arrancadas aos ossos.
- Que bom a gente ter trazido isto! - disse o pai.- Fiquei tão teso ali em cima que
quase não posso andar. Onde está a água?
- Não está ali em cima, com vocês? - perguntou a mãe. - Foi lá que eu pus o cântaro.
O pai trepou pelo lado do caminhão e espreitou para debaixo do toldo.
- Aqui não está. Se calhar, ficou lá.
Imediatamente, a sede começou a dominar todos. Winfield choramingou:
- Quero beber água. Quero beber água!
Os homens passaram a língua pelos lábios, subitamente conscientes da sede que
tinham. Estabeleceu-se então um certo pânico.
Al sentiu que o medo crescia.
- Vamos arranjar água no próximo posto de serviço. E temos de comprar gasolina
também.
A família correu para o veículo. A mãe ajudou a avó a entrar e sentou-se ao lado dela.
Al pôs o motor em movimento e começaram a rodar de novo.
Vinte e cinco milhas de Castle a Paden. O Sol passara o zénite, iniciando a sua
marcha descendente. E a tampa do radiador começou a oscilar e o vapor a sair. Próximo de
Paden havia uma barraca à margem da estrada e duas bombas de gasolina defronte dela e,
131
ao lado, diante de uma cerca, uma torneira de água e uma mangueira. Al dirigiu para lá o
Hudson, de maneira que o radiador do caminhão ficasse bem junto da mangueira. Assim
que travou, um homem corpulento, de rosto e braços vermelhos, ergueu-se de uma cadeira
colocada atrás das bombas de gasolina e veio ao encontro dele. Vestia calças de belbutina
castanha, com suspensórios e uma camisa de malha, de mangas curtas e tinha sobre os
olhos uma pala quebra-luz prateada. O suor borbulhava-lhe no nariz e, sob os olhos,
formando pequenos fios nas rugas do pescoço. Aproximava-se lentamente do camião, com
ar truculento e severo.
- Querem comprar alguma coisa? Gasolina ou quê? - perguntou.
Al já tinha saltado e estava desatarraxando a tampa do radiador que se achava envolta
em vapor, utilizando-se da ponta dos dedos para que o vapor quente lhe não queimasse a
mão quando brotasse em jacto forte.
- Preciso de gasolina, amigo.
- Tem dinheiro?
- Naturalmente. Pensa que andamos a pedir?
A expressão truculenta abandonou as faces do homem.
- Bom, então está bem, rapaziada. Podem servir-se da água. E tratou de explicar:- A
estrada está cheia de gente. Chegam aqui, querem água, sujam a privada e depois - co'os
diabos! roubam o que podem e não compram coisa nenhuma. Não têm dinheiro para
comprar nada. Mendigam um galão de gasolina e passam adiante.
Tom pulou colérico do camião e postou-se em frente do homem da bomba de
gasolina.
- Nós pagamos, compreende? - exclamou, exaltado. - Você não tem o direito de nos
interrogar, nem de falar connosco dessa maneira, ouviu? Meta-se com a sua vida!
- Não estou a meter-me com ninguém - desculpou-se rapidamente o homem. O suor
começava a ensopar-lhe a camisa de malha. - Podem tirar água à vontade. E servir-se do
toilette, se quiserem.
Winfield já tinha descoberto o bico da mangueira. Bebeu, mergulhando a boca no
jacto de água; depois, regou a cabeça e o rosto, ficando a escorrer.
- Está quente - disse.
- Não sei onde vamos parar - disse o homem da bomba de gasolina, com um ar que
mostrava bem não pretender atingir os Joads. - Cinquenta a sessenta carros cheios de gente
passam todos os dias por aqui, todos os dias, a caminho do Oeste com os filhos e a tralha
da casa. Para onde é que eles vão assim? Que é que eles vão fazer?
132
- Vão fazer o mesmo que nós - disse Tom. - Procurar um sítio onde possam viver.
Aqui tem.
- Bem, eu não sei onde é que isto assim vai parar. Não sei, francamente. Olhe eu, por
exemplo. Também ando cá a ver se trato da minha vida. O senhor pensa que algum dos
carros grandes e novos que passam por esta estrada param na minha bomba? É o páras!
Vão direitos à cidade onde há aqueles postos pintados de amarelo da companhia de
gasolina. Não param em sítios destes. Aqueles que param, em geral, não têm dinheiro para
comprar.
Al tinha afrouxado a tampa do radiador, que, impelida por um jacto de vapor forte,
saltou no ar. Um som cavo, murmurante, subiu pelo tubo. No alto da carrosserie, o cão
sofredor foi-se esgueirando timidamente para um dos extremos da carga e pôs-se a olhar,
ganindo, para a água. O tio John subiu e puxou-o para baixo, segurando-o firmemente pela
pele do pescoço. Por um instante, o animal ficou imóvel, de pernas retesadas; depois,
correu para a poça de água que se formara junto ao bico da mangueira. Pela estrada,
deslizavam os carros, cintilando ao calor, e o vento quente que provocavam na corrida,
atingia o posto de gasolina. Al encheu o radiador de água.
- Não é que eu me queira aproveitar da gente rica - continuou o homem do posto de
gasolina.- Mas preciso de clientes, claro. E aqueles que param aqui, vivem a mendigar
gasolina ou pretendem fazer trocas. Posso mostrar-lhe aí, naquele quarto, ao fundo, a data
de coisas que tenho recebido em troca de gasolina e de óleo; camas, carrinhos de criança,
panelas e frigideiras. Uma família trocou até a boneca de uma filha por um galão de
gasolina. Que é que eu vou fazer dessa porcaria toda? Abrir uma loja de ferro-velho? Até
me apareceu um sujeito que queria dar-me os sapatos em troca de um galão de gasolina. E,
se eu não fosse um tipo decente, até as... - Olhou para a mãe e não continuou a frase.
Jim Casy atirara água sobre a cabeça e as gotas caíam-lhe ainda pela testa ampla; o
pescoço musculoso e a camisa estavam molhados. Depois, foi pôr-se ao lado de Tom.
- É assim mesmo. Eles não têm culpa - disse. - Você gostaria de vender até a cama
onde dorme por um pouco de gasolina?
- Eu sei que a culpa não é deles. Todos com quem tenho falado tinham razões de
sobra para se meterem a caminho. Mas aonde é que o país vai parar? Isso é que eu queria
saber. Aonde é que isto tudo nos vai levar? Um homem já não pode ganhar a vida
decentemente. já nem as terras se podem cultivar. Eu pergunto: como é que isto vai acabar?
Não faço a menor ideia. E ninguém - dos que interroguei a esse respeito - soube dizer-me
qualquer coisa. Um sujeito até quis vender os sapatos para poder ir mais umas cem milhas
133
para diante. Francamente não sei, não compreendo nada. - Tirou a pala prateada da testa,
limpando a fronte com ela.
E Tom fez o mesmo com o boné. Foi à mangueira, molhou o boné, espremeu-o e
colocou-o novamente na cabeça. A mãe tirou um copo de folha de Flandres de entre a
carga do camião, encheu-o de água e levou-o ao avô e à avó, que ainda se encontravam
sentados no topo da carga. Encostou-se às grades do veículo, deu o copo ao avô, que
molhou os lábios e sacudiu a cabeça, dizendo que não queria mais. Os seus velhos olhos
miraram a mãe, doloridos e desvairados, até que, um instante depois, o brilho da
inteligência tornou a sumir-se.
Al pôs o motor em movimento e recuou até à bomba de gasolina.
- Bom, encha o tanque - disse. - Deve levar cerca de sete, mas só quero seis, não vá a
gasolina entornar-se por aí.
O homem da bomba introduziu a mangueira no orifício do depósito.
- Francamente - continuou - não sei como é que este país vai acabar. Mesmo com o
auxílio aos desempregados e tudo.
Casy interrompeu-o:
- Eu já percorri a região. E toda a gente me perguntou o mesmo. Aonde vamos
parar? Acho que não vamos parar a parte nenhuma. Estamos sempre de viagem. Sempre a
caminho. Por que é que ninguém pensa nisso? E um movimento que não pára nunca. As
pessoas andam, andam sempre. Nós sabemos porquê e sabemos como. Caminham porque
são obrigados a caminhar. É o único motivo por que todos caminham. Porque querem
alguma coisa melhor do que têm. E caminhar é a única oportunidade que têm de a
conseguir. Se querem e precisam, têm de ir buscar. A fome mete o lobo a caminho. Eu já
percorri o país todo e ouvi muita gente falar como você fala.
O homem da bomba de gasolina encheu o tanque. O ponteiro do medidor marcou a
quantidade do combustível pedido.
- Sim, mas aonde nos vá levar tudo isto? Isso é que eu gostava de saber.
Tom interrompeu-o, irritado:
- Pois nunca o virá a saber. O Casy já esteve a ver se lhe explicava e você continua na
mesma. Conheço muita gente como você. Não querem saber de nada, mas vivem repetindo
a mesma cantiga: aonde vamos parar? A você isso não interessa. As pessoas saem da sua
região; vão para aqui e para acolá. Talvez você morra de um momento para o outro, mas
nem quer pensar nisso. Conheço muita gente assim. Não querem saber de nada. Mas vivem
a embalar-se com a mesma cantiga: aonde, vamos parar? - Olhou para a bomba de gasolina,
velha e enferrujada, e para a barraca que lhe ficava atrás, construída de madeira velha, em
134
que se viam ainda os buracos dos pregos usados pela primeira vez, salientando-se na
pintura amarela já desbotada, que pretendia imitar a dos grandes postos da cidade. Mas a
pintura não conseguia ocultar os buracos dos pregos antigos, nem as velhas rachas da
madeira, e não podia ser renovada. A imitação não passava de um malogro; demais o
reconhecia o dono daquilo. No interior da barraca, de porta aberta, Tom viu as latas de
óleo; havia só duas latas e o balcão dos doces em que havia bombons retardados, paus de
alcaçuz que o tempo enegrecera e cigarros. Viu a cadeira quebrada e a tela de protecção
contra as moscas com um buraco enferrujado ao centro. O quintal, atravancado, estava
mesmo a pedir saibro e, atrás, um campo de cereais secava e morria à soalheira. Ao lado da
casa, um pequeno sortido de pneus usados ou renovados. E, pela primeira vez, reparou nas
calças que o gorducho trazia calças baratas e já muito lavadas, uma camisa igualmente
ordinária e uma pala de cartão. Então, disse:
- Isto não é para o ofender. É o calor, sabe? O senhor não tem nada. Daqui a pouco
também se põe aí a calcorrear as estradas. A si não são os tractores que o põem a andar;
são as bonitas estações de serviço da cidade. Vai-lhe acontecer o mesmo.
O homem da bomba de gasolina foi diminuindo a ginástica com que accionava a
alavanca da bomba e parou de vez, enquanto Tom falava. Pôs-se a encará-lo com ar de
preocupação:
- Afinal de contas, como é que você sabe que nós também estamos em preparativos
de viagem para o Oeste? - perguntou, desalentado.
Foi Casy quem lhe deu a resposta:
- É porque todos vão para lá. Veja eu, por exemplo. Dantes lutava com todas as
minhas forças contra o demónio, porque pensava que o demónio era o inimigo. Mas agora
é outra coisa muito pior que o demónio o que está dominando o país, uma coisa que não
acabará enquanto a gente não acabar com ela. O senhor já viu um, monstro de Gila (O
monstro de Gila - assim chamado por ser originário do rio Gila, no Arizona- E. Unidos - é um grande
lagarto das regiões áridas do Novo México, Arizona, etc., e cuja mordedura é venenosa) aferrar-se a
alguma coisa? Ferra os dentes com uma força extraordinária e podem cortá-lo em dois, que
a cabeça ainda fica agarrada. Corta-se-lhe o pescoço, e a cabeça ainda fica presa. A gente
tem de enfiar a ponta de uma chave de parafusos na cabeça do bicho para que as presas se
abram e soltem a carne e, entretanto, o veneno vai caindo gota a gota no buraco que ele
tenha feito com os dentes.- Casy interrompeu-se e olhou Tom de soslaio.
O homem gordo pregou num desalento os olhos no chão. Recomeçou com a mão a
movimentar a alavanca da bomba.
- Não sei mesmo aonde vamos parar - disse com brandura.
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Adiante, perto da mangueira, Connie e Rosa de Sharon palestravam juntos em voz
baixa. Connie lavou o copo de folha e deixou a água escorrer entre os dedos, antes de o
encher. Rosa de Sharon observava a passagem dos veículos na estrada. Connie empunhou
o copo, oferecendo-lho:
- A água não está muito fresca, mas sempre é água - disse, sorrindo.
Ela olhou-o com um risinho misterioso. Era toda segredinhos, agora que estava
grávida, segredinhos e pequenos silêncios que parecia terem muita significação. Estava
satisfeita consigo mesma e queixava-se de coisas que, na verdade, não tinham importância
alguma. E exigia que Connie a ajudasse nas coisas mais ridículas, que ambos sabiam serem
ridículas. Connie também estava satisfeito com ela, e sentia-se maravilhado por a mulher
estar grávida. Gostava & se sentir incluído nos mistérios dela. Quando a mulher ria
dissimuladamente, ele fazia o mesmo e os dois trocavam confidências, sussurrando. O
mundo estreitara-se ao redor deles, e eles figuravam no centro desse mundo, ou melhor,
Rosa de Sharon é que figurava ao centro e Connie andava em volta dela corno um satélite.
Tudo o que diziam parecia constituir uma espécie de segredo.
Ela desviou o olhar da estrada.
- Não tenho grande sede - disse afectadamente - mas talvez seja bom eu beber um
pouco de água.
E ele anuiu, pois sabia bem o que ela queria dizer. Ela pegou no copo, enxaguou
primeiro a boca, cuspiu em seguida e depois bebeu um copo cheio de água tépida.
- Queres mais? - perguntou ele.
- Sim. Dá-me mais meio copo.
Então ele encheu o copo até metade e deu-lho. Um Lincoln-Zephir, prateado e
baixo, passou como um veludo. Ela voltou-se para ver onde estavam os outros da família e
viu-os agrupados junto do caminhão. Tranquilizada, disse:
- Que bom seria a gente viajar num automóvel daqueles, hein?
Connie suspirou:
- Quem sabe, mais tarde?- Ambos sabiam o que ele queria dizer. - Se a gente
encontrar serviço na Califórnia, já sabes: vamos ter o nosso carro. Mas um desses - e
apontou para o Zephir que se sumia ao longe - custa quase tanto como uma casa, e eu,
nessas circunstâncias, preferia comprar uma casa.
- E eu queria uma casa e um automóvel - disse ela.- Mas, naturalmente, a casa está em
primeiro lugar, porque... - E ambos sabiam o que ela queria dizer. Estavam terrivelmente
excitados com aquela história da gravidez.
- Sentes-te bem? - perguntou ele.
136
- Estou cansada. Cansada de viajar ao sol...
- Mas tem de ser. Senão, nunca mais chegamos à Califórnia.
- Eu sei - disse ela.
O cão correu, fungando, passou pelo caminhão, trotou em direcção à mangueira,
começou a lamber a água lamacenta. Depois, afastou-se, com o focinho quase pelo chão e
as orelhas caídas. Na margem da estrada abriu caminho, farejando, por entre a vegetação
seca e poeirenta, rente ao caminho. Ergueu a cabeça, lançou um olhar para a frente e
começou a atravessar. Rosa de Sharon deu um grito agudo. Um carro enorme e veloz
aproximava-se, com os pneus rangendo fortemente. O cão hesitou, atarantado e acabou
por se meter, com um uivo, que não chegou a acabar, mesmo por debaixo das rodas. O
veículo diminuiu a marcha por um instante; houve rostos que olharam para trás; depois, a
velocidade tornou a aumentar e o carro desapareceu.
O cão, num monte de sangue e de carne, com os intestinos à mostra, ainda se mexia.
Os olhos de Rosa de Sharon estavam desmedidamente abertos.
- Tu achas que o choque me vai fazer mal? - perguntou ela. - Achas que o choque me
vai fazer mal?
Connie passou-lhe o braço em volta dos ombros.
- Vem sentar-te - disse. - Não é nada.
- Mas eu sei que me vai fazer mal. Eu senti um choque, assim que dei aquele grito.
- Vamos; anda sentar-te. Não tem importância. Não te há-de acontecer nada. -
Conduziu-a até ao lado do caminhão de onde se não via o cão agonizante. Fê-la sentar-se
no estribo.
Tom e o tio John aproximaram-se daquele montão de carne sangrenta. Ia-se o último
frémito de vida do corpo esmagado. Tom segurou-o pelas pernas e arrastou-o até à beira da
estrada. O tio John, embaraçado e abatido, olhou-o como se a culpa fosse sua.
- Devia tê-lo prendido - observou ele.
O pai lançou um olhar ao corpo do cão e depois desviou a vista.
- Vamo-nos embora daqui. Talvez tivesse sido bom. Daqui a pouco não sei como lhe
daríamos de comer.
O homem gordo surgiu por detrás do caminhão.
- Sinto muito - disse. - Numa estrada assim movimentada não há cão que dure muito.
A mim, num ano, ficaram-me três atropelados. Agora já não quero mais nenhum. Não se
prendam mais com o assunto. Eu encarrego-me de o enterrar aí no campo.
A mãe dirigiu-se para Rosa de Sharon, que continuava sentada no estribo... Ela ainda
tremia.
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- Que há, Rosasharn? - perguntou-lhe. - Sentes-te mal?
- Vi tudo aquilo e deu-me um grande choque!
- Sim, eu ouvi o teu grito - disse a mãe.- Mas sossega; já passou.
- Acha que pode fazer mal à criança?
- Não - disse ela. - Mas, se tu começares a preocupar-te constantemente e te quiseres
meter numa redoma, então é que tudo te poderá fazer mal. Vamos, levanta-te e vem ajudarme
a tratar da avó. Esquece a criança ao menos por um momento. Ela cuida de si própria.
- Onde está a avó? - perguntou Rosa de Sharon.
- Não sei. Deve andar por aí. Talvez esteja na retrete.
A rapariga foi até ao toilette e voltou um instante depois, conduzindo a avó pelo
braço.
- Adormeceu lá dentro - contou Rosa de Sharon.
A avó riu.
- É tudo tão bonito lá dentro - disse. - Há uma retrete mecânica; quando a gente
puxa uma correntinha, a água vem para baixo. Achei muito bonito - disse, satisfeita. - Fazia
uma boa soneca se vocês não me acordassem.
- Mas ali não é lugar para se dormir - comentou Rosa de Sharon, ajudando a avó a
entrar no caminhão. A velhinha instalou-se com ar feliz.
- Talvez não seja lugar para se dormir, mas é muito bonito.
Tom disse:
- Bem, vamos indo. Ainda temos um bocado de caminho pela frente.
O pai deu um assobio agudo.
- Onde estão as crianças? - E tornou a assobiar, com dois dedos na boca.
Num instante, as crianças surgiram, correndo, vindas da plantação de cereais. Ruthie
vinha à frente com Winfield na peugada.
- Ovos! - gritou Ruthie. - Achei ovos! - Já estava bem próxima, com Winfield colado
a ela. - Olha! - Nas suas mãozitas sujas, trazia uma dúzia de ovos, uns ovos lisos e de uma
cor branco-acinzentada. E, ao estender as mãos, os seus olhos deram com o cão morto,
que jazia à beira da estrada. - Oh! - exclamou ela. Ruthie e Winfield encaminharam-se
vagarosamente para o animal e puseram-se a observá-lo.
O pai chamou-os.
- Venham depressa, senão, ficam aqui mesmo.
As duas crianças voltaram-se lentamente e seguiram em direcção ao caminhão.
Ruthie olhou mais uma vez para os ovos de réptil que tinha na mão e depois deitou-os fora.
Treparam para o caminhão por um dos lados.
138
- Ainda tinha os olhos abertos - disse Ruthie baixinho.
Mas para Winfield aquilo fora uma sensação. Exclamou corajosamente:
- As tripas dele estavam espalhadas por toda a parte... - Calou-se por um instante. Por
toda a parte... - repetiu. Depois, voltou-se rapidamente e pôs-se a vomitar pela borda do
caminhão. Ao acabar, tinha os olhos chorosos e corria-lhe o ranho pelo nariz. - Não é a,
mesma coisa que uma matança de porcos - disse, à maneira de explicação.
Al erguera a tampa do motor do Hudson e verificava o nível do óleo. Trouxe depois
uma lata, que guardava junto do assento da frente, deitou um pouco do óleo escuro e
barato no tubo, verificando de novo, o nível do lubrificante.
Tom veio postar-se junto dele.
- Tu queres que eu guie um bocado? - perguntou.
- Não, ainda não estou cansado - respondeu Al.
- Mas tu não dormiste nada esta noite. Eu, pelo menos, já passei pelas brasas esta
manhã. Vamos, sobe, que eu guio um bocado.
- Bom - disse Al com relutância. - Mas repara sempre no nível do óleo. E convém
não ir muito depressa. E preciso uma cautela danada para se evitar um curto-circuito. Deita
de vez em quando os olhos ao ponteiro. Se ele chegar ao fim, é curto-circuito garantido. E
não se pode correr, porque o caminhão vai muito carregado.
Tom riu.
- Não te incomodes, que eu tenho cuidado. Descansa à tua vontade.
A família ajeitou-se de novo no cimo da carga. A mãe sentou-se na frente, ao lado da
avó.- Tom ocupou o lugar do motorista e o caminhão pôs-se em movimento.
- Está largo que se farta - comentou, ao embraiar.
O caminhão ia rolando na estrada.
O motor roncava com regularidade, e o Sol, em frente do veículo, descia lentamente
para oeste. A avó dormia a bom dormir e até a mãe deixou descair a cabeça e passou pelo
sono. Tom puxou o boné para os olhos, a fim de os preservar do sol fulgurante.
De Paden a Meeker são treze milhas; de Meeker a Harrah, são catorze milhas; depois
vem Oklahoma City - a grande cidade. Tom atravessou-a sem parar. A mãe despertou da
modorra por um instante e lançou um olhar rápido às ruas. E a família, em cima da tralha,
olhava os armazéns, os grandes estabelecimentos e as repartições públicas. Depois,
começaram a surgir edifícios e armazéns mais pequenos. Pátios de depósito de lixo,
barracas de cachorros quentes e cabarés do género dos que se encontram nos arredores das
cidades.
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Ruthie e Winfield viam tudo isso, e tudo isso os embaraçava com a sua grandeza e a
sua estranheza; sentiam-se assustados de ver tanta gente luxuosamente vestida. Não
falavam um ao outro sobre isso. Mais tarde? sim, mais tarde haviam de falar, mas não
naquele momento. Viam os guindastes de óleo da cidade e os dos subúrbios, velhos
guindastes negros, e sentiam o cheiro do óleo e da gasolina, pairando no ar. Mas riem
sentiam coragem de lançar a mais pequena exclamação. Aquilo era tão grandioso e estranho
que os assustava.
Rosa de Sharon viu na rua um homem com um fato claro. Trazia sapatos brancos e
chapéu de palha. Deu uma cotovelada a Connie, apontou o homem com o olhar, e depois
Connie e Rosa de Sharon ficaram rindo baixinho, mas acabaram por não se poderem
conter. Tapavam a boca. E sentiam-se tão satisfeitos que se puseram à procura de outras
pessoas que lhes pudessem despertar a hilaridade. Ruthie e Winfield notaram esses risinhos
e era tão engraçada a maneira como eles riam que procuraram imitá-los mas não o
conseguiram. Não havia maneira. As gargalhadas não vinham. E Rosa de Sharon e Connie
perdiam o fôlego e estavam vermelhos de tanto sufocar o riso. Não conseguiam parar. E o
pior é que bastava olharem. um para o outro para desatarem às gargalhadas.
