Capítulo XVII
Os carros dos emigrantes arrastavam-se pela estrada principal, vindos dos caminhos
que a cruzavam, e despejavam populações para o Oeste. À luz do dia, marchavam como
percevejos nesse rumo; quando a escuridão baixava, agrupavam-se como percevejos à volta
de um abrigo ou em regiões onde a água abundava. E isso, porque todos os que fugiam se
sentiam solitários e perplexos, porque tinham vindo de terras, em que reinava a tristeza e a
preocupação, porque iam para uma terra nova e misteriosa. Agrupavam-se estreitamente,
falavam uns com os outros sobre as esperanças que depositavam na nova terra, dividiam
entre si a comida, a própria vida. Às vezes, uma família acampava próximo de uma
nascente de água e vinha outra e acampava também no mesmo lugar, por causa da nascente
e da companhia e ainda vinha uma terceira por causa das duas famílias que já ali se
encontravam, por acharem o sítio bom. E, quando o sol caía no horizonte, já lá havia bem
vinte famílias e vinte carros.
À noite acontecia uma coisa estranha: as vinte famílias tornavam-se uma só família;
as crianças eram filhos de todas. A perda de um lar tornava-se uma perda colectiva, e o
sonho dourado do Oeste, um sonho colectivo. E podia acontecer que uma criança enferma
enchesse de pena os corações de vinte famílias, de cem pessoas; que um parto numa tenda
mantivesse cem pessoas em silêncio e em expectativa durante uma noite e que a manhã
seguinte encontrasse cem pessoas felizes cora o êxito de um parto de gente estranha. Uma
família que, uma noite antes tivesse errado apavorada na estrada, era capaz de procurar
entre os seus parcos tesouros, algo que se pudesse dar de presente ao recém-nascido. À
noite, sentados em redor da fogueira, os vinte perfaziam um só; uniam-se como um só, nos
acampamentos, quer de tarde, quer de noite. Uma guitarra surgia então de sob um
cobertor, e soava tristemente e entoavam-se canções - canções populares. Os homens
cantavam a letra e as mulheres cantarolavam a melodia.
Todas as noites, um mundo surgia: amizades se cimentavam; inimizades se criavam;
um mundo completo, com gabarolas e covardes, com gente silenciosa, com gente
sossegada, gente humilde e gente bondosa. Todas as noites se entabulavam relações,
relações que modelavam um mundo, e todas as manhãs esses mundos se desfaziam como
circos ambulantes.
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A princípio, as famílias titubeavam nas montagens e desmontagens desses mundos;
mas, gradualmente, conseguiam assenhorear-se da técnica. da construção desses mundos.
Os chefes surgiam; faziam-se leis e códigos. E, à medida que os mundos se deslocavam
para o Oeste, mais e mais completos e bem apetrechados se tornavam, porque os seus
construtores já tinham adquirido mais experiência.
As famílias aprendiam quais as leis que deviam observar as leis da vida privada nas
tendas, as leis do encerramento do passado no coração, as leis de ouvir e calar, as leis de
aceitar ou recusar auxílio, de oferecer auxílio ou de o recusar; as leis de um filho fazer a
corte a uma rapariga e as de uma filha aceitar a corte de um rapaz; as leis que permitiam dar
de comer aos famintos; as leis das mulheres grávidas e dos enfermos, que sobrepujavam
todas as outras.
E as famílias aprendiam, embora ninguém o tivesse ensinado, quais as leis que
deviam ser monstruosas e ser destruídas; o direito de se penetrar na vida particular, o
direito de falar alto quando no acampamento todos dormiam, o direito da sedução e do
estupro, o direito do adultério, do roubo e do assassínio. Esses direitos eram esmagados,
porquanto os pequenos mundos não poderiam passar uma só noite sequer desde que eles
se mantivessem.
E, à medida que esses pequenos mundos se moviam rumo ao Oeste, os regulamentos
transformavam-se em leis, embora ninguém notificasse as famílias nesse sentido. É contra a
lei sujar o local, é contra a lei poluir, de qualquer maneira, a água colectiva, é contra a lei
comer coisas boas, suculentas, perto de uma pessoa esfaimada, a não ser que se lhe dê
alguma coisa.
E, com as leis, surgiram as medidas punitivas, que eram somente duas: uma luta
rápida, de morte, ou então o exílio; e o exílio era o pior. Porque, quando alguém quebrava
as leis e se ia embora, o seu nome e os traços da sua fisionomia depressa se divulgavam,
não encontrando, por isso, abrigo em nenhum dos pequenos mundos, onde quer que estes
fossem construídos.
Nesses mundos, a conduta social tornou-se rígida e fixa, de maneira que um homem
tinha de responder “bom dia” a quem o cumprimentasse, um homem podia viver com uma
pequena e, se ficasse com ela, teria de a proteger e aos filhos que ela tivesse. Mas a ninguém
era permitido ter uma pequena uma noite e outra na seguinte, pois tal coisa viria pôr em
perigo os mundos.
As famílias moviam-se rumo ao Oeste, e a técnica da construção dos tais mundos
melhorava, de maneira que os homens se sentiam neles em segurança; e tudo era edificado
de maneira que uma família, que observava as leis, sabia que estas a protegiam.
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Formavam-se governos, governos com chefes e anciãos. Um homem inteligente
descobria logo que a sua inteligência era de utilidade nos acampamentos; um homem
imbecil não conseguia colocar a sua imbecilidade no mundo. E uma espécie de seguro se
desenvolvia nessas noites. Um homem que tinha de comer alimentava outro que nada
tinha, e dessa maneira assegurava a alimentação a si mesmo para quando as suas reservas se
esgotassem. E, quando uma criança morria, uma pequena pilha de moedas ia juntar-se à
porta da tenda dos país, pois uma criança tem de ter um enterro condigno, já que nada
obteve da vida. Um adulto podia ser sepultado na fossa comum; uma criança, nunca.
Para a construção de um mundo tornam-se indispensáveis certos requisitos naturais:
água, a margem de um rio, uma corrente, uma fonte ou mesmo um encanamento sem
vigilância. É indispensável certa quantidade de terra plana, onde as tendas e possam armar,
certa porção de galhos secos ou de lenha para fazer fogueiras. Se existir perto do local um
depósito de lixo, tanto melhor, pois que neles sempre se acham coisas úteis: chapas de
fogão, uma grade de chaminé para proteger o fogo, e latas de conserva que podem servir de
panelas e de pratos.
E os mundos eram construídos à noite. Os homens, vindos da estrada, construíamnos
com as suas tendas, os seus corações e os seus cérebros.
Pela manhã, desarmavam-se as tendas; as lonas enrolavam-se; amarram-se as estacas
umas às outras nos estribos dos carros; as camas e os utensílios de cozinha dispunham-se
nos veículos. E à medida que as famílias se moviam rumo ao Oeste, a técnica de
construção de um lar, à noite, e do seu desarmamento de manhã tornava-se fixa; assim, a
tenda arrumava-se em sítio certo, os utensílios de cozinha contavam-se antes de se
meterem nas caixas próprias. E, à medida que as famílias se deslocavam rumo a Oeste, cada
membro da família sabia qual era o seu lugar, quais os seus deveres; de maneira que todos
os referidos membros - velhos e moços - tinham o seu lugar determinado nos veículos, de
modo que, nas noites quentes e extenuantes, quando os carros chegavam aos
acampamentos, cada membro de família sabia o que tinha a fazer e fazia-o sem esperar
instruções: as crianças juntavam lenha ou acarretavam água; os homens armavam as tendas
e descarregavam as camas dos veículos; as mulheres preparavam a comida e cuidavam de
tudo, enquanto a família comia. E isto era feito sem vozes de comando; as famílias, cujas
fronteiras eram uma quinta de dia e uma casa de noite, mudavam as suas fronteiras. Sob a
prolongada e quente luz do sol, mantinham-se em silêncio nos carros que as levavam para
o Oeste, mas, de noite, uniam-se ao primeiro agrupamento que encontravam.
Assim modificavam a sua vida social - modificavam-na como só o homem em todo o
Universo sabe fazê-lo. Deixara de haver lavradores fazendeiros; o que havia era homens
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que emigravam. E os pensamentos, os planos, os prolongados silêncios que, até então
recaíam sobre o campo, mudavam-se agora para as estradas, para a distância, para o Oeste.
O homem que antes pensava em acres, pensava agora em milhas. E os seus pensamentos e
as suas preocupações já se não cingiam à chuva, ao vento, à poeira, à sua fé no resultado
das colheitas... Os olhos vigiavam o5 pneus; os ouvidos escutavam os roncos dos motores
e as suas preocupações concentravam-se em torno do óleo, da gasolina, da fina película de
borracha que se ia gastando entre as rodas e o chão. Uma roda de engrenagem partida
redundava em tragédia. A água, à noite, e a comida ao lume eram as únicas aspirações, A
saúde era indispensável para o prosseguimento da viagem; era a força necessária, o espírito
necessário para prosseguir. A vontade antecipava-lhes os passos, e o medo, que outrora só
as secas e as inundações provocavam, era agora despertado por tudo o que pudesse opor
barreira ao avanço para o Oeste.
A altura de acampar tornou-se fixa; faziam-no ao fim de cada dia de viagem.
Nas estradas o pânico dominava algumas famílias, de tal maneira que viajavam de
noite e de dia; quando paravam, era para dormir nos próprios veículos, a fim de
continuarem depressa a viagem para Oeste. O desejo de, finalmente, se fixarem era tão
grande que eles voltavam os rostos para Oeste, e viajavam, viajavam sem cessar, forçando
os motores cheios de estalidos.
Mas a maioria das famílias aceitava a mudança, adaptando-se rapidamente ao novo
ritmo de vida. E, quando o Sol tombava no horizonte...
É tempo de arranjar um sítio para acampar.
É. Ali adiante há umas tendas...
O veículo encostava-se à beira da estrada e parava, e, porque os outros haviam
chegado antes, impunha-se uma certa delicadeza. E o homem, o chefe de família,
debruçava-se do carro:
A gente pode pernoitar aqui, hein?
Pois não. Muito prazer. De que Estado são?
Vimos dos confins do Arkansas. Do Arkansas? Pois olhe, ali adiante, na quarta tenda
a contar daqui, mora gente do Arkansas.
Sim?
E a pergunta mais importante:
- Que tal, a água?
Bem, não é lá grande coisa, está meio suja, mas há bastante.
Bom, muito obrigado.
Não tem de quê.
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Mas a cortesia é necessária, indispensável. O veículo anda aos solavancos até à última
tenda e pára. Aí todos descem, fatigados, e põem-se a distender os músculos rígidos da
viagem. Depois, arma-se a nova tenda; as crianças mais novas vão buscar água e as mais
velhas tratam de juntar ramos secos e gravetos para o lume. Acende-se este e põem-se os
alimentos a cozer ou a fritar. Os que tinham chegado antes acercam-se dos recém-vindos,
interrogam-nos sobre de que Estado são e muitas vezes descobrem-se amigos e até
parentes.
É de Oklahoma? E de que região?
Cherokee.
Ah, sim? Pois eu tenho lá parentes. Conhece os Allens? Em Cherokee, há Allens por
todos os cantos. Conhece os Willies?
Se conheço!
E uma nova unidade se formava deste modo. O crepúsculo avançava, mas, antes que
as trevas descessem, já a nova família fazia parte do acampamento. já se haviam trocado
palavras com todas as outras famílias. Era gente conhecida, gente boa.
Conheci os Allens toda a minha vida. Simão Allen, o velho Simão, estava sempre a
zaragatear com a primeira mulher. Ela era de Cherokee, por um lado. Era linda que... nem
um potro negro.
Se era! E o filho dele, aquele que casou com uma Rudolph, lembra-se? Parece que
eles moram em Enid. Estão bem como bem.
É o único dos Allens que está bem na vida. Tem uma garagem.
Acarretada a água e cortada a lenha, as crianças caminhavam acanhadas, cautelosas,
entre as tendas. E recorriam a complicada mímica para travarem conhecimentos. Um
menino parava perto de outro menino e apanhava uma pedra; examinava-a muito bem,
cuspia-lhe em cima e limpava-a, ficando-se a olhá-la tanto tempo que o outro não se tinha
sem perguntar:
Que é que tu tens aí?
Nada. Uma pedra.- Era a resposta como que casual.
Então porque olhas tanto para ela?
Parece-me que tem ouro dentro.
Como é que tu sabes? O ouro dentro de uma pedra não brilha, é preto.
Ora! Toda a gente sabe isso.
Aposto que é porcaria e tu julgavas que era ouro.
Nada disso. Eu conheço o ouro. O meu pai já achou ouro à farta e ensinou-me a
descobri-lo.
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Isso é que era bom descobrir um pedaço de ouro. Era canja.
Ai, não! Ia comprar um filho da mãe de um chupa-chupa grande como o diabo!
A mim não me deixam dizer palavrões mas eu cá vou-os dizendo à mesma...
Eu também. Vamos até à nascente.
E também as raparigas travavam conhecimento e exibiam, com ar pudico, os seus
triunfos e namoricos. As mulheres trabalhavam junto do lume, na pressa de saciarem a
fome dos estômagos vazios da família - carne de porco - quando havia dinheiro suficiente,
batatas e cebolas. Empadas ou pão de centeio com bastante molho por cima. Bifes ou
costeletas, com uma chávena de chá preto, amargo. Sonhos fritos em banha, quando o
dinheiro era pouco, sonhos tostados e estaladiços, regados com molho.
As famílias muito ricas ou gastadoras comiam feijão e pêssegos de conserva, pão e
bolos de confeitaria, mas faziam-no às escondidas, nas suas tendas, pois parecia mal
servirem-se de tão boas coisas à frente de todos. E, ainda assim, as crianças que comiam
sonhos fritos adivinhavam no ar o cheiro das refeições a aquecer e sentiam-se infelizes.
Terminada a refeição, caía a noite; então, os homens acocoravam-se para conversar.
E falavam das terras que tinham deixado para trás. Não sei como vai ser, diziam eles.
Este país está por conta do diabo.
Há-de voltar a ser o que era, mas nós é que lá não estaremos.
Um tipo do administrador disse-me: vocês deixaram a terra encher-se de barrancos.
Se tivessem feito os sulcos de través, em vez de tornear a terra, não teriam feito barrancos.
Mas eu nunca experimentei. E o tractor deles, esse, não sua com o trabalho. Não dá a volta
ao terreno; vai sempre a direito e faz logo um sulco fundo de quatro milhas de comprido e,
quanto a tornear alguma coisa, só se for a Deus em pessoa!
Talvez a gente tivesse pecado sem saber.
E falavam em voz baixa dos seus antigos lares: havia uma cisterna debaixo da roda
do moinho. A gente punha o leite lá dentro, que era para fazer nata, e também as melancias
para gelar. Quando fazia um calor de rachar, lá na adega estava um fresco bom a valer. Ali,
a gente abria uma melancia e quase que a não podia comer, de tão fria que estava. A água
corria da cisterna.
E cada um contava as tragédias que o haviam afligido:
Eu tinha um irmão - o Charlie, louro como uma espiga de milho e enorme. Sabia
tocar harmónica que era uma beleza. Um dia andava a limpar os sulcos elo arado. Bem, de
repente, uma cascavel saltou mesmo junto dele, os cavalos assustaram-se e as grades do
arado foram espetar-se-lhe na barriga dele e levaram a cara toda. Que horror, meu Deus!
Falavam sobre o futuro. Só queria saber como é a vida lá no Oeste.
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Bom, pelas estampas que a gente viu, parece que aquilo por lá é bonito. Eu vi uma
linda, que parecia do tempo quente e tinha umas nogueiras e uns pés de groselha... mesmo
por detrás, tão perto como os pêlos do rabo de uma mula uns dos outros! Havia umas
montanhas enormes cobertas de neve. Era uma estampa bonita a valer,
O que é preciso é arranjar trabalho. Nunca teremos frio, nem mesmo no Inverno as
crianças apanharão frio quando forem para a escola. Hei-de fazer de maneira que os meus
filhos não percam nenhuma aula. Eu leio mal, por isso nunca acho tanto prazer tia leitura
como os que sabem ler bem.
Às vezes, um homem puxava da guitarra, sentava-se num caixote, em frente da sua
tenda e tocava. Todos se juntavam em volta dele atraídos pela música.
Muita gente sabe tocar guitarra, mas talvez esse homem seja um artista de verdade. E,
então, tudo se torna diferente: os tons baixos ressoam, enquanto a melodia corre a
passinhos miúdos pelas cordas. Dedos pesados e dedos que martelam o braço da guitarra.
O homem tocava e os outros iam-se reunindo à volta dele, até que o círculo se fechava por
completo. Depois ele cantava “Ten Cent Cotton and Forty - Cent Meat”. E o círculo de homens
cantava baixinho com ele. E ele cantava “Why do You Cut Yotir Hair, Girls?”. E a roda
cantava. Gemia depois uma canção saudosa: “Adeus, meu velho Texas” essa lúgubre
canção alucinante que já se cantava antes da chegada dos espanhóis, com a diferença de
que, então, a letra era indiana.
E agora o grupo formava uma só coisa, uma unidade, de maneira que, na escuridão,
olhavam para dentro de si mesmos os olhos daquela gente toda, e o pensamento esvoaçava
para outras épocas e a melancolia tornava-se reconfortante como o repouso ou o sono. Ele
cantava os “McAllester Blues” e depois, para agradar aos velhos, entoava o “Jesus chama-me
para o seu lado.” As crianças sentiam sono com a música e iam para as suas tendas e
adormeciam e as canções acompanhavam-nas nos seus sonhos.
E, pouco depois, o homem da guitarra deixava de tocar e bocejava. Boa noite,
pessoal - dizia ele.
E? os outros murmuravam: Boa noite.
E todos eles sentiam o desejo de saber tocar guitarra, coisa que lhes parecia
maravilhosa. Iam então para a cama e o acampamento mergulhava no silêncio. E as corujas
esvoaçavam por aqui e por ali; ao longe os coiotes uivavam e, os zorrilhos andavam pelo
acampamento, à procura de restos de comida: zorrilhos bamboleantes, desavergonhados,
sem medo fosse do que fosse.
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A noite passava, e, aos primeiros raios da alvorada, as mulheres deixavam as tendas,
acendiam o lume e punham a água a ferver para o café. E os homens acordavam também e
conversavam em voz baixa, na penumbra do alvorecer.
Quando se cruza o rio Colorado, chega-se ao deserto, dizem eles. Toma cuidado, que
é para não teres uma avaria no deserto. Leva bastante água, que é para estares garantido se
acontecer alguma coisa.
Nós vamos atravessá-lo de noite.
Nós também, senão, a gente acaba com a própria alma ressequida.
As famílias comiam depressa; enxaguavam-se e limpavam-se os Pratos com um pano.
Depois, desarmaram-se as tendas. Todos tinham pressa. E, quando o Sol surgia, o
acampamento já se encontrava vazio; somente restavam os seus vestígios. E o sítio ficava
pronto para receber um novo mundo, numa nova noite.
Mas, ao longo da estrada, os veículos dos emigrantes avançavam como percevejos e a
estreita fita de cimento alongava-se por milhas e milhas à sua frente.
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Capítulo XVIII
A família Joad deslocava-se lentamente em direcção ao Oeste, subindo as montanhas
do Novo México, para lá dos pináculos e das pirâmides do planalto. Galgou a região
montanhosa do Arizona e, através de uma brecha da garganta, avistou, a seus pés, o
deserto. Um guarda de fronteira fê-la parar.
- Aonde vão?
- Para a Califórnia - disse Tom.
- Quanto tempo pretendem ficar no Arizona?
- Só o tempo necessário para o atravessar.
- Trouxeram algumas plantas?
- Não. Nenhumas.
- Tenho de passar revista às vossas coisas.
- Mas eu já disse que a gente não trouxe plantas.
Um guarda pregou-lhe um papelzinho no pára-brisas.
- Fixe! Podem passar, mas andem depressa!
- Bom. É o que a gente vai fazer.
A família trepou as encostas cobertas de árvores baixas e torcidas. Holbrook, Joseph
City, Winslow, e aí começavam as árvores altas. Os carros cuspiam vapor, marinhavam
penosamente as colinas. Surgiu Flagstaff no cimo de tudo. De Flagstaff para baixo, através
dos grandes platós, a estrada estendia-se rectilínea, a distância. A água escasseava e
comprava-se a cinco, dez e quinze cents o galão. O sol esgotava as terras rochosas, já de si
áridas, e, em frente, erguiam-se serras caóticas, de cristas quebradas – a muralha ocidental
do Arizona. E agora a família fugia ao sol e à seca. Viajara a noite toda e chegara também
de noite às montanhas. Trepara durante a noite as muralhas denteadas e a fraca luz dos
faróis errara nas paredes de pedra clara que orlava a estrada. Passou o pico ao anoitecer e
desceu vagarosamente através das velhas ruínas pedregosas de Oatman e, quando a
madrugada chegou, viu, lá em baixo, o rio Colorado. A viagem continuou até Topock e a
família teve de estacionar na ponte, enquanto um guarda da fronteira raspava o papelzinho
que havia sido pregado no pára-brisas. Depois, atravessou a ponte e penetrou no deserto
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selvagem e rochoso. E 'embora estivesse mortalmente cansada e o calor matinal fosse
aumentando, resolveu parar.
O pai avisou:
- Chegámos... estamos na Califórnia! Olharam, sombriamente, todos os blocos de
pedra que resplandeciam ao sol, e olharam, através do rio, a terrível muralha do Arizona.
- Temos ainda o deserto - disse Tom. - Precisamos de água e de descanso.
A estrada corre paralela ao rio, e o dia já tinha avançado bastante, quando os
veículos, escaldando, chegaram a Needles, onde o rio corre velozmente entre os juncos.
Os Joads e os Wilsons pararam junto do rio e ficaram sentados nos carros, a olhar o
maravilhoso espectáculo da água corrente que fazia inclinar ligeiramente as hastes dos
juncos. Na margem do rio havia um acampamento pequeno - onze tendas - à beira de água,
junto da relva alagada. Tom debruçou-se pela janela do camião.
- A gente pode parar aqui um bocadinho, hein?
Uma mulher obesa, que esfregava roupa num balde, ergueu o olhar.
- Nós não somos os donos disto, rapaz. Pode ficar, se quiser. Mas não tarda que não
venha aí um polícia para ver as suas coisas, ouviu?- E voltou a esfregar a roupa ao sol.
Ambos os veículos estacionaram numa clareira que havia no meio da relva ensopada.
Fixaram as tendas; a dos Wilsons foi armada e a lona dos Joads estendida sobre as estacas
ligadas por cordas. Winfield e Ruthie caminharam lentamente através dos salgueiros para
onde havia juncos. Ruthie disse com excitação na voz abafada:
- Califórnia! Isto aqui é a Califórnia e nós cá estamos!
Winfield arrancou uma haste, desfolhou-a, meteu a polpa branca na boca e mastigoua.
Entraram os dois ria água e ficaram muito quietinhos com água pela barriga das pernas.
- A gente ainda tem de passar o deserto - disse Ruthie.
- Como é o deserto?
- Não sei. Eu vi uma vez uma estampa com um deserto. Havia ossos por todos os
lados.
- Ossos de gente?
- Acho que sim. Mas a maioria eram de boi.
- E a gente vai ver esses ossos?
- Talvez. Eu não sei. Nós vamos viajar de noite. Foi o Tom que disse. Disse até que a
alma da gente se estorricava se viajássemos de dia.