Os subúrbios espalhavam-se. Tom guiava devagar e com mais cuidado no meio do
tráfego intenso e depois alcançou a estrada 66 - o grande caminho para o Oeste. O Sol
descia mesmo sobre a fita da estrada. O pára-brisas estava coberto de poeira. Tom
empurrou o boné ainda mais para os olhos, e tanto, que só erguendo a cabeça conseguia
ver alguma coisa. A avó tinha adormecido; o sol batia-lhe nas pálpebras; as rugas da face
coloriam-se de cor de vinho e as manchas escuras do rosto tornavam-se ainda mais escuras.
- Agora, não saímos desta estrada até chegarmos - disse Tom.
A mãe, que se mantivera longamente em silêncio, observou:
- É bom procurarmos um lugar para acampar, antes que anoiteça. Tenho de cozinhar
uma porção de carne de porco e de fazer o pão. E isso leva tempo.
- Tem razão - concordou Tom. - Não se pode fazer esta viagem de uma só estirada.
A gente tem de descobrir um lugar para estender as pernas.
De Oklahoma City a Bethany são catorze milhas.
Tom disse:
- Acho bom a gente parar aqui mesmo, antes que o sol desapareça. O Al tem de
preparar o toldo sem falta. O sol dá cabo dos que vão lá em cima. - A mãe que tornara a
cair em modorra, ergueu de novo a cabeça num movimento rápido:
- Tenho de cozinhar o jantar - disse. - Tom: o teu pai falou-me a respeito do teu caso
quanto ao passar a fronteira...
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Tom conservou-se um bocado em silêncio.
- Sim? E, depois, mãe?
- Bem - Confesso que tenho medo. É como se fugisses da prisão. E se te apanham?
Tom alçou a mão sobre os olhos, a fim de os proteger do sol cada vez mais baixo.
- Não se preocupe, mãe - disse. - Eu já pensei nisso. Há muita gente assim como eu,
em liberdade condicional a andar pelo país todo. Cada vez há mais. Se eu for preso por
fazer alguma coisa na Califórnia, isso sim; como têm a minha fotografia e as minhas
impressões digitais em Washington, então prendem-me outra vez. Mas, se eu andar direito,
bem se ralam eles comigo!
- Bem, mas, mesmo assim, tenho medo. Às vezes, a gente faz uma coisa e nem sabe
que Isso é um crime. Talvez na Califórnia, considerem crime coisas de que a gente nem
sabe. Tu podes fazer uma coisa e pensar que não é nada de mau e, no entanto, ser
considerado um crime lá na Califórnia.
- Num caso desses, tanto fazia eu estar em liberdade condicional como não -
retorquiu Tom. - Se me agarrarem, é que vai ser pior do que para os outros. Mas a senhora
não se preocupe. Já nos bastam as preocupações que temos com razão, quanto mais
arranjarmos ainda mais outras.
- Que queres? Não está mais na minha mão. No momento em que passares a
fronteira, cometes um crime.
- Sempre é melhor do que ficar em Sallisaw e acabar por morrer de fome - disse ele. -
Bem, vamos tratar de arranjar um lugar para acampar.
Atravessaram Bethany e continuaram pelo campo fora. Numa vala, onde um canal
passava por baixo da estrada, estava um velho carro de turismo, e, ao lado dele, uma tenda
armada, da qual se escapava um fumozinho originário de um cano de fogão. Tom apontou
nesse sentido.
- Há gente acampada ali. Parece que não encontraremos melhor sítio para descansar.
- Diminuiu a marcha do veículo e encostou à margem da estrada.
O “capot” do velho carro de turismo estava aberto e um homem de meia-idade
debruçava-se sobre o motor. Trazia um chapéu de palha ordinário, envergava camisa azul e
colete preto, muito manchado, e as calças ostentavam o brilho e a rigidez próprios da muita
sujidade. O rosto era magro; as rugas profundas abriam nele verdadeiros sulcos, de maneira
que as faces avultavam exageradamente. Ele ergueu a cabeça e olhou para o camião dos
Joads, com olhos irritados e perplexos.
Tom debruçou-se pela janela do caminhão.
- Escute, amigo, haverá alguma lei que nos proíba de pernoitar aqui? - perguntou.
141
O homem, até aí, só tinha reparado no caminhão. Olhou então para Tom.
- Não sei - respondeu. - Parei aqui porque não pude continuar a viagem.
- Não há água por aqui?
O homem apontou para um posto de serviço com barraca, que podia estar a uma
distância de cerca de meia milha daquele sítio.
- Ali há água; eles deixam tirar um balde dela.
Tom hesitou.
- Então o senhor acha que não faz mal a gente pernoitar aqui, não é verdade?
O homem magro mostrou-se embaraçado:
- Eu não sou o dono disto - disse. - Nós parámos aqui porque o estafermo desta lata
velha resolveu não ir mais para diante.
Tom insistiu:
- De qualquer maneira, quem chegou aqui primeiro foi o senhor. Tem o direito de
dizer se nos aceita como vizinhos ou não.
Esse apelo à hospitalidade surtiu efeito imediato. Um sorriso perpassou pelo rosto
magro.
- Mas decerto. Terei muito prazer. - E chamou: - Sairy, há aqui gente que vem para o
pé de nós. Vem, cumprimenta estes senhores. Sairy não se sente bem - explicou.
A lona da tenda abriu-se e deu passagem a uma senhora de aspecto fanado, rosto
vincado de rugas como uma folha seca e olhos que parecia arderem, uns olhos negros que
se diria terem contemplado um mundo de horrores. Era de pequena estatura e tremia.
Apoiava-se a uma aba da tenda, e a mão que se agarrava à lona parecia a de um esqueleto
coberto de pele apergaminhada.
Ao falar, a voz dela revelou-se de um belo timbre doce e modulado, grave e, no
entanto, de tonalidades límpidas.
- Diz-lhes que são bem-vindos - disse. - Diz-lhes que temos muito prazer em tê-los
connosco.
Tom accionou o motor, desviando o carro da estrada de cimento e veio alinhá-lo no
campo com o carro de turismo. Todos desceram logo do caminhão; Ruthie e Winfield
fizeram-no tão depressa que as pernas se foram abaixo. Puseram-se então a gritar porque
sentiam mil formigueiros nas pernas.
A mãe entregou-se logo à sua tarefa. Tirou do caminhão o balde de três galões e
entregou-o às crianças, que ainda não haviam parado de guinchar.
- Bem; vocês agora vão buscar água ali adiante, vêem? Mas sejam bem educados.
Digam assim: «O senhor dá licença de tirarmos um balde de água?» E depois digam: «Muito
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obrigado.» E peguem ambos no balde e tomem cuidado para não entornarem a água. E, se
acharem lenha no caminho, é bom trazerem também, que é para a gente fazer lume,
ouviram?
As crianças obedeceram e foram batendo com os pés até ao posto de serviço.
Ao pé da tenda instalara-se o embaraço; era como se as relações sociais se tivessem
interrompido antes de verdadeiramente haverem começado. O pai perguntou:
- São de Oklahoma, os senhores?
Al, que estacionara junto do camião, olhou para a placa do automóvel de turismo.
- Kansas - respondeu ele.
- Somos de Galena, isto é, de perto de Galena; chamo-me Wilson. Ivy Wilson -
esclareceu o homem magro.
- Nós chamamo-nos Joad - disse o pai. - Vimos de perto de Sallisaw.
- Muito prazer em conhecê-los - disse Ivy Wilson. - Sairy, estes são os Joads.
- Eu vi logo que não eram de Ok1ahoma. Têm um sotaque engraçado... sem ofensa,
é claro.
- Todas as pessoas pronunciam as palavras de maneira diferente - explicou Ivy. - O
povo de Arkansas fala de uma forma e o de Ok1ahoma de outra maneira. Nós conhecemos
uma senhora de Massachussets e a fala dela é muito diferente. Quase não percebíamos nada
do que ela dizia.
Noah, o tio John e o pregador começaram a descarregar o caminhão. Ajudaram o
avô a descer e fizeram-no sentar no chão; o velho deixou-se ficar apático, a olhar em frente.
- O senhor está doente? - perguntou-lhe Noah.
- Sinto-me mal com o diabo - respondeu o avô, com voz fraca.
Sairy Wilson dirigiu-se a ele, vagarosa e prudentemente.
- O senhor não quer entrar na nossa tenda? - inquiriu ela. - Podia deitar-se um
bocado no nosso colchão e descansar.
Ele encarou-a, atraído pela sua voz suave.
- Venha, não faça cerimónia - disse ela.- O senhor precisa de descansar. Eu ajudo-o.
Repentinamente, o avô desatou a chorar. Tremia-lhe o queixo, bem como os Velhos
lábios contraídos, enquanto deixava escapar roucos soluços. A mãe precipitou-se para ele e
lançou-lhe os braços em volta. Depois, ajudou-o a erguer-se, demonstrando o esforço
despendido nas largas costas retesadas, e levou-o quase pelo ar.
O tio John disse:
- Ele deve estar muito doente. Nunca chorou. Nunca o vi lagrimejar em dias da
minha vida. - Subiu para o camião e atirou um colchão para baixo.
143
A mãe deixou a tenda, indo falar com Casy.
- Sr. Casy, o senhor já tratou de doentes, não tratou? O avô sente-se mal. Não quer
ver o que ele tem?
Casy foi rapidamente até à tenda e entrou. Um colchão de cama de casados estava
estendido no chão, com os cobertores bem esticados. Ao lado, um pequeno fogareiro de
estanho, de pés de ferro, onde o fogo ardia frouxamente. Havia ainda na tenda um balde
cheio de água, um caixote com géneros alimentícios e outro caixote que servia de mesa, e
era tudo. Os raios do sol poente coavam-se, avermelhados, através das paredes da tenda,
Sairy Wilson estava ajoelhada junto do colchão onde o avô se encontrava deitado de costas.
Tinha as faces muito coradas, os olhos abertos e fitava o tecto. Respirava com dificuldade.
Casy tomou-lhe o velho pulso esquelético entre os dedos.
- Cansado, avô? - perguntou.
Os olhos fixos voltaram-se na direcção da voz, mas nada pareciam ver. E os lábios
ensaiaram palavras que não conseguiram pronunciar. Casy escutou a pulsação, deixou o
pulso do doente e passou a palma da mão pela testa do avô. O corpo do velho começou a
contorcer-se; as pernas moviam-se incessantemente; as mãos agitavam-se também. Emitiu
sons confusos, inarticulados, o rosto mantinha-se rubro sob as suíças brancas e ásperas.
Sairy Wilson dirigiu-se suavemente a Casy:
- O senhor sabe do que se trata?
Ele olhou para as faces enrugadas e para os olhos ardentes:
- A senhora sabe?
- Acho que sim.
- Que é? - perguntou Casy.
- Posso-me enganar. Será talvez melhor não dizer.
Casy tornou a olhar as faces rubras e crispadas do velho.
- A senhora acha... Será talvez um ataque?
- Creio que sim - disse Sairy. - Já vi, por três vezes, ataques destes.
De fora, vinha o barulho dos que armavam o acampamento: cortava-se lenha e as
panelas chocavam-se ruidosamente. A mãe enfiou a cabeça pela entrada da tenda.
- A avó quer vir para cá - disse. - Pode vir?
- Acho que sim. Senão, ninguém a segura para aí - disse o pregador.
- E ele está melhor? - perguntou a mãe.
Casy sacudiu a cabeça vagarosamente. A mãe baixou imediatamente o olhar e fixou o
velho rosto convulso. Retirou a cabeça e ouviu-se-lhe a voz, dizendo:
- Está bom, avó. Mas precisa de descansar um pouco.
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E a avó berrou, zangada:
- Mas eu quero vê-lo. Esse velho é sabido como o diabo. A gente nunca sabe o que é
que ele tem... - E entrou intempestivamente na tenda; pôs-se diante do colchão, olhando
para o marido: - Que é que tu tens? - perguntou.
E novamente os olhos do avô se dirigiram para aquela voz e os seus lábios se
contraíram.
- Está amuado - disse a avó.- Eu não disse que ele é um sabido? Hoje, de manhã, fez
a mesma coisa para não vir coma gente. De repente, começou a doer-lhe a anca -
prosseguiu quase com desprezo. - Está a fingir. já lhe conheço a manha; é para não falar
com ninguém.
Casy replicou brandamente:
- Não está amuado, não, avó. Está doente.
- Oh! - Ela olhou novamente para o marido. - Mas... muito doente?
- Sim, bastante doente, avó.
Por um instante, ela hesitou, perplexa:
- Bem - disse depois com rapidez - então porque é que o senhor não reza? O senhor
não é um pregador?
Os dedos fortes de Casy cerraram-se novamente em torno do pulso do avô.
- Eu já disse à senhora que não sou pregador.
- Mas reze de qualquer maneira - ordenou ela. - O senhor sabe todas as rezas de cor.
- Não sei, não - respondeu Casy. - Não sei porque hei-de rezar, nem a quem rezar.
O olhar da avó desprendera-se de Casy para se fixar em Sairy.
- Ele não quer rezar - disse. - Já contei à senhora como a Ruthie rezava quando era
pequenina? Ela dizia: «Nesta cama me quero deitar, para meu corpo descansar. E quando
ele chegou, o armário estava vazio e o pobre do cão ficou sem nada. Amém» Era assim que
ela rezava.
A sombra de alguém que passava entre a tenda e o sol veio projectar-se na lona.
O avô parecia travar uma luta tremenda; todos os músculos se contraíram. E, de
repente, estremeceu, corno se tivesse sido atingido por uma tremenda pancada. Estava
imóvel, agora, e a respiração suspendera-se. Casy debruçou-se sobre a face do velho e viu
que esta escurecia. Sairy tocou no ombro de Casy e sussurrou:
- A língua dele... a língua... olhe a língua...
Casy fez um sinal afirmativo.
- Ponha-se à frente da avó - disse.
145
A seguir, entreabriu as mandíbulas fortemente comprimidas do velho e meteu-lhe a
mão na boca, à procura da língua. E, quando a ia a puxar para fora, um ronco saiu do peito
paralisado, seguido de uma inspiração semelhante a um soluço. Casy achou um pauzinho
no chão e com ele comprimiu a língua do avô para baixo, e a respiração recomeçou,
desordenada e ruidosa.
A avó saltitava como uma galinha.
- Reze! - intimou ela. - Reze, já lhe disse! Reze!
Sairy tentou contê-la.
- Reze já , seu danado de uma figa! - gritou a avó.
Casy olhou-a um momento. A respiração penosa tornava-se mais aguda e desigual.
- Pai Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso nome.
- Glória a Deus! - gritou a avó.
- ...Venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no
Céu.
- Amém.
Um suspiro estridente saiu da boca aberta do velho, seguido de um ronco sibilante.
- O pão nosso de cada dia... nos dai hoje... e perdoai...
A respiração cessou bruscamente. Casy examinou os olhos do avô, que se mostravam
agora claros, profundos e penetrantes, com um reflexo de serena inteligência.
- Aleluia! - disse a avó . - Continue.
- Amém - rematou Casy.
A avó sossegou. E, fora da tenda, todas as vozes emudeceram. Um carro deslizou na
estrada. Casy continuava ajoelhado diante do colchão. Os outros, lá fora, estavam quietos, à
escuta, profundamente atentos aos sons da morte. Sairy agarrou a avó pelo braço e
conduziu-a para fora da tenda, e a avó caminhava com dignidade e com a cabeça alta. Foi
ao encontro da família, e, diante desta, manteve a cabeça bem erguida. Sairy levou-a para
um colchão estendido na relva e sentou-a nele. A avó quedou-se a olhar fixamente diante
de si, inundada de orgulho, pois era agora ela o alvo da atenção de todos. Na tenda, tudo
era silêncio, e, por fim, Casy afastou as abas da tenda com as mãos e saiu também.
O pai perguntou baixinho:
- Como foi?
- Uma apoplexia - disse Casy. - Um ataque fulminante.
A vida recomeçou. O Sol, que tocava a linha do horizonte, perdera o relevo. E pela
estrada passava uma longa fila de camiões, com os lados pintados de vermelho. Avançavam
com estrondo, comunicando à terra ruídos de terremoto em miniatura, e soltando pelos
146
tubos de escape a fumaça azul do óleo Diesel. Um homem ia ao volante da cada camião, e
os respectivos ajudantes achavam-se deitados nas tarimbas, empoleirados junto do
tejadilho. Os veículos não paravam; passavam monótonos, constantemente, de dia e de
noite, fazendo estremecer o chão com a sua pesada marcha.
A família reuniu-se instintivamente. O pai agachou-se no chão, e o tio John
acocorou-se ao lado dele. O pai era agora o chefe da família. A mãe ficou de pé, atrás dele.
Noah, Tom e Al acocoraram-se, e o pregador sentou-se e depois reclinou-se sobre os
cotovelos. Connie e Rosa de Sharon passeavam mais adiante. Ruthie e Winfield, que,
palrando alto, traziam o balde de água a meias, notaram qualquer coisa. Baixaram o tom de
voz, poisaram o balde no chão e foram ajuizadamente postar-se ao lado da mãe.
A avó mantinha-se sentada, com ar solene e orgulhoso, enquanto o grupo se formava
e ninguém olhava para ela. Então, deitou-se e cobriu o rosto com os braços. O Sol
desaparecera, deixando os campos mergulhados num crepúsculo brilhante, de maneira que
os rostos reluziam à luz da tarde e os olhos reflectiam também a irradiação do firmamento.
O fim da tarde juntava toda a luz que conseguia encontrar.
- Foi na tenda do senhor Wilson - esclareceu o pai.
O tio John anuiu:
- Ele emprestou-nos a tenda.
- É uma gente muito boa, muito amiga - disse o pai, em voz baixa.
Wilson estava diante do seu carro desmantelado, e Sairy foi para junto da avó e
sentou-se ao lado dela, no colchão, evitando tocar-lhe.
O pai chamou:
- Ó sr. Wilson!
O homem aproximou-se e também se acocorou no meio do grupo. Sairy levantou-se
do colchão e colocou-se ao lado dele.
- Agradecemos muito a sua ajuda - afirmou o pai.
- Tivemos muito prazer em ajudá-los - respondeu Wilson.
- Estamos-lhe muito gratos - disse o pai.
- Não se fala em gratidão quando alguém morre - observou Wilson.
E Sairy fez coro:
- Nem se pensa em gratidão.
- Nós vamos arranjar o seu carro. Eu e o Tom - atalhou Al.
Al sentia-se orgulhoso por poder pagar a dívida da família.
- Isso não seria mau - disse, Wilson, aceitando a retribuição do favor. O pai disse:
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- Agora temos de pensar no que vamos fazer. Existem leis, não existem? Quando
alguém morre, tem de se dar parte às autoridades. E, quando se faz isso, eles, ou querem
quarenta dólares para o funeral, ou fazem o enterro de graça, como a um indigente.
O tio John interveio:
- Na nossa família, ainda ninguém foi enterrado como indigente.
- Talvez sejamos forçados a começar. Também nunca tínhamos sido expulsos da
nossa terra - disse Tom.
- A gente sempre procedeu como deve ser. - disse o pai. - Venha o primeiro que nos
acuse. Sempre pagámos as coisas que comprámos; não aceitamos a caridade de ninguém.
Quando houve aquela história com o Tom, também pudemos manter a cabeça levantada.
O que ele fez, qualquer homem teria feito.
- Bem, mas que vamos fazer? - perguntou o tio John.
- Se a gente fizer como manda a lei, eles vêm aqui buscar o corpo. A gente só tem
cento e cinquenta dólares. Eles levam quarenta por enterrar o avô e a gente nunca chegará
à Califórnia. A não ser que se enterre o avô como indigente.
Os homens sentiam-se inquietos e olhavam fixamente em frente dos joelhos o chão
cada vez mais escuro.
O pai prosseguiu, baixando a voz:
- O avô enterrou o pai dele com as próprias mãos; fez isso com decência, ajeitando
uma bonita cova com a própria enxada. Naquele tempo, ainda existia o direito de um pai
ser enterrado pelo próprio filho e de um pai enterrar o próprio filho.
- Sim, mas agora a lei já não é assim - disse o tio John.
- Mas, às vezes, a lei não pode ser respeitada - retorquiu o pai. - Pelo menos, não o
pode ser decentemente. Há uma porção de casos em que não pode ser respeitada. Quando
o Floyd fugiu e se tornou perigoso, eles queriam que a gente o entregasse, mas ninguém se
prestou a isso. As vezes, uma pessoa não pode obedecer à lei. Eu digo que tenho o direito
de enterrar o meu próprio pai. Há alguém que ache que não?
O pregador alçou-se sobre os cotovelos.
- As leis mudam - afirmou ele.- Mas, quando há necessidade de se fazer uma coisa,
uma pessoa tem o direito de fazer o que é necessário. Eu acho que tem de se fazer mesmo.
O pai virou-se para o tio John:
- E tu, John? Também estás no teu direito de falar. Não és da mesma opinião?
- Eu acho bem - respondeu o tio John.- O que é, dá-me a impressão de que o
estamos a esconder de noite. E tão contrário à maneira de ser do avô, ele que desatava logo
aos tiros por qualquer coisa!
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O pai disse, envergonhado:
- Nós não podemos fazer o que o avô faria. Temos de chegar à Califórnia antes que
se acabe o dinheiro.
Tom interveio:
- Às vezes, um trabalhador qualquer desenterra um corpo, e então isso dá um sarilho
danado; pensam que a pessoa foi assassinada. O governo interessa-se mais por um morto
que por um vivo. São capazes de ir ao inferno para saber quem era o morto e de que
morreu. Eu acho bom a gente pôr um papel dentro de uma garrafa ao lado do avó,
explicando tudo: quem era, como morreu e por que o enterrámos aqui.
O pai meneou a cabeça, concordando:
- É uma boa ideia, sim senhor. Então tu escreves tudo num papel, mas escreve bem.
Assim nem fica tão sozinho, sabendo que tem lá o seu nome, que não é um velho solitário
debaixo da terra. Têm mais alguma coisa a dizer?
A família manteve-se silenciosa.
O pai virou-se para a mãe:
- Tu queres vesti-lo?
- Quero, sim - disse a mãe.- E quem faz o jantar?
Sairy Wilson acudiu:
- Eu preparo o jantar. Vão, vão à vossa vida. Eu faço o jantar e mais aquela vossa
filha crescida.
- Ficamos-lhe muito gratos - volveu a mãe. - Noah, tu vais buscar um pouco de carne
salgada lá das barricas, ouviste? Acho que o sal ainda não entrou bem, mas a carne, mesmo
assim, deve estar boa.
- Nós temos meio saco de batatas - esclareceu Sairy Wilson.
A mãe pediu:
- Dá-me dois meios dólares.
O pai meteu a mão no bolso, explorou-o e deu à mãe duas moedas de prata. Ela foi
buscar uma bacia, encheu-a de água e levou-a para a tenda. já estava bastante escuro. Sairy
também entrou, acendeu uma vela, colocou-a sobre um caixote e tornou a sair. A mãe
olhou o velho morto. Depois, cheia de piedade, rasgou uma tira do avental e amarrou-lhe
os queixos. Endireitou-lhe a seguir os membros e cruzou-lhe os braços sobre o peito.
Baixou-lhe as pálpebras, poisando uma moeda de prata em cada uma delas. Abotoou-lhe a
camisa e lavou-lhe o rosto.
Sairy olhou para dentro da tenda e perguntou:
- Posso ajudá-la em qualquer coisa?
149
A mãe olhou para cima:
- Entre - disse. - Queria pedir uma coisa à senhora.
- A senhora tem uma filha muito boazinha - disse Sairy. - Está a descascar batatas.
Que posso fazer, para a ajudar a si?
- Queria lavar o corpo todo do avô - disse a mãe - mas ele não tem outra roupa para
vestir. E a sua colcha ficou estragada, claro. O cheiro da morte nunca mais sai das roupas.
Olhe que eu vi um cão rosnar e puxar pelo colchão em que a minha mãe tinha morrido
dois anos antes. Mas nós vamos remediar o caso. Damos-lhe outra colcha.