- Que agradável e fresquinho que isto é! - disse Winfield, enterrando os dedos dos
pés na areia do fundo.
Ouviram então a mãe chamar:
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- Ruthie! Winfield! Voltem depressa!
Voltaram devagar, através dos juncos e dos salgueiros. Havia silêncio nas outras
tendas. Por um instante, ao chegarem os dois veículos várias cabeças tinham emergido de
entre as cortinas de lona, para logo se retirarem. As tendas das duas novas famílias estavam
armadas e os homens achavam-se reunidos.
Tom disse:
- Bem, eu vou tomar um banho. É o que vou fazer... antes de ir dormir. Como vai a
avó, desde que dorme na tenda?
- Não sei - respondeu o pai. - Não consegui acordá-la.
Virou a cabeça em direcção à tenda e ficou um instante à escuta. Uma voz plangente,
discorrendo com volubilidade, veio de sob a tenda. A mãe foi depressa ver o que era.
- Acordou - disse Noah.- Durante toda a noite, julguei que ela ia esticar no carro.
Parece que está doida.
Tom contestou:
- Com os diabos! Ela está mas é muito cansada. Precisa de descansar. Se o não fizer o
mais depressa possível, não vai durar muito. Está muito cansada. Quem vem comigo? Voume
lavar e depois dormir o dia todo, à sombra.
Foi andando e os outros seguiram-no. Tiraram a roupa entre os salgueiros e depois
entraram na água e sentaram-se. Ficaram assim sentados muito tempo, com os calcanhares
enterrados na areia; somente as cabeças se lhes viam à superfície.
- Caramba! Estava a precisar deste banho! - disse Al.
Pegou num punhado de areia e começou a esfregar-se com ela. Sentados na água, iam
olhando os picos agudos que se chamam agulhas e as montanhas brancas e rochosas do
Arizona.
- E a gente passou tudo aquilo! - exclamou o pai, cheio de admiração.
O tio John mergulhou a cabeça na água.
- Bem, cá estamos. Aqui já é a Califórnia e não parece tão próspera como isso.
- Precisamos ainda de atravessar o deserto - disse Tom. - E ouvi dizer que é uma
encrenca levada dos diabos!
Noah perguntou:
- Vai ser esta noite?
- Que é que o senhor acha, pai?
- Bem, não sei. Um pequeno descanso não seria nada mau para todos, principalmente
para a avó. Mas, por outro lado, estou com uma vontade danada de atravessar isto tudo e
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de começar a trabalhar. A gente, agora, só tem quarenta dólares. E é preciso trabalhar, que
é para entrar algum dinheiro.
Sentados na água, eles sentiam a força da corrente. O pregador deixava os braços e as
mãos flutuarem à superfície. Os corpos eram brancos até ao pescoço e pulsos, mas de um
trigueiro quase castanho nas mãos e nas faces, com triângulos queimados entre as
clavículas. Esfregavam-se todos com areia.
E Noah divagou indolentemente:
- Se pudesse, deixava-me ficar aqui mesmo, dentro de água. Não ter fome nem
aborrecimentos. Metido dentro de água a vida toda, cheio de preguiça que nem um porco
na lama.
E Tom, alongando o olhar através do rio até aos picos eriçados das montanhas e até
às agulhas, do lado de baixo da corrente, disse:
- Nunca vi montanhas assim. Esta terra aqui é uma terra de morte. Isto são os ossos
de um país. Só queria saber se algum dia encontraremos um sítio onde se possa ganhar a
vida sem precisarmos de nos arrastarmos por rochedos e pedras enormes. Vi urnas
fotografias de uma região plana e verdinha, com casas pequeninas e brancas, daquelas em
que a mãe fala. A mãe dava a vida por uma casinha branca. A gente pensa que uma terra
assim nem existe. Mas eu vi as fotografias.
- Espera até chegarmos à Califórnia - disse o pai. - Então vais ver o que é uma terra
bonita.
- Santo Deus, pai! Mas a gente está na Califórnia!
Dois homens, vestindo calças de algodão e camisas azuis, todas suadas, surgiram de
entre os salgueiros e viram os homens nus. Perguntaram:
- Que tal o banho? Dá para nadar?
- Não sei - respondeu Tom. - A gente ainda não experimentou. Mas, para ficar
sentado, é uma delícia.
- Podemos ir também?
- Ora, o rio não é nosso. Podemos ceder um bocadinho, querem?
Os homens tiraram as calças e as camisas, e foram andando rio adentro. A poeira
cobria-lhes as pernas até aos joelhos; tinham os pés esbranquiçados e amolecidos pelo suor.
Sentaram-se preguiçosamente na água e começaram a lavar os flancos com lentidão.
Queimados pelo sol, ambos - eram pai e filho - grunhiam e rugiam na água.
O pai perguntou com polidez:
- Vão também para o Oeste?
- Nada disso. A gente vem de lá. Vamos para casa. Lá não se consegue ganhar a vida.
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- Onde é a vossa casa? - inquiriu Tom.
- No “Cabo da Frigideira”, perto de Pampa.
O pai voltou a perguntar:
- E lá vocês não conseguem ganhar a vida?
- Isso sim! Mas, morrer por morrer de fome, mais vale que isso nos aconteça em,
casa, junto das pessoas conhecidas, do que no início de gente que nos não pode ver.
O pai insistiu:
- Sabe? Você é a segunda pessoa que me diz isso. Porque é que eles têm raiva à gente
de fora?
- Sei lá! - respondeu o homem.
Tomou a água na concha da mão e esfregou o rosto, fungando e como que
gargarejando. Dos cabelos escorreu-lhe uma água suja que lhe foi rolando pelo pescoço.
- Gostava de ouvir mais alguma coisa a esse respeito - disse o pai.
- Eu também - acudiu Tom. - Porque é que essa gente do Oeste nos tem ódio?
O homem encarou Tom firmemente.
- Vocês vão para o Oeste?
- Sim, vamos a caminho.
- Ainda não estiveram na Califórnia?
- Não, nunca.
- Bom, então não se incomodem com o que eu disse. Tratem de ver tudo
pessoalmente.
- Sim - disse Tom - mas a gente sempre gostava de saber como é a vida num sítio
para onde a gente vai.
- Bom, se vocês realmente querem saber... eu sou um desses tipos que perguntou
muita coisa a esse respeito e que também pensou muito. A Califórnia é uma terra bonita.
Mas foi roubada há uma porção de tempo. Quando vocês passarem o deserto, vão chegar
às cercanias de Bakersfield. Garanto que nunca viram uma terra tão bonita. Vinhedos e
pomares por toda a parte... a mais linda terra que se pode ver. E vocês vão passar por uma
terra plana e rica, com água a trinta pés de profundidade. E esses campos estão
abandonados. Mas não pensem que lhos vão dar. Pertence tudo à Companhia de Terras e
de Gado. E, quando ela não quer cultivar a terra, deixa-a simplesmente abandonada. Mas
experimentem vocês ir para lá e plantarem uma porçãozita de milho, que vão logo
direitinhos para a cadeia.
- Terras boas, diz você? E ninguém as cultiva?
222
- Não, senhor. E assim mesmo. E quando vocês virem isso, ficam danados. E ainda
não viram nada. Aquela gente tem uma maneira de olhar para nós que até faz ferver o
sangue. Olham para nós e dizem: “Não gosto de você, seu filho da mãe!” Depois, vêm os
delegados do sheriff e vocês são perseguidos. Acampamos em qualquer lugar à beira da
estrada, e eles mandam-nos embora. Basta olhar para a cara deles; logo se vê a raiva que
têm à gente. E... vou-lhes dizer uma coisa: eles têm-nos raiva porque têm medo. Sabem
que, quando alguém sente fome, trata de arranjar comida, ainda que tenha de a roubar.
Sabem que deixar as terras abandonadas é um pecado, e que alguém se dispõe logo a tomálas.
Diabo! Ainda ninguém lhes chamou “Okies”?
Tom perguntou:
- “Okies”? Que quer isso dizer?
- Bem, antigamente, “Okie” era aquele que vinha de Oklahoma. Agora é o mesmo
que chamar a um tipo filho da mãe. “Okie” quer dizer que o sujeito é um merda. A palavra,
em si, não quer dizer nada; o que mete raiva é a maneira como eles a dizem. Mas não vale a
pena dizer mais nada. Vocês têm de ver a coisa pessoalmente. Têm que ir para lá. Ouvi
dizer que há por, lá agora umas trezentas mil pessoas, da nossa região, gente que vive
como, porcos, porque tudo na Califórnia tem dono. Não sobra coisa nenhuma. E os donos
disso tudo agarram-se as suas coisas que eu sei cá. Até são capazes de matar. Têm tanto
medo que se põem como doidos. Vocês vão ver, vão ouvir o que por lá se diz. É a mais
linda terra do Mundo, mas o povo de lá é um bocado ruim. Tem tanto medo e tantos
cuidados que até desconfia da sua própria gente.
Tom olhou a água e enterrou os calcanhares na areia.
- Mas, se alguém trabalhar e fizer economias, pode comprar um pedacinho de terra,
não pode?
O homem mais idoso riu e olhou para o filho, e o rapaz, calado, arreganhou os
dentes numa expressão quase triunfal. E o homem disse:
- Vocês não conseguirão nenhum trabalho certo. Terão de arranjar dia a dia o
dinheiro para a comida. E vão precisar de trabalhar para uma gente mesquinha como o
diabo. Se apanharem algodão, podem estar certos de que a balança está viciada. Talvez não
aconteça sempre, mas geralmente é o que se dá. Terão, por isso, de partir do princípio que
todas as balanças estão viciadas, porque lhes é impossível saber quais é que estão certas. E
não poderão fazer nada, mesmo nada.
O pai perguntou em voz baixa:
- Então... então aquilo por lá não é nada bom, pois não?
223
- É bom, muito bonito tudo aquilo, mas a gente não consegue nada. Há, por
exemplo, um pomar cheio de laranjas maduras... e um sujeito armado de revólver, que dá
um tiro no primeiro que mexer nelas. E há um sujeito, dono de um jornal, lá perto da
costa, que tem um milhão de acres de terra...
Casy ergueu vivamente a cabeça:
- Um milhão de acres?! Que diabo faz o homem a tanta terra?
- Sei lá! Sei que ele é o dono daquilo tudo e pronto. Cria algum gado e tem guardas
armados por toda a parte, que é para ninguém entrar nas terras dele. E anda num carro à
prova de balas. Já vi retratos dele. Um sujeito mole e gordo, com uns olhos pequeninos e
uma boca que parece um rabo de galinha. Tem um medo de morrer que se pela! Um
milhão de acres, e com medo da morte!
Casy perguntou:
- Mas que diabo faz ele a tanta terra? Para que é que ele quer um milhão de acres?
O homem tirou as mãos embranquecidas e engelhadas da esticou-as; depois, repuxou
o lábio inferior e inclinou a cabeça sobre um dos ombros.
- Sei lá! - disse. - Talvez seja maluco. Tem que ser maluco por força. Eu vi o retrato
dele. Tem tipo de maluco. De maluco e de mau.
- Você diz que ele tem medo de morrer? - perguntou Casy.
- Sim, é o que o povo diz.
- Tem medo que Deus o venha buscar?
- Não sei. Só sei que tem medo.
- Mas o que é que o rala? - perguntou o pai. - Assim nem se diverte na vida...
- O avô não tinha medo - disse Tom.- Quando estava em riscos de morrer, era
justamente quando tinha mais graça. Por exemplo, quando o avô e um outro tipo caíram
em cima de um bando de índios navajos, uma noite. Foi quando eles mais se divertiram na
vida e ninguém dava um vintém pela vida deles.
Casy interveio:
- Sim, assim é que deve ser. Quando alguém acha graça às coisas, nem pensa na
morte, mas, quando alguém se sente sozinho, e velho e desconsolado então tem medo de
morrer.
O pai perguntou:
- Mas porque é que ele há-de estar desconsolado, tendo um milhão de acres?
O pregador sorriu e teve uma expressão perplexa. Remexendo a água, afastou com as
mãos um insecto que flutuava na corrente.
224
- Se ele precisa de um milhão de acres para se sentir rico, parece-me a mim que é
porque se sente pobre lá por dentro e se ele se sente pobre por dentro, não é um milhão de
acres que o vai fazer sentir-se rico e talvez se sinta desapontado por nada lhe dar a
impressão de ser fico, como a senhora Wilson se sentiu quando cedeu a tenda onde o avô
morreu. Eu não quero pregar sermões, mas nunca vi ninguém que tivesse passado a vida
inteira a juntar, ajuntar, que, no fundo, se não sentisse desconsolado e desapontado. - Ele
riu. - Isto até parece um sermão; parece, parece!
O Sol flamejava agora com fúria. O pai continuou:
- Acho melhor a gente meter-se o mais possível dentro de água. Este sol é capaz de
nos derreter a alma. - Reclinou-se, deixando, satisfeito, que a corrente suave lhe afagasse o
pescoço. - Mas, quando realmente se quer trabalhar, arranja-se trabalho, não é? - perguntou
o pai.
O homem alçou o busto e encarou-o:
- Ora oiça, amigo: eu também não posso saber tudo. Talvez você chegue e encontre
logo um serviço permanente, e então lá ia eu passar por mentiroso. Talvez não encontre
nada, e, nesse caso, seria eu que o não avisara de nada. Só posso dizer-lhe o seguinte: a
maioria das pessoas que lá estão passam mal como o diabo. - Anichou-se novamente na
água. - Uma pessoa não é obrigada a saber tudo - repetiu.
O pai virou a cabeça e olhou para o tio John.
- Tu foste sempre um camarada pouco falador - disse o pai. - Mas o diabo me leve se
tu já disseste mais do que duas palavras desde que saímos de casa! Que é que tu pensas de
tudo isto, afinal?
O tio John teve uma expressão sombria.
- Não penso nada. Nós vamos para lá, não vamos? Não adianta dizer nada, porque
vamos mesmo. Quando chegarmos, chegamos. Se a gente arranjar trabalhe,, trabalha, e, se
o não arranjarmos, ficamos a catar as pulgas. Toda essa conversa não adianta nada.
Tom deitou-se, encheu a boca de água, soprou-a para o ar e riu-se.
- O tio John não falta muito, mas o que diz é uma verdade. Sim, senhor. Fala que
nem um livro aberto. Vamos continuar esta noite, hein, pai?
- Acho que sim, O melhor é acabar com isto de uma vez.
- Bom, eu agora vou passar um bocadito pelas brasas ali no mato.
Tom ergueu-se e foi a andar, a chapinhar na água, até à margem arenosa. Vestiu a,
roupa sobre o corpo molhado e fez uma careta, pois que o sol lhe aquecera muito as
roupas. Os outros seguiram-no.
O outro homem e o filho ficaram a ver os Joads sumirem-se. Então o filho disse:
225
- Só os queria ver daqui a seis meses. Deus do céu!
O homem limpou os cantos dos olhos com o indicador.
- Eu não lhes devia ter dito nada. Mas a gente tem sempre vontade de mostrar que é
mais esperta do que os outros> e toca a avisar as pessoas!
- Bem, pai, eles perguntaram, caramba!
- Sim, eu sei. Mas o homem não disse que iam de qualquer maneira? Não adiantou
nada contar a verdade. Assim foi pior, pois eles vão sentir-se infelizes ainda antes de lá
chegarem.
Tom caminhou por entre os salgueiros, arrastou-se para uma concavidade ensombrada
e deitou-se. E Noah foi atrás dele.
- Vou dormir aqui - disse Tom.
- Tom!
- Que é?
- Tom, eu já não quero ir com vocês.
Tom sentou-se.
- Que é que tu estás a dizer?
- Tom, eu não deixo este rio. Vou descer por estas margens.
- Tu estás maluco - disse Tom.
- Vou arranjar linha e anzóis e vou-me pôr a pescar. Perto de um rio ninguém morre
de fome.
Tom perguntou:
- E a família? E a mãe?
- É superior às minhas forças; não posso deixar este rio. - Os grandes olhos de Noah
estavam semicerrados.- Tu sabes o que é, Tom. Tu sabes que todos me tratam muito bem.
Mas, na verdade, a família não se importa comigo.
- Tu és doido!
- Não, Tom. Eu sei como sou. Sei que eles vão ficar tristes. Mas... bem, eu não vou.
Tu dizes à mãe, sim, Tom?
- Ouve - começou Tom.
- Não, não vale a pena. Estive deitado naquela água. E agora não a deixo. Vou descer
o rio, Tom. Posso pescar e nadar. Não vou deixar o rio. Não posso! – Saiu da concavidade
de sombra. - Tu dizes à mãe, Tom. - E afastou-se.
Tom seguiu-o até à beira do rio.
226
- Escuta, grandíssimo idiota...
- Não vale a pena - disse Noah.- Custa-me fazer isto, mas tem de ser. Preciso de ir e
acabou-se.
Voltou-se abruptamente e foi-se por ali abaixo, ao longo da praia. Tom quis ainda
segui-lo mas acabou por desistir. Viu-o desaparecer entre os arbustos e depois tornar a
surgir, seguindo a margem do rio. O seu vulto foi diminuindo de tamanho pouco e pouco,
até se sumir de vez entre os salgueiros. Tom tirou o boné e coçou a cabeça. Voltou para a
sombra dos salgueiros e deitou-se para dormir.
Sob o tecto de lona, a avó jazia num colchão, e a mãe estava sentada a seu lado. O ar
quente sufocava, e, na sombra da lona, as moscas zuniam. A avó estava nua, coberta por
um comprido cortinado cor-de-rosa. Movia incessantemente a cabeça enrugada de um lado
para o outro; murmurava e estertorava. A mãe sentara-se no chão, ao lado dela, e, com o
auxilio de um pedaço de cartão, mantinha as moscas afastadas e criava uma deslocação de
ar quente sobre a velha face rígida. Rosa de Sharon encontrava-se sentada do outro lado e
observava a mãe.
A avó chamou imperiosamente:
- Will! Will! Vem cá, Will! - Os seus olhos abriram-se num olhar que errou em volta
com ferocidade. - Eu disse-lhe que viesse aqui - exclamou. - Mas eu ainda lhe deito a mão.
Arranco-lhe os cabelos!
Tornou a cerrar os olhos, rolou a cabeça para trás e para a frente, murmurando
pastosamente. A mãe agitava o leque de cartão, na tarefa de afugentar as moscas.
Rosa de Sharon olhou desanimada para a avó e disse baixinho:
- Ela está muito doente.
A mãe levantou os olhos para o rosto da rapariga. Os olhos da mãe mostravam-se
pacientes mas juntavam-se-lhe rugas de preocupação na fronte. A mãe abanava sem cessar
e enxotava as moscas com o leque de cartão.
- Quando se é novo, Rosasharn, tudo o que acontece só interessa à pessoa a quem
diz respeito, só a essa. Eu sei, Rosasharn, lembro-me bem disso. - Os seus lábios
deleitavam-se em fazer soar o nome da filha. - Tu vais ter um bebé, Rosasharn, e é só isso o
que te preocupa. Isso vai doer e só tu é que vais sentir as dores. E esta tenda é a única no
mundo, Rosasharn.
227
Ela fez um gesto largo com a mão, para afastar um moscardo impertinente e o
insecto volumoso, enorme, zumbindo sempre, voou duas vezes dentro da tenda e saiu,
perdendo-se no brilho ofuscante do sol.
A mãe continuou:
- Lá virá o tempo em que tu verás as coisas de outro modo, em que cada morte fará
parte da morte geral e em que a gravidez de cada uma fará parte da gravidez geral. A morte
e a gravidez, afinal, são as duas faces da mesma coisa. Então deixarás de ter coisas pessoais.
Uma dor não te será, nessa altura, tão difícil de suportar. já não será uma dor pessoal,
Rosasharn. Só queria poder explicar-te isto melhor, mas não posso.
E a sua voz era tão branda, tão cheia de amor, que Rosa de Sharon sentiu as lágrimas
brotarem-lhe dos olhos e inundarem-nos ao ponto de lhe perturbarem a visão.
- Torna: vai abanando - disse a mãe, entregando à filha o pedaço de cartão. - É bom a
gente abanar. Só queria poder explicar-te melhor o que eu penso.
A avó, cujas sobrancelhas se contraíam sobre os olhos fechados, guinchou:
- Will! Tu estás todo porco! Nunca foste asseado em toda a tua vida!
Levantou os dedos curtos e enrugados e coçou a face, uma formiga vermelha correu
ela coberta e trepou até às rugas flácidas da garganta da velha. A mãe apanhou-a
rapidamente entre o polegar e o indicador; esmagou-a e limpou os dedos ao vestido.
Rosa de Sharon abanava o cartão. Olhou para a mãe.
- Ela...? - e a frase morreu-lhe na garganta.
- Limpa os pés, Will, meu porco sujo! - gritou a avo.
A mãe disse:
- Não sei. Talvez, se a gente a pudesse levar para um sítio mais fresco... Mas não sei.
Não te preocupes, Rosasharn. Precisas de calma.
Uma mulher gorda, de vestido preto, todo rasgado, olhou para dentro da tenda.
Tinha um olhar vago nós olhos remelosos; no pescoço, a pele pendia frouxa. Os lábios
estavam apartados, de maneira que o lábio superior formava como que uma cortina de
carne sobre os dentes, e o lábio inferior, devido ao peso, pendia solto, deixando à mostra as
gengivas.
- Bom dia, minha senhora - disse ela.- Bom dia, e Deus seja louvado!
A mãe encarou-a.
- Bom dia - respondeu.
A mulher entrou na tenda e debruçou-se para a avó.
- Disseram-me que há aqui uma alma prestes a ir para o céu. Louvado seja o Senhor!
As feições da mãe tornaram-se duras e o seu olhar exprimiu desagrado.
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- Ela não tem nada; está é cansada - disse. - Cansaço da viagem e do calor. Com
descanso daqui a pouco está boa outra vez.
A mulher debruçou-se sobre as feições da avó e fungou, parecendo que a estava a
cheirar. Depois, virou-se para a mãe e acenou com a cabeça: os lábios e a pele do pescoço
tremiam-lhe.
- É uma pobre e boa alma que vai ver a Nosso Senhor Jesus Cristo - disse ela.
A mãe gritou:
- Não! Não!...
A mulher acenou de novo, desta vez mais vagarosamente, e pôs a mão balofa na testa
da avó. A mãe fez um gesto, como que querendo afastar a mão da mulher, más desistiu a
meio do caminho.
- É assim mesmo, irmã - disse a mulher. - Há seis em estado de graça na nossa tenda.
Vou buscá-los e a gente vai orar, Jeovitas, todos. São seis, comigo. Vou buscá-los.
A mãe endireitou-se.
- Não, não é preciso - disse. - Ela está muito cansada. Não aguenta.
A mulher insistiu:
- Não aguenta uma reza? Não aguenta o doce hálito de Nosso Senhor? Não diga isso,
irmã!
A mãe respondeu:
- Não, aqui não. Ela está muito cansada.
A mulher encarou a mãe com ar de censura.
- A senhora não é crente, hein?
- Nós sempre fomos crentes - disse a mãe.- Mas a avó está muito cansada; a gente
viajou toda a noite. Não queremos incomodar ninguém.
- Não é incómodo, e ainda que fosse, a gente fazia tudo da mesma maneira... por se
tratar de uma alma para Nosso Senhor Jesus Cristo.
A mãe levantou-se.
- Muito obrigada - disse, com frieza.- Não queremos culto nenhum na tenda.
A mulher olhou-a demoradamente.