Sairy respondeu:
- A senhora não deve falar assim. Sabe que nós temos prazer em ajudá-la. Há muito
tempo que eu não me sentia assim... assim em paz. Uma pessoa deve ajudar quem precisa.
A mãe anuiu:
- Está certo - disse ela.- E isso mesmo.- Olhou longamente o velho rosto barbudo,
de queixo amarrado e olhos de prata, brilhando à luz da vela. Não tem um ar natural.
Vamos enrolá-lo na colcha, então.
- Aquela senhora de idade - a esposa dele - não pareceu sentir muito.
- Oh, coitada, é tão velha! - exclamou. a mãe. - Talvez nem avalie bem o que
aconteceu. É capaz de ficar assim muito tempo. Além disso, nós, os Joads, não mostramos
essas coisas. O meu pai costumava dizer: chorar é fácil, mas, para se ser um homem, é
preciso aguentar. E a gente procura sempre não demonstrar o que sente.
Armou cuidadosamente a colcha à volta das pernas e dos ombros do avô. Puxou
uma das extremidades da coberta e dispô-la à maneira de capuz em redor da cabeça,
fazendo-a descair sobre o rosto. Sairy entregou-lhe meia dúzia de alfinetes de segurança e
ela utilizou-os para fechar bem a coberta em torno do corpo. Depois, levantou-se, dizendo:
- Não vai ser um enterro tão ruim como pensávamos. Veio um pregador com a
gente; ele pode dizer qualquer coisa, e a família está quase toda aqui reunida.
Repentinamente cambaleou, e Sairy levantou-se para a consolar.
- É a falta de sono - explicou ela, envergonhada. - Eu estou bem. Sabe, a gente
trabalhou toda a noite para tudo ficar pronto.
- Vamos sair um bocadinho para o ar livre - disse Sairy.
- Sim, vamos. já está tudo pronto.
Sairy apagou a vela e as duas deixaram a tenda.
Uma fogueira ardia no fundo da vala, à margem da estrada. Tom tinha feito, com
estacas e arame, uma armação, de que pendiam duas panelas em que a água borbulhava
furiosamente. De sob as tampas das panelas, escapavam-se rolos vigorosos de vapor
150
branco. Rosa de Sharon estava ajoelhada no chão, um pouco afastada da intensidade do
lume e tinha uma colher na mão. Ela viu a mãe sair da tenda; ergueu-se e foi ao encontro
dela.
- Mãe, preciso de lhe perguntar uma coisa.
- Já estás com medo outra vez? - inquiriu a mãe. - Querias passar os nove meses sem
ter um aborrecimento?
- Mas... isto não vai fazer mal à criança?
- Há um ditado assim: “Quem nascer com amargura, há-de viver com ventura.” Não
é, senhora Wilson?
- Sim, também já ouvi dizer isso - disse Sairy. - E há outro dito assim. “Quem vem ao
mundo com prazer, tem certamente que sofrer.”
- Mas eu estou toda a tremer por dentro! - disse Rosa de Sharon.
- Todos nós estamos - respondeu a mãe.- Bem, agora vai tomar conta das panelas.
Os homens haviam-se agrupado à margem do halo, de luz que rodeava a fogueira.
Como ferramentas, tinham apenas uma pá e uma picareta. O pai demarcou o lugar - oito
pés de comprido por três pés de largura. Revezavam-se no trabalho. O pai rasgava a terra
com a picareta e o tio John jogava-a para o lado com a pá. Depois, Al pegava na picareta e
Tom na pá, e, após, vinham Noah e Connie e assim sucessivamente. E a cova ia ficando
cada vez mais funda, pois eles trabalhavam sempre no mesmo ritmo. As pazadas de terra
voavam do buraco em rápida chuva de torrões. Quando já tinham uma cova rectangular,
que lhes chegava à altura dos ombros, Tom perguntou:
- Mais fundo ainda, pai?
- Tem de ser bastante funda: alguns pés mais. Tu agora sais daí, Tom. Vai escrever o
tal papel.
Tom içou-se para fora da cova e Noah tomou o lugar dele. Tom foi para junto da
mãe, que estava arranjando o lume.
- A senhora tem papel branco e caneta, mãe?
A mãe sacudiu vagarosamente a cabeça:
- Não. Foi coisa que não trouxemos... - Lançou um olhar a Sairy.
A senhora Wilson foi depressa à tenda e voltou com uma bíblia e metade de um
lápis.
- Tome - disse. - Pode tirar a primeira página da bíblia, que está em branco. - E
entregou o livro e o lápis a Tom.
Tom sentou-se junto da fogueira. Enviesou os olhos, piscando-os, num gesto de
concentração mental, e começou a escrever lenta e cuidadosamente, desenhando letras
151
largas e bem traçadas, “Este que aqui jaz é William James Joad, que morreu de um ataque,
já muito velho e que a família enterrou aqui pruque não tinha Dinheiro pró funeral.
Ninguém o matô, é que ele teve um ataque e morreu.”
Parou.
- Ó mãe, ouça lá. - E ele leu vagarosamente o que tinha escrito.
- Acho que soa bem - disse ela. - Mas tu não podias escrever aí alguma coisa da
bíblia, para ser um enterro religioso? Procura um pedaço bonito da bíblia e escreve-o
também no papel.
- Sim, mas não pode ser uma coisa muito comprida, porque não dá. O papel é muito
pequeno.
Sairy interveio:
- Talvez isto: “Deus guarde a sua alma.”
- Não - disse Tom. - Isso soa como se ele tivesse sido enforcado. Deixe, que eu vou
ver se copio um pedaço qualquer da Escritura. - Virou as páginas, leu, movimentando os
lábios e murmurando baixinho. - Aqui está um pedaço bonito e bem curto: “E Lot disselhe:
Oh, não é assim, meu Senhor.”
- Mas isso não quer dizer nada - objectou a mãe. - Uma vez que vais escrever, escreve
qualquer coisa com sentido.
Sairy atalhou:
- Veja nos Salmos, mais adiante. Nos Salmos sempre se encontra alguma coisa.
Tom foi folheando e lendo os versículos.
- Aqui está um - disse.- É bonito e bem religioso. “Bem-aventurados aqueles cujas
iniquidades são perdoadas e cujos pecados são esquecidos”. Que tal?
- Esse sim. É bonito - disse a mãe. - Podes escrever esse.
Tom copiou o trecho cuidadosamente. A mãe enxaguou e limpou um frasco de
compota. Tom pôs nele o papel e atarraxou vigorosamente a tampa.
- Quem sabe? Talvez devesse ter sido o reverendo a escrever isto.
- Não, o reverendo não é nosso parente - opinou a mãe.
Pegou no frasco e entrou com ele na tenda escura. Abriu um dos pontos em que o
lençol se encontrava seguro pelos alfinetes, meteu o frasco entre as mãos frias do morto e
tornou a fechar o lençol. Depois, voltou para junto da fogueira.
Os homens regressavam da cova, comas faces reluzentes de suor.
- Pronto! - exclamou o pai.
152
Foi com John, Noah e Al à tenda, e voltaram, carregando a longa trouxa até à beira
da cova. O pai saltou para dentro, recebeu o fardo nos braços e depositou-o
cuidadosamente no fundo. O tio John estendeu a mão e ajudou o pai a subir novamente.
O pai perguntou:
- E a avó?
- Vou vê-la - respondeu a mãe.
Foi até ao colchão e olhou para a velha por um instante. Depois foi à cova.
- Está a dormir - disse. - Talvez se volte contra mim depois, mas não tenho coragem
de a acordar. Está muito cansada.
O pai fez nova pergunta:
- Onde está o pregador? Ele tem que rezar qualquer coisa.
Tom respondeu:
- Anda aí pela estrada. Mas ele já não gosta de rezar.
- Não gosta de rezar?
- Não - disse Tom. - Ele já não é pregador. E diz que não é justo enganar o povo,
fingindo de pregador, quando já o não é. Aposto que fugiu, para que a gente não pudesse
pedir-lhe para rezar.
Casy, que se aproximara subtilmente, ouvira as últimas palavras de Tom.
- Não fugi, não - disse. - Quero ajudá-los, mas não quero enganar ninguém.
O pai replicou:
- Mas o senhor não podia dizer umas palavras ao menos? Ainda ninguém da nossa
família foi enterrado sem que se dissessem algumas palavras.
- Bem, eu digo - condescendeu o pregador. Connie conduziu Rosa de Sharon para
junto da cova. Ela seguia contra vontade.
- Tu tens de vir - advertiu Connie.- Não é justo que não venhas. É só um bocadinho.
A luz da fogueira caía sobre o grupo, salientando-lhe as faces e os olhos e
reflectindo-se fracamente nas suas Vestes escuras. Todos tiraram os chapéus. A luz bailava,
saltitante, sobre o grupo.
Casy disse:
- Só meia dúzia de palavras. - Baixou a cabeça e os outros seguiram-lhe o exemplo.
Casy continuou com solenidade:
- Este ancião viveu longa vida, ao fim da qual morreu. Não sei se era bondoso ou
mau, nem isso interessa. Ele viveu e isso é o principal. Agora está morto e acabou-se. Uma
vez, ouvi alguém recitar um poema assim: “Tudo o que vive é sagrado.”. Se pensarmos um
pouco nestas palavras, depressa descobrimos que significam muito mais do que, à primeira
153
vista, parece. Não quero rezar por um homem que morreu. Cumpriu o seu destino. Ele está
como deve estar. Tem uma tarefa a cumprir, mas essa tarefa já está talhada para ele e existe
apenas uma maneira de a cumprir. E nós também temos uma missão a cumprir, mas
existem mil maneiras de nos desempenharmos dela, e nós ignoramos a melhor maneira de
a cumprirmos. E, se eu quisesse rezar, rezaria pelas pessoas que não sabem qual o caminho
que devem escolher. O avô já tem o caminho traçado. Portanto, cubram-no e deixem que
ele cumpra a sua missão. - E Casy ergueu a cabeça.
- Amém! - rematou o pai.
E todos os outros murmuraram: “Amém!”
Depois, o pai pegou na pá, encheu-a de terra e lançou-a suavemente na cova negra.
Entregou a pá ao tio John, que, por sua vez, lançou também uma pá de terra. A pá passou
de mão em mão, até que todos os homens tiveram a sua vez. Depois de todos terem
cumprido esse dever, e usado do seu direito, o pai tomou de novo a pá e foi lançando terra
solta, com o que rapidamente encheu a cova. As mulheres voltaram para junto da fogueira,
a fim de preparar a comida. Ruthie e Winfield olhavam para tudo, absortos.
Ruthie disse solenemente:
- O avô agora está lá em baixo.
E Winfield olhou-a com olhos horrorizados. Depois, correu até à fogueira, sentou-se
no chão e pôs-se a soluçar.
O pai tinha enchido a cova até metade. Parou, ofegante de cansaço, e o tio John
encarregou-se de terminar a tarefa. John modelava o monte de terra quando Tom o
interrompeu:
- Escute, tio John - disse Tom. - Se der à terra forma de sepultura, hão-de logo
querer abri-la. É melhor deixá-la plana e depois espalhar-lhe, erva seca por cima. Tem de
ser.
O pai disse então.
- Nem pensei nisso. Mas não, está certo que se deixe uma cova sem ser alteada.
- Não há outro remédio - disse Tom. - Se percebem que é uma cova, desenterram
logo o corpo e então a gente pode passar um mau bocado por não ter cumprido a lei. O
senhor sabe o que me acontece se eu quebrar a lei...
- Sim, esquecia-me disso. - Tirou a pá da mão do tio John e começou a aplanar a
superfície da cova. - No Inverno vai ceder - comentou.
- Que é que se há-de fazer? - perguntou Tom. - No Inverno, já a gente estará bem
longe daqui. Vamos pisar bem a terra e disfarçá-la com erva.
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Uma vez aprontado o prato de carne de porco com batatas, as famílias sentaram-se
em volta da comida, no chão, e começaram a comer. Estavam silenciosos e olhavam para o
fogo. Wilson, que acabava de arrancar uma fatia de carne com os dentes, suspirou e
satisfação.
- É bom a gente comer carne de porco - disse.
- Nós tínhamos dois porcos - esclareceu o pai - e achámos que era melhor comê-los
agora. Davam-nos uma ninharia por eles. Depois, quando nos acostumarmos à viagem e a
mãe puder fazer pão, então, sim, vai ser bom de verdade; admirarmos a paisagem e
sabermos que temos duas barricas de carne de porco na bagagem. Há quanto tempo estão
o senhor e a sua mulher de viagem?
Wilson limpou os dentes com a língua e palitou os resíduos.
- Nós não tivemos sorte. Há três semanas que estamos fora de casa.
- Santo Deus! E nós que queremos estar na Califórnia dentro de dez dias, mais ou
menos!
Al interrompeu-o:
- Não sei, pai. Com este carregamento tão pesado, não vai ser fácil, talvez nem nunca
lá cheguemos. Principalmente se encontrarmos montanhas pela frente.
Calaram-se todos à volta da fogueira. Tinham a cabeça pendida para a frente e
cabelos e testas brilhavam à luz das chamas. Acima da pequena cúpula formada pela
fogueira, as estrelas daquele céu de Verão luziam fracamente. Sobre o colchão, afastada do
lume, a avó choramingava baixo, como um cachorrinho. Todos os olhares convergiram
para ela.
A mãe disse:
- Rosasharn, sê boazinha; vai-te deitar com a avó. Ela precisa de alguém; já sabe tudo.
Rosa de Sharon levantou-se e foi para junto da avó. Deitou-se ao lado dela, no
colchão, e o murmúrio abafado de ambas chegava até à fogueira. Rosa de Sharon e a avó
cochichavam.
- E engraçado! O avô morreu e eu não sinto nada de especial. Não estou mais triste
do que estava - disse Noah.
- É a mesma coisa - comentou Casy. - O avô e o sítio em que ele vivia era tudo uma
só coisa.
Al interveio:
- É uma pena, coitado! Costumava dizer que havia de esmagar as uvas por cima da
cabeça, até que o sumo lhe escorresse pelas barbas.
Casy disse:
155
- Dizia isso, mas de paródia, sem intenção de o fazer. O avô não morreu esta noite,
morreu no instante em que o tirámos de casa.
- O senhor tem a certeza disso? - perguntou o pai.
- Bem, a certeza... É claro que respirava- continuou Casy. - O que eu quero dizer é
que ele já estava praticamente morto. Ele e a quinta faziam um bloco e ele bem o sabia.
- E o senhor sabia que ele ia morrer? - perguntou o tio John.
- Sim - disse Casy - eu sabia.
John encarou-o fixamente e o horror estampou-se-lhe nas faces.
- E o senhor não revelou nada a ninguém?
- Para quê? - volveu Casy.
- A gente... podia ter feito alguma coisa.
- Ter feito o quê?
- Não sei, mas...
- Não - disse Casy - não se poderia fazer nada. O vosso caminho já estava traçado e o
avô não poderia participar dele. Mas não sofreu nada. A não ser quando o movimento
começou esta manhã. Ficou aqui na terra, que era a terra dele. Não teve forças para a
deixar.
O tio John suspirou profundamente.
Wilson disse:
- Nós tivemos de abandonar o meu irmão Will. - Todos se voltaram para ele. -
Tínhamos quarenta acres juntos. Ele é mais velho do que eu. Nenhum de nós sabia guiar
bem. Resolvemos abalar e vender tudo o que possuíamos. Will comprou um carro e o
vendedor deu-lhe um rapazinho para o ensinar a guiar. Então, na tarde em que íamos
partir, um pouco antes da nossa saída, Will e a tia Minnie andavam a praticar no carro. Will,
numa curva, pôs-se a gritar: “Aí-oó!” Recuou de encontro a uma cerca. Gritou de novo:
“Anda, pileca!” Carregou no acelerador e foi malhar no fundo de um barranco. E, pronto!
Ele não tinha mais nada para vender e estava sem carro. Mas a culpa foi dele, Deus
louvado! Ficou tão danado que nem quis rir connosco. Lá ficou, a praguejar contra tudo.
- E agora que vai ser dele?
- Sei lá. Ficou tão aborrecido que se sentiu incapaz de pensar no que iria fazer. E nós
não podíamos esperar. Só tínhamos oitenta e cinco dólares. Não podíamos ficar lá e dividir
o dinheiro, mas, no fim de contas, já gastámos quase tudo. Nem sequer tínhamos feito cem
milhas quando se partiu um dente do diferencial e tivemos de pagar trinta dólares pelo
conserto. Depois, precisámos de comprar um pneu e logo depois estoirou uma vela e Sairy
adoeceu. Tudo isto nos reteve mais de dez dias. E agora este calhambeque avariou-se outra
156
vez e o dinheiro está nas últimas. Nem sei se chegaremos à Califórnia. Se, ao menos, eu
entendesse de carros e pudesse consertar este!
Al perguntou com ar de importância:
- Que é que tem o carro afinal?
- Bem, resolveu não andar mais. O motor pega e pára logo em seguida. Depois, pega
outra vez, mas, antes de se resolver a andar, o motor vai-se abaixo.
- Então ele só pega um minuto, mais ou menos?
- Sim, senhor. E não quer andar mais, por mais gasolina que lhe meta. Está cada vez
pior, e agora nem para trás nem para diante.
Al estava muito compenetrado e senhor de si.
- Isso deve ser o tubo de gasolina entupido. Vou ver se lhe faço uma limpeza.
O pai mostrava-se também muito ufano.
- Ele entende um bocado de automóveis - disse, satisfeito.
- Pois eu ficaria muito agradecido - volveu Wilson. - A gente tem a impressão de que
é uma verdadeira criança por não saber lidar com esta coisa. Quando chegar à Califórnia,
hei-de comprar um bom? automóvel. Talvez esse se não estrague tão depressa.
- Sim, se a gente conseguir chegar à Califórnia - comentou o pai. Chegar lá é que são
elas.
- Sim, mas vale pena - retorquiu Wilson. - Eu vi impressos que diziam que
precisavam lá de muita gente para trabalhar nas colheitas de trutas e que pagavam óptimos
ordenados. Só pensar no que aquilo vai ser: a gente debaixo de árvores de sombra, a
apanhar fruta e a dar uma dentada de quando em quando! Ah - caramba! - nem se
importam com o que a gente come. A fartura é tanta! E, com os bons ordenados, talvez
com o que se venha a economizar, seja possível comprar um pedacinho de terra qualquer.
Sim - caramba! - a gente pode ter um bocadinho de seu.
- Nós também vimos esses impressos - informou o pai. - Até tenho um aqui.
Tirou a bolsa e de dentro dela um impresso cor de laranja, dobrado. Em caracteres
negros, via-se escrito no papel: “Precisa-se de gente para a colheita das ervilhas na
Califórnia. Bons salários durante a estação. Procuram-se oitocentos homens.”
Wilson olhou para o impresso com curiosidade.
- Sim, é igual ao que eu vi, igualzinho. Foi este mesmo que eu vi. O senhor ach...
quem sabe se eles já arranjaram os oitocentos homens?
- Bom, mas isso é só numa pequena parte da Califórnia, que é o segundo Estado -
em tamanho - dos Estados Unidos. Vamos admitir que eles já tenham conseguido os
oitocentos homens; mas isso não quer dizer nada, pois há muitas, muitas outras fazendas
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no Estado. Eu gostava de apanhar frutas. Como diz o senhor, debaixo da sombra das
árvores, a apanhar fruta. Até uma criança gosta de um trabalho assim.
Al levantou-se subitamente e foi até ao carro de turismo dos Wilsons. Examinou-o
por um instante e tornou a voltar ao seu lugar.
- Hoje o senhor não poderá fazer nada - informou Wilson.
- Eu sei. Vou arranjá-lo amanhã de manhã.
Tom olhava pensativo para o irmão mais jovem.
- Estava a pensar uma coisa semelhante, também - disse ele.
- Afinal, de que é que vocês estão a falar? - perguntou Noah.
Tom e Al conservavam-se calados, pois um esperava que o outro respondesse.
- Diz-lhes tu - murmurou Al finalmente.
- Bem, talvez não seja uma coisa acertada, talvez não seja bem o que o Al quer, mas
vou dizer. Aqui está: nós estamos sobrecarregados, mas os senhores Wilsons têm o carro
vazio. Se algumas pessoas da nossa família pudessem viajar com eles a gente podia pôr no
caminhão algumas coisas mais leves deles e assim não corríamos o risco de partir as molas
quando subíssemos as montanhas. Eu e o Al entendemos alguma coisa de automóveis e
faremos um jeito para o carro de turismo andar. No caminho, podemos fazer viagem
sempre juntos e assim é bom para todos.
Wilson ergueu-se num pulo:
- Sim, senhor. Teríamos muito prazer. Eu estou de pleno acordo. Sairy, que é que tu
dizes a isto?
- É uma boa ideia, sim - aprovou Sairy. - Mas não vamos ser pesados aos senhores?
- Não, por amor de Deus, não! - disse o pai. - Pelo contrário, vai ser até um auxílio.
- Bem, não sei, não - murmurou Wilson, desanimado.
- Que foi? Não quer?
- Bem, sabe... só temos trinta dólares e não queremos ser pesados a ninguém.
- O senhor e a senhora não nos vão ser nada pesados - disse a mãe. - Uns ajudam os
outros, e assim vamos chegar todos à Califórnia. A dona Sairy ajudou ao enterro do avô -
concluiu ela.
A amizade estava firmada.
Al gritou:
- No carro vão seis pessoas à vontade. Por exemplo: eu posso guiar e podem vir
comigo a Rosa de Sharon, o Connie e a avó. E a bagagem ligeira, que está no carro, passase
para o camião. Depois a gente pode revezar-se nos lugares. - Falava em voz alta,
excitado, pois que se livrava de uma grande preocupação.
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Os outros sorriam acanhados, olhando o chão. O pai remexia a terra poeirenta com
as pontas dos dedos. Depois, disse:
- A mãe quer uma casinha branca, rodeada de pés de laranjeira. Ela viu um quadro
assim num calendário.
- Se eu adoecer outra vez, vocês não esperem por mim - disse Sairy. - Não quero ser
pesada a ninguém.
A mãe olhou-a com atenção e, pela primeira vez, pareceu reparar nos olhos alagados
de sofrimento, no rosto de criatura perseguida, crispado pela dor.
- Tudo se há-de arranjar. Não foi a senhora mesma quem disse que se deve ajudar
aqueles que estão em dificuldades?
Sairy examinava as mãos enrugadas à luz da fogueira.
- Bem, temos de ir dormir esta noite.- E dizendo isto, levantou-se.
- O avô... até parece que já morreu há um ano - disse a mãe.
As duas famílias preparavam-se lentamente para dormir, bocejando vigorosamente. A
mãe foi ainda remexer nos pratos de estanho e limpou-lhes a gordura com um pano de
linhagem. A fogueira extinguia-se e as estrelas iam descendo no horizonte. Pela estrada
quase não passavam carros de passageiros, mas os pesados caminhões faziam, de quando
em quando, estremecer a faixa de cimento, provocando verdadeiros terramotos em
miniatura. Os dois veículos que estacionavam na vala mal se viam à luz das estrelas. Um
cão amarrado uivava lugubremente no pátio do posto de gasolina, ao fundo da rua. Ambas
as famílias se haviam já aquietado e dormiam, e os ratos do campo tomaram coragem para
deslizar entre os colchões. Apenas Sairy Wilson estava acordada. Contemplava o céu,
retesando-se toda, numa resistência à dor.