- Bom, mas a gente não vai deixar morrer uma irmã sem uma oração. Vamos celebrar
o culto na nossa tenda. E perdoamos-lhe a dureza de coração.
A mãe tornou a sentar-se no chão e virou o rosto para a avó; as suas, feições ainda
estavam endurecidas.
- Ela está muito cansada - disse. - Cansada, apenas. A avó mexia a cabeça para um e
outro lado e murmurava coisas ininteligíveis.
229
A mulher deixou a tenda, toda empertigada. A mãe continuava a olhar o rosto
enrugado da velha.
Rosa de Sharon recomeçou a agitar o cartão, provocando uma deslocação de ar
quente. E disse:
- Mãe!
- Que é?
- Porque é que não quis que eles viessem orar aqui?
- Não sei - disse a mãe. - Os Jeovitas são boa gente. Dão grandes gritos e saltos. Mas
não sei. Senti cá dentro uma coisa. Pensei que não podia aguentar. Ia-me abaixo, com
certeza.
De perto vinham os sons do culto, que começava com a melodia arrastada de uma
exortação. Não se percebia a letra, mas apenas a melodia, que crescia e diminuía de
intensidade, mas. subia de tom em cada ciclo, invariavelmente. Agora tinha parado, e uma
voz isolada respondia ao cântico e a exortação subia, triunfal e poderosa. A melodia crescia
e parava e, desta vez, a resposta veio num rugido. Agora, gradualmente, as frases da
exortação encurtavam-se.; tornavam-se intimativas como vozes de contando; as respostas
soavam como queixumes, O ritmo tornou-se mais acelerado. Vozes masculinas e femininas
fundiram-se num tom único, mas, depois, no meio de uma resposta, ergueu-se uma voz
feminina cada vez mais plangente; feroz, como o grito de um animal ferido; uma voz
feminina mais profunda seguiu-a uma voz como um latido - e ouviu-se uma voz masculina
como o uivar de um lobo. A exortação parou finalmente; apenas se ouviam os queixumes
animalescos, de mistura com o bater dos pés no chão. A mãe tremia. Rosa de Sharon
respirava com dificuldade e rapidez e o coro uivante prolongou-se até a um ponto em que
parecia que os pulmões iam rebentar.
A mãe disse:
- Isto põe-me como doida. Não sei o que tenho.
A voz uivante degenerara agora em gritos histéricos, gritos regougados de hiena, e o
bater de pés cresceu de intensidade. Vozes esganiçavam-se e paravam; então o coro inteiro
caiu num soluçar estertorante a meia voz, e ouviu-se o barulho de pés, e de mãos batendo
nas coxas; e os estertores tornavam-se ganidos, parecidos com os dos cachorrinhos que
lutam para alcançar um prato de comida.
Rosa de Sharon chorava baixinho, cheia de nervos. A avó sacudiu a coberta,
descobrindo as pernas semelhantes a varas nodosas e cor de cinza. Gemia, com gemidos
que vinham de longe. A mãe repôs a coberta no seu lugar. Então a avó suspirou
.,Profundamente; a respiração tornou-se firme e fácil e as suas pálpebras descidas não mais
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se contraíram. Mergulhara num sono profundo e ressonava com a boca entreaberta. Os
gemidos e uivos, ao longe, tornavam-se mais e mais brandos, até que se desvaneceram por
completo.
Rosa de Sharon voltou-se para a mãe, com os olhos inundados de lágrimas.
- Fez-lhe bem - disse Rosa de Sharon.- Fez-lhe bem. A avó está a dormir.
A mãe tinha a cabeça baixa; sentia-se envergonhada.
- Acho que fui injusta para com aquela gente. A avó adormeceu.
- Porque é que não pergunta ao nosso pregador se a senhora cometeu algum pecado?
- perguntou a rapariga.
- Vou perguntar, sim... mas ele é um homem esquisito. Talvez tivesse sido por causa
dele que eu pedi aos Jeovitas que não rezassem aqui na nossa tenda. Esse pregador... ele
acha que tudo o que os homens fazem é bem feito. - Olhou para as mãos e disse: -
Rosasharn, precisamos de dormir um bocado. Se quisermos viajar esta noite, temos de
descansar um pouco.
E estirou-se na terra, ao lado do colchão. Rosa de Sharon perguntou:
- E quem é que abana a avó?
- Ela está a dormir; não precisa. Deita-te um pouco e descansa.
- Só queria saber por onde andará o Connie - disse a rapariga. - Há tanto tempo que
o não vejo!
A mãe intimou:
- Chiu! Dorme!
- Mãe, o Connie quer estudar de noite para ser alguém na vida.
- Sim, sim, já me disseste isso. Agora dorme.
A rapariga deitou-se a um lado do colchão da avó.
- O Connie tem um novo plano. Está sempre a dar tratos à imaginação. Quando
acabar de estudar electricidade, já sei que vai montar uma loja sua. Imagine a mãe o que
vamos ter?
- O quê?
- Gelo... gelo à farta. Vou ter uma geladeira. Cheia de coisas. As coisas não se
estragam quando estão na geladeira.
- O Connie anda sempre a pensar nessas coisas - disse a mãe com um risinho.- Mas
agora, trata de dormir.
Rosa de Sharon cerrou os olhos. A mãe deitou-se de costas e cruzou as mãos sob a
cabeça. Prestou atenção à respiração da avó e à respiração da filha. Tirou uma das mãos de
sob a cabeça, para afastar uma mosca que lhe poisara na testa. No calor ardente, o
231
acampamento mantinha-se em silêncio e os ruídos na relva quente, o canto dos grilos e o
zunzum das moscas eram ruídos que caíam bem no silêncio. A mãe suspirou
profundamente e fechou os olhos. Meio adormecida, ouviu passos que se aproximavam,
mas só acordou quando ouviu uma voz masculina:
- Quem está aí?
A mãe sentou-se rapidamente. Um homem de rosto moreno surgiu à porta da tenda
e olhou para dentro. Calçava botas, calça de caqui e camisa com dragonas, do mesmo
material. Do cinto de couro, largo, pendia a bolsa de um revólver e ostentav4 uma grande
estrela de prata no lado esquerdo do peito. Trazia um boné militar deitado para trás.
Tamborilava com os dedos no pano da tenda e a lona ondeava e vibrava como um tambor.
- Quem está aí dentro? - tornou a perguntar.
- Que é que o senhor deseja? - inquiriu a mãe.
- Que é que a senhora pensa que eu posso desejar? Quero saber quem está aí dentro.
- Ora! Só nós as três. Eu, minha filha e a avó.
- E onde estão os homens?
- Foram lavar-se aí no rio. Viemos de viagem a noite toda.
- De onde vêm?
- De perto de Sallisaw. Estado do Oklahoma.
- Bem, não podem ficar aqui.
- Nós queremos sair de noite, para atravessar o deserto.
- É o melhor que têm a fazer. Se amanhã de manhã ainda aqui estiverem, irão todos
para a cadeia, ouviu? Não os queremos aqui.
A mãe fez-se vermelha, de raiva. Devagar, pôs-se de pé e agarrou numa frigideira de
ferro.
- Escute! - disse ela.- O senhor tem uma estrela no peito e um revólver, mas isso não
me aquece nem me arrefece. Lá de onde eu venho, as pessoas assim costumam falar
delicadamente, ouviu?- Avançou, empunhando a frigideira. Ele afrouxou a arma no coldre.
- Saia! - gritou a mãe. - Sim, senhor; a assustar mulheres! Ainda bem que os homens não
estão aqui. Faziam-no em postas. Na minha terra, a gente como você tem muito cuidado
com a língua!
O homem deu dois passos para trás.
- Mas agora você não está na sua terra, percebe? Está na Califórnia, e nós não
queremos aqui esses Okies danados como você!
A mãe parou hirta:
- Okies? - disse ela, baixinho.
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- Okies?
- Sim, Okies! E, se vocês amanhã ainda aqui estiverem, vai tudo ara o chelindró.
Virou as costas, saiu, dirigiu-se para a tenda próxima e bateu na lona cora a mão
aberta.
- Quem está aí dentro? - perguntou.
A mãe voltou vagarosamente para a tenda. Colocou a frigideira no caixote. Sentou-se
de novo, com lentidão. Rosa de Sharon observava-a disfarçadamente. Mas, quando lhe viu
as feições alteradas, cerrou os olhos, fingindo que dormia.
O Sol já se tinha aproximado bastante do horizonte, mas o calor não diminuíra. Tom
acordou do seu sono à sombra dos salgueiros e sentiu a boca ressequida, o corpo molhado
de suor e a cabeça pesada. Levantou-se cambaleante e foi assim até ao rio. Tirou a roupa e
meteu-se na água. Mal sentiu esta banhar-lhe o corpo, passou-lhe a sede. Deitou-se de
costas num ponto profundo, deixando o corpo flutuar. Mantinha-se em equilíbrio,
fincando os cotovelos na areia e ficou-se a olhar os dedos dos pés, que vinham surgindo à
superfície.
Um menino magro, pálido, surgiu, arrastando-se como um bichinho através do juncal
e tirou as roupas. O menino mergulhou no rio como um rato almiscarado e como um rato
almiscarado ia progredindo na água, só com os olhos e o nariz à superfície. Depois, de
repente, viu a cabeça de Tom e notou que este o observava. Parou com a brincadeira,
sentando-se na água.
Tom disse:
- Olá!
- Olá!
- Estavas a imitar o rato almiscarado, hein?
- Pois estava...
O menino foi recuando aos poucos para a margem, como quem não quer a coisa; de
repente, saltou para fora de água, apanhou as roupas a correr e sumiu-se entre os
salgueiros.
Tom riu de manso. Depois, ouviu chamar pelo seu nome em altos gritos:
- Tom, ó Tooom! - Sentou-se na água e soltou um assobio por entre os dentes, que
terminou num silvo trilado. Os salgueiros agitaram-se e eis Ruthie olhando para o irmão.
- A mãe chama-te - disse ela.- Para tu vires depressa.
- Sim, já vou.
233
Ele ergueu-se e foi chapinhando na água até à margem. Ruthie observava com
espanto e interesse o corpo nu do irmão.
Tom, dando-se conta da direcção dos olhos dela, ordenou:
- Vai-te embora, anda!
E Ruthie foi-se embora a correr. Tom ouviu-a chamar excitadamente por Winfield,
enquanto se afastava. Vestiu a roupa quente no corpo refrescado e foi andando através dos
salgueiros em direcção à tenda.
A mãe tinha feito uma fogueira com ramos secos de salgueiro e posto a água a ferver.
Mostrou-se visivelmente aliviada ao vê-lo.
- Que é que há, mãe? - perguntou Tom.
- Nada, estava com medo - respondeu. - Veio aí um polícia e disse que a gente não
podia ficar neste sítio. Eu estava com medo que também tivesse falado contigo e que tu lhe
tivesses batido.
Tom observou:
- E por que razão havia eu de bater no polícia?
A mãe sorriu:
- Bem... ele era um bruto... Até eu tive vontade de lhe ir à cara.
Tom pegou nos braços dela e sacudiu-a vivamente, a rir. Depois, rindo ainda, sentouse
satisfeito no chão.
- Santo Deus, mãe! Sempre a conheci de génio brando. Que bicho lhe mordeu?
Ela olhou-o com seriedade.
- Não sei, Tom.
- Primeiro, a senhora quis quebrar a cabeça ao pai; agora quer avançar contra um
polícia. Que foi que houve? - Ele riu com brandura, estendeu as mãos e acariciou
carinhosamente os pés nus da mãe.- Gata velha - ciciou.
- Tom!
- Que é?
Ela hesitou um bocado.
- Tom, esse polícia... ele chamou-nos Okies. Disse assim: “Nós não queremos aqui
esses Okies danados como você!”
Tom encarou-a, pensativo e com a mão ainda carinhosamente nos pés nus da mãe.
- Houve um tipo que já me falou nisso. Eles parece que dizem isso para ofender. -
Calou-se por um instante e depois prosseguiu: - Mãe, acha que eu sou mau? Acha que eu
devia estar na cadeia, hein?
- Não - disse ela. - Foste julgado... já pagaste. Não. Mas, porque me perguntas isso?
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- Sei lá! Parece-me que era capaz de quebrar a cara a esse polícia.
A mãe sorriu, satisfeita.
- Então também eu devia perguntar-te isso a ti, porque também eu tive vontade de
lhe partir a cara com uma frigideira.
- Mãe, porque é que ele diria que a gente não pode ficar aqui?
- Disse que não quer nenhum desses danados Okies aqui estabelecidos. Acrescentou
que vai pôr a gente na cadeia se amanhã de manhã ainda aqui estivermos.
- Mas nós não estamos habituados a ser maltratados pelos polícias.
- Foi o que lhe declarei - disse a mãe. - Ele respondeu-me que a gente não está na
nossa casa. Que estamos na Califórnia e que eles aqui fazem o que querem.
Tom informou a medo:
- Mãe, preciso de lhe contar uma coisa. O Noah... foi-se embora rio abaixo. Disse
que não queria ir com a gente.
A mãe não compreendeu logo.
- Porquê? - perguntou ela por fim, baixinho.
- Não sei. Ele disse-me que tinha de ser. Que não podia sair deste rio. Pediu-me para
lhe dizer.
- E que é que ele vai comer? - perguntou ela.
- Não sei. Ele disse que ia pescar.
A mãe ficou calada durante longo tempo.
- A família está a desfazer-se, aos poucos. Não sei. já nem posso pensar. Não posso
pensar mais nada. É demais!
Tom, para a tranquilizar, disse sem convicção:
- Não lhe há-de acontecer nada, mãe. E um tipo bem apanhado, ele!
A mãe voltou os olhos aturdidos para o rio.
- Não posso pensar mais coisa nenhuma. Tom olhou para a fileira de tendas e viu
Ruthie e Winfield diante de uma tenda, em conversa cerimoniosa com alguém que devia
estar lá dentro. Ruthie torcia a saia com as mãos, enquanto Winfield fazia um buraco no
chão com o dedo do pé.
Tom chamou:
- Ruthie, vem cá!
Ela, olhou para cima, enxergou-o e veio a correr, e Winfield também veio correndo
atrás dela.
Quando a menina chegou Tom disse:
235
- Vai buscar o pessoal, Ruthie. Eles estão todos a dormir debaixo dos salgueiros. Vá
buscá-los. E tu, Winfield, diz aos Wilsons para se prepararem, que a gente vai-se embora
daqui já, já.
As crianças partiram a correr. Tom inquiriu:
- Mãe, e a avó? Ela já está melhor?
- Bem, ao menos hoje dormiu. Pode ser que esteja melhor. Ainda está a dormir.
- Isso é bom, Que carne temos ainda?
- Não muita, não. Um quarto de porco, talvez.
- Bom, então precisámos de encher o outro barril de, água. Convém a gente levar
bastante água.
Ouviram os gritos agudos de Ruthie, chamando os homens entre os salgueiros.
A mãe pôs ramos de salgueiro na fogueira, que se alteou, lambendo a panela
enegrecida. E disse:
- Só peço a Deus para nos dar descanso. Peço a Jesus que nos permita estabelecernos
num bom sítio.
O Sol cala por detrás das colinas dentadas, quebradas no ocidente. O conteúdo da
panela fervia penosamente sobre a fogueira. A mãe entrou na tenda; voltou com o avental
cheio de batatas e lançou-as na água a ferver.
- Peço a Deus que me permita lavar um pouco de roupa. Nunca andámos tão sujos
como agora. Nem as batatas podemos lavar antes de as cozinharmos. E porquê? Até parece
que todos nós perdemos a coragem.
Os homens vieram em bando, com os olhos cheios de sono, e os rostos vermelhos e
inchados, daquele sono feito de dia.
O pai perguntou:
- Que foi que houve?
- Vamo-nos embora - disse Tom. - O polícia disse para a gente sair daqui. Mais vale
acabar depressa a viagem. Quanto mais cedo sairmos, mais cedo chegaremos. Só faltam
umas trezentas milhas.
O pai respondeu:
- Eu pensei, que a gente ia descansar um pouco.
- Pois era, mas não pode ser. A gente tem que se ir já, pai - disse Tom.- O Noah não
vem. Ele foi-se embora rio abaixo.
- Não vem? Que diabo tem ele? - E depois parou bruscamente.- A culpa é minha -
comentou abatido. Aquele rapaz... É culpa minha...
- Não!
236
- Não quero falar nisso - disse o pai.- Não posso; a culpa é minha.
- Bem, temos de ir de qualquer maneira.
Wilson aproximou-se, ao ouvir as últimas palavras:
- Nós não podemos ir, amigos. A Sairy, coitada, não pode mais; ela está esgotada.
Precisa de descansar. Se tiver de atravessar o deserto neste estado, morre,
Todos se calaram ao ouvir isto. Depois Tom informou:
- Esteve aqui um polícia e disse que nos põe na cadeia se ainda aqui estivermos
amanhã.
Wilson abanou a cabeça. Os seus olhos estavam vidrados de preocupação, e o seu
rosto empalideceu sob a tez queimada do sol.
- Então, se tivermos de ir para a cadeia, vamos para a cadeia, pronto! A Sairy não
pode viajar assim. Ela tem de descansar para ganhar forças.
O pai opinou:
- E melhor ficarmos todos e esperarmos.
- Não - disse Wilson. Vocês têm sido muito bons para connosco; não posso permitir
que fiquem. Vocês têm de continuar a viagem e de tratar de arranjar trabalho. Não posso
permitir que fiquem.
O pai disse, todo excitado:
- Mas vocês já não têm nada!
Wilson sorriu:
- Quando vocês nos encontraram, também já não tínhamos nada. Vocês é que não
devem incomodar-se com isso. Continuem a viagem, senão, eu torno-me ordinário e brigo
com vocês.
A mãe arrastou o pai até ao interior da tenda e falou com ele em voz baixa.
Wilson voltou-se para Casy:
- A Sairy pede para o senhor a ir ver.
- Pois não! - disse o pregador.
Foi até à pequena tenda cor de cinza que pertencia aos Wilsons, afastou os lados e
entrou. Havia obscuridade e calor lá dentro. O colchão estava estendido no solo, e, em
volta dele, viam-se espalhadas as coisas do casal, tal como haviam sido descarregadas de
manhã. Sairy estava deitada no colchão com os olhos muito abertos e brilhantes. Casy
parou e baixou os olhos para ela, com a grande cabeça curvada e os músculos encordoados
do pescoço avultando aos lados. Tirou o chapéu que segurou na mão.
Ela começou:
- Meu marido já disse que a gente não podia continuar a viagem?
237
- Já sim, senhora.
- Eu queria que fôssemos também. Sabia que não ia viver o suficiente para chegar até
onde pretendíamos, mas que ele, ao menos, chegasse. Mas ele não quer. Ele não sabe;
pensa que eu me ponho boa. E que ele não sabe.
- Ele disse que não quer ir.
- Sim, ele é teimoso. Pedi-lhe que viesse aqui para o senhor rezar por mim.
- Mas eu já não sou pregador - volveu ele em voz baixa. - As minhas rezas não
adiantam nada.
Ela humedeceu os lábios.
- Eu vi o senhor fazer uma prece quando o avô morreu.
- Mas isso não era uma prece.
- Era, sim. Eu ouvi - disse ela.
- Pelo menos, não era reza de pregador.
- Mas foi uma bonita prece. Queria que o senhor dissesse uma assim por mim.
- Não sei o que hei-de dizer.
Ela cerrou os olhos por um instante e logo tornou a abri-los.
- Então diga-a para si mesmo. Não é preciso dizê-la em voz alta. Assim mesmo serve.
- Eu já não tenho Deus.
- Tem, sim, eu sei que tem. Não importa o senhor saber ou não o que Ele é, mas
tem.
O pregador curvou a cabeça. A mulher olhou-o com apreensão. E, quando ele
tornou a erguer a cabeça, ela parecia aliviada.
- Assim foi bom - disse ela. - Era o que eu precisava. Alguém perto de mim, para
rezar.
Ele sacudiu a cabeça, como se quisesse acordar de um sonho.
- Não compreendo... não entendo isto - disse.
E ela contradisse:
- Sim, o senhor sabe. Não é verdade?
- Sei, eu sei, mas não entendo - disse ele. - Eu... bem, daqui a uns dias a senhora com
certeza que estará boa e poderá continuar a viagem.
Ela moveu a cabeça vagarosamente.
- Não passo de um molho de sofrimentos, coberto de pele. Sei o que é, mas não
quero dizer ao meu marido. Ele ia ficar muito triste. De qualquer maneira ficava sem saber
o que fazer. Talvez de noite, quando ele estiver a dormir... quando acordar, talvez não lhe
custe tanto.
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- A senhora quer que eu fique aqui?
- Não - disse ela. - Não. Quando eu era criança, gostava muito de cantar. O povo
dizia que eu cantava tão bem como Jenny Lind. E toda a gente vinha ouvir-me cantar.
Quando me ouviam, ficavam junto de mim e eu sentia-me mais próxima deles do que
nunca. E sentia-me muito grata. Não acontece muitas vezes ser-se assim tão feliz, sentir os
outros tão próximos de nós... como naquele tempo cm que eles ficavam a ouvir-me cantar.
Pensava até em vir um dia a cantar num palco, mas nunca o fiz. Assim nada se meteu entre
mim e eles. Por isso, pedi para o senhor vir aqui rezar por mim. Queria sentir mais uma vez
que tinha alguém perto de mim. Cantar ou rezar é a mesma coisa. Mas gostaria que o
senhor me tivesse ouvido cantar.
Ele fitou-a bem nos olhos.
- Bom, até logo - disse.
Ela sacudiu novamente a cabeça devagar, apertando os lábios.
O pregador deixou a tenda onde reinava a escuridão, para entrar de novo na luz
ofuscante.
Os homens carregavam o caminhão. O tio John encontrava-se dentro do carro e os
outros passavam-lhe as coisas. Agarrava-as com cuidado, prestando atenção a que a
superfície do carregamento ficasse ao mesmo nível. A mãe pôs o resto da carne de porco
num panelão; Tom e Al levaram as barricas ao rio e lavaram-nas bem. Amarraram-nas
depois aos estribos, trouxeram água nos baldes e encheram-nas. Depois, cobriram-nas com
um pano de lona para que a água não se entornasse. Só faltava carregar a tenda e o colchão
da avó.
- Com toda esta carga que a gente leva, este calhambeque vai ferver como o diabo. E
bom a gente levar bastante água - disse Tom.
A mãe tirou as batatas da panela, trouxe o saco meio vazio da tenda. A família comeu
em pé, passando as batatas de uma mão para a outra, até esfriarem.
A mãe foi depois à tenda dos Wilsons; demorou-se lá uns dez minutos e voltou
silenciosa.
- É tempo de a gente ir andando - disse ela.
Os homens entraram na tenda dos Joads; a avó dormia ainda de boca aberta.
Agarraram nela com o colchão e tudo, e depuseram-na devagarinho dentro do carro, em
cima da carga. A avó encolheu as pernas, fez uma careta mas não acordou,
O tio John e o pai estenderam a lona sobre os taipais do camião, de maneira a formar
uma barraca. As pontas ficaram amarradas às bordas do veículo. Estava tudo pronto. O pai
239
tirou a bolsa do dinheiro e puxou de duas notas amarrotadas. Dirigiu-se a Wilson e
estendeu-lhas.
- A gente gostava que o senhor ficasse com isto e... - apontou para as batatas e para a
carne de porco - com isto também.
Wilson sacudiu energicamente a cabeça.
- Não, senhor, não quero nada disso. Vocês não têm o suficiente nem para vocês.
- O que temos dá até chegarmos - disse o pai. O que deixamos não faz falta. Depois,
havemos de arranjar trabalho.
- Não, senhor - teimou Wilson. - Fico aborrecido se vocês não levarem isso.
A mãe tirou as duas notas das mãos do pai. Alisou-as bem, colocou-as no chão e
pôs-lhe em cima o panelão com a carne de porco.
- Fica aqui - disse ela. - Se o senhor não quiser, outro qualquer se aproveitará.
Wilson baixou a cabeça, voltou-se, foi para a sua tenda e a lona fechou-se atrás de si.
Por alguns instantes, a família esperou.
- Bem, vamos indo - disse Tom. - Ia a apostar que são quase quatro horas.
A família subiu para o caminhão; a mãe ficou no alto da carga, ao lado da avó; Tom,
Al e o pai no assento, e Winfield, ao colo do pai. Connie e Rosa de Sharon fizeram um
ninho de encontro à cabina do motorista. O pregador, o tio John e Ruthie iam em montão
sobre a carga.
O pai gritou:
- Adeus, sr. Wilson; adeus, senhora Wilson! Da tenda, não veio resposta alguma.
Tom pôs o motor a funcionar, e o caminhão arrancou. Quando já galgavam a estrada
grosseira que conduzia a Needles e à estrada principal, a mãe olhou para trás. Wilson estava
parado em frente da sua tenda, acompanhando-os com os olhos. O sol projectava-se-lhe
em cheio no rosto. A mãe agitou a mão para o cumprimentar, mas ele não correspondeu ao
gesto.
Tom atravessou a pequena estrada em segunda velocidade, para proteger as molas.
Em Needles, parou diante de um posto de serviço, mandou experimentar a pressão de ar
dos pneus e encher o tanque de gasolina. Comprou duas latas de gasolina, de cinco galões
cada uma, e uma lata de óleo de dois galões. Encheu o radiador, pediu um mapa
emprestado e estudou-o.
O empregado do posto de serviço, de uniforme branco, parecia estar inquieto
enquanto lhe não pagaram a conta.
- Vocês têm coragem - observou ele depois.
Tom ergueu os olhos de cima do mapa.
240
- Porque é que você diz isso? - perguntou.
- Ora, fazer a travessia num calhambeque destes!
- Você já fez esta travessia?
- Já, muitas vezes. Mas não num calhambeque assim.
- Quer dizer que se se quebrar uma peça qualquer, ninguém nos poderá livrar de uma
encrenca?
- Bem, é possível que sim. Mas, geralmente, todos têm medo de parar de noite. Eu,
por exemplo, detesto fazê-lo. É preciso muita coragem para o fazer.
Tom riu.
- Não é preciso muita coragem quando se não pode fazer outra coisa. Bom, muito
obrigado. Nós vamos indo.
Subiu para o camião e pô-lo a rodar.
O empregado de branco entrou na barraca de chapa de ferro, onde o seu ajudante
trabalhava num livro-caixa.
- Livra! Nunca vi um camião tão cheio de cangalhada!
- Qual? O calhambeque desses Okies? Todos eles são assim...
- Deus do céu! Eu é que não viajava de semelhante maneira.
- Bem, é que a gente não é trouxa. Mas esses Okies danados andam completamente
malucos, já não têm sentimentos; não são humanos. Um homem não pode viver assim.
Nenhum ser humano poderia suportar ver-se assim sujo e miserável. Valem pouco mais do
que um gorila.
- De qualquer modo, ainda bem que eu não sou forçado a atravessar o deserto num
Hudson Super-Six. Esses carros fazem barulho que nem uma metralhadora.
O outro debruçou-se de novo sobre o livro-caixa. Uma grossa baga de suor caiu-lhe
no dedo, parando sobre o maço de facturas cor-de-rosa.
- Sabe, eles não se incomodam muito com isso. São tão estúpidos que nem notam o
perigo. Eles não vêem um palmo adiante do nariz, santo Deus!, Para que é que você se
incomoda tanto com eles?
- Eu não me incomodo. Só disse que eu é que não fazia semelhante coisa.
- É natural. Você sabe o que significa uma viagem dessas. Mas eles não sabem.- E
limpou com a manga o suor que caíra na factura cor-de-rosa.
O camião alcançou a estrada principal e agora rodava para o alto das colinas através
de fileiras de rochedos quebrados e apodrecidos. O motor não tardou a aquecer e Tom
241
diminuiu a marcha para o não fatigar em excesso. A estrada subia sempre, serpeando, toda
torcida, por terras mortas, calcinadas, brancas e cinzentas, sem o menor vestígio de vida.
Tom parou por alguns minutos, para esfriar um pouco o motor; depois, prosseguiu.
Chegaram ao alto da ladeira quando o Sol ainda ia alto; olharam o deserto a seus pés
montes de cinza enegrecida ao longe, e o sol dourado, reflectindo-se no areal cinzento.
Alguns arbustos ressequidos, salva e sempre-vivas, lançavam sombras vigorosas sobre a
areia nos bordos da rocha. Tinham o sol pela frente, e Tom fez pala com a mão para poder
enxergar. Passaram o cume, e, na descida, pararam o motor para ele esfriar. Desceram,
rápidos, pelo declive e alcançaram a planura do deserto. O ventilador girava e esfriava a
água no radiador. No assento dianteiro, Tom, Al e o pai, com Winfield nos joelhos,
olhavam o Sol que descia no horizonte; os seus olhos mantinham-se fixos e as suas faces,
tostadas, cobriam-se de suor. A terra ardente e os montes de cinza enegrecidos cortavam a
uniformidade da paisagem, dando-lhe um aspecto terrível, à luz do poente.
Al exclamou:
- Meu Deus, que sítio! Que me dizem a passar por aqui a pé?
- Ora, já houve muita gente que o fez - disse Tom. - Muita gente. E, se eles o fizeram,
também nós o poderíamos fazer.
- Pois sim, mas ia jurar que muitos terão esticado o pernil - respondeu Al.
- Bem, nós também ainda não chegámos ao fim.
Al permaneceu calado uns instantes, e o deserto vermelho deslizava ao lado do
camião.
- Tu achas que a gente ainda torna a ver os Wilsons, hein? - perguntou Al.
Tom deitou um olhar ao nível do óleo.
- Tenho um pressentimento em como ninguém verá a senhora Wilson por muito
tempo. É a impressão que tenho.
- Pai, eu quero ir lá fora - disse Winfield.
Tom olhou-o.
- Acho que todos devíamos fazer isso antes do cair da noite. - Diminuiu a marcha e
fez parar o veículo.
Winfield saltou e urinou à beira da estrada. Tom debruçou-se para fora do assento.
- Alguém mais?
- A gente aguenta - disse o tio John.
O pai determinou:
- Winfield, tu agora passas lá para trás. Tenho as pernas dormentes de te levar nos
joelhos.
242
O menino abotoou o macaco e trepou obediente, para cima da carga e, arrastando-se
por cima do colchão onde ia a avó, foi encolher-se ao lado de Ruthie.
O camião tornou a rodar a caminho da noite. O Sol tocou aquele horizonte selvagem
e tingiu o deserto de vermelho.
- Eles não te quiseram lá em baixo, hein? - perguntou Ruthie.
- Eu é que não quis ficar, porque não é tão bom como aqui. Nem podia deitar-me.
- Bem, eu aviso-te: não me chateies com conversas, que eu quero dormir, ouviste? -
disse Ruthie. - Vou dormir e, quando acordar, já a gente está na Califórnia. Foi o Tom que
disse. Vai ser engraçado ver uma região tão bonita!
O Sol desapareceu, deixando um halo enorme no céu. Sob o tecto de lona do
camião, reinava escuridão completa; era um buraco escuro com faixas de luz nas
extremidades - um triângulo de linhas de luz.
Connie e Rosa de Sharon encostaram-se ao assento da frente e o vento quente, que
se insinuava na tenda, batia-lhes de encontro à base do crânio e fazia ondular e martelar o
pano de lona. Falavam baixinho um com o outro e a tonalidade das suas vozes era abafada
pelo sussurro da lona sacudida pelo vento; ninguém poderia ouvir o que eles diziam.
Quando Connie falava, virava a cabeça e aproximava a boca dos ouvidos da mulher e ela
fazia o mesmo com ele. Ela dizia:
- Até me parece que a gente não faz outra coisa na vida sertão viajar. já estou farta
disto tudo.
Ele encostou a boca ao ouvido dela:
- Talvez amanhã de manhã, a gente já lá esteja... Que bom se nós estivéssemos agora
sós, hein? - Na escuridão, estendeu a mão e acariciou-lhe a anca:
- Não! Fazes-me perder a cabeça - gemeu ela. E virou a cabeça para lhe ouvir a
resposta.
- Bem, então quando todos dormirem... hein?
- Talvez - disse ela. - Mas então espera que todos durmam. Estás-me a excitar e,
afinal, pode ser que eles não adormeçam.
- Já não posso mais - respondeu ele.
- Bem sei. Eu também não. Vamos falar sobre a Califórnia. E vê se te chegas um
pouco mais para lá, antes que eu perca a cabeça.
Ele afastou-se um pouco.
- Pois é isso; vou tratar de estudar de noite, logo que chegar - disse. Ela suspirou
profundamente. - Vou comprar um livro que explica tudo isso e cortar o cupão.
- Segundo a tua opinião, quanto tempo demorará isso?
243
- Isso o quê?
- Tu ganhares o dinheiro suficiente para a gente ter gelo em casa?
- Ah, isso não sei - disse ele com ar importante. - É uma coisa que se não pode
calcular assim. Mas até ao Natal, acho que poderei terminar os estudos.
- E assim que acabares de estudar, a gente já pode ter o gelo e tudo, não é verdade?
Ele pôs-se a rir.
- Acho que é do calor – disse. - Para que é que tu queres gelo no Natal com aquele
frio?
Ela teve um risinho abafado:
- Não me lembrava. Mas eu gostava de ter sempre gelo em casa. Não, agora não!
Está quieto! Olha que me pões fora de mim!
A penumbra transformara-se em noite escura e as estrelas do deserto surgiram lúcidas,
perfurantes e cristalinas, pontinhos e raios num céu de veludo. O calor transformarase.
Enquanto o sol se mantivera no espaço, era um calor martelante e implacável, mas
agora era um calor que vinha de baixo, que se exalava da própria terra, pesado e sufocante.
As luzes do camião acenderam-se e espraiaram-se num pequeno quadrilátero diante do
veículo, formando estreitas faixas dos dois lados da estrada, onde se estendia o deserto. E,
às vezes, brilhavam olhos à luz dos faróis, mas nenhum animal surgia à vista. Sob a tolda, a
escuridão era agora absoluta. O tio John e o pregador estavam enovelados no meio do
camião, descansando e olhando para o triângulo luminoso dos outros lados. Distinguiam-se
duas saliências, recortando-se mais nítidas - a mãe e a avó. E viam também a mãe mexer-se
às vezes e o seu braço escuro mover-se para o lado de fora.
O tio John conversava com o pregador.
- Casy - disse ele - você é um camarada que devia saber o que convém saber.
- Fazer a respeito de quê?
- Não sei - respondeu o tio John.
- Ora aí está uma resposta compreensível - ironizou Casy.
- Bem, você foi um pregador...
- Escute, John, vamos deixar isso. Toda a gente pensa que eu sou mais do que os
outros só porque já fui pregador. Um pregador é um homem como outro qualquer.
- Sim, mas... de outra qualidade, senão, não seria pregador. Eu queria perguntar-lhe...
você acha que uma pessoa pode dar azar aos outros?
- Não sei - disse Casy. - Não sei.
- Bem, quer saber? Eu fui casado com uma rapariga boa e bonita. E, uma noite, ela
teve umas dores na barriga. E disse: - É melhor tu chamares um médico. - Mas eu respondi:
244
- Qual? Para que é o médico? Tu comeste demais, com os diabos!- E o tio John colocou a
mão sobre o joelho de Casy e olhou-o ansiosamente, procurando distinguir-lhe as feições
na escuridão. - Ela olhou-me de uma maneira... E depois gemeu toda a noite e, na tarde
seguinte, morreu. - O pregador murmurou qualquer coisa. - Já vê - prosseguiu John - fui eu
que a matei. E daí para cá fiz tudo para pagar o meu pecado, principalmente com as
crianças. Fiz tudo para ser bom, mas acho que não consigo. Apanho uma carraspana e
desato logo a fazer tolices.
- Ora, isso acontece a qualquer. Todos bebem. Eu também - disse Casy.
- Sim, mas você não cometeu um pecado como eu.
Casy objectou mansamente:
- Mas eu também cometi pecados. Toda a gente comete pecados. O pecado é uma
coisa de que a gente nunca se livra. Essa gente que diz ser santa, que nunca fez nada de
mau... bem, esses são uns filhos da mãe mentirosos, e, se eu fosse Deus, dava-lhes um
pontapé no rabo e fazia-os voar do céu para fora. Não os gramava!
O tio John replicou:
- Tenho cá a minha impressão de que dou azar. Acho que devia ter-me ido embora
daqui, deixá-los sozinhos. Não me sinto nada satisfeito.
Casy replicou rapidamente:
- Eu sei o que isso é... um homem deve fazer aquilo que acha que é recto. Não sei,
palavra que não sei. Acho que isso de sorte e azar é coisa que não existe. Só sei de uma
coisa: ninguém tem o direito de se meter na vida dos outros. Cada um deve resolver a sua
vida sozinho. Ajudar alguém, isso sim, talvez, mas dizer-se o que cada um deve fazer, isso
nunca.
O tio John disse, desapontado:
- Então você também não sabe?
- Não sei.
- Você acha que foi um pecado eu deixar morrer a minha mulher daquela maneira?
- Bem - disse Casy - todos acharam que foi um descuido, mas, se você pensa que foi
um pecado, então é porque foi um pecado. O pecado é uma coisa que a gente mesmo cria.
- Bem, acho que tenho de pensar no caso - disse o tio John. - Enovelou-se de costas,
ficando de joelhos erguidos.
O camião rodava sobre a terra quente, e as horas passavam-se. Ruthie e Winfield
tinham adormecido. Connie tirou um cobertor, lançou-o sobre si e sobre Rosa de Sharon e,
retendo a respiração, enlaçaram-se, a despeito do calor. Daí a pouco, Connie punha de lado
245
o cobertor, e o vento quente, que passava pela fresta da lona armada, acariciava-lhes os
corpos molhados de suor.
Atrás, no fim do carro, estava a mãe deitada ao lado da avó. Nada podia ver, mas
podia sentir-lhe o corpo debater-se e o coração lutar; tinha aquela respiração arquejante nos
ouvidos. A mãe dizia constantemente:
- Vai ficar tudo bem; tudo se resolverá. - E repetia com voz rouca: - Bem sabes que a
gente tem de continuar. Tu bem sabes.
O tio John perguntou:
- Segue tudo bem?
A resposta dela demorou um pouco:
- Tudo bem. Acho que sim. Creio que me deixei dormir. E, pouco depois, a avó
imobilizava-se e a mãe mantinha-se rígida, ao lado dela.
As horas nocturnas passavam e reinava completa escuridão no veículo. Às vezes,
passavam carros, de viagem para o Oeste, que logo se sumiam; outras vezes, pesados
veículos vinham do Oeste e ribombavam, rumo a leste. E as estrelas desciam em vagarosa
procissão para ocidente. Era cerca de meia-noite quando chegaram às proximidades de
Dagget, onde fica o posto de inspecção. A estrada encontrava-se profusamente iluminada
naquele ponto, e havia uma grande tabuleta luminosa com os dizeres: Mantenha-se na sua
direita e pare! Os funcionários mandriavam no interior da casinha do posto, mas saíram
logo para o comprido alpendre quando viram chegar o camião dos Joads. Um dos oficiais
anotou o número de matrícula do camião e abriu a tampa do motor.
Tom perguntou:
- Que é isto aqui?
- Fiscalização de Agricultura. Temos de fazer uma busca às vossas coisas. Têm aí
vegetais ou sementes?
- Não - disse Tom.
- Bom, temos de examinar a carga. Desçam todos!
A mãe saltou pesadamente do camião. Tinha o rosto inchado e os olhos de expressão
endurecida.
- Escute - começou. - A gente traz uma senhora de idade muito doente. Temos de ir
com ela a um médico. Não podemos perder muito tempo.- Ela parecia estar com um
ataque de histeria. - O senhor não tem o direito de nos fazer esperar.
- Ai, não? Pois tenha paciência; a busca tem de se fazer.
- Juro que não temos nada disso! - exclamou a mãe. - Juro! E a avó está muito
doente!
246
- A senhora também não me parece que esteja muito boa - disse o funcionário.
A mãe trepou para as traseiras do caminhão e endireitou-se com grande esforço.
- Aqui, olhe! - disse ela.
O funcionário lançou um jacto de luz da lanterna eléctrica sobre o rosto rígido da
velha.
- Meu Deus! - disse. - A senhora jura, então, que não levam nem frutas, nem vegetais,
nem sementes, nem milho, nem laranjas?
- Não, não. juro!
- Bom, então vão indo. Em Barstow há um médico. Fica a oito milhas daqui. Podem
seguir.
Tom trepou para o assento do caminhão e continuou a viagem.
O funcionário virou-se para os colegas:
- Não me senti no direito de os demorar.
- Quem sabe se foi trapaça? - arriscou o outro.
- Não, garanto que não era. Só queria que você visse a cara da velha. Aquilo não era
comédia.
Tom aumentou de velocidade e, ao chegarem a Barstow, parou, saltou e deu a volta
ao veículo. A mãe debruçou-se.
- Está tudo bem - disse ela. - Não quero parar aqui; o que tinha era medo de que nos
não deixassem passar.
- Sim? Como vai a avó?
- Bem. Vai andando para a frente. Vê se a gente chega depressa!
Tom meneou a cabeça e voltou para o seu lugar.
- Al - disse ele - agora vamos encher o depósito e tu vais guiar um bocado. - E parou.
Parou junto a um posto de serviço nocturno, mandou encher o depósito e o radiador
e mandou também encher o depósito de óleo. Depois, Al sentou-se ao volante e Tom
tomou lugar junto à outra janela, deixando o pai no meio dos dois. O camião ia rodando,
pela escuridão fora, e as colinazitas das cercanias de Barstow foram ficando para trás.
Tom disse:
- Não sei o que é que a mãe tem. Anda brava que nem um cão com mosca na orelha.
Não ia levar um tempo por ali além revistarem as nossas coisas. Primeiro, ela disse que a
avó estava muito mal, e agora diz que ela está boa. Não sei o que a mãe tem; acho que se
não sente muito bem. E se ela endoidece na viagem?
O pai respondeu:
247
- A mãe está tal e qual como quando era nova. Era tesa que eu sei lá! Não tinha medo
de nada. Pensei que, depois de ter os filhos e de estar velha, a coisa lhe passasse. Mas qual o
quê?! Quando ela estava com aquele ferro na mão, eu é que não ia tirar-lho, não!
- Não sei o que ela tem - tornou Tom. - Talvez seja só do cansaço.
- Tomara já isto passado. Tenho o diabo deste carro na consciência - disse Al.
- Foi uma boa compra que tu fizeste. Este calhambeque quase não deu trabalho à
gente - assegurou Tom.
Durante toda a noite foram atravessando as trevas quentes; às vezes surgiam coelhos
do mato à luz dos faróis e procuravam fugir com grandes saltos. E a manhã acinzentada
começava a nascer por detrás deles, quando à sua frente surgiram as luzes de Mejave. O
alvorecer alastrava-se e deixava ver grandes montanhas a oeste. Em Mejave encheram o
depósito de óleo e puseram água no radiador; quando galgaram as montanhas, o alvorecer
já as cobria de luz clara.
- Graças a Deus, passámos o deserto! Pai, Al, em nome de Deus! Atravessámos o
deserto! - exclamou Tom.
- Para mim tanto faz; estou é cansado corno o diabo - disse Al.
- Tu queres que eu guie?
- Não, por enquanto não.
Aos primeiros raios do Sol que surgia, os Joads atravessaram Tchachapi, e o Sol
crescia atrás deles... depois, de repente, viram diante de si o grande vale. Al travou e,
parando no meio da estrada, disse:
- Meu Deus, olhem! Os vinhedos, os pomares, o grande vale verdejante, fileiras de
árvores, as casinhas brancas!
- Deus todo poderoso! - exclamou o pai.
As cidades, ao longe, as aldeias entre os pomares e um sol matinal que dourava todo
o vale. Um carro buzinou atrás deles. Al encostou o caminhão à beira da estrada.
- Preciso de ver bem isto.
Os campos de trigo, dourados ao sol matinal, os renques de salgueiros, os eucaliptos
bem alinhados.
O pai suspirou.
- Eu não imaginava que houvesse uma coisa assim tão bonita...
Os pessegueiros, os grupos de nogueiras e as manchas verde-escuro das laranjeiras.
Telhados vermelhos entre as árvores, e celeiros... celeiros cheios.
Al saltou, estirou as pernas e gritou:
- Mãe, venha ver. Chegámos!
248
Ruthie e Winfield escorregaram de cima do caminhão até ao solo e quedaram-se,
silenciosos e maravilhados, cheios de embaraço, diante do espectáculo do grande vale.
Flutuava uma cerração fina, e as terras adquiriam contornos suaves à distância. Um moinho
reluzia ao sol e as pás em movimento davam-lhe o aspecto de um pequeno heliógrafo.
Ruthie e Winfield contemplavam-no e Ruthie sussurrou:
- É a Califórnia.
Winfield moveu os lábios em silêncio, como se estivesse a soletrar, e disse em voz
alta:
- E há fruta à farta.
Casy, o tio John, Connie e Rosa de Sharon desceram do camião. E todos ficaram
parados, em silêncio. Rosa de Sharon procurava pentear os cabelos para trás, mas, quando
os seus olhos pousaram sobre o vale, deixou cair lentamente as mãos.
- Onde está a mãe? Quero que a mãe veja isto. Olhe, mãe! Venha cá, mãe! - gritou
Tom.
A mãe descia, vagarosa e hirta, pelas traseiras do camião. Tom olhou para ela.
- Meu Deus, a senhora está doente?
O rosto dela estava rígido como o de uma escultura; os olhos vermelhos, que parecia
terem mergulhado profundamente nas órbitas, revelavam enorme cansaço. Os seus pés
tocaram o chão, e ela precisou de se apoiar bem à borda do veículo.
Com voz rouca, perguntou:
- Que é que vocês disseram? A gente já chegou? Tom apontou para o grande vale.
- Olhe! - disse.
Ela voltou a cabeça e os seus lábios entreabriram-se. Os dedos tactearam a garganta,
apertando ao de leve a pele.
- Graças a Deus! - disse. - A família chegou.- Mas os seus joelhos vergaram e ela teve
de sentar-se no estribo do camião.
- Mãe, a senhora está doente?
- Não, apenas cansada.
- Mas a senhora não dormiu?
- Não.
- A avó passou mal?
A mãe baixou o olhar para as mãos, que jaziam no seu colo como dois amantes
cansados.
- Apenas queria não ter nada para lhes dizer; só queria dizer coisas agradáveis.
O pai perguntou:
249
- Então a avó está mal?
A mãe ergueu os olhos e lançou-os sobre o vale.
- A avó morreu.
Eles olharam-na e o pai perguntou:
- Quando foi?
- De noite, antes de terem feito parar o caminhão, a noite passada.