159
Capítulo XIV
Inquietavam-se as terras do Oeste sob os efeitos da metamorfose incipiente. Os
Estados ocidentais sentiam-se inquietos como os cavalos antes da trovoada. Os grandes
proprietários inquietavam-se, pressentindo a metamorfose, sem atinarem, no entanto, com
a sua natureza. Os grandes proprietários atacavam o que lhes ficava mais próximo: o
governo de poder crescente, a unidade trabalhista cada vez mais firme; atacavam os novos
impostos e os novos planos, ignorando que todas essas coisas são efeitos e não causas. As
causas escondiam-se bem no fundo e eram simples as causas eram a fome, a barriga vazia,
multiplicada milhões de vezes, fome na alma, fome de um pouco de prazer e de um pouco
de tranquilidade, multiplicada milhões de vezes; músculos e cérebros que ansiavam por
crescer, trabalhar, criar, multiplicados milhões de vezes. A última função clara e definida do
homem - músculos que querem trabalhar, cérebros que querem criar para além das simples
necessidades - isto é o homem. Construir um muro, construir uma casa, um dique, e pôr
nesse muro, nessa casa, nesse dique algo do próprio homem, é retirar para o homem algo
desse muro, dessa casa, desse dique. Obter músculos forte,, à força. de os mover, obter
linhas e formas elegantes pela concepção. Porque o homem, ao contrário de qualquer coisa
orgânica ou inorgânica do universo, cresce para além do seu trabalho, galga os degraus das
suas próprias ideias, emerge acima das próprias realizações. E isto o que se pode dizer a
respeito do homem. Quando as teorias mudam e caem por terra, quando as escolas
filosóficas, quando os caminhos estreitos e obscuros das concepções nacionais, religiosas,
económicas, se alargam e se desintegram, o homem arrasta-se para diante, sempre para a
frente, muitas vezes cheio de dores, muitas vezes pelo caminho errado. Tendo dado um
passo à frente, pode voltar atrás, mas apenas meio passo, nunca o passo todo que já deu.
Isto é o que se pode dizer do homem: dizer-se e saber-se. Isto verifica-se quando as
bombas caem dos aviões negros sobre a praça do mercado, quando os prisioneiros são
tratados como porcos imundos e os corpos esmagados se esvaziam imundos, na poeira.
Pode verificar-se deste modo. Não tivesse sido esse passo, não estivesse vivo no
pensamento o desejo de avançar sempre, essas bombas jamais cairiam e nenhum pescoço
teria nunca sido cortado. Receiem-se os tempos em que as bombas não caiam enquanto
existam os bombardeiros, pois que cada bomba é uma demonstração de que o espírito
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ainda não morreu. E receiem-se os tempos em que as greves cessem, enquanto os grandes
proprietários viverem ainda, pois cada greve vencida é uma prova de que se está dando um
passo. E isto pode saber-se - receiem a hora em que o homem não queira sofrer mais e
morrer por um ideal, pois que esta é a qualidade base da Humanidade, é o que a distingue
entre todas as coisas do Universo.
Os Estados ocidentais inquietavam-se sob os efeitos da metamorfose incipiente,
Texas e Oklahoma, Kansas e Arkansas, Novo México, Arizona, Califórnia. Uma família
isolada mudava de terra. O pai pedira dinheiro emprestado ao banco e agora o banco
queria as terras. A Companhia das Terras - é o banco quando ela possui terras - quer
tractores em vez de pequenas famílias nas terras. Um tractor é mau? A força que grava os
profundos sulcos na terra é uma força errada? Se esse tractor fosse nosso - não meu, nosso
- prestaria. Se esse tractor produzisse os sulcos na nossa própria terra, certamente estaria
certo. Não nas minhas terras; nas nossas. Então, sim, a gente gostaria do tractor, como
gostava das terras quando ainda eram nossas. Mas esse tractor faz duas coisas diferentes:
revolve as terras e expulsa-nos delas, Não há quase diferença entre esse tractor e um tank.
Ambos expulsam os homens que lhes barram o caminho, intimidando-os, ferindo-os. Há
que reflectir sobre isto.
Um homem, uma família expulsos das suas terras, esse veículo enferrujado
arrastando-se, rangendo pela estrada, rumo ao Oeste. Eu perdi as minhas terras; um tractor,
um só, roubou-mas. Estou sozinho e desnorteado. E uma família pernoita numa vala e
outra família chega e as tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão sobre os
calcanhares e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aqui está o nó, ó tu, que
odeias as mudanças e temes as revoluções. Mantém esses dois homens afastados, faz com
que eles se odeiem, se receiem, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu
receias. Aí é que está o germe do que te apavora. E o zigoto. Porque aí transforma-se o “eu
perdi as minhas terras” rompe-se uma célula e dessa célula rota brota aquilo que tu tanto
odeias: o “nós perdemos as nossas terras”. Aí é que reside o perigo, pois que dois homens
nunca se sentem tão sozinhos e tão abatidos como um só. E desse primeiro “nós” nasce
algo muito mais perigoso: “eu tenho algum pão” mais “eu não tenho nenhum.” E o
resultado desta soma é: “ Nós temos alguma coisa”. Então, a coisa toma um rumo; o
movimento passa a ter um objectivo. Basta, nessa altura, uma pequena multiplicação e esse
tractor, essas terras são nossas. Os dois homens acocorados numa vala, a pequena fogueira,
a carne a fritar numa frigideira comum, as mulheres caladas, de olhos fixos; atrás, as
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crianças escutando com o coração palavras que o seu cérebro não alcança. A noite desce. A
criança constipa-se. Olhe, tome esse cobertor. É de lã. Pertenceu a minha mãe. Tome, fique
com ele para a criança. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo da
passagem do “eu” para o “nós”.
Se tu, que tens tudo o que os outros precisam ter, puderes compreender isto, saberás
também defender-te. Se tu souberes separar causas de efeitos, se souberes que Paine, Marx,
Jefferson, Lenine, foram efeitos e não causas, sobreviverás. Mas isso é que tu não podes
compreender, pois que a qualidade da posse te cristalizou para sempre na fórmula do “eu”
e para sempre te há-de isolar do “nós”.
Os Estados ocidentais inquietam-se sob os efeitos da metamorfose incipiente. A
necessidade é um estimulante da concepção; a concepção, o estímulo para a acção. Meio
milhão de homens caminha pelas estradas; um milhão mais se prepara para a caminhada;
dez milhões mais sentem as primeiras impaciências.
E os tractores abrem sulcos e sulcos nas terras abandonadas.
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Capítulo XV
Ao longo da estrada 66, restaurantes improvisados. “Casa de Al e Susy” – “Carlos-
Refeições ligeiras” – “Will - Comes e Bebes” - “Joe e Minnie”. Barracas mal-amanhadas, de
madeira. Duas bombas de gasolina em frente, um guarda-vento, um balcão comprido,
tamboretes altos e um tubo de ponta a ponta, em baixo, para descansar os pés. Próximo da
porta, três caça-moedas, cujos mostradores deixam ver a porção de moedas que qualquer
poderá ganhar. E, ao lado deles, o gramofone de metal, com discos empilhados como
grandes bolachas, prontos a deslizarem para o prato giratório e a executarem músicas de
dança: “Ti-pi-ti-pi-tin”, “Obrigado pela lembrança”, Bing Crosby, Benny Goodman. Numa
das extremidades do balcão, uma redoma de vidro: rebuçados para a tosse, sulfato de
cafeína para espantar o sono, bombons, cigarros, lâminas de barba, aspirina, “Bromo-
Seltzer, Alka-Seltzer”. Paredes decoradas com cartazes coloridos, representando banhistas
loiras, de grandes seios, ancas estreitas e faces de cera, vestindo fatos de banho brancos,
segurando na mão garrafinhas de “Coca- Cola” e sorrindo: “Veja o que se consegue com
“Coca- Cola”. Balcão comprido, saleiros, pimenteiros, potes de mostarda e guardanapos de
papel. Atrás do balcão, barris de cerveja e, ao fundo, as máquinas, de fazer café, reluzentes
e fumegantes, com os tubos de vidro mostrando o nível do líquido existente. E doces, em
caixas de rede e laranjas em pirâmides de quatro cada uma. E pequenas pilhas de bolos
secos e latas de flocos de milho, dispostas de modo a formarem desenhos variados. E,
forrados de mica reluzente, letreiros como estes: “Empadas à moda da minha mãe”. “O
crédito cria inimizades. Seja nosso amigo”. “As senhoras podem fumar, mas cautela com as
pontas de cigarro!” “Poupe trabalho a sua esposa e tome uma bebida com ela”.
Noutra extremidade, na placa de aquecimento, os artigos de cozinha: panelas,
caçarolas de guisado, batatas, carne assada e rosbife de carne de porco, para ser vendido às
fatias.
Minnie, ou Susy ou Mae, geralmente uma mulher de meia idade, atrás do balcão, de
cabelos ondulados, rouge e pó de arroz no rosto suado. Recebe as ordens, falando em voz
baixa e suave, e transmite-as à cozinha com a voz estridente do pavão. Limpa o balcão,
descrevendo movimentos circulares, e areia cuidadosamente as reluzentes máquinas de
café. O cozinheiro chama-se Joe, ou Carl ou Al; encalmado no seu casaco e avental branco
163
e sob o boné também branco, goteja-lhe o suor em bagas na fronte. É sorumbático, pouco
conversador e lança tini olhar rápido à porta cada vez que entra um novo freguês. Enxuga a
frigideira, mete nela outro hamburguês, confirma em voz baixa os pedidos transmitidos por
Mae, torna a raspar a frigideira, limpa-a com um pedaço de serapilheira. Sorumbático e
silencioso.
Mae estabelece o contacto, sorridente mas irritada, prestes a explodir; sorrindo,
sobretudo quando os seus olhos, voltando do passado, avistam motoristas de caminhões.
São eles a espinha-dorsal do estabelecimento. Onde os caminhões param é onde chegam os
fregueses. Não se pode tratar mal um motorista de caminhão, já se sabe. Os caminhões
trazem os fregueses. já se sabe. Dêem-lhe uma chávena de café a saber a bafio e somem-se
para sempre. Tratem-nos bem e eles voltarão. Mae sorri com o seu mais irresistível sorriso
para os motoristas. Empertiga-se um pouco, ajeita os cabelos pretos da nuca, de maneira
que, com os movimentos dos braços, os seios subam; fala-lhes sobre o tempo, conta-lhes
coisas interessantes que cheirem a pândega e lança boas piadas. Al nunca fala. Ele não
existe para o público. Às vezes, sorri ligeiramente, ao ouvir alguma boa piada, mas nunca ri
alto. Outras vezes, ergue a cabeça, ao captar a tonalidade viva da voz de Mae, e depois
raspa a frigideira com uma espátula, retira a gordura, que cerca a frigideira nas bordas, para
dentro de uma vasilha de ferro. Comprime o hamburguês que assobia na banha. Coloca o
pão cortado em dois sobre a chapa, para o aquecer e torrar. Reúne as cebolas espalhadas no
prato e amontoa-as sobre a carne, fazendo-as penetrar com a espátula. Põe metade do pão
sobre a carne, besunta a outra metade com manteiga derretida e tiras finas de pickles.
Segurando com uma mão o pão que põe sobre a carne, mete a espátula por debaixo
daquela, vira-a e coloca por cima a metade do pão amanteigado e põe o hamburguês
pronto sobre um pires, colocando-lhe, ao lado, um pedaço de pickles aromatizado com
funcho e duas azeitonas pretas. E atira com o prato pelo balcão fora, como se fosse uma
malha. E continua a raspar, mal-humorado, a frigideira com uma faca.
Carros deslizam pela estrada 66. Placas de licença: Mass, Tenn. R. L. Ohio. Todos
para o Oeste. Bons carros, correndo a cem à hora.
Aí vai um desses “Cords”. Parece um caixão de rodas.
Mas, Santo Deus, como essa gente viaja!
Vê esse “La Salle”? É o que eu gostaria de ter. Não sou muito exigente. Contento-me
com um “La Salle”.
Já agora, porque não deseja um “Cadillac”? Ainda é mais rápido.
Cá por mim, queria um “Zephir”. Não vale nenhuma fortuna, mas tem categoria e
corre bem. Cá para mim, um “Zephir”.
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Bem, pois eu - já sei que se vai rir de mim - eu contentava-me com um “Buick-
Puick”. Para mim, seria o bastante.
Ora bolas! Esse custa tanto como um “Zephir” e não é tão resistente.
Não me interessa. Não quero ter negócios com Henry Ford. Não gosto do tipo, nem
nunca gostei dele. Um irmão meu andou a trabalhar lá na fábrica. Só queria que ouvisse o
que ele me contava!
Sim, mas um “Zephir” não é nada mau.
Os grandes carros correm na estrada. Senhoras encalmadas, lânguidas, pequenos
núcleos, à volta das quais gravitam milhares de acessórios: cremes, pomadas para se
engordurarem, tintas em vidrinhos: pretas, cor-de-rosa, encarnadas,? brancas, verdes,
prateadas, para a pintura dos cabelos, dos olhos, dos lábios, das unhas, das sobrancelhas,
pestanas e pálpebras. Óleos, sementes e pílulas para a prisão de ventre. Um saco cheio de
vidrinhos, seringas, pílulas, pós, líquidos e gelatinas para tornar as relações sexuais seguras,
inodoras e estéreis. Isto sem falar nos vestidos. Uma porcaria dos diabos!
Linhas de fadiga em torno dos olhos, linhas de descontentamento em torno dos
lábios, seios pesando nos pequenos soutiens, ventre e ancas apertados em cintas de
borracha. E bocas ofegantes e olhos imprecando contra o sol, o vento e a poeira,
queixando-se da comida e do cansaço, odiando o tempo, que raramente as torna mais belas
e sempre as envelhece.
Ao lado delas, homenzinhos de ventre em forma de pipa, trajando roupas claras e
chapéus Panamá; muito limpos, rosados, com os olhos inquietos, revelando preocupação e
embaraço. Preocupação, porque os seus cálculos não dão certos, sequiosos de segurança e,
ao mesmo tempo, sentindo que a segurança é coisa que vai desaparecendo da face da terra.
Nos carros, as placas e os rótulos de hotéis e service clubs, lugares onde eles vão para verem
os outros homenzinhos preocupados e se certificarem que o comércio é uma coisa nobre e
não aquela ladroeira comicamente ritualizada que eles, no fundo, reconhecem, e que os
comerciantes são homens inteligentes, mau grado os seus records de estupidez, e que eles
são bondosos e caritativos, apesar dos princípios do são comércio e que as 'suas vidas são
cheias de interesse e não a repetição daquela fatigante rotina que eles bem conhecem, e que
chegará o dia em que não precisarão ele continuar a ter medo.
E esses dois seguem para a Califórnia; vão para lá, a fim de se sentarem no hall do
Beverley-Wilshire Hotel, a olhar os que passam e que eles invejam, a olhar as montanhas -
montanhas, imaginem e grandes árvores! - ele, com olhos cheios de preocupações e ela,
pensando em como o sol vai ressequir-lhe a cútis. Vão ver o Oceano Pacífico, e eu aposto
cem mil dólares contra nada, em como ela dirá: “Olha, não é tão grande como eu pensava!”
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E ela terá inveja dos corpos jovens e frescos que se revolvem na areia das praias. Eles vão à
Califórnia, para poderem regressar da Califórnia, e para poderem dizer: “Fulano e Cicrano
estiveram sentados ao lado da nossa mesa no Trocadero. Ela não presta para nada, mas
veste-se admiravelmente”. E ele: “Encontrei por lá uns negociantes graúdos. Eles dizem
que as coisas só melhorarão quando a gente se livrar daquele tipo que ainda está na Casa
branca.” E: “Houve uma pessoa que me disse, pessoa bem informada, que ela tem sífilis -
sabe? Aquela que entrou naquele filme da Warner. E disse-me que ela conseguiu triunfar
no cinema à custa dos homens que tem tido. Enfim, teve o que merecia.” Mas os olhos
preocupados não acham paz e a boca mal-humorada nunca se abre num sorriso. O carro
enorme e luxuoso passa a cem à hora.
- Quero uma bebida gelada.
- Pois, não! Ali adiante há um bar. Queres que eu pare?
- Achas que será um sítio limpo e decente?
- Acho que sim; pelo menos o mais limpo que se pode encontrar nestas paragens que
até Deus esqueceu.
- Bem, a soda engarrafada deve ser suportável!
Os freios rangem e o carro pára. O homenzinho gordo e de olhos preocupados ajuda
a mulher a descer.
Mae vê-os entrar e desvia os olhos. Al lança-lhes um olhar fugidio de entre as suas
frigideiras e torna a baixar a cabeça. Mae já sabe. Eles vão pedir uma soda que custa cinco
cents e reclamar que não está bem gelada. A mulher vai estragar seis guardanapos de papel e
atirá-los ao chão. O homem vai engasgar-se e responsabilizar Mae por isso. A mulher vai
torcer o nariz, como se sentisse cheiro de carne podre, e depois, vão-se os dois embora e
contam por toda a parte como aquela gente do Oeste é malcriada. E Mae, quando fica
sozinha com o Al, tem uma classificação para as pessoas assim: “São uns bardamerdas.”
Os motoristas de caminhões, esses sim!
Aí vem um grande caminhão. Espero que pare, para dissipar o cheiro que esses
bardamerdas aqui deixaram. Quando eu trabalhava naquele hotel de Albuquerque, Al, só
queria que visses o jeito que têm para roubar! Furtam tudo o que lhes cai nas mãos. E,
quanto maior e mais potente é o carro deles, mais eles roubam: toalhas, talheres e
saboneteiras. Tu nem sequer és capaz de fazer uma ideia!
E Al, com aspereza:
- Que é que pensas, então? De que maneira arranjam esses carros assim tão grandes?
Nasceram com eles? Tu é que nunca terás nenhum.
A gente do caminhão - um motorista e o ajudante.
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- Que tal, se a gente parasse para tomar um cafezinho? Eu já conheço aquela tasca.
- E o nosso horário?
- Ora! Estamos adiantados...
- Bem, então vamos a isso. Há lá uma mulher que ainda é bem boa! E o café é de
estalo!
O caminhão pára. Dois homens de calças de montar, de caqui, botas e casacos curtos
e bonés militares de pala brilhante. O guarda-vento bate com estrondo.
- Olá, Mae! Bill?
- Olhem! É o grande Bill, o Ratazana! Quando voltaste, Bill?
- Há uma semana. - O outro homem mete uma moeda no gramofone, fica a ver o
disco soltar-se e o disco giratório mover-se debaixo dele, para o prato, que começa a girar.
A voz de ouro de Bing Crosby “Thanks for the memory” - Obrigado pela lembrança de um
banho de sol na praia”. E o motorista canta em voz alta para que Mae o ouça: “You might
have been a haddock but you never was a whore” (“Podes ter sido insuportável; mas nunca aborrecida, eis o
que diz a canção. O motorista fez a seguinte paródia: Podes ler sido um arenque mas nunca uma
pescada...”), parodiando a letra da conhecida canção, que é: “You might have been a headache, but
you never were a bore”.
Mae ri.
- Quem é este teu amigo, Bill? Vem contigo pela primeira vez, hein?
O outro enfia uma moeda no “caça-moedas”, ganha quatro fichas e mete-as todas na
máquina outra vez. Vai ao balcão.
- Então que é que vai ser?
- Cafèzinhos. Que bolos tem aí?
- De creme de banana, creme de ananás, creme de chocolate e de maçã.
- De maçã... é bom. Espera... Que é isso aí, tão grande?
Mae levanta o bolo e cheira. Creme de banana.
- Corta um pedaço, mas um pedaço bem grande.
O outro, junto do caça-moedas, diz:
- Dois!
- Dois, então. Alguma anedota nova, Bill?
- Tenho sim, escuta lá.
- Cuidado, que estás a falar com uma senhora, Bill.
- Não há perigo. Esta é até bem inocente. Um miúdo chega atrasado à escola. O
professor pergunta: “Porque chegaste tão tarde?” O garoto responde: “Tive de ir buscar
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uma vaca... para cruzar”. E o professor: “Olha lá, o teu pai não podia fazer isso?”
Responde o miúdo: “Podia, sim, mas não tão bem como o touro.”
Mae quase rebenta a rir, num riso agudo e estridente, e Al, que, com ar preocupado,
corta cebolas em cima de uma tábua, ergue a cabeça, sorri e torna a baixar a cabeça sobre as
cebolas. Motoristas de camião, esses sim! São bons de verdade. Largam, pelo menos, um
quarto de dólar cada um. Quinze cents por um café e um bolo e dez cents para Mae. E não
exigem nada dela.
Sentados bem juntos nos altos tamboretes, com as compridas colheres nas canecas
do café. Estão a passar o tempo. E Al, que enxuga a sua frigideira, escuta tudo, mas não faz
comentários. A voz de Bing Crosby já não se ouve. O prato do gramofone pára e o disco
escorrega automaticamente para o seu lugar na pilha. A luz vermelha apaga-se. A moeda
que pôs em movimento todo aquele mecanismo, que fez com que se ouvisse a voz de Bing
Crosby, acompanhada de orquestra, passa entre os pontos de contacto e cai na caixa, onde
se arrecadam os lucros. Essa moeda, ao contrário dos outros dinheiros, provocou uma
actividade, tornou-se fisicamente responsável de uma reacção.
Jactos de vapor irrompem da válvula da máquina de fazer café. O compressor da
geleira zune brandamente por algum tempo e depois emudece. A ventoinha eléctrica, a um
canto, abana lentamente a cabeça para um e outro lado, distribuindo um vento morno pelo
salão. Na estrada-a estrada 66-deslizam carros e mais carros.
- Há bocadinho estava ali parado um carro de Massachussets - diz Mae.
Bill, o Ratazana, agarra na xícara pela parte de cima, de maneira que a colher lhe fica
entre o polegar e o indicador. Sopra o café, para o esfriar um pouco.
- Queria que tu visses, aí, na estrada. E, um nunca acabar de carros. De todos os
Estados. E vão todos para o Oeste. Nunca vi tantos em dias da minha vida. Devem levar
pequenas boas à farta.
- A gente viu um desastre hoje de manhã - diz o companheiro. - Era um carro
formidável - um Cadillac. Uma carrosserie estupenda: baixinha, cor-de-creme, coisa especial.
Esbarrou com um caminhão. O radiador amolgou-se de encontro ao tipo que guiava o
carro. O volante furou a barriga do homem e deixou-o, a espernear como uma rã espetada
num anzol. Ia, pelo menos, a cento e cinquenta à hora. Um carro que era uma beleza!
Agora não vale um amendoim. O sujeito ia sozinho no carro.
Al levantou a cabeça:
- E o camião, que é que lhe aconteceu?
- Livra! Aquilo nem era bem um caminhão; era uma dessas geringonças feitas para
uma viagem. Um carro velho, cheio de passageiros, transformado em camião de carga. Ia
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cheio de panelas e colchões, crianças e galinhas. Ia para o Oeste, sabes? Bom, o sujeito
vinha a cento e cinquenta à hora, quis ultrapassar-nos; foi nessa altura que viu o outro carro
a aproximar-se; deu uma volta ao volante e foi de encontro ao tal carro. O tipo que guiava,
parecia que estava bêbedo. Deus do Céu! - Foi um voar de galinhas, por todos os lados, de
colchões a rebentar e de crianças a gritar. Um dos miúdos morreu logo. Nunca vi um
inferno assim. A gente parou. O velho que guiava o camião ficou parado, a olhar para a
criança morta. Não se lhe arrancava nem uma palavra. Ficou que nem surdo-mudo. Pois é
isto. A estrada está toda cheia de famílias assim. Vão todas para o Oeste. A coisa está a
tornar-se cada vez pior. Só queria era saber de onde vem toda esta gente.
- E eu gostava de saber para onde é que eles vão - disse Mae. - Às vezes, param, aqui
por causa da gasolina, mas raramente compram qualquer outra coisa. O pessoal diz que eles
gostam de roubar. Mas a gente não deixa nada à mão; por isso daqui nunca levaram nada.
Bill, mastigando o pedaço de bolo, lançou um olhar para a estrada através do guardavento.
- É melhor preparares-te. Acho que vem ali gente.
Um “Nash” 1926 aproximou-se vagarosamente, parando à margem da estrada. No
assento traseiro vinham empilhados, quase até ao tecto, sacos, panelas, frigideiras e sobre
toda aquela pilha sentavam-se dois meninos. Sobre o tejadilho do carro via-se um colchão e
uma lona de tenda enrolada; os paus da barraca vinham fortemente amarrados aos estribos.