- Então foi por isso que tu não quiseste que eles revistassem...
- Tinha medo que não nos deixassem passar - confessou ela. - Disse à avó que não
havia outro remédio. A família tinha de passar. Disse-lhe isto quando ela estava a morrer.
Pois se a gente não podia parar no deserto! Havia as crianças... e o bebé de Rosasharn. Foi
o que eu lhe disse. A mãe ergueu as mãos e cobriu as faces por um instante.- Agora
podemos enterrá-la num sítio bonito, todo verde. Uma linda terra cheia de árvores. Ela
tinha que descansar na Califórnia- murmurou.
A família olhou a mãe com um ligeiro temor da sua coragem.
- Meu Deus! E a senhora toda a noite ao lado dela! - exclamou Tom.
- A família tinha de passar - disse a mãe acabrunhada.
Tom chegou-se a ela e colocou-lhe a mão no ombro.
- Não me toques - disse ela. - Senão, não aguento mais.
- Bem, vamos indo, vamos indo... - sugeriu o pai.
A mãe olhou para ele:
- Eu... eu posso sentar-me à frente, agora? Não quero ficar mais lá atrás. Estou
cansada, estou muito cansada.
Treparam todos para cima da carga, evitando olhar o vulto rígido, coberto e bem
embrulhado numa manta. Tomaram os respectivos lugares e tentaram desviar os olhos do
macabro volume; uma das extremidades, onde se alteava uma pequena saliência, devia ser o
nariz e aquela, mais aguda, mais em baixo, a projecção do queixo. Tentaram desviar os
olhos e não puderam. Ruthie e Winfield, que se tinham encolhido no canto mais afastado,
o mais afastado possível do corpo, fixavam afinal o vulto enrolado.
E Ruthie cochichou:
- É a vovó. Ela está morta.
Winfield concordou solenemente:
- Já não respira. Está morta a valer.
E Rosa de Sharon disse baixinho a Connie:
- Ela estava justamente a morrer quando nós...
- A gente não podia adivinhar - tranquilizou-a o marido.
250
Al subiu para o camião e cedeu, assim, o seu lugar à mãe. E Al arvorou um ar
fanfarrão, precisamente porque se sentia triste. Deixou-se cair entre Casy e o tio John.
- Ora, ela já era muito velha. Chegou a hora dela - disse Al. - Um dia todos têm de
morrer. - Casy e o tio John olharam-no sem expressão nos olhos como se ele fosse um
fantoche. - Não é assim? - perguntou. E os olhos continuaram inexpressivos, deixando Al
carrancudo e deveras agitado.
Casy disse, admirado:
- E ficou ali sozinha toda a noite! John, ela é uma mulher cheia de amor... Assustame!
Palavra que me mete medo. Sinto-me pequeno ao pé dela.
John perguntou:
- Teria sido um pecado? Será uma das coisas que vocês chamam pecado?
Casy virou-se para ele atónito:
- Um pecado? Não, senhor, nada disso.
- Eu nunca fiz nada que, no fundo, não tivesse qualquer coisa de pecado - disse John.
E olhou para o comprido vulto embrulhado.
Tom, a mãe e o pai subiram para o assento do motorista. Tom pôs o veículo em
andamento e depois ligou o motor. E o pesado camião desceu a montanha, saltando e
roncando no meio de estouros. O Sol ficava para trás, e o vale, dourado e verdejante,
espraiava-se em frente. A mãe meneava vagarosamente a cabeça.
- Mas que beleza! - disse ela. - Só queria que eles pudessem ver isto!
- Também eu - disse o pai.
Tom deu palmadinhas leves no volante.
- Já eram muito velhos - disse. - Nem iam dar valor a tudo isto. O avô ia pensar que
vinham os índios aí pelos campos como quando ele era novo. E a avó ia pensar na primeira
casa em que viveu. já eram muito velhos. Quem realmente aproveita isto é a Ruthie e o
Winfield.
- Este Tommy fala como um homem feito, ou melhor, quase como um pregador -
disse o pai.
A mãe esboçou um sorriso triste.
- Ele já é um homem feito, Cresceu tanto e de tal maneira que, às vezes, nem o
consigo acompanhar.
Desciam a montanha aos pulos e sacudidelas, perdendo algumas vezes o vale e
tornando novamente a achá-lo. E o hálito quente do vale enviava-lhes exalações mornas de
verduras, das salvas resinosas e do tomilho. Os grilos cantavam ao longo da estrada. Uma
cascavel atravessou, rastejando. Tom atropelou-a, deixando-a a contorcer-se.
251
- Acho que antes de mais nada, a gente tem de procurar o delegado de saúde - disse
Tom. - E preciso fazer o enterro à avó. Que dinheiro temos ainda, pai?
- Uns quarenta dólares - respondeu o pai.
Tom riu.
- Vamos começar a vida aqui bem tesos. Pode dizer-se que vimos de mãos a abanar!
Riu ainda por um instante; depois, as suas feições tornaram-se sérias. Puxou a pala do boné
bem sobre os olhos.
E o camião continuou descendo a montanha, rumo ao grande vale.
252
Capítulo XIX
A Califórnia já pertenceu ao México, e as suas terras aos mexicanos; uma horda de
americanos andrajosos e febris inundou a região. E tal era a sua fome de terra que as
tomaram, roubaram as terras dos Suters e dos Guerreros, roubaram e destruíram as
concessões e esses homens esfomeados e raivosos brigaram uns com os outros sobre a
presa e guardaram de armas na mão, as terras de que se tinham apoderado. Construíram
casas e celeiros, revolveram as terras e semearam-nas. Isso era a apropriação e a
apropriação equivalia a um título de posse.
Os mexicanos eram moles por excesso de alimentação. Não puderam resistir porque
nada se desejava no mundo como os americanos desejavam aquelas terras.
Depois, com o tempo, os acocorados (A palavra spialter, cujo sentido literal é acocorado,
designa igualmente os operários sem trabalho e os pequenos proprietários.) deixaram de ser acocorados
para passarem a proprietários; os seus filhos cresceram e, por sua vez, tiveram filhos. E a
fome acabou-se entre eles, essa fome animalesca, essa fome corroedora e lacerante da
propriedade, da água e de um céu azul sobre ela, da relva fresca exuberante, das raízes
entumescidas. Tinham tudo isso, e com tal abundância que deixaram até de ver essa
riqueza. Já se não sentiam corroídos pela ânsia de obterem um acre de terra fértil ou um
arado brilhante para nela abrir sulcos, sementes ou um moinho agitando o ar com as pás. já
não acordavam nas madrugadas escuras, para ouvir o primeiro chilrear dos pássaros ainda
ensonados, ou o ruído do vento matinal em torno de casa enquanto aguardavam os
primeiros clarões, à luz dos quais deveriam ir para os seus amados campos. Tudo isso fora
esquecido, e as colheitas eram avaliadas em dólares e as terras eram-no em capital mais
juros e as colheitas compradas e vendidas mesmo antes de se fazer a plantação. Nessa
altura, já o malogro das colheitas, as secas e as inundações haviam deixado de significar
pequenas mortes dentro da vida, mas simplesmente perda de dinheiro. E todos os seus
afectos eram medidos pelo dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía, à medida que
lhes aumentava o poder, até que finalmente eles deixaram de ser fazendeiros ou rendeiros,
para se transformarem em homens de negócios dos produtos da terra, pequenos
industriais, que tinham de vender antes de terem produzido qualquer coisa. E os
fazendeiros, que não eram bons negociantes, perdiam as suas terras, em favor dos que eram
253
bons negociantes. Não importava que fossem trabalhadores e diligentes e que amassem a
terra e tudo quanto nela crescia, desde que não fossem também bons negociantes. E, com
o tempo, os bons negociantes apropriaram-se de todas as terras e as fazendas foram
aumentando de tamanho, ao mesmo tempo que diminuíam em quantidade.
Já então a agricultura era uma indústria, e os donos das terras seguiam o sistema da
Roma antiga, conquanto o não soubessem. Importavam escravos, embora lhes não dessem
tal nome: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Vivem de arroz e de feijão, diziam os
negociantes. Não precisam de muita coisa para viver. Nem saberiam o que haviam de fazer
com bons salários. Ora vejam como eles vivem. Ora vejam o que eles comem. E, se eles se
tornarem exigentes, a gente expulsa-os do país.
E as propriedades cresciam cada vez mais e os proprietários iam simultaneamente
diminuindo. E havia tão poucos fazendeiros pobres na terra, que até fazia dó. E os
escravos importados passavam fome; eram maltratados, sentiam-se apavorados; alguns
regressavam aos lugares de onde tinham vindo e outros rebelavam-se, mas eram
assassinados ou deportados. E as propriedades cresciam e diminuía a quantidade dos
proprietários.
As colheitas tornavam-se diferentes. Árvores frutíferas tomavam o lugar das
plantações de cereais e os legumes destinados a alimentar o mundo alastravam por todos os
lados: alface, couve-flor, alcachofra, batatas, produtos que se colhem de rastos. um homem
pode permanecer de pé quando trabalha com a gadanha, com a charrua, ou com o arado,
mas tem de rastejar como um percevejo por entre os renques de alface, tem de se curvar e
de arrastar o saco enorme por entre os algodoeiros e tem de vergar os joelhos como um
penitente ao tratar de um canteiro de couve-flor.
E chegou a hora em que os proprietários já não trabalhavam nas suas propriedades.
Trabalhavam no papel; esqueciam as terras e a satisfação de as cultivar; lembravam-se
apenas delas quando lhes apreciavam os lucros e as perdas. E algumas das propriedades
cresciam, a ponto de um homem já nem poder imaginar o seu tamanho. Eram tão grandes
que requeriam batalhões de guarda-livros para o cálculo dos lucros ou perdas que lhes
proporcionavam; químicos para analisar a qualidade das terras e as tornar mais produtivas;
capatazes, cuja missão consistia em fazer com que os homens que labutavam nas terras,
trabalhassem até ao último resquício da sua força física. Então, esses proprietários
transformavam-se em autênticos armazenistas. Pagavam aos homens e vendiam-lhes
géneros alimentícios e assim recuperavam o dinheiro que lhes pagavam. E, após algum
tempo, deixaram totalmente de pagar aos homens e economizaram a escrituração e os
guarda-livros. Os proprietários vendiam alimentos a crédito aos trabalhadores. Um homem
254
podia assim trabalhar e comer; quando terminava o trabalho, verificava simplesmente que
ainda devia dinheiro ao proprietário. E os proprietários não só não trabalhavam nas suas
terras como havia muitos que jamais as tinham visto.
Chegaram então as multidões de espoliados e assaltaram o Oeste - vinham de
Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México; de Nevada e Arkansas, famílias e tribos expulsas
pela poeira e pelos tractores. Carros cheios, caravanas de gente sem lar e de esfomeados;
vinte mil, cinquenta mil, cem mil, duzentos mil desaguavam das montanhas, famintos e
inquietos - inquietos como formigas, famintos de trabalho, de poder carregar, puxar,
arrancar, colher, cortar, fazer de tudo, dar todo o seu esforço por uma côdea de pão. As
crianças têm fome... Não temos casa para viver. Inquietos como formigas, atrás de
trabalho, de comida e, sobretudo, de terra.
Não somos estrangeiros. Temos, atrás de nós, sete gerações de americanos e, antes
disso, de irlandeses, escoceses, ingleses e alemães. Tivemos avós na Revolução e muitos
outros parentes na Guerra Civil... de ambos os lados. Eram americanos.
Vinham famintos e ferozes. Tinham alimentado a esperança de encontrar um lar e só
encontraram ódio. Okies... os proprietários odiavam-nos porque sabiam que eram
indolentes e que os Okies eram fortes, que eles estavam saciados e que os Okies passavam
fome. E talvez os proprietários tivessem ouvido os seus avós contarem como era fácil a
alguém roubar terras a um homem indolente quando esse alguém era forte e se encontrava
armado. Os proprietários odiavam-nos. E os donos das casas comerciais das cidades
odiavam-nos também porque eles não tinham dinheiro para gastar. Não há? caminho mais
curto para provocar o desprezo de um comerciante, orientado precisamente para estimar o
contrário. Os homens das cidades, pequenos banqueiros, odiavam os Okies, porque um
homem esfomeado tem de trabalhar e, quando precisa de trabalhar e não acha onde,
automaticamente trabalha por um salário menor, e então todos têm de trabalhar por
salários menores.
E os espoliados, os emigrantes inundavam a Califórnia; eram duzentos e cinquenta
mil ou trezentos mil. Atrás deles, novos tractores marchavam pelas terras e os arrendatários
que ainda tinham ficado eram também expulsos. E novas ondas estavam a caminho, novas
ondas de espoliados e de expulsos, de coração endurecido, vorazes e perigosos.
E, enquanto os californianos desejavam muitas coisas: acumular riquezas, triunfos
sociais, diversões, luxo e uma boa segurança bancária, os novos bárbaros só desejavam
duas coisas: terra e comida, e, para eles as duas coisas fundiam-se numa só. E, enquanto os
desejos dos californianos eram nebulosos e indefinidos, os desejos dos Okies jaziam à beira
dos caminhos: eram visíveis e palpáveis: bons campos em que se podia perfurar a terra e
255
achar água, boas terras verdejantes, terras que se podiam esmigalhar entre as mãos para as
experimentar, relva que se podia cheirar, hastes de aveia que se podiam mascar até se lhes
sentir o gosto agridoce na garganta. Um homem podia olhar para um campo em pousio e
saber logo, sentir logo que as suas costas curvadas e os seus braços afadigados o fariam
frutificar; produzir a couve, o milho dourado, os rabanetes e as cenouras à luz do sol.
E o homem sem lar e esfomeado, que, com a mulher ao lado e os filhos magros no
assento traseiro, viajava pelas estradas, podia olhar para os campos em pousio, capazes de
produzir alimentos, mas não lucros financeiros; esse homem sabia que um campo em
pousio era um pecado, um crime cometido contra os seus filhos magros. Um homem assim
viaja pela estrada e sente a tentação de apoderar-se de terras assim e de as fazer produzir
força para os filhos e um pouco de conforto para a mulher. A tentação domina-o sempre;
está permanentemente diante dele. As terras atraíam-no e a boa água da companhia,
correndo a jorros, ajudava a tentação a aguilhoá-lo. E, no sul, ele via as laranjas doiradas
pendendo das árvores, as pequenas laranjas cor de ouro no verde-escuro das ramagens; e
guardadas com as armas de fogo dos que patrulhavam o sítio, de maneira a evitar que
alguém apanhasse alguma para um filho magro; laranjas que estavam destinadas a
apodrecer ali mesmo se os preços fossem muito baixos.
Guiava o velho carro até à cidade. Revolvia as fazendas em busca de trabalho. Aonde
vamos dormir hoje?
Bem, vão dormir mesmo em Hooverville, à beira do rio. já lá há um bando de Okies.
Guiava o carro até Hooverville. Já não precisava de perguntar nada, porque, nos
arredores de todas as cidades, havia um Hooverville.
A cidade dos maltrapilhos estendia-se perto da água; as casas eram tendas e choças
cobertas de caniço, casas de papel, um montão informe de sucata. O homem chegava lá
com a família e tornava-se um cidadão de Hooverville... Esses sítios chamavam-se sempre
Hooverville. O homem armava a sua tenda, o mais perto possível da água, e, quando não
tinha lona para fazer uma tenda, ia ao monturo da cidade, apanhava folhas de papelão e
construía uma casa de cartão ondulado. E, quando a chuva caía, a casa desmoronava-se e
era impelida pela enxurrada. Estabelecia-se em Hooverville e dali saía à cata de trabalho, e o
pouco dinheiro que lhe restava, gastava-o em gasolina, ao procurar trabalho. noite, os
homens reuniam-se e palestravam uns com os outros. Acocorados em roda, falavam da
terra que acabavam de conhecer.
Há uma fazenda de trinta mil acres ali adiante, mais para o Oeste. Está abandonada.
Meu Deus, o que eu faria com cinco acres daquilo! Dava para a gente comer o que
quisesse, caramba!
256
Tu já reparaste numa coisa? Nessas fazendas não há verduras, nem galinhas, nem
porcos. Eles só querem uma coisa; plantar algodão ou então pêssegos, ou então alface. Às
vezes, só criam galinhas. E compram as coisas que poderiam ter de graça se as plantassem
ali mesmo, atrás da habitação.
Santo Deus, o que eu não faria com um casal de porcos!
Bem, não vale a pena falar nisso; não é teu nem nunca será.
Mas o que é que a gente vai fazer, afinal? As crianças não podem ser criadas desta
maneira.
E nos acampamentos, a novidade corria em sussurro; em Shafter há trabalho. Então,
de noite, carregavam os carros e as estradas enchiam-se: era uma corrida para o trabalho,
que se assemelhava à febre com que se corre para os terrenos auríferos. As pessoas
chegavam aos magotes a Shafter; eram cinco vezes mais do que as necessárias. Era a
corrida do ouro, mas para o trabalho. Saíam de noite, frenéticos, em busca de trabalho. E,
ao longo das estradas, estendia-se a tentação, as terras que garantiam a comida.
Já têm dono. Não são nossas.
Mas, quem sabe? A gente podia amanhar nem que fosse um pedacinho pequeno.
Olhe aquele pedaço ali! Está abandonado; só dá mato. E quanta batata se podia colher ali,
meu Deus! Dava bem para toda a família encher a barriga!
Sim, mas isso não é nosso. Tem de ficar assim mesmo, cheio de mato.
De vez em quando, alguém tentava; rastejava pela terra; arrancava o mato e tentava,
como um ladrão, roubar à terra um pouco da sua riqueza. Hortas clandestinas, no meio do
mato. ma mancheia de sementes de cenoura, uma porção de nabos e de cascas de batatas.
Vinham furtivamente, de noite, cavar a terra roubada.
Deixa o mato crescer em volta; assim ninguém te verá. Também no meio convém
deixar algumas ervas ruins, das altas. Hortejo secreto, à noite, e água transportada em latas
enferrujadas.
E então, um dia chega um ajudante do sheriff.
Eh, que anda você aqui a fazer?
Não aço mal nenhum...
Tenho andado com o olho em você. Você pensa que essa terra aí é sua, hein? Isso é
uma infracção à lei.
Mas a terra está abandonada. Não faço mal nenhum. Não prejudico ninguém.
Ó seu acocorado de uma figa! Daqui a pouco armava-se em dono disto! Daqui a
pouco punha-se aí soberbo como o diabo. Armava-se em senhor disto. O melhor é pôr-se
a mexer daqui para fora.
257
E os rebentos verdes das cenouras eram arrancados e os nabos pisados com
desprezo. Então o mato tomava a crescer naquele sítio. Mas o polícia tinha razão. Bastava
mais um pouco... e a terra pertenceria ao intruso. Cuidada e plantada a terra comida a
primeira cenoura... um homem estaria pronto a lutar pelo solo que lhe fornecia o alimento.
Convém pô-lo fora logo de princípio. Senão, acaba por pensar que aquilo é dele. Senão, é
capaz de lutar até à morte pelo pedacinho de horta oculto entre as ervas daninhas.
Tu viste a cara dele, quando a gente pisou aqueles nabos? Tinha olhos de assassino.
Se a gente não corre com eles, acabam por tomar conta de tudo. Sim, senhor, tomam conta
de tudo pela certa!
São estranhos, estrangeiros.
Sim, eles falam a mesma língua que nós, mas não é a mesma coisa. Olha como eles
vivem. Tu achas que a gente era capaz de viver assim? Não, com um raio!
E, à noite, acocoravam-se numa roda e conversavam. E um homem excitado dizia:
- Porque é que a gente se não reúne para aí uns vinte, e não toma um pedaço de
terra? Armas tem a gente. É levá-las e dizer: Tirem-nos daqui se são capazes. Por que é que
não vamos a isso?
Eles matavam-nos como se fôssemos bichos.
Que é que tem? É melhor morrer que apodrecer aqui. Debaixo da terra, ou numa
casa feita de bocados de saca? Tu queres que os teus filhos morram agora ou daqui a dois
anos com o que eles chamam subnutrição? Tu sabes o que foi que a gente comeu durante a
semana toda? Pão e urtigas. Tu sabes onde arranjámos a farinha para o pão? Apanhámos os
restos de um transporte de farinha.
Assim se falava nos acampamentos, e os adjuntos, homens gordos, bem nutridos,
com coldres de revólveres nas ancas roliças, giravam pelos acampamentos. É para se não
esquecerem. A gente tem que os ter debaixo de olho, senão... senão, Deus sabe o que são
capazes de fazer! São mais perigosos que os negros do Sul. Se se ajuntarem, ninguém
poderá com eles.
Notícia: Em Laurenceville, um adjunto do sheriff procedeu à expulsão de um desses
acocorados. O homem resistiu, compelindo o polícia a usar da força. Um filho dele, apenas
de onze anos, deu um tiro na autoridade, matando-a. A arma usada foi um rifle, calibre 22.
Cascavéis! Não convém dar-lhes facilidades. É atirar primeiro. Se uma criança é
capaz de matar um polícia, que fará um adulto? A única coisa que se pode fazer é ser mais
teso do que eles. Maltratar essa gente; meter-lhe medo.
E se eles se não deixarem assustar? Se eles fizerem frente e se defenderem a tiro?
Esses homens usam armas desde crianças. Uma arma é, por assim dizer, um prolonga258
mento das suas pessoas. Que fazer se eles não se assustarem? Se, algum dia, eles formarem
verdadeiros regimentos e marcharem pela terra, como fizeram os lombardos na Itália, os
alemães na Gália e os turcos em Bizâncio? Também eles tinham fome de terra, também
eles formavam bandos mal armados e as legiões não os conseguiram deter. Nem a morte
nem o terror os detinham. Como é que se pode incutir medo num homem que não sente
fome apenas no estômago, mas também no ventre torturado dos filhos? Não se pode
assustar um homem nestas condições... ele já passou por todos os transes.
Em Hooverville, os homens conversavam:
Meu avô tomou a terra aos índios.
Não, isto não é justo. A gente só está aqui de conversa. Fazer o que tu dizes é o
mesmo que roubar. Eu não sou nenhum ladrão.
Não? Quem foi que roubou uma garrafa de leite da porta de uma casa anteontem à
noite? E quem foi que roubou aquele fio de cobre e o vendeu por um pedacinho de carne?
Bem, mas isso foi porque as crianças passavam fome.
Mas não deixou de ser um roubo.
Tu sabes como surgiu a fazenda Fairfield? Vou dizer-te. As terras pertenciam ao
governo e podiam ser cultivadas. Bem, um dia, o velho Fairfield foi a S. Francisco e andou
pelos cafés e bares e juntou trezentos bêbedos que andavam por ali a vadiar. Pois os
bêbedos ocuparam as terras. O Fairfield dava-lhes só comida e whisky para eles tomarem
conta das terras e, depois de eles as experimentarem, o velho ficou com tudo sozinho. O
velho costumava dizer que cada acre de terra lhe não tinha custado mais que uma garrafa
de cachaça. Que é que tu achas? Isso não foi roubo, hein?
Não foi justo, isso não foi, mas ele não foi para a cadeia por causa do que fez.
Não, nunca foi. E também aquele gajo que pôs uma canoa no carro e fez o seu
relatório como se tudo estivesse alagado pela água, porque ia de barco, esse gajo também
não foi para a cadeia. E também aqueles gajos que compraram os deputados e os senadores
também não foram para a cadeia.
Por todo o Estado, por todas as Hoovervilles, impera a tagarelice.
E depois, as batidas policiais - grupos de agentes uniformizados, invadindo os
acampamentos. Saiam daqui! Ordem da Saúde Pública! O acampamento é um perigo para a
saúde colectiva.
Mas, para aonde vamos?
Isso já não nos diz respeito. Recebemos ordem para fazermos evacuar o
acampamento. Dentro de meia hora, vamos deitar fogo a tudo o que aqui estiver.
Há tifo ali em baixo. Vocês querem provocar uma epidemia?
259
Temos ordem de os fazer sair daqui. Bem, vão saindo. Daqui a meia hora, largamos
fogo a tudo.
Em meia hora, a fumarada das casas de papelão subiu das casas feitas de erva seca,
rumo ao céu e a gente expulsa, nos respectivos calhambeques, inundava as estradas, à cata
de outra Hooverville.
E no Kansas, no Arkansas e no Texas e no Novo México, os tractores expulsavam
os arrendatários das terras.
Trezentos mil na Califórnia e outros mais a caminho. Na Califórnia, as estradas estão
cheias de gente alucinada, que corre como formigas, à procura de algo para puxar, para
arrancar para erguer, para trabalhar, enfim. Para cada carga a levantar, cinco braços se
estendiam; para receber cada mancheia de comida, cinco bocas famintas se escancaravam.
E os grandes proprietários, que têm, de perder as suas terras na primeira
transformação, os grandes proprietários que estudam a História que têm olhos para ler a
História, deviam conhecer este grande facto: a propriedade, quando acumulada, em muito
poucas mãos, há-de vir a ser espoliada. E também este outro facto paralelo: quando uma
maioria passa frio e fome, tomará à força aquilo que necessita. E também o facto gritante,
que ecoa por toda a História: a repressão só conduz ao fortalecimento e união de todos os
oprimidos. Os poderosos proprietários ignoram os três gritos da História. A terra
acumulou-se em poucas mãos, o número dos espoliados cresceu e todos os esforços dos
grandes proprietários se orientaram no sentido da repressão. Gastava-se o dinheiro em
armas e gases para protecção das grandes propriedades e enviavam-se espiões com a
missão de descobrir conspiratas latentes, que convinha abafar à nascença. Ignorava-se a
transformação económica; não se tomavam em consideração os planos para a
transformação; apenas se tomavam em conta os meios de destruir as revoltas enquanto as
causas das revoltas subsistiam.
Os tractores, que arrancam os lavradores ao seu trabalho e os tapetes rolantes que
transportam as cargas, as máquinas que produzem - tudo isso foi aperfeiçoado e cada vez
maior número de famílias vai rolando nas estradas, à procura das migalhas que caem das
grandes propriedades, cobiçando as terras que se estendem à beira das estradas. Os grandes
proprietários formavam associações de protecção e reuniam-se para estudar o meio de
intimidar, de matar com gases... E sentiam-se diante de um pavor permanente... se um dia
'esses trezentos mil tiverem um chefe, será o fim. Trezentos mil, famintos e miseráveis, se
algum dia eles descobrirem a sua própria força, nesse dia, a terra será deles, e nem todo o
gás, e nem todas as espingardas do mundo serão capazes de os deter. E os grandes
proprietários que, através das suas empresas se tomavam simultaneamente mais e menos
260
do que seres humanos, corriam para a sua destruição e usavam todas as armas que
concorriam para a sua própria destruição. Todos os pequenos meios, todas as violências,
todas as excursões policiais às Hoovervilles, todos os agentes da polícia, armados em
fanfarrões por entre os acampamentos de esfarrapados, adiavam um pouco a chegada do
dia da destruição, mas contribuíam também para a sua chegada infalível.
Os homens agachavam-se sobre os calcanhares, homens de faces angulosas, magros
de fome e endurecidos pela resistência que a ela opunham, olhares sombrios e maxilares
fortes. A terra fértil, à volta deles, ali...
Você já ouviu falar daquela criança, ali, na quarta tenda?
Não. Cheguei agora mesmo.
Pois essa criança chorava e remexia-se toda a sonhar. Todos pensavam que tinha
lombrigas. Então deram-lhe um purgante e ela morreu. Mas o que a criança tinha era aquilo
que se chama pelagra. Apanha-se quando se não tem nada de jeito para comer.
Coitadinha!
Pois é, e os pais dela nem dinheiro têm para o enterro. Tem de ir para a vala comum.
Safa, que inferno!
E as mãos mergulhavam nos bolsos e puxavam pequenas moedas. Diante da tenda, a
pilhazinha de dinheiro crescia. E a família lá a encontrou.
A nossa gente é boa gente, a nossa gente é gente de coração. Deus queira que algum
dia a gente boa não seja toda ela gente pobre. Deus queira que algum dia uma criança tenha
bastante que comer.
E as associações de proprietários sabiam que algum dia cessariam as preces.
E então seria o fim.
261
Capítulo XX
No topo do camião, Connie, Rosa de Sharon e o pregador sentiam os corpos rígidos
e cheios de cãibras. Tinham esperado ao sol diante da casa do médico-legista de
Bakersfield, enquanto o pai, a mãe e o tio John se mantinham lá dentro. Depois, trouxeram
um cesto para fora e desceram o vulto alongado do camião. E esperaram ao sol, enquanto
o cadáver era examinado, verificada a causa da morte e passada a certidão de óbito.
Al e Tom vadiavam pela rua, olhando as vitrinas das lojas e as pessoas estranhas que
cruzavam nos passeios.
E, finalmente, o pai, a mãe e o tio John, saíram de novo. Vinham abatidos e
silenciosos. O tio John trepou para cima da carga, e o pai e a mãe sentaram-se à frente.
Tom e Al regressaram devagar, e Tom sentou-se ao volante. Ficou ali sentado, esperando
em silêncio, uma ordem. O pai fixou o olhar em frente, com o chapéu escuro puxado para
os olhos. A mãe esfregou as comissuras dos lábios com os dedos. O seu olhar perdia-se nos
longes, esquecido e morto de cansaço.
O pai soltou um suspiro profundo.
- Não havia mais nada a fazer - exclamou.
- Bem sei - disse a mãe. - Mas ela sempre desejou um enterro bonito. Sempre!
Tom olhou-a de lado.
- Vala comum? - perguntou ele.
- Sim. - O pai sacudiu a cabeça vivamente, como se fizesse força para voltar à
realidade. - Não tínhamos o suficiente. Não era possível!
Dirigiu-se à mãe:
- Tu não deves levar isso tanto a sério. Não podia ser, por mais que a gente quisesse.
Não há dinheiro. Embalsamamento, caixão, pregador e o túmulo no cemitério teriam
custado dez vezes mais do que aquilo que temos. A gente fez o que pôde.
- Eu sei - disse a mãe.- Mas isto não me sai da cabeça. O que ela desejava um enterro
bonito! Mas não há remédio. - Suspirou profundamente, esfregando os lábios. - Aquele
homem que estava lá dentro era bem simpático. Muito autoritário, mas simpático.
- Sim - confirmou o pai. - Não esteve com meias medidas; falou-nos de caras.
A mãe alisou o cabelo para trás com a mão. Os músculos das faces contraíram-se-lhe.
262
- Temos de continuar - disse. - A gente tem de escolher um sítio para acampar, temos
de achar trabalho e temos de nos instalar. Não podemos deixar as crianças passar fome. A
avó também não gostaria disso. Na casa dela sempre se fez boa ceia de velatório.
- Aonde vamos? - inquiriu Tom.
O pai tirou o chapéu e coçou a cabeça.
- A um acampamento - disse. - O pouco que ainda temos não se pode gastar.
Primeiro, a gente tem de arranjar trabalho. Leva-nos para o campo.
Tom pôs o motor em movimento, e atravessaram as ruas em direcção ao campo.
Perto de uma ponte, viram uma aglomeração de tendas e barracas.
Tom alvitrou:
- Podemos parar aqui. Veremos o que se passa e veremos onde se pode arranjar
trabalho.
Desceu por um atalho curto e íngreme, parando a um lado do acampamento.
Não havia ordem nesse acampamento. Estavam misturadas em desordem as
pequenas tendas cor de cinza, as barracas e os carros. A primeira casa era simplesmente
indescritível. A parede do lado sul consistia em três chapas de folha-de-flandres onduladas
e cheias de ferrugem; a do leste era um velho tapete bolorento, estendido entre duas
estacas, a do norte, uma tira de papelão alcatroado e outra de lona esfarrapada, e a parede
do oeste era feita de seis pedaços de linhagem. O telhado compunha-se de ramos não
esquadriados, de salgueiro, sobre os quais havia hastes verdes, acumuladas em forma de
pirâmide. A entrada, do lado da parede de linhagem, estava atravancada com utensílios
diversos. Uma grande lata de querosene servia de fogão. Estava poisada de lado, tendo
incrustado numa das extremidades um pedaço de chaminé de fogão enferrujado. Um
aparelho de fazer a barrela via-se deborcado contra a parede e havia caixotes dispersos em
volta, caixotes que serviam de cadeiras e de mesas. Uma conduite “Ford”, modelo T, e uma
roulotte de duas rodas estacionavam ao lado da barraca. Sobre tudo aquilo pairava uma
atmosfera de desordem e de desespero.
Perto da barraca, havia uma pequena tenda de lona desbotada por força das
intempéries, mas armada com ordem. Os caixotes, diante dela, estavam encostados às
paredes. Um tubo de fogão apontava o alto, através da entrada da tenda, e o chão, em
frente, via-se que estava varrido e regado. Num dos caixotes havia um balde cheio de roupa
molhada. O acampamento oferecia naquele local um aspecto asseado e pessoal. A um lado
da tenda, via-se um “Roadster”, modelo A e uma pequena roulotte de fabrico caseiro.
Seguia-se uma enorme tenda, esfarrapada, feita em tiras e com os buracos
remendados a arame. A entrada estava aberta, e, dentro, no chão, havia quatro colchões de
263
casal. Numa corda de roupa esticada a um lado, enxugavam vestidos de algodão cor-derosa
e vários fatos-macacos. Havia ali, ao todo, quarenta tendas e barracas, e, ao lado de
cada habitação, estacionava sempre um automóvel qualquer. Mais para trás, agrupavam-se
algumas crianças, a olhar o carro que acabava de chegar. Outros corriam ao seu encontro
rapazinhos de fato-macaco e pés descalços, com os cabelos cinzentos de poeira,
Tom parou o carro, olhando o pai.
- Não é muito bonito, isto. O senhor quer ir para outro sítio?
- Não podemos ir para qualquer outro sítio sem sabermos primeiro o que nos espera.
Temos de saber o que há a respeito de trabalho - disse o pai.
Tom abriu a porta e saiu. A família desceu do alto da carga, olhando curiosamente
em volta de si. Ruthie e Winfield, de acordo com o hábito contraído na estrada, tomaram o
balde e correram em direcção aos salgueiros, onde, provavelmente, haveria água. E a fileira
formada pelas crianças abriu-se para os deixar passar, fechando-se de novo, em seguida.
A entrada da primeira barraca abriu-se, dando passagem a uma mulher. De cabelos
encanecidos entrançados, usava uma bata suja, toda às florinhas. O rosto era ressequido e
de aparência estúpida. Sob os olhos sem expressão, cavavam-se fundos papos cinzentos e a
boca era frouxa e mole.
O pai perguntou-lhe:
- A gente pode instalar-se aqui?
A cabeça tornou a desaparecer na tenda. Por um instante, reinou o silêncio, depois,
entreabriu-se novamente o pano de linhagem e um homem barbudo, em mangas de camisa,
saiu da tenda. A mulher espreitou atrás dele mas não saiu da barraca.
O homem barbudo disse:
- Bom dia, minha gente. - E os seus olhos escuros e inquietos passavam de um para
outro membro da família, e destes para o caminhão carregado.
- Acabo de perguntar à sua senhora se nos podemos instalar aqui - repetiu o pai.
O barbudo olhou o pai com gravidade, como se este tivesse dito alguma coisa muito
profunda e que exigisse certa meditação.
- Instalar-se aqui, no acampamento? - perguntou.
- Sim. O acampamento pertence a alguém a quem devamos pedir licença?
O barbudo piscou o olho esquerdo, examinando o pai.
- Então querem acampar aqui?
O pai começava a irritar-se. A mulher de cabeça encanecida espreitou de novo por
entre a serapilheira.
- Então que tenho eu estado a perguntar senão isso? - tornou o pai.
264
- Bem, se querem acampar aqui, porque não acampam? Eu não tenho nada com isso.
- Compreendeu afinal - disse Tom, a rir.
O pai encheu-se de paciência.
- Só quis saber se o acampamento pertencia a alguém. A gente tem de pagar alguma
coisa?
O barbudo projectou o queixo para diante.
- Se pertence a alguém? - perguntou.
O pai virou-lhe as costas.
- Ora vá para o diabo que o carregue!
A mulher encolheu de novo a cabeça.
O barbudo avançou ameaçador.
- Se pertence a alguém? - repetiu. - Quem é que vai pôr-nos fora daqui? Diga!
Tom colocou-se entre ele e o pai.
- É melhor você ir fazer uma boa soneca - disse.
O barbudo abriu a boca, passando o dedo sujo pelas gengivas do maxilar inferior.
Olhou Tom por um instante pensativamente; depois, girou nos calcanhares e entrou
precipitadamente na barraca, atrás da mulher de cabelos grisalhos.
Tom voltou-se para o pai.
- Que raio foi isso? - perguntou.
O pai encolheu os ombros. Deixou os olhos errarem pelo acampamento.
À frente de uma das tendas, estacionava um velho “Buick,” com a cúpula do motor
desmontada. Um rapaz esmerilava as válvulas, e, enquanto passava a fita para trás e para a
frente, lançou um olhar ao caminhão dos Joads. Via-se que ria consigo mesmo. Quando o
barbudo desapareceu, o rapaz deixou o trabalho e avançou vagarosamente.
- Bom dia - disse, e os seus olhos azuis brilhavam divertidos. - Estive a ver como
vocês falavam com o Presidente da Câmara.
- Que diabo tem ele?
O rapaz deu uma gargalhada.
- É um maluco como você e como eu. Talvez um pouco mais do que eu. Não sei.
O pai explicou:
- Só lhe perguntei se podíamos acampar aqui.
O rapaz limpou às calças as mãos cheias de óleo.
- É natural. Vocês acabam de chegar, não é?
- Sim - disse Tom.- Chegámos hoje de manhã.
- Então nunca estiveram em Hooverville?
265
- Onde é Hooverville?
- É aqui.
- É? - perguntou Tom. - Não sabia. Como acabámos de chegar...
Winfield e Ruthie voltavam, trazendo a meias um balde cheio de água.
- Vamos armar a tenda. Estou exausta. Pode ser que a gente possa descansar aqui
algum tempo - disse a mãe.
O pai e o tio John começaram a descarregar a lona e as camas.
Tom acompanhou o rapaz até ao carro que este estava a consertar. A fita de polir
jazia sobre o bloco do motor desmontado e uma pequena lata amarela com massa de
esmeril estava entalada no tanque vazio.
- Que diabo tem aquele gajo velho das barbas? - perguntou Tom.
O rapaz apanhou a fita de polir e recomeçou a trabalhar, esfregando para trás e para
diante, polindo as válvulas de compressão.
- O Presidente da Câmara? Só Deus sabe. Acho que ele está com medo da polícia.
- Medo da polícia porquê?
- Acho que a polícia o perseguiu até o deixar maluco de todo.
Tom perguntou:
- Mas porque perseguem eles um tipo assim?
O rapaz interrompeu a tarefa, olhando bem nos olhos de Tom.
- Só Deus sabe - disse. - Você acaba de chegar. Pode ser que acabe por descobrir o
motivo. Uns dizem isto; outros dizem aquilo. Mas demore-se algum tempo num
acampamento e você vai ver a rapidez com que o sheriff o põe fora. - Agarrou numa válvula,
untando a haste com um pouco de esmeril.
- Mas porquê?
- Sei lá! Alguns dizem que eles não querem que a gente vote. Mantêm-nos sempre em
movimento, para que não tenhamos direito a voto. E outros dizem que fazem isto para que
não recebamos o auxílio dos desempregados. E outros dizem que eles têm medo que a
gente se organize se estivermos sempre no mesmo sítio... Sei que nos enxotam sempre.
Espere um tempo e vai ver.
- Mas nós não somos vagabundos - insistiu Tom. - Procuramos trabalho. E
aceitamos qualquer trabalho.
O rapaz cessou de esfregar a fita na haste da válvula. Olhou Tom com surpresa.
- Andam à procura de trabalho, hein? - disse. - Então vocês andam à procura de
trabalho? E nós todos, que é que andamos procurando por aí? Diamantes? Então por que
266
motivo pensa você que eu ando aqui a dar cabo do canastro? Voltou a esfregar a fita para
trás e para diante.
Tom olhou em torno de si; viu as tendas imundas, os equipamentos em desordem, os
carros velhos, os colchões esfarrapados, estendidos ao sol, e as latas negras sobre as pedras
enegrecidas pelo fogo. Perguntou baixinho:
- Não há trabalho?
- Não sei. Deve haver. Mas, por agora, não há colheitas por estas bandas. As uvas e o
algodão colhem-se mais tarde. Seguimos para a frente assim que eu terminar as válvulas.
Eu, minha mulher e as crianças. Ouvimos dizer que lá para o norte há trabalho... Perto de
Salinas.
Tom viu o pai, o tio John e o pregador estenderem a lona sobre os paus e a mãe, de
joelhos, lá dentro, sacudindo os colchões no solo. Uma roda de crianças mantinha-se
silenciosamente a alguma distância, observando como se arranjava a nova família. Crianças
taciturnas, descalças e de cara suja. Depois, prosseguiu:
- Pela nossa terra passaram homens distribuindo folhetos, desses cor de laranja.
Diziam que se precisava aqui de muita gente para os trabalhos da colheita.
O rapaz riu.
- Aqui somos para aí umas trezentas mil pessoas, e aposto que todas elas viram esses
malditos folhetos.
- Pois então? Se não precisam da gente, porque é que imprimiram essas coisas?
- Puxe pela cabeça.
- Era o que eu gostava de saber.
- Olhe - disse o rapaz. - Imagine que você precisa de gente para um serviço qualquer
e que só aparece um homem a querer pegar nesse serviço. Então você tem de lhe pagar o
que ele exigir. Mas se, em vez de um, aparecerem cem homens... - Abandonou a
ferramenta; o seu olhar fez-se duro e a sua voz mais aguda. - Suponha que há cem homens
a querer esse emprego. Esses cem homens têm filhos e os filhos têm fome. Suponha que
uma moeda de dez cents chega para umas papas para os miúdos. Suponha ainda que cinco
cents chegam para comprar qualquer coisa aos pequenos. É são cem homens. Você oferecelhes
uma tuta-e-meia e vai ver: matam-se uns aos outros para ganhar essa ninharia. Sabe
quanto me pagaram no último trabalho que tive? Quinze cents à hora. Dez horas por um
dólar e meio, e a gente não pode pernoitar na fazenda. Temos ainda de gastar gasolina com
o caminho. - Estava ofegante de raiva, e o ódio brilhava nos seus olhos. - Foi por isso que
distribuíram esses folhetos. Eles podem imprimir folhetos como o diabo, com o dinheiro
que economizam, pagando apenas quinze cents à hora de trabalho no campo.
267
- Mas que canalhice! - exclamou Tom.
O rapaz riu com aspereza.
- Fique aqui uns tempos e, se achar a árvore das patacas, diga-me.
- Mas trabalho há, não há? - interrogou Tom. - Meu Deus, com tanta coisa que há
por aí! Pomares, uvas, e legumes; eu vi. Eles têm de precisar de gente! Vi tudo isso.
Uma criança chorava numa tenda próxima do carro. O rapaz entrou, e a sua voz
soou abafadamente através da lona. Tom pegou na fita de polir, colocou-a no encaixe da
válvula e continuou o trabalho, esfregando com a mão para diante e para trás. A criança
cessou de chorar. O rapaz voltou e observou:
- Você dá para a coisa - disse. - Ainda bem! Vai-lhe fazer jeito.
- Mas, como ia dizendo...- Tom voltou ao tema anterior. - Eu vi que por aqui se
semeia e se planta muita coisa.
O jovem acocorou-se sobre os calcanhares.
- Eu vou explicar-lhe a coisa - disse tranquilamente.- Há aqui uma fazenda de
pêssegos grande como o diabo, onde eu tenho trabalhado. Precisam apenas de nove
homens durante o ano todo. - Fez uma pausa para impressionar. - Mas, durante duas
semanas, necessitam de três mil homens. E quando os pêssegos estão maduros... Precisam
de arranjar esses homens, senão os pêssegos apodrecem. Então, que fazem eles?
Distribuem impressos por toda a parte, até no inferno, se for preciso. Precisam de três mil
homens, mas aparecem seis mil. E eles arranjam os homens pelo ordenado que muito bem
lhes apetece pagar. Se você não quiser aceitar o que eles pagam, que vá para o diabo; têm
mil outros que esperam pelo seu trabalho. Escolhe-se, colhe-se a fruta e daí a pouco
acabou-se tudo. Em toda aquela zona só há pêssegos. E todos amadurecem ao mesmo
tempo. Quando você acabar a colheita, não haverá mais nada que fazer em toda a região.
Então, os proprietários não querem que vocês fiquem por lá. Vocês, os três mil. O trabalho
está feito. E possível que vocês queiram roubar; é possível que lhes dê para beber, é
possível que façam bulha. E, além disso, vocês não produzem bom efeito; moram em
barracas miseráveis, e a região é linda; vocês estragam-na com a vossa presença. Eles não
os querem na região. Por isso, tratam de os enxotar para outros lados. E assim é que é a
coisa.
Tom lançou um olhar à tenda da família. Viu como sua mãe, pesada e lenta, devido
ao cansaço, armava e acendia uma pequena fogueira, colocando sobre ela as panelas.
Aproximara-se a roda de crianças, e os olhos calmos e esbugalhados dos pequenos
observavam os movimentos das mãos da mãe. Um velho muito velho, com as costas
abauladas, saindo de uma das tendas como um texugo, avançava com passos arrastados,
268
farejando o ar. Cruzou as mãos atrás das costas, e fez companhia às crianças que olhavam
para a mãe. Ruthie e Winfield estavam perto dela, encarando os estranhos com olhares
hostis.
Tom disse colérico:
- Os pêssegos devem ser colhidos imediatamente, não é? Assim que amadurecerem?
- É sim.
- Bem, imagine que a gente se junta e diz: pois então que se estraguem! Era um
instante enquanto os ordenados aumentavam, santo Deus!
O rapaz ergueu os olhos de sobre as válvulas, lançando a Tom um olhar sarcástico.
- Livra! Descobriu a novidade, hein? E você sozinho inventou tudo isso?
- Estou cansado - disse Tom. - Guiei toda a noite. Não quero discutir agora. Mas
estou com um cansaço tão levado dos diabos que nada me custa brigar. Por favor, não se
ponha aí a armar em esperto. Estou a perguntar-lhe o que pensa disto.
O jovem sorriu.
- Não foi por mal. Não me lembrei de que você está aqui pela primeira vez. Mas é
que já houve outros que pensaram nisso. E o pessoal da fazenda de pêssegos já pensou
nisso também. Olhe, para a gente se organizar, é preciso um chefe, um camarada que fale
pela gente. Bem, a primeira vez que esse camarada abrir a boca, agarram-no e metem-no no
xadrez. E, se vem outro chefe, vai para o xadrez também.