O carro parou junto às bombas de gasolina. Um homem de cabelos escuros e rosto
anguloso saltou com negligência. E os dois meninos escorregaram da pilha e saltaram
também do carro.
Mae contornou o balcão e foi até à porta. O homem trajava calças cinzentas de lã e
uma camisa azul, que, sob as axilas e nas costas, escurecera devido ao suor. Os meninos
vestiam macacos e nada mais; macacos remendados e esfarrapados. Tinham cabelos louros
que se lhes eriçavam no cocuruto, porque lhos haviam cortado muito rentes. Os rostos
estavam cheios de poeira. Correram direitos à poça de água suja sob a bica e enterraram os
pés na lama.
O homem perguntou:
- Podemos tirar um pouco de água, menina?
Uma sombra de aborrecimento passou pelas faces de Mae:
- Pois não; pode tirar. - E, por cima dos ombros, disse para trás:- Eu fico a ver.
Ficou vigiando os movimentos do homem, que, vagarosamente, desaparafusou a
tampa do radiador e enfiou nele a ponta da mangueira.
Uma mulher, dentro do carro, uma mulher de cabelos cor de linho, disse:
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- Vê se consegues arranjar aquilo!
O homem fechou a torneira de água, retirou a ponta da mangueira do radiador e
aparafusou de novo a tampa. Os dois meninos pegaram na mangueira, tornaram a abrir a
torneira e beberam água com sofreguidão. O homem tirou o chapéu escuro, manchado, e
quedou-se numa postura humilde diante do guarda-vento:
- A senhora poderia vender-nos um pouco de pão? - perguntou.
- Isto aqui não é padaria - disse Mae.- O pão que temos é para fazer sanduíches.
- Eu sei, menina.- A sua humildade tornava-se insistente. - Mas a gente precisa de
comer e por aqui não se encontra pão em parte nenhuma.
- Se a gente vender o pão, depois faz-nos falta.- Mae estava vacilante.
- Temos fome, menina - tornou o homem.
- Porque não compra uma sanduíche? Temos boas sanduíches hamburguesas.
- Seria bom se a gente pudesse, mas, com dez cents, temos de matar a fome a todos
nós. - E acrescentou, embaraçado: - Estamos bem mal de dinheiro.
Mae disse:
- Mas, por dez cents, o senhor não pode comprar pão aqui. Nós só temos pães de
quinze cents.
Atrás dela, Al grunhiu:
- Pelo amor de Deus, Mae, deixa-te disso; dá-lhes o pão.
- Mas vai fazer-nos falta, até que chegue o carro do pão.
- Pois que faça falta, caramba! - E ele tornou a baixar os olhos para a salada de
batatas que estava a preparar.
Mae deu aos ombros roliços e lançou um olhar aos homens do caminhão, para
mostrar que era contra aquele parecer.
Abriu o guarda-vento e o homem entrou, trazendo consigo um cheiro de suor. Os
meninos seguiram atrás dele e trataram logo de correr ao armário de vidro, onde estavam
os doces e ficaram-se a fitá-lo, não com olhares de desejo ou mesmo de esperança, mas
apenas de admiração de que existissem coisas assim. Um deles coçou o tornozelo carregado
de poeira com as unhas dos dedos do outro pé. O outro murmurava-lhe qualquer coisa ao
ouvido e ambos estenderam os braços, de maneira que os, punhos cerrados se desenhavam,
dentro dos bolsos, através do leve pano azul dos macacos.
Mae abriu uma gaveta e tirou um pão comprido, embrulhado em papel encerado.
- Custa quinze cents este pão.
O homem pôs de novo o chapéu na cabeça. A sua voz mantinha o mesmo tom de
inalterável humildade:
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- A senhora... a senhora não podia cortar um pedaço que custasse só dez cents?
Al disse, com um rosnido:
- Que diabo, Mae, não te disse já que lhe desses esse pão?
O homem virou-se para Al:
- Não, senhor, isso não. Nós queremos comprar... mas só dez cents de pão. Senão, o
dinheiro acaba antes de a gente chegar à Califórnia.
Mae disse, resignada:
- Tome, leve lá o pão por dez cents.
- Não, isso seria roubar a senhora.
- Deixe-se disso... pode levar o pão; o Al mandou. - E empurrou o pão pelo balcão
fora.
O homem puxou de uma funda bolsa de couro do bolso traseiro, desatou-lhe os
cordões e abriu-a. Estava cheia de moedas de prata e de notas ensebadas.
- Pode parecer esquisito que a gente tenha de fazer contas tão apertadas - desculpouse
- mas a viagem é muito longa e a gente nem sabe se, mesmo assim, o dinheiro vai chegar
até ao fim.
Mergulhou o dedo indicador na bolsa, tacteou uma moeda de dez cents e tirou-a. Ao
depô-la no balcão, notou que junto à moeda, vinha uma outra agarrada, de um penny. Ia
para repor o penny na bolsa quando os seus olhos caíram sobre os dois meninos
imobilizados de êxtase, na contemplação dos doces. Dirigiu-se lentamente para eles.
Apontou para uns pauzinhos compridos, às riscas, de hortelã-pimenta.
- Um penny dá para comprar um pauzinho destes, menina? - perguntou.
Mae aproximou-se e olhou:
- Qual deles?
- Esses aí, esses às riscas.
Os meninos levantaram os olhos para ela e fixaram-na com a respiração suspensa.
Tinham os lábios entreabertos e os corpos em grande tensão.
- Ah, esses? Esses são dois por um penny.
- Ah, sim? Então dê-me dois, menina.
Ele colocou o penny de cobre cuidadosamente no balcão. Os meninos respiravam
fundo. Mae estendia os pauzinhos.
- Tomem - disse o homem.
Eles pegaram nos doces com timidez; cada um tirou um e ficou-se a segurá-lo na
mão caída e fortemente unida às calças, sem se atrever a olhar para a guloseima. Depois, os
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pequenos entreolharam-se e os cantos dos seus lábios mostravam qualquer coisa como um
sorriso rígido e embaraçado.
- Muito obrigado, menina.
O homem agarrou no pão e saiu, e os meninos foram também atrás dele, em passo
rígido, apertando sempre os pauzinhos de riscas vermelhas de encontro às pernas. Como
esquilos, saltaram para o cimo da carga empilhada, por cima do assento da frente, e
ocultaram-se de novo como se fossem esquilos.
O homem sentou-se ao volante e pôs o motor em movimento e o velho “Nash”
deixou uma réstia de fumo azulado de óleo atrás de si e rodou em direcção ao Oeste.
De dentro do restaurante, o motorista do caminhão, Mae e Al acompanharam-nos
com o olhar.
Bill rodou sobre os calcanhares.
- Esses pauzinhos não custam dois um penny - disse.
- Que é que você tem com isso? - refilou Mae, furiosa.
- Custam cinco cents cada - retorquiu Bill.
- Bem, são horas de irmos andando - lembrou o outro homem. Estamos a perder
tempo.
Meteram as mãos nos bolsos. Bill colocou uma moeda no balcão e o seu
companheiro lançou-lhe um olhar; tornou a meter a mão no bolso e juntou-lhe outra
moeda. Viraram as costas ao balcão, dirigindo-se para a porta.
- Até qualquer dia - disse Bill.
Mae chamou-os.
- Eh! Esperem aí pelo troco.
- Vá para o inferno - gritou Bill. E fechou o guarda-vento com estrondo.
Mae viu-os entrar no enorme caminhão, pôr o veículo em primeira, ouviu o roncar
do motor e a mudança da embraiagem para segunda velocidade.
- Al - chamou ela baixinho.
Ele ergueu a cabeça.
- Que foi? - perguntou.
- Olha para aqui.
Ela apontou para as moedas deixadas ao lado das xícaras, duas moedas de meio
dólar. Al acercou-se, olhou e voltou ao seu trabalho.
- Motoristas de camião - disse Mae, reverentemente. - Que diferença, depois desse
bando de bardamerdas!
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As moscas zuniam de encontro ao guarda-vento e tornavam a afastar-se. O
compressor sussurrou e tornou a calar-se. Na 66, o tráfego continuava intenso: camiões,
lindos automóveis aerodinâmicos e calhambeques - todos rodavam pelo asfalto com um
troar fatídico. Mae tirou os pratos do balcão e atirou para um balde as migalhas de doce
que neles restavam. Pegou num pano húmido e limpou o balcão com movimentos
circulares. Os seus olhos vigiavam a estrada, onde a vida deslizava.
Al enxugava as mãos ao avental. Olhou para um papel pregado na parede por cima
da frigideira. No papel havia três colunas de sinais. Al contou as cifras registadas na coluna
mais comprida. Dirigiu-se depois à caixa registadora e premiu o botão. “No sale” (Fora de
venda) e tirou uma mão-cheia de moedas.
- Que é que estás a fazer? - perguntou Mae.
- E o número três, que está quase a ganhar - respondeu Al. Foi ao terceiro caçamoedas,
meteu nele as moedas e deu à manivela. A quinta volta, as três barras apareceram e
todo o dinheiro jorrou para a taça. Al apanhou o grosso punhado de moedas e voltou ao
balcão. Meteu-as na gaveta da caixa registadora, fechando-a depois com uma pancada seca.
Depois, voltou para o seu lugar, riscando a última linha de algarismos traçada no papel.
- Eles jogam mais no número três,? já reparaste bem? Acho que tenho de arranjar
isto.- Ergueu uma tampa e mexeu cuidadosamente o guisado que fumegava.
- Só gostava de saber que diabo vão eles todos fazer para a Califórnia - disse Mae.
- Eles, quem? - Ora, quem havia de ser? Essa gente toda, estes, por exemplo, que
ainda agora estiveram aqui.
- Só Deus sabe - comentou Al
- Tu achas que eles vão arranjar trabalho?
- Como diabo queres tu que eu saiba? - respondeu Al.
Ela olhou para a estrada.
- Aí vêm dois caminhões na direcção de leste. Talvez parem. Deus queira que sim.
E, quando os dois pesados veículos encostaram pesadamente à porta do
estabelecimento, Mae agarrou no pano e pôs-se a limpar o balcão a todo o comprimento.
Passou também o pano pela máquina de fazer café e acendeu-lhe os bicos de gás. Al pegou
numa porção de pequenos nabos e começou a descascá-los. O rosto de Mae alegrou-se, ao
abrir-se a porta para dar passagem a dois motoristas uniformizados.
- Olá, irmã!
- Não sou irmã de ninguém, ouviu? - disse Mae. Eles riram e Mae fez o mesmo. -
Que é que há-de ser, meninos?
- Cafezinho. Que bolos têm aí?
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- Creme de ananás, creme de banana, creme de chocolate e de maçã.
- Venha o de maçã. Não, espere lá. De que é este grande? Aqui...
- De creme de ananás.
- Bom, corte um pedaço.
E, pela estrada 66, os veículos rodavam com um troar fatídico.
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Capítulo XVI
Os Joads e os Wilsons lá se iam arrastando juntos, rumo ao Oeste; El Reno e
Bridgeport, Clinton, Elk City, Sayre e Texas. Depois, veio a fronteira e Oklahoma ficou
para trás. Nesse dia, os carros continuavam a arrastar-se, avançando sempre através do
“Cabo de Frigideira” do Texas. Shauirock e Alarireed, Groom e Yarneil. Depois, passaram
à tarde por Amarillo e só fizeram alto. quando já era noite escura. Estavam fatigados,
cobertos de poeira e cheios de calor. A avó tivera convulsões ocasionadas pelo calor e
sentia-se muito fraca ao acamparem.
Naquela noite, Al furtou uma estaca e armou um toldo no caminhão, bem amarrado
nos extremos. Nessa noite, comeram apenas empadas frias e duras que tinham sobrado da
refeição da manhã. Deixaram-se cair sobre os colchões e adormeceram vestidos. Os Wilson
nem sequer armaram a sua tenda.
Os Joads e os Wilsons atravessaram desabaladamente o “Cabo de Frigideira” do
Texas, a terra ondulada, pardacenta, roída de sulcos e de gretas e cheia de cicatrizes das
antigas cheias. Fugiam de Oklahoma através do Texas. Os cágados arrastavam-se pela
poeira; o sol fustigava a terra. À noite, o calor deixava o céu e da terra exalavam-se
baforadas de calor.
Dois dias correram as famílias assim desabaladamente, mas, ao terceiro dia, a terra
pareceu-lhes demasiada na sua imensidão e tiveram de optar por uma nova maneira de
viver; a estrada passou a ser o seu lar e o movimento o seu meio de expressão. Pouco a
pouco, habituaram-se à nova vida. Primeiro Ruthie e Winfield, depois, Al, depois Connie e
Rosa de Sharon e, finalmente, os mais velhos. A terra estendia-se, ondulante, diante deles;
Wildorado e Vega e Boíse e Glenrio. Aí é o fim do Texas. Novo México e as montanhas.
Muito distante, sinuosa e elevando-se para o céu, a linha das serras. E as rodas dos veículos
rangiam, os motores ardiam e o vapor espirrava das tampas dos radiadores. Arrastaram-se
até ao rio Pecos e alcançaram Santa Rosa. E viajaram ainda mais vinte milhas.
Al Joad guiava o carro de turismo; a seu lado iam sua mãe e Rosa de Sharon. Diante
deles, o camião avançava com dificuldade. O calor espalhava-se em nuvens sobre a terra e
as montanhas oscilavam na tremulina provocada pela calma. Al guiava despreocupadamente
recostado, a mão frouxa na cruz do volante; tinha o chapéu cor de cinza amarrotado
175
e puxado de forma incrivelmente pretensiosa para os olhos; de vez em quando voltava a
cabeça e cuspia para o lado.
A mãe, ao lado dele, mantinha as mãos enlaçadas no colo, numa luta passiva contra a
fadiga. Entregava-se ao abandono, deixando que os solavancos do carro lhe sacudissem à
vontade a cabeça e o tronco. Piscava os olhos, para distinguir as montanhas distantes. Rosa
de Sharon, com o cotovelo direito encostado à porta, opunha o corpo aos movimentos do
carro. O seu rosto redondo endurecia-se na resistência aos solavancos e a cabeça agitava-se
em estremeções porque os músculos do pescoço se mantinham rígidos. Procurava,
mantendo o corpo assim convulsivamente hirto, transformar-se como num vaso rígido que
preservasse o fruto do seu amor. Virou a cabeça para a mãe.
- Mãe - disse ela. - E os olhos da mãe animaram-se ao dar atenção a Rosa de Sharon.
- Fixou o rosto redondo, contraído e fatigado, e sorriu: - Mãe - disse a rapariga - quando
agente chegar, vamos todos colher frutas e viver outra vez no campo, não é?
A mãe esboçou um sorriso ligeiramente irónico.
- Ainda não chegámos - disse. - Nem sabemos bem como é aquilo lá na Califórnia.
Primeiro temos de ver.
- Eu e o Connie não queremos viver mais no campo - disse a rapariga. - Nós já
resolvemos o que iremos fazer.
Uma nuvem de preocupação deslizou pelas faces da mãe. - Então vocês não querem
ficar connosco, com a família? - perguntou ela.
- Bem, eu e o Connie já resolvemos tudo. Mãe, nós vamos viver numa cidade. -
Continuou excitada:- O Connie vai procurar trabalho numa loja ou talvez numa fábrica. E
vai estudar em casa, talvez rádio, para vir a ser um técnico e pode ser que mais tarde até
possamos ter uma loja nossa. Assim, a gente até pode ir ao cinema de vez em quando. E o
Connie disse que, quando eu tiver a criança, vem o médico a casa, e que, conforme as
coisas correrem, até posso ir para um hospital. Depois, a gente há-de ter um automóvel
pequeno, já se vê. E, de noite, ele fica a estudar em casa e... oh! Vai ser tão bom! Ele
arrancou uma página do livro História de amor do Oeste e vai mandá-la para receber o
livro do Curso de Correspondência que a casa manda de graça. Está escrito na página que
ele arrancou. Eu também vi. Depois... ali, sim, lá onde ele vai tirar o curso, até arranjam
emprego para os alunos. A Rádio... sabe... é um serviço limpo, bonito e tem grande futuro.
E a gente poderá viver numa cidade e ir ao cinema de quando em quando e ah... sim, vou
ter um ferro eléctrico e a criança terá só roupinhas novas. O Connie disse que ela vai ter
tudo comprado novo, sabe? - tudo branquinho. À: mãe viu no catálogo, não viu? Têm de
tudo o que uma criança precisa. Talvez no princípio seja um pouco difícil, quando o
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Connie ainda estiver a estudar em casa... mas, quando a criança vier, talvez ele já tenha
terminado os estudos e a gente tenha a nossa casa uma casinha modesta, bem entendido. A
gente não quer uma casa grande, mas tem que ser bem bonitinha, por causa da criança, não
acha?... - O rosto dela resplandecia de entusiasmo. - E eu pensei, até... pensei que nós
podíamos ficar todos na cidade, e, quando o Connie tiver uma loja, o Al poderá trabalhar
com ele.
Os olhos da mãe não se afastavam, nem por um momento, do rosto corado de Rosa
de Sharon. Foi escutando com a maior atenção o desenrolar do projecto.
- Mas nós não queremos que tu nos deixes - disse ela. - Não é bom que a família se
separe.
Al rosnou:
- Eu, trabalhar para o Connie E porque não há-de o Connie trabalhar para mim? Ele
julga que é o único gajo capaz de estudar à noite?
Para a mãe, tudo aquilo lhe pareceu, de repente, um sonho. Tornou a olhar para a
frente e o corpo relaxou-se-lhe, mas o sorriso leve ficou a brilhar-lhe nos olhos.
- Como é que a avó se sentirá hoje? - perguntou.
Al endireitou-se de repente ao volante. O motor emitia pequenos ruídos. Acelerou a
marcha e o ruído tornou-se mais audível. Diminuiu a marcha e escutou; tornou a acelerá-la
por um instante e prestou de novo atenção. O ruído transformara-se num crepitar metálico.
Al buzinou e encostou o carro à berma. O caminhão que ia à frente, parou e retrocedeu
devagar, em marcha atrás. Três carros passaram rumo ao Oeste. Todos eles buzinaram e o
motorista do último carro debruçou-se para fora e berrou:
- Ó seu bruto, então aí é que se pára?
Tom encostou o camião bem à beira da estrada, saltou e dirigiu-se para o carro de
turismo. Da carrosserie do caminhão saíram cabeças curiosas. Al retardou a ignição e pôs-se a
ouvir o, motor ao ralenti. Tom inquiriu:
- Que há, Al?
Al fez funcionar o motor.
- Ora escuta! - O crepitar soava mais forte ainda.
Tom escutou.
- Experimenta ao ralenti - disse. Levantou a tampa do motor e meteu a cabeça lá
dentro. Bem, agora acelera. Ficou um instante a ouvir e depois fechou a tampa. - Sim, acho
que tens razão, Al.
- É o mancal da biela, não é?
- Pelo menos, é o que me parece - disse Tom.
177
- Mas eu pus-lhe bastante óleo - lastimou-se Al.
- Bem, então foi o óleo que não chegou até lá. Está seco que nem um carapau. Bem;
não há remédio senão tirá-lo. Olha, eu vou ver se encontro um bom sítio para a gente
estacionar. Vê lá o que fazes ao carter.
Wilson perguntou:
- É coisa séria?
- Bastante, sim - disse Tom. E voltou ao camião, pondo-se a avançar lentamente.
Al explicou:
- Nem sei como foi. Tinha bastante óleo.
Al sabia que a culpa era dele. Sentia que tinha cometido um erro.
A mãe desculpou-o.
- Tu não tens culpa, Al. Fizeste o que devias. E, depois, tímida, perguntou:- E coisa
importante?
- Pode-se remediar, mas temos de arranjar outra biela ou então de consertar o
mancal. - Respirou profundamente. - Ainda bem que o Tom cá está. Eu nunca ajustei um
mancal. Deus queira que ele saiba fazer esse serviço.
Um grande cartaz vermelho erguia-se à beira da estrada, lançando nela uma sombra
alongada. Tom conduziu o caminhão para a vala, atravessou-a e parou à sombra. Saiu e
pôs-se à espera que Al se aproximasse.
- Agora, cuidado! - gritou ele. - Encosta devagar, senão, ainda por cima quebras uma
das molas.
O rosto de Al tornou-se vermelho de raiva. Diminuiu a marcha do motor.
- Diabos me levem! - gritou. - Já disse que não tenho culpa de o mancal estar seco.
Que queres dizer com esse ainda por cima?
Tom zombou:
- Não vás à serra, homem. Não queria dizer coisa nenhuma. Só disse que tivesses
cuidado com essa vala.
Al resmungou, ao desviar cuidadosamente o carro de turismo da faixa da estrada e ao
levá-lo para o outro lado. Parou ao lado do caminhão.
- Agora não te vás pôr para aí a dizer aos outros que eu deixei secar o motor, ouviste?
O motor batia fortemente, e Al, desviando-se para a sombra, desligou-o.
Tom abriu a tampa do motor, prendendo-a depois em cima.
- Só podemos começar depois de ele arrefecer - disse.
As famílias saltaram dos veículos e rodearam o carro de turismo.
O pai perguntou a Al:
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- Que tal? - E acocorou-se no chão.
Tom virou-se para Al.
- Já alguma vez arranjaste algum?
- Não. Até hoje ainda não. Mas já desmontei carters, é claro.
Tom destinou o serviço:
- Bem; é preciso desmontar o carter e retirar a biela; depois, temos de arranjar uma
peça de substituição. Depois, é preciso rectificá-la e ajustá-la. E trabalho para um dia, pelo
menos. A gente tem de ir a Santa Rosa. Albuquerque fica ainda a umas setenta e cinco
milhas... Co'a breca! Amanhã é domingo! Amanhã não se pode arranjar nada.
A família ouvia a conversa em silêncio. Ruthie aproximou-se e espreitou para dentro
do 'motor, na esperança de ver a peça partida.
Tom continuou em voz baixa:
- Pois é, amanhã é domingo. Segunda-feira, a gente arranja a peça e só na terça é que
podemos acabar de consertar o carro. Nem ferramentas de jeito temos. Vai ser um
trabalhão dos diabos.
A sombra de um gavião projectou-se sobre a terra e todos ergueram a cabeça para
ver a ave negra que evolucionava no alto.
O pai lamentou-se:
- Só tenho medo é de acabar o dinheiro antes de chegarmos à Califórnia. Afinal, tem
de se comer, e é preciso comprar gasolina e óleo. Se se acabar o dinheiro, não sei como háde
ser.
Wilson atalhou:
- Acho que a culpa é minha. Desde o princípio que esse calhambeque vinha avariado.
Vocês têm sido muito bons para nós. Mas agora é melhor arrumarem as coisas e
continuarem a viagem. Não vão empatar o vosso tempo por nossa causa. Eu e a Sairy
vamos ficar aqui; a gente cá se arranja. Não queremos incomodá-los mais.
- Nada disso. Agora somos quase da mesma família. O avô morreu na sua tenda -
respondeu o pai devagar.
- Só lhes temos - causado complicações - disse Sairy, com ar cansado.
Tom enrolou um cigarro devagar, examinou-o e acendeu-o. Tirou o boné deformado
e enxugou com ele a testa.
- Tenho uma ideia - disse. - Talvez vocês não gostem dela, mas sempre a vou dizer.
Quanto mais depressa a gente chegar à Califórnia, mais depressa vai ganhar dinheiro. Este
carro aqui corre duas vezes mais que o nosso caminhão. Por isso eu pensei que vocês
podiam tirar qualquer coisa do caminhão e levar mais gente. Podiam caber todos, menos eu
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e o pregador. Nós dois ficávamos aqui e arranjávamos o carro de turismo e depois ainda os
íamos alcançar, nem que tivéssemos de viajar de dia e de noite. Se a gente se não
encontrasse na estrada, ao menos vocês já estariam a trabalhar. E, se o caminhão tiver
alguma encrenca, então vocês acampam na estrada até a gente chegar. Para vocês tanto faz
e, se conseguirem fazer o resto da viagem, já estarão a trabalhar, e tudo será mais fácil. O
Casy vai-me ajudar a arranjar este carro e nós seguiremos assim que pudermos.