Tom disse:
- Bem, mas no xadrez, ao menos, a gente tem de comer.
- Mas os filhos não têm. E você gostaria de estar no xadrez e os seus filhos cá fora, a
morrer de fome?
- Aí é que está - disse Tom lentamente. - Aí é que está...
- E mais uma coisa. Você já ouviu falar na lista negra?
- O que é isso?
- Basta você abrir o bico, dizer que nos vamos organizar, e vai ver. Tiram-lhe o
retrato e mandam-no para toda a parte. E então você nunca mais consegue arranjar
trabalho em parte nenhuma. E, se você tiver filhos...
Tom tirou o boné, e pôs-se a dar-lhe voltas entre as mãos.
- Então temos de aceitar o que nos dão, ou morreremos de fome. E, se respingamos,
morremos também de fome.
O jovem fez um vasto círculo com a mão, e esse gesto envolveu as tendas
esfarrapadas e os carros enferrujados.
269
Tom olhou novamente para a mãe, que estava sentada, descascando batatas. As
crianças tinham-se aproximado dela ainda mais.
- Eu não vou aguentar isto, caramba! Que diabo! Eu e a minha gente não somos
ovelhas! Vou reagir, seja contra quem for - ameaçou Tom.
- Por exemplo, contra um polícia?
- Seja quem for.
- Está maluco - disse o rapaz. - Deitam-lhe a mão que e um regalo! Você não tem
nome nem dinheiro. Vão encontrá-lo no fosso de uma estrada, com o sangue já seco na
boca e no nariz. Depois, aparece uma linha no jornal. Sabe o que diz? “Vagabundo
encontrado morto.” E pronto! É. um ror de notícias assim no jornal. “Vagabundo
encontrado morto.”
- Pelo menos, hão-de encontrar mais outro morto ao pé desse vagabundo - disse
Tom.
- Está maluco! - disse o rapaz.- Que adianta isso?
- Bem, e você, que é que faz? - Olhou-lhe a cara manchada de óleo. E um véu desceu
sobre o rosto do jovem.
- Nada. De onde vêm vocês?
- Nós? De perto de Sallisaw, Oklahoma.
- E acabam de chegar?
- Sim, hoje mesmo.
- Querem ficar aqui muito tempo?
- Não sei. Queremos ficar onde acharmos trabalho. Porquê?
- Por nada. - E o véu tornou a descer.
- Temos de dormir - disse Tom. - Amanhã vamos sair, à procura de trabalho.
- Podem experimentar.
Tom voltou-lhe as costas e dirigiu-se à tenda dos Joads. nela.
O rapaz pegou na lata de massa de esmeril, metendo o dedo
- Eh! - gritou. Tom voltou-se novamente.
- Que é que há?
- Vou-lhe dizer uma coisa. - Sacudiu o dedo, a que se agarrara um pouco de massa. -
Vou-lhe dizer uma coisa apenas. Não se metam em sarilhos. Lembra-se da cara daquele
tipo com a mania da perseguição?
- Aquele velho da primeira barraca?
- Sim. Aquele que parecia mudo, com cara de idiota.
- Que tem ele?
270
- Bem, quando os polícias vierem - e eles andam sempre por aí - é assim que a gente
deve ser. Fazer-se parvo, como se não compreendesse nada. É assim que os polícias nos
querem. Não caia em bater-lhes... Isso seria um autêntico suicídio. Faça-se trouxa...
- Devo então consentir que esses malandros desses polícias me escorracem sem eu
fazer nada?
- Isso mesmo. Escute. Esta noite vou ter consigo. Talvez eu esteja enganado. Ele há
aí espiões por todos os lados... Eu estou a arriscar-me e tenho um filho... Mas, esta noite,
vou ter consigo. E, se vier um polícia, você faz de Okie idiota, já sabe, hein?
- Entendido. Só quero que a gente faça alguma coisa - disse Tom.
- Não se apoquente. Claro que a gente faz. Mas sem barulho. Uma criança morre de
fome muito depressa. Leva dois ou três dias apenas.
Voltou para o seu trabalho, untando com a massa o encaixe da válvula, e a sua mão ia
e vinha rapidamente na fita, enquanto o rosto se mostrava sombrio e fechado.
Tom dirigiu-se vagarosamente para a tenda.
- Fazer de idiota! Fazer de idiota! - murmurava entre dentes.
O pai e o tio John voltavam, carregados de ramos secos de salgueiro; atiraram-nos ao
lume e acocoraram-se.
- Custou a colher isto - disse o pai. - Fartámo-nos de caminhar para arranjar esta
lenha.
Levantou os olhos para a roda de crianças pasmadas que os rodeavam.
- Meu Deus! - exclamou. - De onde saíram vocês todos?! As crianças, envergonhadas,
baixaram os olhos, fixando-os nos pés.
- Parece-me que sentiram o cheiro da comida ao lume - esclareceu a mãe. - Ó
Winfield, sai-me do caminho, anda! - E deu-lhe um empurrão. - Estou com vontade de
preparar um guisadinho - disse. - Ainda não comemos nada bem cozinhado desde que
saímos de casa. Pai, vai ali à venda e traz carne para guisar. Vou fazer um bom guisadinho.
O pai levantou-se e afastou-se lentamente.
Al abriu a tampa do motor e examinou as peças lubrificadas. Ergueu a cabeça quando
Tom se aproximou dele.
- Olá! Vens aí contente que nem um rato.
- Nem tu imaginas! Satisfeito que nem um rato à chuva - respondeu Tom.
- Repara no motor. Está bom, não está?
Tom olhou.
- Parece que sim, que está perfeito.
271
- Perfeito? Formidável é que ele está. Não vazou óleo nem nada. - Desaparafusou
uma vela, metendo o indicador no buraco. - Um bocado agarrado mas está seco.
Tom prosseguiu:
- Sim, fizeste um bom negócio, quando compraste este carro. Era o que querias
ouvir, não era?
- Bem, o facto é que toda a viagem suei, pensando que a coisa não aguentasse, e que
a culpa fosse minha.
- Não, senhor. Fizeste tudo bem. Mas é melhor verificar se tudo está em ordem,
porque amanhã vamos sair à procura de trabalho.
- Vai continuar que é uma beleza - disse Al - Não te preocupes.
Tirou um canivete do bolso e pôs-se a raspar os resíduos das velas.
Tom rodeou a tenda e viu Casy sentado no chão, olhando pensativo o pé descalço;
sentou-se pesadamente ao lado dele.
- Acha que ainda servem?
- O quê? - perguntou Casy.
- Os dedos do pé.
- Ah! Sentei-me a pensar um pouco.
- Você tem sempre tempo para isso - disse Tom.
Casy, com um sorriso calmo, levantou o dedo grande do pé e baixou o segundo
dedo.
- É bastante difícil uma pessoa pensar como deve ser, sem baralhar os pensamentos.
- Há muitos dias que você não dá um pio - disse Tom. - Tem estado todo esse tempo
a pensar?
- Sim, tenho estado a pensar.
Tom tirou o boné sujo e todo estragado, com a pala em ângulo agudo, voltou a tira
de couro e retirou de lá uma fita de papel de jornal dobrado que o forrava.
- Suei tanto que encolheu - disse, olhando o movimento dos dedos do pé de Casy. -
Você não pode deixar de pensar e ouvir-me por um momento?
Casy virou a cabeça assente num pescoço robusto como um caule.
- Estou sempre a ouvir. É por isso que vivo a pensar. Escuto as pessoas e procuro
logo compreender o que sentem. Passo assim todo o tempo. Ouço-as e compreendo-as. As
pessoas vivem a bater as asas como pássaros numa água-furtada. E quebram as asas de
encontro à janela cheia de pó por onde querem escapar-se.
272
Tom observou-o com os olhos arregalados; depois, desviou-os, poisando-os numa
tenda cinzenta, armada à distância de vinte pés. Nas cordas da tenda viam-se calças,
camisas e um vestido lavados. Disse depois, em voz baixa:
- Era nisso que eu ia falar. Mas você já compreendeu. – Já - confirmou Casy. - Há um
exército inteiro de gente como nós, um exército sem couraças. - Baixou a cabeça, passando
,lentamente a mão aberta pela testa e pelos cabelos. - Vi isto por toda a parte - disse - por
toda a parte por onde passámos. A gente sente fome de carne e, quando a consegue
arranjar, não dá; é muito pouca. E, quando eles sentem tanta fome que não aguentam mais,
vêm pedir-me que reze por eles. E, às vezes, eu rezo. Cingiu os joelhos levantados com
ambas as mãos, encolhendo as pernas. - E pensei que isso lhes poderia servir de remédio.
Fazia uma oração e metia nela as? preocupações todas como moscas num mata-moscas e a
oração ia voando e levava consigo as preocupações. Mas agora já não dá resultado.
Tom respondeu:
- Uma oração nunca deu carne a ninguém. Para isso é preciso um porco.
- Sim - disse Casy - e o bom Deus nunca aumentou os ordenados. Esta gente aqui
contenta-se com o viver decentemente e criar os filhos como deve ser. Quando estão
velhos, o que querem é sentar-se à porta de casa, a olhar o pôr do Sol. E, quando são
jovens, somente querem dançar, cantar e dormir com alguém. Querem comer, embriagar-se
e trabalhar. Apenas isto; só querem utilizar os músculos até ficarem cansados. Céus! Que é
que eu estou a dizer?!
- Não sei - disse Tom - mas não soa mal. Você acha que pode trabalhar e deixar de
pensar por algum tempo? Temos de procurar trabalho. O dinheiro já se foi quase todo. O
pai pagou cinco dólares por umas tábuas pintadas que puseram na terra onde enterraram a
avó. Agora não nos sobra quase nada.
Um cão atravessado, de cor parda, passou, farejou, ao lado da tenda. Estava nervoso
e pronto a esgueirar-se. Farejou o chão durante alguns instantes, até reparar nos dois
homens. Erguendo os olhos, viu-os; deu um pulo para o lado, e fugiu com as orelhas
derrubadas para trás e o rabo escanzelado entre as pernas. Casy seguiu-o com os olhos até
ele desaparecer, escapulindo-se por detrás de uma tenda... Casy suspirou.
- Não sirvo para nada – disse - nem para mim nem para ninguém. já pensei que devia
ir-me embora sozinho. Só sirvo para comer a vossa comida e tomar espaço. E não posso
dar-vos nada em troca. Talvez encontre um trabalho regular, para vos pagar alguma coisa
do que gastaram comigo.
273
Tom abriu a boca, avançou o maxilar inferior, e bateu nos dentes de baixo com uma
haste de mostarda seca. Os olhos dele giraram pelo acampamento, por sobre as tendas cor
de cinza e das barracas de erva seca, de lata e de papel.
- Quem me dera aqui uma onça de Durham! - disse - há séculos que não tenho nada
que fumar! Em MacAlester, sempre davam tabaco à gente. Quase que preferia ter ficado lá!
- Bateu de novo nos derães, voltando-se subitamente para o pregador. - Você já esteve
alguma vez na cadeia?
- Não - disse Casy - nunca.
- Não se vá já embora - disse Tom. - Não vá ainda.
- Quanto mais cedo procurar trabalho, mais cedo o encontrarei.
Tom examinou-o de olhos semicerrados, pondo novamente o boné.
- Escute - disse. - Isto aqui não é a terra da promissão, como dizem os pregadores.
Aqui a coisa é feia. A gente daqui tem medo das pessoas que vêm para o Oeste e, por isso,
mandam os polícias para nos assustar.
- Sim - disse Casy - eu sei. Mas porque é que perguntou se eu já estive na cadeia?
Tom respondeu lentamente:
- E que, na prisão, a gente acaba por adivinhar as coisas a distância. Não deixam
ninguém conversar. Duas pessoas podem conversar; um grupo, não. E assim a gente acaba
por adivinhar, sempre que alguma coisa anda no ar. Quando, por exemplo, um camarada
tem um acesso e bate num guarda com o cabo da vassoura, a gente já sabe da coisa antes.
Quando está para haver uma evasão ou um motim, ninguém precisa de nos avisar. A gente
torna-se sensível, adivinha logo as coisas.
- Sim?
- Deixe-se estar por aqui - disse Tom. - Deixe-se ficar por aqui até amanhã. Pressinto
qualquer coisa. Falei com um rapaz ali adiante. E ele pareceu-me tão misterioso e tão
sabido como um coiote; quer dizer, sabido de mais. Como um coiote que só se interessa
pela sua vida, e tão doce, tão inocente, que acha graça a tudo, sem fazer dano a coisa
alguma. Bem, cheira-me que há qualquer coisa no ar.
Casy encarou-o atentamente. Esteve para lhe dirigir uma pergunta, mas acabou por
pregar firmemente os lábios. Tamborilou devagar com os dedos do pé, e, separando os
joelhos, esticou as pernas para ver os pés.
- Bem- disse - então não me vou embora por enquanto.
Tom prosseguiu:
- Quando um grupo de camaradas, gente boa e sossegada, de repente não sabe nada,
é porque alguma coisa se está preparando.
274
- Então fico, pronto - disse Casy.
- E amanhã vamos à procura de trabalho.
- Sim - volveu Casy. E mexeu os dedos dos pés para cima e para baixo, observandoos
com gravidade.
Tom apoiou-se num cotovelo e fechou os olhos. Chegaram-lhe aos ouvidos, do
interior da tenda, as vozes de Rosa de Sharon, seguida das respostas de Connie.
A lona lançava uma sombra escura. A luz, que lhe batia de ambos os lados, em forma
de cunha, era uma luz crua e penetrante.
Rosa de Sharon estava deitada num colchão, e Connie acocorado a seu lado.
- Eu devia ajudar a mãe - disse Rosa de Sharon.- Já experimentei, mas cada vez que
me levantava, punha-me a vomitar.
Os olhos de Connie lançavam uma luz sombria.
- Se eu soubesse que a coisa era assim, não tinha vindo. Ia mas era estudar de noite,
em casa, aprender a manejar tractores, e arranjava, pela certa, um emprego de três dólares.
Um tipo pode viver perfeitamente com três dólares por dia, até ao cinema pode ir todas as
noites, se quiser.
Rosa de Sharon parecia apreensiva.
- Mas tu não disseste que querias estudar de noite, estudar rádio?
A resposta dele tardou.
- Não disseste? - insistiu ela.
- Claro que quero, quando endireitar a vida. Primeiro preciso de arranjar uns cobres.
Ela virou-se, apoiando-se no cotovelo.
- Mas tu não vais deixar tudo isto, pois não?
- Não, não, naturalmente que não. Mas... eu não sabia que a gente ia viver assim, num
lugar destes.
Os olhos da rapariga tornaram-se duros.
- É o teu dever... - disse calmamente.
- Sim, sim, está bem. Eu sei. Mas só quando endireitar a vida. Quando tiver uns
cobres. Tinha sido melhor ficar em casa e estudar tractores. Aquele pessoal ganha três
dólares por dia, e, às vezes, ainda tem gratificações. - Os olhos de Rosa de Sharon iam
tirando conclusões. Olhando-a, ele percebeu como ela o media com os olhos,
perscrutando-lhe os pensamentos. - Mas eu vou estudar - disse ele.- Assim que tirar o pé da
lama.
Ela disse impetuosamente:
275
- Temos de arranjar uma casa antes de o menino nascer. Não quero dar à luz numa
tenda.
- Claro - respondeu ele. - Assim que eu endireitar a vida.
Saiu da tenda e lançou um olhar à mãe, que estava agachada junto da fogueira. Rosa
de Sharon deitou-se de costas, fixando os olhos no tecto da tenda. E, metendo o polegar na
boca, para sufocar os soluços, começou a chorar em silêncio.
A mãe estava ajoelhada junto da fogueira, quebrando tronquitos para alimentar o
lume sob a panela. O fogo tão depressa subia como baixava. As crianças - quinze ao todo -
mantinham-se silenciosas a observá-la e as suas narinas dilatavam-se ligeiramente quando
recebiam o aroma do guisado. A luz do sol reflectia-se cintilante nos seus cabelos cobertos
de poeira. As crianças mostravam-se envergonhadas mas não arredavam pé. A mãe falava
em voz baixa a uma menina que se mantinha no meio do círculo cobiçoso. Equilibrava-se
num pé só, acariciando a barriga da perna com o outro pé. Tinha os braços cruzados atrás
das costas. Observava a mãe com os seus olhinhos fixos, cor de cinza.
- Se a senhora quiser, posso ir buscar mais lenha - propôs ela.
A mãe ergueu os olhos.
- O que tu queres é que a gente te peça para jantares connosco, não é?
- Sim, senhora - disse a menina com voz firme.
A mãe pôs mais lenha no forno e as chamas começaram a crepitar.
- Tu não almoçaste?
- Não, senhora. Não há trabalho aqui nos arredores. O pai foi à cidade a ver se
vendia umas coisas, que é para comprar gasolina e continuarmos a viagem.
A mãe ergueu os olhos.
- Então nenhuma delas almoçou?
As crianças mexiam-se nervosamente, desviando os olhos da panela em que fervia o
guisado. Um menino disse, gabarola:
- Eu almocei... sim e o meu irmão também. E aqueles dois ali, também, que eu vi. A
gente comeu bem. E hoje de noite vamo-nos embora para o sul.
A mãe sorriu:
- Então tu não tens fome, não? Ainda bem porque a comida não dá para todos.
O pequeno estendeu os lábios, a fazer beiço:
- Sim, a gente comeu bastante - disse. Virou as costas e correu, mergulhando numa
tenda.
A mãe seguiu-o com os olhos por tanto tempo que a pequena mais velha do grupo
teve de chamar-lhe a atenção.
276
- O lume está-se a apagar. Mas, se a senhora quiser, eu posso abaná-lo.
Ruthie e Winfield estavam no meio do grupo, comportando-se com frieza e
dignidade. Pareciam distantes e, ao mesmo tempo, dominadores. Ruthie lançava olhares
frios e indignados à pequena. Acocorando-se, começou a preparar lenha para pôr no lume.
A mãe ergueu a tampa da panela e mexeu o conteúdo com um pau.
- Fico bastante contente por saber que nem todos vocês têm fome. Pelo menos,
aquele menino parece que não tem.
A rapariguita torceu o nariz.
- Ora, aquele! Aquilo é gabarolice, e grande, Sabe o que é que ele costuma fazer
quando não tem de comer? Faz assim: ontem à noite chegou-se ao pé de mim e disse-me
que iam comer frango. Pois eu passei pelo sítio onde eles estavam a comer e sabe o que eu
vi? Estavam a comer papa de farinha como toda a gente.
- Imagine!
A mãe olhou novamente para a tenda por onde o pequeno desaparecera. Depois
encarou a rapariguinha:
- Escuta: há quanto tempo estás na Califórnia? - perguntou.
- Eu? Há uns seis meses. Durante algum tempo, a gente morou num acampamento
do governo. Depois, fomos para o Norte e, quando voltámos, já o acampamento estava
cheio. Sabe, esse acampamento é bem bonito!
- É? - perguntou a mãe. Pegou nos paus e na lenha que estavam nas mãos de Ruthie
e pô-los no fogo.
Ruthie lançou um olhar de ódio à pequena.
- Pois é. Fica perto de Weedpatch. Há retretes e casas de banho, que é um luxo!
Pode-se lavar a roupa em tinas e há água à farta, água boa para beber; à noite, há gente que
toca bonitas músicas e, nas noites de sábado, há um baile. A senhora com certeza que
nunca viu uma coisa assim. E há um sítio para as crianças brincarem. E retretes com papel.
A gente só puxa uma corrente e a água cai mesmo dentro da retrete. Não há nenhum
polícia para meter o nariz nas tendas da gente a toda a hora; o homem que manda no
campo é uma pessoa muito delicada, que nos visita e fala bem com a gente; não tem a
mania de armar em chefe. Quem me dera que a gente fosse outra vez para lá!
A mãe disse:
- Nunca ouvi falar desse acampamento. Sempre te digo que ficaria encantada se me
pudesse servir de uma selha.
A pequena continuou com excitação:
277
- Meu Deus, até há água quente nos canos! Quando a gente se mete debaixo de um
chuveiro, sai água quente. Aposto que a senhora nunca viu um sítio assim?
- Dizes que está cheio de gente agora? - perguntou a mãe.
- Deve estar, sim. já da outra vez estava.
- E deve custar um dinheirão.
- Bem, lá isso é verdade, mas, quando a gente não tem dinheiro, pode trabalhar para
pagar as despesas. Trabalha algumas horas por semana, limpa a cozinha, despeja o caixote
do lixo... coisas assim... E, à noite, sempre há música, e as pessoas juntam-se todas a
conversar. E há mesmo, de verdade, água quente nos canos. A senhora nunca viu uma
coisa tão bonita.
- Gostava de ir para lá.
Ruthie aguentara o mais que podia, mas, por fim, explodiu com violência:
- A avó morreu em cima do caminhão. - A pequena olhou-a com ar interrogativo.-
Morreu, sim. E o delegado veio buscá-la. - Cerrou os lábios com firmeza e pôs-se a partir
um pequeno feixe de ramos secos.
Winfield deixou-se arrebatar pela audácia do ataque.
- Em cima do caminhão - ecoou. - E o delegado meteu-a num grande cesto.
- Calem a boca ou mando-os embora! - ameaçou a mãe. E deitou mais lenha no fogo.
Mais atrás, Al, andara por ali até se aproximar do rapaz que esmerilava as válvulas.
- Parece que isso está quase pronto - disse.
- Faltam duas ainda.
- Há boas pequenas aqui no acampamento?
- Sou casado - disse o rapaz. - Não tenho tempo para as pequenas.
- Pois eu arranjo sempre tempo para isso - respondeu Al. - Não tenho mesmo tempo
para mais nada.
- Quando você tiver fome, já muda.
Al riu.
- Pode ser. Mas até agora nunca mudei de opinião a esse respeito.
- Aquele rapaz com quem estive a falar é do vosso grupo, não é?
- É meu irmão. Chama-se Tom. É melhor não se meter com ele. Já matou um tipo...
- Matou? Porquê?
- Foi numa briga. O tipo avançou para ele com uma faca. E o Tom rachou-lhe a
cabeça com uma pá.
- Não me diga! E que fez a polícia?
- Soltaram-no porque foi uma briga - disse Al.
278
- Não tem cara de valentão.
- Ele não é nenhum valentão. Mas não aguenta brincadeiras de ninguém.
A voz de Al estava cheia de orgulho.
- Tom não fala muito. Mas cuidado com ele!
- Bem, eu conversei com ele. Não me pareceu assim ruim.
- Pois claro que não é ruim. É manso como uma ovelha. Mas, quando se zanga... é
preciso ter cuidado com ele. - O rapaz limava a última válvula.- Quer que o ajude a encaixar
as válvulas e a pôr a cúpula?
- Se você não tem mais que fazer, quero.
- Devia dormir um bocado - disse Al - mas, quando vejo um motor desmontado,
meu Deus! Tenho de lhe meter as unhas. Não resisto.
- Bom, fico muito satisfeito com a sua ajuda - disse o rapaz. - Chamo-me Floyd
Knowles.
- Eu chamo-me Al Joad.
- Muito prazer.
- Igualmente - respondeu Al.- Você vai servir-se da mesma gaxeta?
- Que remédio! - exclamou Floyd.
Al tirou o canivete do bolso e pôs-se a raspar o bloco.
- Sabe - disse - não há nada de que eu goste tanto como de um motor.
- E então as pequenas?