A família estava a pesar a ideia. O tio John acocorou-se ao lado do pai.
Al perguntou:
- Então não precisam de mim para dar uma ajuda no conserto da biela?
- Pois se tu mesmo me disseste que não sabias fazer esse trabalho!
- Está bem - confirmou Al - Mas precisas de alguém com força. Talvez o pregador
não queira ficar.
- A mim tanto me faz. Pode ficar quem quiser - disse Tom.
O pai esgaravatava a terra seca com o dedo indicador.
- Acho que o Tom tem razão... Não adianta ficarmos todos aqui - acudiu ele. - Antes
de anoitecer, ainda podemos fazer umas cinquenta ou mesmo cem milhas.
A mãe inquiriu preocupada:
- Como é que tu nos vais encontrar depois?
- A gente tem de passar pela mesma estrada - disse Tom. - É sempre a 66, até chegar
a uma cidade chamada Bakersfield. Vi no mapa. Vocês só o que têm a fazer é seguir sempre
pela mesma estrada.
- Sim, e quando a gente chegar à Califórnia e encontrarmos cruzamentos?
- Não se incomode, mãe - tranquilizou-a Tom. - A gente há-de encontrar-se com
certeza. A Califórnia não é o mundo inteiro.
- No mapa parece tão grande! - exclamou a mãe.
O pai apelou para outras opiniões:
- John, tens alguma coisa a dizer em contrário?
- Não - respondeu John.
- Sr. Wilson, o carro é seu. O que é que o senhor diz? Acha mal que o meu filho o
arranje e o traga depois?
- Acho até que é uma boa ideia - opinou Wilson. - Os senhores já fizeram tanto por
nós que não vejo razão para não ajudar o seu rapaz.
- Vocês podem começar a trabalhar e pôr algum dinheiro de parte se nós não
conseguirmos apanhá-los - disse Tom. - Imaginem se nós ficássemos todos aqui sem fazer
nada! Nem água há neste sítio e o carro desta maneira não pode andar. Mas imaginem
180
vocês todos, lá na Califórnia, a trabalhar? Arranjam dinheiro e vão talvez mesmo conseguir
uma casa. Que é que acha, Casy? Quer ficar comigo para me ajudar?
- Faço o que quiserem - disse Casy. - Vocês trouxeram-me e eu faço tudo o que me
pedirem, seja o que for.
- Sim, mas o senhor terá de ficar de barriga para cima e de sujar a cara de óleo, se
ficar aqui - disse Tom.
- Para mim, vem a calhar.
O pai interveio:
- Bom, se já está decidido, o melhor é a gente ir indo já. Quem sabe? Podemos até
fazer ainda hoje umas cem milhas.
A mãe postou-se à frente dele:
- Eu não vou.
- Não vens? Que história é essa agora? Tu tens de vir! A gente precisa de ti. Quem
vai olhar pela família?
O pai estava pasmado com aquela revolta.
A mãe chegou-se ao carro de turismo e procurou qualquer coisa por baixo do
assento traseiro. Trouxe de lá um macaco e pôs-se a brandi-lo rapidamente.
- Não vou - repetiu.
- E eu digo-te que vens! É coisa decidida.
Os lábios da mãe apertaram-se. E disse com voz surda:
- Só saio daqui à pancada. - Continuou a brandir o macaco com ligeireza. - E isso não
te convém, não é? Eu não permito que ninguém me toque e também não vou chorar nem
pedir nada a ninguém. Salto-te em cima, ouves? E não me parece que tu te atrevas a baterme.
E, se o fizeres, juro-te por Deus que me ouve, que, logo que te apanhe de costas ou
sentado, te despejo um balde por cima. juro por Deus Nosso Senhor Jesus Cristo que o
faço!
O pai, desconsertado, olhou o grupo.
- Ela está maluca! - gritou. - Nunca a vi assim.
Ruthie soltou um riso agudo.
O macaco girou raivosamente nas mãos da mãe.
- Anda, se queres ver - disse ela. - Tu já decidiste, não é verdade? Anda, dá-me uma
sova, se és capaz! Ora experimenta. Eu disse quê não ia e, se me obrigares a ir, nunca mais
dormirás sossegado, porque, assim que tu pegares no sono, ferro-te uma paulada.
- Mas que mulher danada! - murmurou o pai. - E já não é nova... Faria se o fosse!
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O grupo acompanhava a revolta. Olhavam o pai, esperando uma explosão de cólera.
Olhavam-lhe as mãos frouxas, à espera de que os punhos se erguessem. Mas o pai não se
encolerizava e as suas mãos continuavam frouxas, ao longo do corpo. E, num instante, o
grupo compreendeu que a mãe tinha vencido. E esta também se apercebeu disso.
Tom perguntou então:
- Mãe, então que é isso? Que maneiras são essas? Que é que tem? Então agora põe-se
contra nós?
O rosto da mãe abrandou, mas os seus olhos relampejavam ainda.
- Fizeste isso sem pensar - disse.- Que é que nos resta na vida? Nada, a não ser a
nossa família. Mal a gente deixou a nossa terra, o avô morreu. E agora... agora tu queres
que a gente se separe também.
Tom gritou:
- Mãe, a gente não ia separar-se. Íamos ter com vocês depois.
A mãe brandiu o macaco.
- Imagina que nós estamos acampados num, sítio qualquer e vocês não nos vêem e
passam de largo? Imagina até que chegamos à Califórnia. Como é que vocês nos vão
encontrar? Onde é que nós poderemos deixar um recado para vocês, dizendo onde
estamos? - E continuou: - Temos uma caminhada bem dura ainda na nossa frente. A avó
está doente. Ela está deitada lá no caminhão; pode ser que também não dure muito tempo.
Se morrer, temos de a enterrar como ao avô. Ela não aguenta mais: está no fim. A
caminhada é muito dura ainda.
O tio John insistiu:
- Mas lá a gente pode começar a ganhar dinheiro. Poderíamos até economizar alguma
coisa, até que os outros chegassem.
Os olhares do grupo convergiram para a mãe. Ela era a força. Dominava plenamente
a situação.
- O dinheiro que a gente ganhasse dessa maneira não prestava para nada - disse ela. -
Tudo o que nos resta é a nossa família, a nossa união. Somos como uma manada de vacas,
que se unem todas quando vêem os lobos. Não tenho medo de nada enquanto estivermos
todos juntos. Não quero que a gente se separe. Os Wilsons estão connosco e o reverendo
também. Se eles se quiserem ir embora, nada posso fazer. Mas, com a minha família, é
diferente; se ela se quiser separar, então vai ver o que é uma fera com isto na mão! - A sua
voz era fria e decidida.
Tom disse, em tom apaziguador:
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- Mãe, nós não podemos acampar todos aqui. Não há água. Há poucas sombras e aavó
precisa de sombra.
- Bem - disse a mãe.- Então, vamos continuar a viagem e parar no primeiro sítio em
que haja água e sombra. Em seguida, o caminhão volta para vos levar à cidade, onde
comprarão a peça que falta e trá-los de novo. Tu não podes ir a pé com este sol, nem te
quero aqui sozinho. Se te acontecer alguma coisa, não terás ninguém que te ajude.
Tom repuxou os lábios, baixando-os sobre os dentes. Abriu as mãos desconsoladamente
e deixou-as cair ao longo do corpo. Depois, abriu novamente a boca:
- Pai - disse-se a agarrasse de um lado e eu do outro e os outros por detrás e se a avó
lhe saltasse em cima, talvez assim a gente a dominasse, se ela não derrubasse uns dois ou
três com o macaco. Mas, se o senhor não quiser ficar com a cabeça rachada, é melhor fazer
como a mãe quer. Deus do céu! Uma pessoa que sabe o que quer pode dominar uma
porção de gente. A senhora ganhou, mãe. E agora ponha de lado esse macaco antes que
magoe alguém.
A mãe olhou atónita o pedaço de ferro. A mão tremia-lhe. Deixou cair a arma no
chão e Tom levantou-a com o maior cuidado e tornou a guardar o macaco no carro,
dizendo:
- Pai, é melhor o senhor voltar para o seu lugar. Al, tu levas todos no caminhão, e
páras num sítio bom; depois voltas, e eu e o pregador, durante, esse tempo, vamos
desmontando o mancal. Se for possível, a gente vai até Santa Rosa, para ver se arranja um
mancal novo. Talvez a gente tenha sorte, visto que é noite de sábado. Trata de andar
depressa, a ver se ainda podemos fazer o que pretendemos. Deixa aqui a chave inglesa e a
turquês do caminhão. - Meteu a mão debaixo do carro e apalpou o carter besuntado. - Olha,
deixa também esse velho balde aí, que é para recolher o óleo. Não podemos perder esse
óleo todo.
Al passou-lhe o balde. Tom colocou-o sob o carro e abriu o tampão do tanque do
óleo, com a ajuda da turquês. O óleo negro escorreu-lhe pelo braço, enquanto
desatarraxava o tampão com os dedos, e depois o jacto negro caiu silenciosamente no
fundo do balde. Al reuniu a família no caminhão em menos tempo do que foi necessário
para encher o balde até metade.
Tom, com o rosto já sujo de óleo, olhou por entre as rodas e disse:
- Volta depressa, ouviste?
Começou a tirar os parafusos do carter, enquanto o caminhão passava a pequena vala
e se afastava lentamente, no terreno acidentado. O caminhão desapareceu. Tom deu uma
volta a cada parafuso, afrouxando-os suavemente, a fim de poupar os empanques.
183
O pregador ajoelhara junto às rodas.
- Posso ajudar? - perguntou.
- Agora não. Mas, assim que o óleo sair todo e eu soltar os parafusos, pode-me ajudar
a tirar o carter.
Tornou a meter-se debaixo do carro, afrouxando os parafusos com a chave e
fazendo-os deslizar com os dedos. Mas não retirou os parafusos das duas extremidades,
para evitar que o carter caísse de repente.
- O chão ainda está bem quente - disse. - E acrescentou: Escute, Casy, o senhor tem
andado muito silencioso nestes últimos dias. Porquê, Santo Deus?! Quando a gente se
encontrou pela primeira vez, o senhor fez-me um discurso de meia em meia hora. E agora,
há bem dois dias que não diz dez palavras seguidas. Que é isso? Está farto disto tudo, hein?
Casy estava deitado de costas, a olhar para baixo do carro.
O queixo, áspero, na sua barba mal semeada, descansava nas costas da mão. O
chapéu, muito derrubado para trás, cobria-lhe inteiramente a nuca.
- Quando era pregador, falei que chegou para o resto da minha vida - disse.
- Sim, mas depois disso, o senhor também tinha sempre assunto...
- Tenho andado preocupado, muito preocupado - disse Casy. - Quando ainda era
pregador, não me apercebera disso, mas o facto é que tenho perdido muito tempo por aí. já
que não sou pregador, acho que devo casar-me. Sinto o desejo da carne, sabes,
- Eu também - disse Tom. - No dia em que saí de MacAlester, estava completamente
alucinado. com atrás de uma mulher, uma mulher da vida, como se ela fosse, um coelho.
Nem queira saber o que aconteceu; até tenho vergonha de o contar.
Casy riu.
- Calculo. uma vez meti-me, no mato e estive muito tempo por lá em jejum. Quando
voltei, aconteceu-me o mesmo.
- Sério? - perguntou Tom.- Bom, de qualquer maneira, poupei o meu dinheiro e ela
não se queixou. Pensou que eu era doido. Bem sei que lhe devia ter pago, mas só tinha
cinco dólares. Demais a mais, ela nem queria dinheiro... Bom, ponha-se aí debaixo e agarrese
a, qualquer coisa. O senhor tira esse parafuso e eu tiro o outro e a coisa torna-se fácil.
Cuidado com o marical! Vê? Lá vem ele todo de uma vez! Estes “Dodges” antigos só tem
quatro cilindros. Uma vez eu desmontei um carro assim. Os coxins são grandes que nem
melões. Agora... cuidado... devagar... segure bem! Abra as juntas em cima, ali onde estão
presas... Atenção... Isso! Muito bem.
184
O tanque de óleo, todo besuntado, estava no chão, entre os dois, e ainda havia um
pouco de óleo no fundo. Tom meteu a mão num dos vãos e tirou dele alguns pedaços de
metal.
- Ora aqui tem - disse, revirando o metal entre os dedos. - O eixo está solto. Cheguese
para trás e agarre a manivela. Vá andando à volta até eu dizer.
Casy levantou-se, achou a manivela e ajustou-a.
- Pronto?
- Sim... devagar, agora... mais um pouco... um poucochinho, basta!
Casy ajoelhou-se e tornou a olhar para baixo do carro. Tom fez ressoar a biela de
encontro ao eixo.
- É aqui que está quebrado - disse.
- O que seria? - perguntou Casy.
- O diabo é que sabe! Este calhambeque já tem mais de treze anos. Está com
sessenta mil milhas, o que quer dizer que correu pelo menos cento e sessenta mil e só Deus
sabe quantas vezes eles não desmarcaram já o conta-quilómetros. Aquece muito depressa
também. Talvez alguém deixasse o nível do óleo muito baixo. E foi-se...
Puxou para fora as cavilhas e assestou a chave de parafusos no mancal da biela.
Começou a desenroscá-lo e a chave de parafusos escapou da lenda. Um longo corte surgiu
nas costas da sua mão esquerda. Tom examinou-o. O sangue brotava abundantemente da
ferida; misturava-se com o óleo e pingava no balde.
- Isso está feio - disse Casy.- É melhor eu continuar, enquanto você liga a mão.
- Qual o quê! Nunca reparei um automóvel sem me cortar. Agora, que a coisa já
aconteceu, é de maneira que não tenho mais preocupações. - Tornou a assestar a chave de
parafusos. - Se ao menos tivesse uma chave curva! - disse. E bateu com o punho contra o
cabo da chave até que os parafusos deram de si. Tirou-os todos e depositou-os juntamente
com as cavilhas no carter. Alargou depois os parafusos e tirou o pistão e colocou-o coma
biela no carter. - Graças a Deus! - Saiu debaixo do carro, arrastando-se e levando o carter
consigo. Limpou a mão a um pedaço de linhagem e examinou novamente o corte. - Sangra
que eu sei cá! - disse.- Mas vai parar num instante. - Urinou no chão, apanhou uma mão
cheia de terra embebida de urina e colocou-a à maneira de emplastro sobre a ferida. Por um
instante, o sangue correu ainda; depois, parou. - É o que há de melhor para estancar o
sangue - explicou Tom.
- Um pouco de teia de aranha faz o mesmo efeito - disse Casy.
- Eu sei, mas aqui não há teias de aranha. E mijar é uma coisa que se pode fazer
sempre. - Tom sentou-se no estribo e examinou o mancal quebrado. - Se a gente encon185
trasse agora um “Dodge” 25 e pudesse comprar uma biela usada e algumas chapinhas,
talvez pudéssemos arranjar o carro. O Al deve estar longe como o diabo.
A sombra do grande cartaz da beira da estrada tinha já um comprimento de sessenta
pés. A tarde ia morrendo.
Casy sentou-se no estribo e olhou em direcção ao Oeste.
- Estamos quase nas montanhas altas - disse, e ficou em silêncio por alguns
momentos. Depois, continuou: - Tom!
- Que é?
- Tom, tenho visto os carros que encontrámos aí pela estrada, aqueles que nós
ultrapassámos e os que nos ultrapassaram. E tenho estado a pensar...
- A pensar o quê?
- Tom, são centenas de famílias como a nossa que vão para o Oeste. É uma coisa em
que eu reparei... Compreende? Nenhuma delas para leste; todas para oeste... Não notou
ainda?
- Notei, sim.
- Bem, isto... isto parece até como quando se foge de soldados inimigos. É como se
um povo inteiro fugisse diante de uma invasão.
- Sim - disse Tom. - É um povo inteiro que foge. Nós também fugimos.
- Pois é. Agora suponha que toda essa gente não consegue encontrar trabalho por lá?
- Que vá tudo para o diabo! Como é que eu posso saber? - gritou Tom. - Não faço
outra coisa senão pôr um pé adiante do outro. Já fiz o mesmo durante quatro anos em
MacAlester entrar e sair da cela; entrar e sair do refeitório. Meu Deus! E eu que pensei que
ia ser diferente agora! Que, quando saísse, a coisa mudava! Era incapaz de pensar noutra
coisa senão dava em doido. E agora não penso em coisa nenhuma!- Voltou-se para Casy.-
Vê? Esse mancal está partido. A gente não sabia que ele se ia quebrar, por isso não tivemos
preocupações. Agora, que está quebrado, vamos tratar de o arranjar. E assim com tudo no
mundo. Eu é que não quero preocupar-me com coisa nenhuma. Não quero, nem posso.
Este pedacinho de ferro aqui, vê-o? Pois este pedacinho de ferro é a única coisa que, neste
momento, me preocupa. Só queria saber onde diabo se meteu o Al.
Casy disse:
- Ora, ouça, Tom... Mas que inferno! É difícil a gente querer explicar uma coisa e não
poder...
Tom retirou da mão a camada de terra suja, atirando-a para o solo. O sulco da ferida
surgiu desenhado a lama. Lançou um olhar ao pregador:
186
- O senhor está-se a preparar para fazer um discurso, não é verdade? Eu gosto de
ouvir discursos. O nosso carcereiro tinha a mania de fazer discursos a propósito de tudo.
Para nós tanto fazia e ele ficava convencido de que era importante como o diabo.
Casy coçou os dedos de grossas articulações.
- Alguma coisa vai acontecer e toda a gente anda numa roda viva.. Essa gente, essa
que põe um pé adiante do outro, como você diz, não pensa no que está a fazer. Está bem.
Mas todos eles atiram os pés na mesma direcção. E, se você prestar atenção, ouve-os
mover, sente-os rastejar, sussurrar, cheios de desassossego. Há coisas que acontecem que
essa gente toda em movimento não compreende, por agora. Vai acontecer uma coisa, uma
coisa que modificará toda a região.
Tom disse:
- E, apesar disso, eu continuo a pôr uma pata à frente da outra.
- Sim, mas quando você encontrar uma cerca pela frente, tem de a saltar.
- Mas é isso que eu faço quando encontro uma cerca pela frente.
Casy suspirou:
- É o melhor que se pode fazer. Tenho de concordar consigo. Mas há cercas
diferentes. E gente corno eu que trepa as cercas que ainda nem sequer barram o seu
caminho. Não está mais na minha mão.
- Não é o Al que vem aí? - perguntou Tom.
- Parece que é ele, sim. Tom levantou-se e enrolou a biela e as duas metades do
mancal num pedaço de serapilheira.
- E necessário que a peça seja bem igual.
O caminhão parou à margem da estrada e Al debruçou-se pela janela.
Tom disse:
- Demoraste-te como o diabo! Até onde foram?
Al suspirou.
- Tiraste a biela?
- Tirei. - Tom ergueu o embrulho de serapilheira. O metal fez-se em pedaços.
- Bem, mas a culpa não foi minha - disse Al.
- Não. Para onde levaste o pessoal?
- Tivemos uma encrenca - disse Al. - A avó começou a berrar e, quando a Rosasharn
a ouviu, começou também aos berros. Meteu a cabeça debaixo de um colchão e chorou à
farta. A avó então nem se fala: deitou-se no chão e uivou que nem um cão em noite de lua.
Tenho cá as minhas impressões de que ela perdeu o juízo. Parece uma criancinha. Não fala
187
com ninguém, nem parece reconhecer a gente. Fala sozinha, como se estivesse falando com
o avô.
- Onde estão? - perguntou Tom novamente.
- Bem, parámos num acampamento. Havia lá muita sombra e água encanada. Paga-se
meio dólar por dia. Mas estavam todos tão cansados e sem coragem, tão desmoralizados
que resolveram ficar. A mãe disse que era preciso ficar ali mesmo por causa da avó, que
não aguentava mais. Montámos a tenda do Wilson e armámos a nossa lona. Eu acho que a
avó endoideceu.
Tom olhou o Sol que ia declinando.
Casy disse:
- Alguém tem de ficar aqui com o carro, senão, podem roubá-lo.
- O senhor quer ficar?
- Claro que sim.
Al trouxe um embrulho de papel do assento do camião.
- Aqui têm um pouco de carne e de pão - disse.- A mãe mandou isto para vocês.
Também trouxe um jarro com água.
- Ela não se esquece de ninguém - comentou Casy.
Tom sentou-se no caminhão ao lado de Al.
- Escute - disse.- A gente volta o mais depressa possível. Mas não posso dizer ao
certo o tempo que nos demoraremos.
- Eu espero.
- Fixe! E não faça discursos a si mesmo. Vamos, Al! - E o camião começou a rodar
na tarde avançada. - É um camarada às direitas - disse Tom.- Está sempre a pensar em
coisas esquisitas.
- Ora! Se tu fosses pregador, fazias a mesma coisa. O pai está danado porque teve de
pagar cinquenta cents para poder ficar à sombra de uma árvore. Custou-lhe a engolir. Anda
por lá a praguejar. Disse que, daqui a pouco, até nos vendem o ar em bidões. Mas a mãe
respondeu-lhe que era preciso agente parar num sítio assim, que tivesse sombra e água, por
causa da avó.
O veículo marchava estrada. fora, e, como ia sem a carga, todo ele era ruídos de
matraca e de peças entrechocadas. Todo o madeiramento da carrosserie cortada ao meio
rangia como desconjuntado. No entanto, rodava ligeiro e rápido. Ia a sessenta à hora. O
motor fazia uma algazarra de ensurdecer; um fumo azul, próprio do óleo queimado, ia-se
filtrando através das tábuas do chão do veículo.
188
- Mais devagar - disse Tom. - Senão, dás cabo até dos cubos da roda. Afinal que tem
a avó?
- Não sei. Nos últimos dias, ela até parecia que não existia; não falava com ninguém,
lembras-te? É por isso que ela agora resolveu falar e gritar, para descontar o tempo perdido.
Mas, quando fala, não é com ninguém. Quer dizer: parece que está a falar com o avô. Grita,
chamando por ele. Também parece que anda com medo. A gente até parece que vê o avô
ali sentado, fazendo caretas como fazia, refilando e procurando ajeitar a roupa. Ela parece
que também o vê ali sentado. E então põe-se a descompô-lo. Ah, espera lá; o pai mandoume
entregar-te vinte dólares; disse que não sabe de quanto vais precisar. já viste a mãe
discutir com ele como hoje?
- Que eu me lembre, não. Mas sempre te digo que apanhei uma rica altura para a
minha liberdade condicional! E eu que, imaginava que ia passar uma rica vida, levantandome
tarde e enchendo a barriga quando chegasse! E que iria dançar e dormir com boas
pequenas! E, afinal, que é do tempo para tudo isso?
- Já me esquecia- tornou Al. - A mãe mandou-te uma porção de recomendações.
Disse para tu não beberes, nem armares discussões nem te pores para aí à pancada. Tem
medo que tu voltes para a prisão.
- Ela tem bastante em que pensar. Não serei eu quem lhe vá causar mais encrencas -
prometeu Tom.
- Bem, mas a gente pode tomar uns copos de cerveja, não pode? Estou morto por
isso.
- Não sei - disse Tom.- O pai vai ficar que nem uma bicha se a gente gastar dinheiro
em cerveja.
- Escuta, Tom, eu tenho seis dólares. A gente podia beber alguma coisa com esse
dinheiro e encher-se de pândega. Ninguém sabe que eu tenho esta massa. Caramba, isso é
que era pagode, hein?
- Guarda o teu dinheiro - aconselhou Tom. - Quando chegarmos à costa, então é que
nos poderemos divertir à bruta. Talvez quando arranjarmos trabalho... - Voltou-se no
assento. - Não sabia que tu perdias tão facilmente a cabeça. julguei que tinhas mais mão em
ti...
- Que é que tu queres? Pois se eu não conheço aqui ninguém... Se isto dura muito
tempo, ainda acabo por me casar. Ma---- prefiro divertir-me à farta lá na Califórnia.
- Oxalá que assim seja - disse Tom.
- Parece que já não tens a certeza de nada...
- Confesso que não.
189
- Quando mataste aquele tipo, tu... sim... sonhaste com ele mais tarde, ou qualquer
coisa assim, hein? Andavas muito preocupado?
- Não.
- Não é possível! Lembravas-te daquilo...
- Lembrava-me às vezes. Sentia-me aborrecido por o saber morto.
- E... não estavas arrependido? Não estás arrependido ainda?
- Não. Cumpri a minha pena. Acho que bastou.
- Era muito ruim aquilo por lá?
Tom disse nervoso:
- Vou dizer-te uma coisa, Al. já cumpri a minha pena e agora acabou-se. Não quero
estar sempre a falar nesse assunto. Aí está o rio. É só atravessar e estamos na cidade.
Vamos procurar uma boa biela e o resto, que o leve o diabo!
- A mãe gosta de ti a valer! - disse Al.- Quando tu estavas preso, ela vivia numa
tristeza constante. Mas não dizia nada a ninguém; era como se chorasse para dentro. Mas
todos nós sabíamos o que a consumia.
Tom puxou o boné para os olhos.
- Escuta, Al. E se mudássemos de conversa agora?
- Só estava a contar-te o que a mãe fazia.
- Eu sei, eu sei... Mas não quero falar nisso agora. Prefiro... prefiro... pôr um pé à
frente do outro e seguir.
Al recolheu-se a um silêncio ofendido.
- Só queria contar-te... - repetiu daí a um minuto.
Tom olhou-o e Al fixou os olhos em frente. O caminhão, aligeirado, ribombava com
monotonia. Os lábios compridos de Tom arregaçaram-se sobre os dentes, e ele riu com
brandura.
- Eu sei, Al - disse. - Talvez eu ainda esteja debaixo do reflexo da prisão. Um dia falote
sobre isso. É natural que tu estejas interessado. Mas eu... é engraçado... eu acho que é
melhor tratar de esquecer isso por algum tempo, sabes? Mais tarde, talvez seja diferente.
Mas, agora, quando penso nisso, tudo me gira na cabeça. Quero dizer-te uma coisa, Al... a
prisão é uma coisa que foi feita para nos fazer endoidecer a pouco e pouco. Compreendes?
E uma pessoa fica mesmo maluca. As vezes, quando de noite, os que enlouquecem
começam a gritar, a gente pensa que é a gente mesmo que grita. E, outras vezes, é assim
mesmo.
Al interrompeu-o:
- Oh, não falemos mais nisso, Tom.
190
- Trinta dias ainda se passam menos mal. Cento e oitenta dias ainda vá lá. Mais do
que um ano... não sei, não. E pior do que qualquer outra coisa no mundo. E uma coisa de
enlouquecer, verdadeiramente de enlouquecer, essa de fechar alguém numa cadeia. Ora!
Quero que tudo vá para o diabo! Não quero falar mais nisso! Olha, ali adiante, o sol a bater
nas janelas das casas!
O camião chegava à área dos postos de gasolina. À direita da rua havia um “cemitério
de automóveis”, talvez meio hectare cercado de arame farpado, um barracão coberto de
zinco ondulado em frente do qual se amontoavam pneus usados ao pé das portas, com
etiquetas ostentando os respectivos preços. Atrás, erguia-se uma barraca pequena, armada
com madeiras velhas e chapas de folha de Flandres. As janelas compunham-se todas de
pára-brisas emoldurados nas paredes. No terreno, salpicado de erva, havia velhos carros de
todos os tipos e com todos os defeitos, de radiadores tortos e arrombados, carros
avariados, deitados de lado e sem rodas. Motores enferrujados jaziam encostados ao
barracão. Um grande montão de ferro velho, pára-choques, partes laterais de caminhões,
rodas e eixos; e, sobre tudo isto, flutuava o espírito da decadência, do bolor e da ferrugem.
Ferros retorcidos, motores semiconsumidos: um monte de destroços.
Al parou o caminhão no terreno oleoso, em frente do cemitério. Tom saltou e lançou
o olhar à entrada escura do barracão.
- Não vejo ninguém - disse. E gritou: - Eh! Não há ninguém aí?!... Deus queira que
eles tenham “Dodges 925”.
Do fundo do barracão, ouviu-se o bater de uma porta. O espectro de um homem
surgiu na penumbra, magro, sujo, de pele oleosa, esticada sobre músculos encordoados. Só
tinha um olho, em cuja órbita avermelhada e descoberta, palpitavam os músculos quando
ele mexia o olho perfeito. As calças e a camisa estavam endurecidas e brilhantes do óleo
acumulado durante muito tempo, cheias de rugas, de gretas e de cortes. O lábio inferior,
grosso, pendia num jeito de mau humor.
Tom perguntou:
- Você é o dono disto?
O olho único teve um brilho rápido.
- Não; trabalho aqui - disse o homem com hostilidade. - Que é que o senhor quer?
- Tem aí algum velho “Dodge 925”. Preciso de uma biela.
- Não sei se há. Se o patrão estivesse aqui, já lhe dizia, mas ele não está. Foi para casa.
- A gente pode passar uma vista de olhos?
O homem assoou-se à palma da mão, limpando-a depois às calças.
- O senhor é aqui dos arredores?
191
- Não. Somos do Leste... e vamos para o Oeste.
- Pois vejam à vontade. Até podem deitar fogo a essa droga toda. Estou-me nas
tintas para tudo isto...
- Você parece que não gosta muito do seu patrão.
O homem aproximou-se, arrastando os pés, com o olho único a lançar chispas.
- Tenho-lhe ódio - disse baixinho.- Tenho ódio àquele filho da mãe. Foi para casa.
Para casa dele.- As suas palavras caíam borbulhantes. - Ele tem uma maneira de chatear a
gente, esse... esse filho da mãe! Tem linda filha de dezanove anos, uma garota boa a valer! E
diz-me assim:- Tu gostarias de casar com ela, hein? Diz-me isto, a mim! E, à noite, volta a
dizer-me:- Olha, hoje à noite, há um baile... Não queres ir, hein? Diz-me isto, aquele
bandido! As lágrimas brotaram-lhe com violência e pingavam-lhe dos cantos da órbita
avermelhada. Um dia, por Deus, ele vai ver! Um dia que eu tenha uma chave de tubos no
bolso... Quando diz estas coisas, está sempre a olhar para o meu olho. E eu, um dia,
arranco-lhe a cabeça, arranco-lha com esta chave, pedaço a pedaço. - Ofegou de raiva. -
Arranco-lha aos bocadinhos.
O Sol surgira-se por detrás das montanhas. Al passeava entre o ferro velho do pátio e
olhava os carros usados.
- Olha ali, Tom! Aquele parece um “Dodge”, mas não sei se é 925 ou 926.
Tom virou-se para o zarolho:
- Posso ver este carro, hein, amigo?
- Pode ver à vontade. Até pode levar essa merda toda.
Caminharam entre as carcaças de automóveis até chegarem a uma condulte
enferrujada, que se mantinha de pé sobre os pneus esvaziados.
- É de 25 mesmo - gritou Al. - Olha, para aqui! Podemos tirar-lhe o carter, amigo?
Tom ajoelhou-se e depois olhou por debaixo do carro.
- E já foi desmontado; levaram-lhe uma biela. Pelo menos parece. - Meteu-se debaixo
do carro. - Traz uma manivela e põe-na a funcionar, Al. - Mexeu na biela de encontro ao
fuso. - Está cheia de óleo velho - disse.
Al girou a manivela devagarinho.
- Cuidado - avisou Tom.
Apanhou uma lasca de madeira do chão e foi raspando o óleo que encobria a peça,
bem como os parafusos.
- Que tal está? - perguntou Al.
- Um pouco lassa mas acho que serve.
- Lassa?
192
- Sim. Mas pode-se apertar. Tem ainda uma porção de chapinhas. Serve bem. Vira
com cuidado. Para baixo, ai, Cuidado! Traz-me as ferramentas que estão no carro.
O zarolho informou:
- Eu tenho ferramentas aqui. Sumiu-se por entre, os ferros comidos de ferrugem e
não tardou a reaparecer, trazendo uma caixa de metal cheia de ferramentas. Tom tirou dela
uma chave de parafusos e entregou-a a Al.
- Desmonta-a, vá. Mas cuidado... não percas nenhuma das chapinhas. E presta
atenção ao lugar onde pões os parafusos e os pinos. Aviso-te de que está a escurecer.
Al enfiou-se debaixo do carro.
- A gente devia arranjar um jogo de chaves de parafusos. A chave inglesa não serve
para nada - disse.
- Se quiseres que te ajude, chama-me, ouviste? - avisou Tom.
O zarolho estacionava, inútil, no mesmo local.
- Se vocês quiserem, posso ajudá-los - disse. - Sabe o que fez aquele filho da mãe?
Passou por aqui de calças brancas. E disse assim: - Vem, vamos até ao meu iate. Ai! Um dia
rebento com ele! - Respirou com dificuldade. - Eu ainda não saí com uma mulher desde
que perdi este olho. E ele diz-me coisas assim!
E grossas lágrimas abriram sulcos na sujidade que lhe cobria as faces.
Tom disse com impaciência:
- Porque é que você se não põe a mexer daqui para fora? Ou há guardas que o
prendam aqui?
- Sim, isso é fácil de dizer. Mas quem é que quer dar trabalho a um homem que tem
só um olho?
- Oiça, companheiro - disse Tom, virando-se para ele. Você tem esse olho bem
aberto. Anda porco e cheira mal. É isso mesmo que você quer. Você gosta de andar assim.
Se não gostasse, não andava assim. Claro que não arranja uma mulher com esse buraco à
mostra. Tape-o com qualquer coisa e lave a cara. Não precisa de rebentar a cabeça a
ninguém.
- É o que você pensa. E porque não sabe o que é ter um olho só - disse o homem. -
A gente não vê as coisas como os outros. Não sabe a que distância estão as coisas. Fica
tudo corno se fosse chato.
- Você está a dizer asneiras - disse Tom.- Eu conheci uma mulher da vida que tinha
uma perna só. Pensa que ela se incomodava com isso? Qual o quê! Até ganhava meio dólar
a mais. Ela dizia assim: “Tu já dormiste com uma mulher que tivesse só uma perna? Ai,
não? Fixe! Pois então, já que tens aqui uma especialidade, tens de pagar mais, vai-te custar
193
mais meio dólar.” E toda a gente tinha de gemer com mais cinquenta cents. E ninguém
achava mal; pelo contrário. Ficavam muito satisfeitos... Ela costumava dizer que dava
sorte... E também conheci um corcunda num sítio onde estive. Ele ganhava a vida,
deixando que os outros lhe passassem a mão pela marreca. Pois então! E você, lá porque
tem só um olho, já acha que está tudo perdido!
O homem disse, perturbado:
- Sim, tem razão, mas se você visse como toda esta gente se afasta de mim, também
pensava como eu.
- Pois tape esse buraco, caramba! Você faz gala em mostrar isso, como uma vaca
mostra o rabo. Você gosta de sentir pena de si mesillo, é o que é, fique sabendo. Isso não
vale nada. Compre também umas calças brancas. Aposto que você anda por aí a beber,
feito desgraçado e depois põe-se a chorar na cairia à noite. ó Al, tu queres que te ajude?
- Não - respondeu Al. - O mancal já está solto. Estou a desatarraxar o pistão.
- Cuidado, não te magoes!
O zarolho disse mansamente:
- Você então acha... que alguém se poderá interessar por mim?
- Decerto - respondeu Tom.
- Para onde vão vocês?
- Para a Califórnia. Vai a família toda. Procurar trabalho.
- Você acha que um tipo corno eu poderá encontrar trabalho também, você acha,
hein? Com um pano preto no olho?
- E porque não? Você não é nenhum aleijado.
- Poderei ir com vocês, hein?
- Ah, isso agora é que não. já estamos tão sobrecarregados que mal nos podemos
mexer. Você arranja outra maneira de sair daqui. Arme uma carcaça dessas e vá sozinho.
- E é que sou muito capaz de o fazer, caramba! - disse o zarolho.
Ouviu-se um forte som metálico.
- Pronto - anunciou Al - Já cá canta.
- Bom, deixa ver - disse Tom.
Al entregou-lhe o pistão, a biela e a parte inferior do mancal.
Tom limpou a superfície metálica e olhou-a de lado.
- Parece que vai servir. Se a gente tivesse luz, podia montá-la esta noite.
- Olha, Tom. Eu pensei uma coisa. A gente não tem ganchos de anel. Vai ser um
trabalho danado encaixar os anéis, principalmente os da parte de baixo.
Tom lembrou:
194
- Um tipo disse-me em tempos que se pode enrolar um fio de latão fininho em volta
do anel para segurar a coisa.
- Sim, mas depois como é que se vai tirar o fio de latão outra vez?
- Não é preciso tirar. Ele derrete-se e não estraga nada.
- Então fio de cobre ainda é melhor.
- Pois sim, mas não é tão resistente - disse Tom. E virou-se para o zarolho: - Vocês
não têm por aí um bocadinho de fio de latão, hein?
- Não sei. Vou ver. Acho que há um rolo para aí. Escute: onde é que você acha que
se pode arranjar um pano preto desses para pôr no olho?
- Não sei - disse Tom. - Veja lá se acha o tal rolo de fio de latão...
Revolveram o barracão, virando alguns caixotes, até que encontraram o fio. Tom
enfiou a biela num tornilho e enrolou cuidadosamente o fio em torno dos anéis do pistão,
forçando-o a ficar bem apertado, e, onde o fio estava torcido, batia-o com um martelo para
o achatar. Depois, virou o pistão, e, à medida que o ia virando, ia também batendo com o
martelo para o achatar em toda a volta, até conseguir libertar a parede do pistão. Passou-lhe
o dedo em volta, para verificar se o anel e o fio achatado estavam ao mesmo nível. Já fazia
escuro no barracão. O zarolho trouxe uma lanterna eléctrica e iluminou o local do trabalho.
- Pronto - disse Tom. - Olhe lá, quanto é que você quer por esta lanterna?
- Ora, isso não vale quase nada. Tem uma bateria de quinze cents. Posso vendê-la por
uns trinta e cinco cents.
- Fixe! E quanto é essa biela e o pistão?
O zarolho esfregou a testa com o nó de um dedo, tirando uma placa de sujidade.
- Eu nem sei quanto isso custa - disse. - Se o patrão estivesse aqui, podia ver no
catálogo das peças quanto custa uma peça nova, e, enquanto você trabalhava, já tinha
calculado o preço do custo para nós, e quem você era e quanto poderia pagar, e então diria,
por exemplo, que o preço que estava no catálogo era de oito dólares, e que você podia
levar isso por cinco. E, se você refilasse, ele deixava a coisa por três. Você pensa que tudo
depende de mim, mas - Santo Deus! - aquilo é um filho da mãe! Adivinhava logo que você
estava atrapalhado com a falta dessa peça e então tratava de o explorar. já o vi levar mais
por uma engrenagem do que ele pagou pelo carro inteiro.
- Bom, mas quanto é que você quer, afinal?
- Aí um dólar deve estar bem.
- Bem, então vou dar-lhe mais um quarto de dólar por este par de chaves de
parafusos. Tornam o trabalho duas vezes mais fácil. - Entregou o dinheiro. - Muito
obrigado. E trate de tapar esse olho desgraçado, ouviu?
195
Tom e Al entraram no caminhão. Já estava completamente escuro. Al ligou o motor
e acendeu os faróis.
- Até logo - disse Tom. - Talvez a gente se encontre na Califórnia. - Voltaram para a
estrada e retomaram o seu caminho.
O zarolho seguiu-os com o olhar até que se sumiram e depois encaminhou-se através
do barracão de ferro, para a barraca das traseiras. Dirigiu-se, tacteando, para o colchão
estendido no solo e atirou-se-lhe para cima, a soluçar. Os sons dos carros que passavam,
zunindo, ainda mais reforçavam as muralhas da sua solidão.
- Se tu me dissesses, Al, que a gente arranjava esta peça e a montava ainda esta noite,
eu dizia-te que estavas maluco.
- Pois, Tom, vamos poder montá-la. Mas tu é que vais fazer isso. Eu tenho medo de
a apertar demais e que se gaste, ou de a deixar tão larga, que salte do seu lugar.
- Bem, eu vou fazer isso - disse Tom. - Se se escangalhar, que se escangalhe. Não
temos nada a perder.
Al pôs-se a olhar na escuridão. Os faróis não projectavam luz muito forte, mas,
adiante, reflectiram-se nos olhos verdes de um gato, pronto a caçar.
- Tu fizeste afinar o tipo, hein, Tom? - disse Al - Deste-lhe para baixo...
- Era o que ele estava a pedir. Ali a encher-se de pena dele mesmo e a atirar as culpas
todas para cima do tal defeito! É um preguiçoso e um porcalhão, aquele filho da mãe! Mas,
quem sabe? Podia endireitar-se se tivesse alguém que lhe desse conselhos.
- Tom, eu não tive culpa que se queimasse o mancal, pois não?
Tom ficou calado por um instante. E depois:
- Olha, Al, já estou a chatear-me contigo. Porque é que tu tens medo que alguém te
ponha as culpas? Eu sei o que é; és um garoto com a mania das grandezas; pensas que vales
muito. Mas, escuta. Para que é que tu te defendes sempre, se ninguém te ataca?
Al não respondeu. Olhava em frente. O caminhão ribombava estrada fora. Um gato
atravessou-a correndo e Al procurou atropelá-lo, mas as rodas nem o afloraram e o gato
sumiu-se na erva.
- Ia-o apanhando! - disse Al - Escuta, Tom. Tu ouviste o Connie dizer que queria
estudar de noite? Eu pensei também em fazer isso. Podia estudar rádio ou televisão ou
motores Diesel. Era um ponto de partida...
- Talvez - disse Tom. - Mas, primeiro, tens de saber quanto levam para ensinar isso.
E depois, saber ao certo se tens vontade de estudar as lições. Havia tipos em MacAlester
196
que estudavam nesses cursos por correspondência, sabes? Mas, até hoje, não vi ninguém
que os acabasse. As pessoas cansam-se e desistem.
- Santo Deus! A gente esqueceu-se de comer qualquer coisa!
- Para quê? A mãe mandou bastante comida. O reverendo não vai comer tudo aquilo
sozinho. Com certeza que deixou alguma coisa para nós. Só queria saber quanto falta ainda
para a gente chegar à Califórnia.
- Sei lá, meu Deus! Sei que é preciso avançar. Recaíram no silêncio e a escuridão
aprofundou-se mais. As estrelas cintilavam, finas e brancas.
Casy saiu do assento traseiro do “Dodge” e avançou até à berma da estrada quando
avistou o camião.
- Não esperava que vocês voltassem tão depressa - disse. Tom reuniu as peças todas
no pano de serapilheira que estava no chão.
- Tivemos sorte, muita sorte. Até uma lanterna eléctrica arranjámos. Vamos começar
já o trabalho.
- Vocês esqueceram-se de jantar - disse Casy.
- Vou jantar depois, quando terminar isto. O Al, convém encostares o caminhão bem
à valeta da estrada e ajudares-me um pouco, segurando a lanterna.
Foi direito ao “Dodge” e meteu-se debaixo dele. Al deitou-se de barriga para baixo e
assestou a luz da lanterna sob o motor.
- Está a bater-me nos olhos. Levanta-a um pouco mais.
Tom enfiou o pistão no cilindro, fazendo-o girar e empurrando-o devagar. O
revestimento de fio de latão roçava ao de leve as paredes do cilindro. Com um impulso
brusco, fê-lo atravessar os segmentos.
- Que sorte não estar muito apertado, senão, a compressão ia prejudicar isto. Acho
que vai trabalhar como deve ser.
- Espero que o fio não vá embaraçar os anéis - disse Al.
- Pois foi por isso que eu o bati com o martelo. Vai ficar bem fixe, ou vai derreter-se
ou espalhar-se, como se fosse um revestimento de chapa.
- E se arranhar as paredes?
Tom riu.
- Santo Deus! Não tem importância; essas paredes aguentam um arranhãozinho. já
está a beber óleo como a toca de um arganaz. Um pouco mais não tem importância. -
197
Colocou a articulação da biela debaixo do eixo e experimentou a metade inferior. - Vamos
precisar de mais algumas chapinhas. E chamou: - ó Casy!
- Hein?
- Vou montar o mancal. Sente-se ao volante e vá rodando com ele devagarinho até eu
dizer pare. - Apertou os parafusos. - Agora! Devagar! - E, quando o eixo girou, sacudiu o
mancal para lhe experimentar a firmeza. - Tem chapinhas a mais - disse Tom. - Pare, Casy -
Retirou os pinos e removeu as chapinhas de cada lado e tornou a colocar os pinos. -
Experimente outra vez, Casy - disse.- E tornou a ocupar-se da biela. - Está um pouco
frouxo ainda. Se eu tirar mais chapinhas, vai talvez ficar bem assente. Vou experimentar. -
Retirou novamente os pinos e outro par de chapinhas. - Rode agora, Casy!
- Parece que vai! - exclamou Al.
Tom perguntou:
- Gira com dificuldade, Casy?
- Não, acho que está bem.
- Bom, então creio que está feito o serviço. Deus queira que esteja bom. Porque, se
fosse preciso limar alguma coisa, nem ferramenta para isso tínhamos. Essas chaves de
parafusos facilitaram o trabalho que foi uma beleza.
Al disse:
- O dono daquele ferro velho vai ficar danado da vida quando procurar as chaves de
parafusos e não as encontrar.
- Isso é lá com ele - disse Tom. - Nós não roubámos nada. - Enfiou as cavilhas,
bateu-as e virou-lhes as pontas. - Agora sim, acho que está bem. Ouça, Casy. Segure a
lanterna agora; o Al e eu vamos levantar o carter.
Casy ajoelhou-se e pegou na lanterna. Dirigiu o foco de luz sobre as mãos, que,
cuidadosamente ajustavam o empanque no seu lugar e faziam coincidir os buracos com as
cavilhas do carter. Os dois homens retesavam os músculos ao peso do carter, assentaram as
cavilhas dos dois lados; depois, apertaram as outras, e, quando estavam todas no seu lugar,
Tom começou a apertá-las a pouco e pouco, até que o carter ficou bem a prumo, depois do
que apertou a fundo.
- Bom, acho que isto está pronto - disse Tom. Colocou o parafuso de fecho,
examinou cuidadosamente o carter; depois, pegou na lanterna e pôs-se a olhar para o chão.
- Está tudo pronto. Agora vamos encher o depósito novamente.
Saíram de debaixo do carro e deitaram o conteúdo do balde de óleo no carter... Tom
tornou a iluminar a gacheta, para verificar se vertia óleo ou não.
- Pronto, Al, podemos ir - disse.
198
Al entrou no carro e accionou o motor, que emitiu um ronco forte. Um jacto de
fumaça azul escapuliu-se do tubo de escape.
- Pára e deixa o motor a trabalhar! - berrou Tom.- Deixa queimar óleo, até que o fio
se derreta. já está mais fino. - Pôs-se a ouvir atentamente o motor. - Está bom, Al - disse. -
Pára o motor. Acho que está perfeito. E, agora, onde está essa trincadeira?
- Tu és um mecânico dos bons, hein? - elogiou Al.
- Então! Não foi à toa que trabalhei mais de um ano numa garagem. Agora, as
primeiras duzentas milhas, a gente tem de andar devagar - o tempo suficiente para fazer a
rodagem.
Limparam as mãos sujas de óleo a punhados de relva e esfregaram-nas por fim nas
calças. Caíram esfomeados sobre a carne de porco assada e sorveram a água da garrafa em
longos tragos.
- Estava quase a morrer de fome - disse Al - Que é que vamos fazer agora? Vamos ao
acampamento?
- Não sei - disse Tom. - São capazes de querer meio dólar por nós também. Mas é
bom a gente ir até lá e avisar a família. Se for preciso pagar, a gente desanda. Mas o pessoal
tem de saber que a gente já arranjou o carro. Meu Deus, estou satisfeito por a mãe nos ter
prendido aqui! Olha, Al, acende a lanterna e vê se a gente não deixou nada. Traz essas
chaves de parafusos; a gente pode precisar delas outra vez.
Al examinou o chão com a lanterna.
- Não vejo nada - disse.
- Muito bem. Eu é que vou guiar agora. Tu trazes o caminhão, Al.
Tom accionou o motor. O pregador entrou no carro também. Tom meteu em
primeira vagarosamente, para poupar o motor, e Al seguiu-o com o veículo. Atravessou o
barranco também vagarosamente. Tom disse:
- Um “Dodge” destes pode arrastar até uma casa em “primeira”. E está em ponto
morto. É bem bom; para nós, assim, não haverá perigo de se partir o mancal outra vez.
O carro rodava devagar estrada fora. Os faróis de doze volts lançavam uma fraca luz
amarelada sobre o cimento.
Casy virou-se para Tom:
- E engraçado como vocês foram capazes de consertar o carro. Foi só mexer nele um
pouco e pronto. Eu nunca seria capaz de fazer uma coisa dessas. Nem mesmo agora, que vi
fazer esse trabalho.
199
- É preciso aprender em criança - disse Tom. - É só aprender. Não é nenhum bicho
de sete cabeças. Hoje em dia, até uma criança pode desmontar um carro com toda a
facilidade.
Um coelho foi apanhado pela luz dos faróis e fugiu na frente do carro. De vez em
quando, procurava esgueirar-se, com grandes saltos que lhe faziam tremer as orelhas, para
um lado da estrada, mas a muralha de escuridão atirou-o de novo para o meio. Ao longe,
surgiram faróis deslumbrantes, incidindo sobre ele.
O coelho hesitou, voltou-se e correu como um raio de encontro à luz mais fraca do
“Dodge”. Houve um levíssimo choque quando o animal se meteu debaixo das rodas. O
carro que se aproximava ultrapassou-os a toda a velocidade.
- Acho que atropelámos o bicho - disse Casy.
- Acho que sim - confirmou Tom. - Há motoristas que até gostam de atropelar
animais. Eu, sempre que isso acontece, fico com uma tremura cá por dentro. O carro
parece que está uma beleza. Os segmentos devem estar à vontade agora. já não deita tanto
fumo!
- Foi um bonito serviço, o seu - disse Casy.
Uma casinha de madeira dominava o acampamento e, na varanda da casa, ardia,
ciciante, um candeeiro de gasolina, que projectava um largo círculo de luz branca. Havia
meia dúzia de tendas armadas em redor da casinha, e os carros estacionavam perto das
tendas. já terminara o preparo da refeição da noite, mas as brasas das fogueiras do
acampamento luziam ainda, no chão, junto dos lugares onde as pessoas haviam acampado.
Um grupo de homens estava reunido na varanda em volta da lâmpada de gasolina, e as suas
faces recortavam-se firmes e musculosas na claridade crua da luz. Os chapéus projectavam
sombras negras sobre as frontes e os olhos e os queixos adquiriam um relevo exagerado.
Alguns homens estavam sentados nos degraus; outros, no chão, recostavam os cotovelos
no piso da varanda.
O proprietário, um sujeito de rosto magro e rabugento, ocupava uma cadeira na
varanda, encostando-se à parede e tamborilando com os dedos no joelhos. Dentro de casa,
ardia uma lâmpada de querosene, cuja luz frouxa era neutralizada pelo intenso clarão
branco e silvante do candeeiro de gasolina. O, grupo rodeava a cadeira do proprietário.
Tom dirigiu o “Dodge” para a beira da estrada e parou. Al passou o portão com o
seu veículo.
200
- Não é preciso levá-lo lá para dentro - disse Tom. Saltou, foi andando, passou o
portão e foi em direcção à claridade da lanterna.
O proprietário deixou os pés dianteiros da cadeira pousarem no chão e inclinou-se
para a frente.
- Querem acampar aqui? - perguntou.
- Não - disse Tom. - Temos aqui a família. Olá, pai!
O pai, que estava sentado no primeiro degrau da escada, disse:
- Pensei que vocês iam ficar fora pelo menos uma semana. Está tudo pronto?
- A gente teve uma sorte danada - disse Tom. - Arranjámos a peça antes de anoitecer.
Podemos continuar a viagem amanhã de manhã.
- Ainda bem - disse o pai.- A mãe anda preocupada. A avó está fora dos eixos.
- Sim, o Al já me contou. Não está melhor?
- Não! Mas, pelo menos, consegue dormir.
O proprietário interveio:
- Se vocês quiserem pernoitar aqui, vão ter de gastar um pouco. Mas aqui há muito
lugar e água e lenha para fazer fogo. E ninguém os incomodará.
- Qual o quê? - disse Tom. - Nós vamos dormir mas é lá fora no barranco. Ali não se
gasta nem um chavo.
O proprietário tamborilou com os dedos nos joelhos.
- O sheriff costuma passar por aqui todas as noites. Pode embirrar com vocês. Há uma
lei que proíbe que se durma na estrada. O nosso Estado tem uma lei contra a
vagabundagem.
- Quer dizer que, se eu pagar meio dólar para dormir aqui, não sou um vagabundo,
hein?
- É isso mesmo.
Os olhos de Tom brilharam de cólera:
- E se sheriff não será algum cunhado seu?
O proprietário debruçou-se ainda, mais para a frente.
- Não, não é. E ainda não chegámos ao ponto - nós, os que somos daqui - de ouvirdesaforos
de mendigos da sua espécie, ouviu?
- Quando se trata de nos esfolar o dinheiro, já não somos mendigos, hein? E, se
fôssemos mendigos, que tinha você com isso, desde que lhe não pedíssemos nada? Com
que então todos nós somos mendigos, hein? Pois olhe que lhe não estamos a pedir dinheiro
para, termos o direito de dormir no chão.
201
Os homens esperavam, rígidos e em frio silêncio. Toda a expressão desaparecera das
suas faces; e os olhos, sob a sombra projectada pelos chapéus, moviam-se subtilmente em
direcção ao proprietário do acampamento.
O pai resmungou:
- Acabou-se, Tom!
- Está bem, acabou-se.
O círculo de homens que estavam nos degraus ou encostados à varanda, manteve-se
em silêncio. Os seus olhos reluziam sob a luminosidade crua do candeeiro de gasolina. Os
traços dos seus rostos endureciam sob a luz intensa. Continuavam imóveis. Somente os
seus olhares passavam de interlocutor a interlocutor, sem que as faces perdessem a rigidez
inexpressiva. Uma borboleta nocturna bateu de encontro ao candeeiro; queimou-se e caiu
na escuridão.
Numa das tendas, uma criança vagia e uma voz branda de mulher procurava aquietála.
Cantou depois, baixinho: “O Menino Jesus é teu amiguinho durante a noite. Dorme,
dorme bem. Jesus vela por ti durante a noite. Dorme, ó dorme!”
O candeeiro da varanda ciciava. O proprietário coçava o triângulo da abertura da
camisa, por onde lhe aparecia o peito coberto de pêlos brancos, todos emaranhados.
Mostrava-se atento e receoso. Olhava os homens que o cercavam. Olhava, à espera de
alguma manifestação, mas os homens mantinham-se absolutamente imóveis.
Tom ficou em silêncio por longo tempo. Os seus olhos escuros dirigiram-se
lentamente para o dono do acampamento.
- Não quero fazer barulho - disse. - Mas é duro chamarem-nos mendigos. Fique
sabendo que eu não sou nenhum medroso. Se quisesse, saltava em cima de si e do seu sheriff
com estes punhos que Deus me deu - disse baixinho.- Mas não vale a pena.
Os homens começaram a movimentar-se, mudaram de posição e de lugar, e os seus
olhos brilhantes fitaram os lábios do dono do acampamento, aguardando que eles se
movessem. O homem tranquilizou-se. Sentiu que tinha ganho a partida, mas não com tanta
segurança que lhe permitisse. tentar novo ataque.
- Você não tem meio dólar? perguntou.
Naturalmente que tenho, sim. Mas vou precisar dele. Não posso desperdiçá-lo só por
causa de uma dormida.
- Toda a gente tem de ganhar a vida.
- Está certo - disse Tom. - Mas sem tirar para isso a camisa aos outros.
Os homens tornaram a agitar-se. E o pai atalhou:
202
- Nós partimos amanhã de manhã cedo. Mas olhe, senhor, nós pagámos. E este rapaz
faz parte da nossa família. Ele não pode ficar? A gente já pagou.
- É meio dólar cada carro - respondeu o proprietário.
- Mas ele não trouxe carro. Deixou-o lá fora, na estrada.
- Mas veio de carro - teimou o proprietário. Se eu fosse a consentir semelhante coisa,
toda a gente deixava o carro lá fora e não me pagava nada para dormir aqui.
Tom interveio:
- Eu vou levar o carro um pouco mais para lá, e, de manhã, venho buscar o senhor e
os outros. O Al pode ficar, o tio John pode vir connosco... - Virou-se para o proprietário. -
Convém-lhe assim?
O dono deu um balanço rápido à situação e resolveu condescender:
- Desde que fiquem tantos quantos vieram e pagaram, não tenho nada com isso.
Tom tirou a onça de tabaco, uma onça esfarrapada e desbotada, que tinha no fundo
apenas um pouco de moinha. Fez um cigarro fininho e atirou fora o pacote vazio.
- Nós vamos indo - disse.
O pai virou-se para o círculo dos homens:
- E um bocado custoso fazer o que nós fizemos. Nós tínhamos a nossa fazendinha
própria. Não andávamos por aí sem eira nem beira. Esses diabos desses tractores acabaram
com tudo.
Um alto e magro, de sobrancelhas amarelecidas pela acção do sol, ergueu vagarosamente
a cabeça.
- Caseiros? - perguntou.
- Colhíamos a meias. Antigamente, a terra era só nossa.
O jovem tornou a olhar em frente.
- Como nós - disse.
- Felizmente já não vai durar muito - disse o pai. - A gente vai para o Oeste, para
arranjar trabalho e amanharmos um pedacinho de terra outra vez, com água e tudo.
A um canto da varanda, estacionava um homem esfarrapado. Do casaco preto,
pendiam-lhe tiras de pano rasgado... e os joelhos das calças estavam completamente gastos.
Tinha o rosto negro de imundície, e sulcado por onde o suor escorrera. Virou a cabeça na
direcção do pai.
- Então vocês devem ter economizado um bocado.
- Não, a gente não conseguiu economizar dinheiro nenhum - disse o pai. - Mas a
nossa família é grande e todos podem trabalhar. E lá, no Oeste, eles pagam bons salários. A
gente economiza e então compra um pedaço de terra outra vez.
203
O homem esfarrapado encarou o pai e depois riu, num riso que acabou por se
transformar num relincho prolongado. O círculo de rostos virou-se para o homem que ria.
O relincho degenerou num acesso de tosse. Os olhos do homem estavam vermelhos e
lacrimejavam quando, por fim, conseguiu dominar-se.
- Vocês vão... vocês vão para o Oeste? O Deus do céu! - Começou a rir novamente.-
Vão para o Oeste... bons salários, hein?... Deus do céu! - Parou e acrescentou em tom
irónico: - Colher laranjas, não é? E pêssegos, não é?
O pai disse, cheio de dignidade:
- A gente faz o serviço que houver. E lá há serviço à farta...
O homem esfarrapado relinchou com mais discrição. Tom irritou-se:
- Que é que você acha de engraçado nisto?
O homem esfarrapado calou a boca e olhou carrancudo para as tábuas do chão da
varanda:
- Aposto que vocês vão todos para a Califórnia - disse, por fim.
- Olha que admiração! Então não lho disse já? - replicou o pai.
O esfarrapado disse lentamente:
- Pois... eu venho justamente de lá. Estive lá algum tempo.
Todos os rostos se voltaram para ele. Os homens não se mexiam. O cicio do
candeeiro degenerou num suspiro e o proprietário do acampamento deixou poisar os pés
dianteiros da cadeira no chão; ergueu-se e deu à bomba do candeeiro, até que o silvo
vibrou de novo agudo e forte. Voltou para a cadeira, mas não a encostou à parede. O
esfarrapado virou-se para os circunstantes:
- Voltei para morrer de fome. Assim como assim, prefiro morrer de fome o mais
depressa possível.
- Mas que diabo está você a dizer, afinal de contas? - perguntou o pai. - Eu tenho um
papel que diz que eles pagam bons salários e li há tempos no jornal que eles precisam de
muita gente para a colheita da fruta.
O esfarrapado perguntou:
- Vocês não têm para onde ir? Não podem voltar para casa?
- Não - disse o pai. - Expulsaram-nos. Passaram um tractor por cima da casa.
- Então não podem voltar para trás?
- Claro que não.
- Então não vale a pena desencorajá-los - disse o esfarrapado.
204
- Nem nos desencoraja. Pois se eu vi esse papel que dizia que eles precisavam de
gente! Se eles não precisassem de gente, era um disparate gastarem dinheiro em impressos.
Nem os distribuiriam se não precisassem de gente.
- Está bem; não quero desencorajá-los.
O pai gritou colérico:
- Agora, que já começou a dizer asneiras, não fique calado, ouviu? Estava lá escrito:
“Precisa-se de gente.” E você aí a rir-se e a dizer que é mentira. Quem é que mente, afinal
de contas?
O esfarrapado fixou bem os olhos irritados do pai. Parecia triste.
- O papel diz a verdade - respondeu. - Lá precisar de gente, precisam.
- Então porque é que você ri tanto?
- É porque vocês não sabem de que espécie de gente é que eles precisam.
- Como, que espécie de gente?
O esfarrapado tomou uma decisão:
- Ouça, senhor. Quanta gente diz o papel que eles precisam?
- Oitocentos e isto é só num sítio.
- É um papel cor de laranja, não é?
- É sim, porquê?
- Tem o nome do tipo... fulano de tal... engajador?
O pai meteu a mão no bolso e retirou o impresso dobrado.
- É isso mesmo - confirmou. - Como é que você sabe?
- Ouça - disse o homem. - Isso não faz sentido. Esse tipo quer oitocentos homens.
Manda imprimir cinco mil desses papelinhos, que umas vinte mil pessoas lêem. Vão para lá
pelo menos umas duas, três mil pessoas, por causa desse papel. Pessoas que já não sabem
onde têm a cabeça com tanta preocupação.
- Mas isso não se compreende - gritou o pai. - Mas vão compreender quando falarem
com o tipo que mandou distribuir esses papéis. Com ele ou com qualquer outro que
trabalhe para ele. Vocês vão pernoitar nas valas das estradas, juntamente com outras
cinquenta famílias mais. E ele vai procurar a vossa tenda, a ver se vocês ainda têm de
comer. E quando vocês já não tiverem nada, pergunta-lhes assim: “Querem trabalhar?” E
vocês respondem: “Queremos, sim, senhor. Que bom se o senhor nos arranjasse trabalho!”
E ele dirá: “Talvez se possa arranjar alguma coisa.” E vocês perguntam: “Quando
poderemos começar?” E ele então diz-lhes para onde devem ir e quando e depois vai-se
embora. Talvez ele precise de umas duzentas pessoas, mas fala com quinhentas, pelo
menos, que contam a coisa a outras, de modo que, quando vocês chegarem ao lugar
205
marcado, já lá encontram umas mil pessoas. Aí, esse sujeito que falou com vocês, diz: “Eu
pago vinte cents a hora.” E então, pelo menos metade das pessoas vai-se embora. Mas ainda
ficam outras quinhentas que estão a morrer de fome e que querem trabalhar nem que seja
para poderem comprar pão. E esse sujeito tem um contrato que o autoriza a mandar colher
pêssegos ou algodão. Compreende agora? Quanto mais gente esfomeada eles arranjam,
menos precisam de pagar como salário. E eles preferem gente que tenha filhos, porque
então... caramba! ... não quero desiludi-los mais. - O círculo de faces encarava-o com frieza.
Os olhos mediam-lhe as palavras. O esfarrapado sentiu-se constrangido. - Eu disse que não
valia a pena tirar-lhes as ilusões e acabei por dizer tudo. Vocês têm de continuar a viagem,
claro. Não podem voltar para trás.- O silêncio caiu sobre a varanda. O candeeiro assobiava
e uma nuvem de mosquitos dançava constantemente em torno da luz. O esfarrapado
continuava nervoso.- Vou dizer-lhes o que devem fazer quando aquele sujeito vier e disser
que tem trabalho para vocês. Perguntem-lhe quanto paga. Digam-lhe para declarar por
escrito quanto vai pagar. Digam-lhe isso. Se o não fizerem, vão ser levados ao engano.
O proprietário inclinou-se na cadeira para ver melhor aquele esfarrapado coberto de
sujidade. Coçou a pele entre os cabelos grisalhos do peito e disse com frieza:
- Ouça lá; você não é um desses agitadores que andam por aí, hein? Um desses que
arranjam sarilhos entre os trabalhadores?
E o esfarrapado clamou:
- Eu?! juro por Deus que não!
- E porque andam muitos desses por aqui - disse o dono. - Só vivem provocando
ódios .Fazem o pessoal maluco. Só estão bem a meter-se no que lhes não diz respeito. Um
dia vão ser todos enforcados, esses derrotistas. Ou então vamos expulsá-los do país. É isto!
Se um homem quiser trabalhar... fixe! Se não quiser, que vá para o inferno. Mas que não
venha provocar sarilhos.
O esfarrapado empertigou-se:
- Bem, eu só quis avisá-los, ouviram? Agora já sabem como é - disse. - A mim levoume
um ano inteiro a saber isso tudo. Custou-me a vida da mulher e de dois filhos. Mas
vocês não querem acreditar. Não devia dizer nada, é o que é. Eu também não queria
acreditar quando alguém me dizia isso. Não, não, vocês não podem acreditar! Quando as
crianças estavam deitadas na tenda, de barriga inchada, que só tinham a pele e o osso, e
tremiam e choravam que nem cachorrinhos, eu saí feito louco para arranjar trabalho, nem
que fosse para ganhar uma miséria. Não queria salário, não queria dinheiro! - gritou. -
Queria só um pouco de leite, um punhado de farinha, uma colherada de banha! Meu
Deus!... Depois veio o médico legista. “As crianças morreram do coração” - disse ele.
206
Escreveu isso num papel que trouxe. Tremiam e tinham a barriga inchada, que nem a
bexiga de um porco.
Os homens, em volta, estavam silenciosos, de bocas entreabertas. A sua respiração
saía opressa. Escutavam,
O homem olhou em volta, depois do que virou as costas ao grupo e caminhou
rapidamente até se sumir na escuridão. A escuridão tragou-o mas os seus passos arrastados
ouviram-se por muito tempo ainda sobre o cimento da estrada, onde um carro o tornou
visível à luz dos faróis um instante, arrastando-se pela faixa, de cabeça pendida sobre o
peito e mãos nos bolsos do casaco preto.
Os homens sentiam-se inquietos. Alguém disse:
- Bom, já é tarde. Vou dormir.
O proprietário insinuou:
- Deve ser um tipo sem eira nem beira. Há muitos assim agora pelas estradas.
Depois, ficou calado. Tornou a encostar a cadeira à parede e pôs-se a mexer com os
dedos no pescoço.
Tom disse:
- Acho que ainda vou falar um bocadinho com a mãe. Depois, vamo-nos.
E os Joads saíram dali.
- Imagina se esse tipo falou verdade... - murmurou o pai.
O pregador respondeu:
- Claro que disse a verdade. A verdade do que lhe aconteceu. Não inventou nada.
- E connosco como é que irá ser? - perguntou Tom. - Irá ser a mesma coisa?
- Não sei - disse Casy.
- Não sei - repetiu o pai.
Foram andando até à tenda, - o pedaço de lona esticado por quatro paus. No interior,
reinava a escuridão e havia silêncio. Quando já se encontravam perto, uma massa
acinzentada agitou-se perto da entrada e erguendo-se, atingiu proporções humanas. Era a
mãe que vinha ao encontro deles.
- Estão todos a dormir - disse ela.- A avó também, graças a Deus. - Depois viu que
era Tom quem vinha. - Como é que tu vieste para cá? - perguntou ansiosa. - Não tiveste
aborrecimentos?
- A gente já fez o conserto - volveu Tom. - Podemos continuar a viagem quando
estiverem prontos.
- Graças a Deus - disse a mãe.- Estou ansiosa por partir. Já quase não aguento mais.
Tomara já chegar onde há fartura e vegetação! Quanto mais depressa, melhor.
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O pai pigarreou:
- Agora mesmo um camarada esteve a dizer...
Tom agarrou-lhe o braço, sacudindo-o ligeiramente.
- Engraçado o que ele esteve a dizer... - interrompeu Tom. - Disse que há imensa
gente a caminho.
A mãe lançou-lhe um olhar através da escuridão. Dentro da tenda, Ruthie tossia e
ressonava alto.
- Lavei as crianças - disse a mãe. - Foi a primeira vez que nos deram bastante água
para as lavar como deve ser. Deixei o balde lá fora, que é para vocês também se lavarem. A
gente suja-se muito nestas viagens...
- Estão todos lá dentro? - perguntou o pai.
- Todos, menos o Connie e a Rosasharn. Querem dormir lá fora. Dizem que cá na
tenda há muito calor.
O pai observou em tom rezingão:
- Essa Rosasharn está muito enjoada, toda não-me-toques.
- É porque é a primeira vez - disse a mãe.- Ela e o Connie passam a vida a falar nisso.
Tu também eras a mesma coisa.
- Bem, precisamos de ir - tornou Tom.- Vamos estacionar um pouco ali adiante, na
estrada. Prestem atenção, caso a. gente os não veja. Vamos ficar do lado direito.
- E o Al? Fica aqui?
- Fica. Por isso é que o tio John vem connosco. Boa noite, mãe! Atravessaram o
acampamento adormecido. Diante das tendas ardia uma fogueira vacilante e baixa, ao pé da
qual rima mulher estava acocorada, a preparar a refeição da manhã seguinte.
O cheiro do feijão que ela cozinhava era forte e apetitoso.
- Quem me dera agora um bom prato de feijão! - disse Tom, polidamente, ao passar.
A mulher sorriu:
- Está às suas ordens... quando estiver pronto. É só vir até aqui ao alvorecer.
- Muito obrigado - agradeceu Tom.
Ele, o tio John e Casy passaram pela varanda. O proprietário ainda lá estava, sentado
na cadeira, e a lâmpada sibilante, flamejava. Voltou a cabeça para os três homens que iam
passando.
- Precisa de deitar gasolina nesse candeeiro - disse-lhe Tom.
- Para quê? Está na hora de fechar.
- Agora já não há mais nenhum meio dólar a rolar pela estrada - comentou Tom.
Os pés da cadeira poisaram no chão.
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- Não me chateies! já te conheço! És um desses agitadores que andam por aí.
- Pois sou mesmo - disse Tom. - Sou um bolchevista.
- É isso! Há muitos da tua espécie!
Tom ia a rir quando saíram pelo portão direitos ao “Dodge”. Abaixou-se para
apanhar um torrão de terra e atirou-o com força contra a luz que ardia na varanda.
Ouviram-no bater de encontro à casa e viram o dono do acampamento erguer-se num pulo
e sondar a escuridão. Tom accionou o motor do carro, que retomou a estrada. Escutou
com atenção o barulho do motor, no receio de ouvir pancadas estranhas. A estrada
desenrolava-se na penumbra, sob a luz débil dos faróis.
4ª parte »»»