- Bem, também as não desprezo, não. O que eu não daria por desmontar um “Rolls”
e tornar a montá-lo! uma vez olhei para dentro da tampa de um motor de um “Cadillac” 16
c Deus do céu! - garanto que você nunca viu uma coisa tão bonita na vida! Foi em Sallisaw,
e aquele “Cadillac” estava parado à porta de um restaurante. Eu cheguei e, sem perguntar
nada a ninguém, levantei a tampa do motor, Então apareceu um sujeito que vinha do
restaurante e me disse: “Que diabo é que você está aí a fazer?” Eu respondi: “Estou só a
ver.” “É formidável, não é?” E o sujeito pôs-se ao meu lado. Parece que ele nunca tinha
visto um motor de automóvel. E ficou a olhar sem dizer nada. Parecia um rapaz rico, com
chapéu de palha, camisa listrada e óculos. Não dizíamos nada. Ficámos a olhar. De repente,
ele disse: “Apetecia-lhe guiar um bocado?”
- Ena, pai! - disse Floyd.
- Sim, senhor. Ele disse-me: “Apetecia-lhe guiar um bocado Mas eu estava de fatomacaco
e sujo como o diabo! E disse: “Mas vou sujar o carro.” “Venha daí”, respondeu ele.
“Vamos dar a volta às casas.” Sentei-me ao volante e dei oito voltas e ah, rapazes!...
- Foi bem bom, hein? - disse Floyd.
279
- Deus do céu! - exclamou Al. - Dava sei lá o quê para poder desmontar um “ bicho”
daqueles.
Floyd afrouxou o movimento do braço. Retirou a última válvula do encaixe e
examinou-a.
- É melhor você acostumar-se a um destes nossos calhambeques - disse. - Você
nunca há-de guiar um “Cadillac.”
Colocou a fita de polir sobre o estribo e pegou num formão para raspar a crosta do
cilindro. Duas mulheres robustas, descalças e sem chapéus, passaram por ali, carregando
um balde cheio de água cor de leite, que ambas seguravam. Manquejavam ao peso do balde
e levavam os olhos fixos no chão. O Sol ia já a meio da sua caminhada no céu.
- Você não me parece muito satisfeito - comentou Al.
- Estou aqui há seis meses já - retorquiu o rapaz. - Andei por esse Estado todo, à
procura de trabalho, fazendo um esforço dos diabos, para ganhar apenas o suficiente para
carne e batatas que chegassem para mim, para a mulher e para as crianças. com tudo isso
como um coelho, e nada: nunca pude ganhar o suficiente para comer. Não há maneira.
Começo a estar farto, é o caso. E não sei o que hei-de fazer.
- Mas não se encontra trabalho regular para um tipo aqui? - perguntou Al.
- Isso sim! – com o formão destacou a crosta do cilindro, e passou com um pano
engordurado de óleo pelo metal baço do bloco.
Um carro de turismo enferrujado entrava no acampamento. Trazia quatro homens,
homens de feições duras e morenas. O carro atravessou lentamente o acampamento. Floyd
gritou atrás dele:
- Tiveram sorte?
O carro parou. O homem que ia ao volante disse:
- Qual o quê? Andámos por Seca e Meca. Não se encontra trabalho nesta maldita
terra. Vamo-nos embora.
- Para onde? - perguntou Al.
- Sei lá! Aqui já explorámos tudo. - Pôs o motor em marcha e o carro prosseguiu no
seu lento percurso pelo acampamento.
Al seguiu-o com os olhos.
- Não seria melhor eles andarem sozinhos? Um homem sozinho encontra trabalho
com mais facilidade.
Floyd pôs o formão de lado e sorriu com azedume.
- Você é um anjinho - disse. - Para se andar por aí é preciso muita gasolina. E a
gasolina custa quinze cents o galão. Ora, se eles fossem sozinhos, tinham de ir em quatro
280
automóveis. Assim, não. Cada um contribui com dez cents para comprar gasolina. Já vejo
que você tem muito que aprender ainda.
- Ah!
Al enxergou Winfield atrás dele com um ar de importância.
- Al - disse Winfield - vem, que a mãe já está a servir o guisado. Mandou dizer para
vires.
Al limpou as mãos às calças.
- A gente hoje ainda não comeu - disse a Floyd. - Quando acabar de comer, volto
para o ajudar.
- Não é preciso. A não ser que tenha vontade disso...
- Tenho, sim. - E acompanhou Winfield em direcção à tenda da família Joad.
Havia muita gente aglomerada em frente da tenda. A criançada comprimia-se em
volta da panela, de maneira que a mãe, no decorrer da sua tarefa, empurrava-as de quando
em quando com o cotovelo. Tom e o tio John também lá se encontravam.
A mãe disse desanimada:
- Não sei o que hei-de fazer. Tenho de dar de comer à família. E esta criançada toda?
As crianças mantinham-se imóveis, olhando-a; as suas feições estavam rígidas e
vazias de expressão e os seus olhos passeavam mecanicamente da panela para o prato de
estanho que a mãe segurava. Os seus olhos acompanhavam a concha, ao passar da panela
para o prato, e, quando a mãe entregou ao tio John o prato fumegante, os olhares das
crianças seguiram também esse gesto.
O tio John mergulhou a colher no prato de guisado, e os olhos a criançada
acompanharam o movimento da colher. Uma batata desapareceu na boca do tio John e os
olhos das crianças poisaram no rosto dele, observando a maneira como iria reagir. Estaria
boa a batata? Teria gostado?
Nesse momento, o tio John pareceu aperceber-se pela primeira vez das crianças.
Mastigou vagarosamente.
- Anda cá, toma - disse a Tom.
- Eu não tenho fome.
- Mas o senhor não comeu nada hoje.
- Eu sei, mas é que estou com dores de barriga. Não tenho vontade de comer.
Tom disse em voz baixa:
- É melhor levar o seu prato e ir comer para a tenda.
- Mas não sinto fome - teimou o tio John. - E, lá da tenda, verei as crianças da
mesma maneira.
281
Tom voltou-se para as crianças:
- Bom. Vão-se embora. Vamos, andem, não ouviram? - Os olhos da criançada
deixaram o guisado e pousaram no rosto de Tom cheios de surpresa. - Vão indo, vá. Vocês
aqui são demais. Não vêem que a comida não chega para todos?
A mãe deitou comida em todos os pratos de estanho, muito pouco em cada um e
colocou os pratos no chão.
- Não tenho coragem de mandar essas crianças embora - disse. - Não sei o que hei-de
fazer. É melhor vocês pegarem nos pratos e irem comer para dentro da tenda. O que
sobrar distribui-se pelas crianças. Espera aí, leva esse prato de comida à Rosasharn! - Olhou
para as crianças: - Escutem, arranjem um pedacinho de madeira liso, que eu dou a cada um
de vocês um bocadinho do que restar. Mas não quero brigas.- O grupo dissolveu-se
rapidamente no maior silêncio. A criançada foi a correr à procura de pauzinhos. Algumas
crianças correram para as tendas, a fim de trazerem colheres. Antes que a mãe tivesse tido
tempo de encher os pratos de estanho, já elas estavam de volta, silenciosas e ávidas como
lobos. A mãe abanou a cabeça. - Não sei o que hei-de fazer. Não posso prejudicar a família.
Primeiro, tenho de dar de comer a todos. Ruthie, Winfield, Al! - gritou ela com força. -
Peguem nesses pratos e vão para dentro da tenda. Aviem-se! Olhou as crianças como que
pedindo-lhes desculpa. - A comida é muito pouca - disse contristada. - Deixo a panela aqui,
para vocês; é só para provarem, que a comida não dá para todos, nem vos fará grande coisa
- gaguejou. - Que é que eu hei-de fazer? Não posso fazer outra coisa... Tirou a panela do
fogo e colocou-a no chão. - É melhor esperarem um pouco; a comida está muito quente -
disse. E refugiou-se na tenda, para não ver mais nada.
A família estava toda sentada no solo, cada qual com o seu prato na mão. Ouviram as
crianças lá fora, raspando o fundo da panela com os paus, as colheres e pedacinhos de
metal enferrujado. A panela tornara-se invisível, oculta por uma muralha, viva de crianças.
Não falavam, não discutiam nem brigavam, mas todas elas eram movidas por uma
ferocidade muda. A mãe virou as costas, para não ver a cena.
- Para a outra vez tem ele se evitar isto - disse. - Temos de comer sozinhos.
Ouviu-se ainda um instante o raspar da panela; depois o cacho de crianças
desmanchou-se e elas dispersaram, deixando no chão a panela limpa. A mãe olhou para os
pratos vazios.
- Nenhum de vocês ficou satisfeito com certeza - comentou.
O pai ergueu-se e deixou a tenda sem lhe dar resposta. O pregador sorriu e deitou-se
de costas com as mãos cruzadas por detrás da nuca. Al pôs-se de pé.
- Tenho de ajudar ali um rapaz numa coisa...
282
A mãe juntou os pratos e foi lavá-los lá fora.
- Ruthie, Winfield! Vã o buscar já um balde de água. - Entregou-lhes um balde vazio
e os miúdos saíram indolentemente em direcção ao rio.
Uma mulher forte e robusta surgiu. Tinha o vestido manchado de lama e salpicado
de óleo de automóvel. Mantinha a cabeça orgulhosamente erguida. Deteve-se a pequena
distância, olhando para a mãe com hostilidade. Acabou por se aproximar.
- Boa tarde - disse com frieza.
- Boa tarde - respondeu a mãe, erguendo-se e oferecendo um caixote à visitante. - A
senhora quer sentar-se?
A mulher aproximou-se mais.
- Não, não me quero sentar.
A mãe encarou-a interrogativamente:
- Quer alguma coisa de mim? A mulher pôs as mãos na cintura.
- Quero sim, quero que se meta com os seus filhos e deixe os meus em paz.
A mãe arregalou os olhos.
- Mas eu não fiz nada - explicou.
A mulher olhou-a com ar carrancudo.
- O meu garoto chegou a casa a cheirar a guisado. Foi a senhora que lhe deu de
comer. O miúdo contou-me. A senhora quer saber uma coisa? Não vale a pena andar por
aí a alardear o seu guisado. Deixe-se disso. Os cuidados que tenho já me chegam.
O miúdo chegou a casa e começou logo a perguntar: “Mãe, porque é que nunca faz
um guisadinho?”- A voz da mulher tremia de raiva.
A mãe aproximou-se:
- É melhor a senhora sentar-se um bocadinho. Sente-se, sente-se e vamos conversar
um pouco.
- Não, não me sento coisa nenhuma. Trabalho como uma negra para dar de comer à
minha família e vem a senhora estragar tudo com esse seu guisado.
- Sente-se, mulher! - disse a mãe. - Este foi o nosso último guisado, pelo menos
enquanto a gente não encontrar trabalho. Imagine que a senhora estava a cozinhar e uma
porção de crianças se punha ali na sua frente, a olhar para si com cada olho que nem uma
lua cheia? O que é que a senhora fazia? A gente não tinha comida nem para matar a nossa
própria fome, mas, quando vi as crianças a olharem daquela maneira, não pude deixar de
lhes dar também um bocadinho.
As mãos da mulher deixaram a cintura. Por um instante, ela encarou a mãe com ar
incrédulo. Depois, voltou-se e foi-se embora quase a correr; entrou numa tenda e fechou-a
283
atrás de si. A mãe seguiu-a, com os olhos e depois, pôs-se de joelhos ao lado da pilha de
pratos de estanho.
Al chegou a correr.
- Tom - gritou. - Mãe, o Tom está aí dentro?
A cabeça de Tom apareceu à porta da tenda.
- Que é que tu queres?
- Vem comigo, Tom - disse Al, excitado.
Tom acompanhou-o.
- Que é que há? - perguntou Tom.
- Espera um pouco e vais ver. - Conduziu Tom até ao carro desmontado. - Este aqui
é o Floyd Knowles - disse, apresentando o rapaz.
- Eu já o conheço. Como vai isso, Floyd?
- Bem - respondeu Floyd. - Estou a afiná-lo.
Tom passou o dedo pelo cilindro.
- Então, Al, que bicho te mordeu? - perguntou.
- Olha, Tom, o Floyd disse-me uma coisa. Conte-lhe, Floyd.
Floyd disse:
- Pode ser palermice isto que eu quero fazer, mas sempre lhe digo. Passou por aqui
um tipo que disse que vai trabalhar lá para o Norte.
- Para o Norte?
- Sim, num sítio chamado Santa Clara Valley, bem ao norte, longe como o diabo.
- Que é que ele vai fazer para lá?
- Colher ameixas, peras e trabalhar numa fábrica de frutas em calda. Ele diz que já
está a chegar a altura de as frutas amadurecerem.
- Qual é a distância daqui até lá? - perguntou Tom.
- Sei lá! Mas acho que deve ser a umas duzentas milhas daqui.
- Livra! Longe como o diabo! - respondeu Tom. - Antes de a gente lá chegar, acabase
o trabalho.
- É possível. Mas a gente aqui o que faz? E esse tipo que foi para o Norte diz que
recebeu uma carta do irmã o, dizendo que também já estava a caminho. E pediu-me para
eu não contar nada a ninguém, que e para evitar que vá para lá muita gente. Vamos sair
daqui de noite. E preciso que a gente ache afinal um trabalho de jeito.
Tom olhou-o, intrigado:
- Mas porque havemos de sair de noite? Sair às escondidas?
284
- Ora, rapaz! Então você não percebe? Se toda a gente for para lá, não há trabalho
para todos.
- Mas é longe que é uma barbaridade - disse Tom.
Floyd mostrou-se ofendido.
- Bom, eu dei o palpite. Vocês aceitam se quiserem. Este seu irmão ajudou-me, foi
por isso que os informei.
- Mas é certo, certo que não existe trabalho nestas redondezas?
- Olhe, eu passei três semanas para cá e para lá, feito doido e não achei nada que
fazer. Se vocês também quiserem experimentar, podem, mas garanto que é gastar gasolina à
toa. Para mim, é até melhor que vocês não venham. Quanto menos gente, mais
probabilidades para mim.
Tom disse:
- Eu acho que você tem razão. O pior é que isso é muito longe. E a gente tinha tanta
esperança de arranjar trabalho por aqui e de alugar uma casinha para morar!
Floyd respondeu pacientemente:
- Eu sei, vocês são novos aqui. Têm que aprender muita coisa ainda. Por isso, eu lhes
estou a dar alguns conselhos; é para lhes evitar desgostos. Se não quiserem ouvir-me, então
terão de aprender à vossa custa... Não podem estabelecer-se aqui, porque não há por cá
trabalho para isso. Agora já sabem. E, quando chegar a fome, é que vocês vão ver de
verdade.
- Tinha vontade de dar uma vista de olhos por aqui primeiro - disse Tom indeciso.
Um “Sedan” atravessou o acampamento, parando ao lado da tenda vizinha. Um
homem vestido de fato-macaco e camisa azul, saltou do carro.
Floyd gritou-lhe:
- Então? Teve sorte?
- Não há trabalho nenhum nesta maldita terra. Nenhum, antes da safra do algodão. -
E entrou na tenda esfarrapada.
- Está a ver? - perguntou Floyd.
- Sim, sim, estou a ver. Mas duzentas milhas, meu Deus!
- Bem, mas vocês não podem ficar num sítio onde não há trabalho. É melhor
resolverem isso.
- É melhor a gente ir - disse Al.
Tom perguntou.
- Quando é que se começa a trabalhar por aqui?
285
- Bem, o algodão acho que começa daqui a um mês. Se vocês têm dinheiro, podem
esperar pelo algodão.
- A minha mãe não vai querer sair daqui. Ainda está muito cansada da viagem.
Floyd encolheu os ombros.
- Bem, eu não insisto. Vocês é que devem resolver. Eu só disse o que soube. -
Retirou do estribo a gacheta lubrificada e apertou-a, encaixando-a cuidadosamente no
cilindro. - Agora - disse para Al - se você quisesse, poderia ajudar-me.
Tom observou como os dois colocavam cautelosamente a pesada cúpula nos
parafusos da base e a largavam, equilibrando os movimentos.
- Temos de conversar mais a respeito do caso - disse. - Não quero que mais ninguém,
a não ser vocês, saiba disto. Eu nada teria dito se o Al não me tivesse ajudado.
Tom continuou:
- Bem, de qualquer maneira, muito obrigado pelo palpite. Vamos pensar nisso. Pode
ser que a gente resolva ir.
- Eu acho que vou - disse Al. - Mesmo que vocês não venham. Não quero criar bolor
neste sítio.
- E deixas a família? - perguntou Tom.
- Que é que isso tem? Quando voltar, é com os bolsos cheios de notas. Porque não?
- A mãe não vai gostar disso - replicou Tom. - E o pai também não.
Floyd colocou as porcas, aparafusando-as com os dedos até onde podia.
- Eu e a minha mulher chegámos aqui com a família - disse. - Lá em casa, nunca nos
passaria pela ideia o separarmo-nos. Nem pensar nisso! Mas, um dia, estávamos todos no
Norte havia um tempo quando eu vim para aqui e eles mudaram-se Deus sabe para onde.
A gente tem perguntado por eles constantemente. - Ajustou a chave inglesa nas porcas do
bloco e apertou-as de maneira uniforme: uma volta de cada vez para cada uma das porcas.
Tom acocorou-se ao lado do carro e ficou olhando, de olhos semicerrados, o
conjunto de tendas. Havia um pouco de restolho pisado entre elas.
- Não, senhor - disse. - A mãe não, vai gostar que te vás embora.
- Eu acho que um tipo sozinho tem muito mais possibilidade de arranjar trabalho do
que acompanhado.
- Pode ser que tenhas razão. Mas a mãe não vai achar graça nenhuma.
Dois carros cheios de homens, cujas feições reflectiam desgosto, chegavam ao
acampamento. Floyd ergueu os olhos mas não lhes perguntou se tinham tido sorte. Os
rostos dos tais homens estavam cheios de poeira, tristes e carrancudos. O Sol, no ocaso,
dardejava uma luz amarelada sobre Hooverville e sobre os salgueiros que se alinhavam
286
atrás da cidade dos refugiados. Crianças deixavam as tendas para vaguear pelo campo. As
mulheres saíam e faziam pequenas fogueiras. Os homens formavam grupos e, acocorados,
conversavam.
Uma limousine “Chevrolet” nova ainda, desviou-se da estrada e entrou no
acampamento. Parou a meio do aglomerado de tendas. Tom perguntou:
- Quem será? Acho que não pertencem aqui.
Floyd respondeu:
- Não sei. Talvez seja a polícia.
A portinhola do carro abriu-se. Um homem saltou, postando-se ao lado do carro. O
seu companheiro permaneceu sentado. Os homens acocorados examinavam agora os
recém-chegados. As bocas emudeceram. E as mulheres que preparavam as fogueiras
contemplavam furtivamente o automóvel que reluzia. As crianças aproximavam-se
cautelosamente do carro, dando passadas vagarosas e descrevendo rodeios.
Floyd pôs de lado a chave inglesa. Tom ergueu-se. Al limpou? as mãos às calças. E os
três dirigiram-se lentamente para o automóvel. O homem que tinha saltado vestia calças de
caqui e camisa de flanela. Tinha na cabeça um chapéu Stetson, de aba direita. Do bolso da
camisa, saía um maço de papéis seguro ao pano por prendedores de canetas de tinta
permanente e de lápis amarelos. Do bolso detrás das calças espreitava um caderno de capa
metálica. Dirigia-se agora a um grupo de homens acocorados; os homens olhavam-no com
desconfiança e sem pronunciarem palavra. Tom, Al e Floyd aproximaram-se como que por
casualidade.
O homem perguntou:
- Vocês querem trabalhar? Os homens continuaram a olhá-lo, mudos e desconfiados.
Outros homens de todos os pontos do acampamento vinham-se aproximando.
Finalmente, um dos homens acocorados respondeu:
- Claro que queremos trabalho. Onde é que o há?
- Em Tulare Country. As frutas por lá já estão a amadurecer. Precisamos de muita
gente para a safra.
Floyd interveio na conversa:
- O senhor é que é o patrão?
- Não. Tenho um contrato com a fazenda.
Havia agora um grupo compacto de homens a cercá-los.
Um homem tirou o chapéu preto e penteou para trás, com os dedos, o cabelo negro
e comprido:
- Quanto é que o senhor paga? - perguntou.
287
- Bem, ainda não posso dizer ao certo. Acho que trinta cents, mais ou menos.
- Como é que não pode dizer ainda? O senhor tem um contrato, não tem?
- Tenho sim - disse o homem vestido de caqui. - Mas ainda não está bem assente a
questão dos salários. Pode ser que a gente venha até a pagar mais; também pode ser que
tenha de pagar um pouco menos.
Floyd avançou alguns passos. E disse com calma:
- Pois olhe, eu aceito esse trabalho. O senhor é o empreiteiro, não é? Tem licença
para contratar pessoal? Então mostre-a, e é só dar-nos ordem para se começar o serviço, e
dizer onde é, quando é que começa e quanto é que vai pagar. Assine isto e pode contar
com todos nós.
O empreiteiro voltou-se para ele, com as feições carrancudas:
- Você pretende ensinar-me como é que eu devo fazer os meus negócios?
Floyd acrescentou:
- O negócio é nosso também, visto que vamos trabalhar para si.
- Bem, não é você que me vem ensinar o que devo fazer. Já lhe disse que preciso de
homens.
Floyd objectou, irritado:
- Pois é, mas o senhor ainda não disse de quantos homens precisava, nem quanto vai
pagar.
- Que diabo! Mas se eu próprio não sei ainda!
- Se o senhor não sabe, não tem o direito de querer contratar ninguém.
- Faço os meus negócios como entendo. Se vocês querem ficar a coçar o rabo pelas
esquinas, que lhes faça muito bom proveito! já disse que preciso de alguns homens para
trabalhar em Tulare Country; preciso mesmo de bastante gente.
Floyd voltou-se para a roda que os cercava. Os homens estavam de pé, encarando,
imóveis os dois que discutiam. Floyd continuou:
- Já duas vezes me levaram à certa desse modo. Pode ser que ele precise de uns mil
homens. Mas está a fazer tudo para arranjar uns cinco mil, e então o que ele vai pagar é - o
máximo - para aí quinze cents à hora. E vocês, pobres diabos, têm de aceitar tudo, porque
passam fome. Se ele quiser empregar gente, que faça isso por escrito, dizendo quanto vai
pagar. Peçam-lhe para mostrar a licença. Ele não tem o direito de contratar ninguém sem
ter licença. para isso.
O empreiteiro virou-se em direcção ao “Chevrolet” e deu um grito:
- Joe!
288
O companheiro deitou a cabeça de fora do carro, abriu num gesto largo a portinhola
do carro e saltou. Usava calções de montar e botas de atacadores. Tinha à cintura um cinto
de cartucheira de onde pendia um revólver pesado. Na camisa parda ostentava uma estrela
de delegado de sheriff. Foi-se aproximando do grupo com passos pesados. Mostrava um
pálido sorriso.
- Que há?
O revólver baloiçava-lhe na anca ao compasso do andar.
- Já viste este tipo aqui, John?
O delegado perguntou:
- Qual deles?
- Este aqui. - O empreiteiro indicou Floyd.
- Que foi que ele fez? - O delegado olhou para Floyd sorrindo.
- Está a fazer discursos vermelhos. A agitar o pessoal.
- Hum, hum... - O delegado andou lentamente à volta de Floyd, examinando-lhe o
perfil.
O sangue subiu às faces de Floyd.
- Vêem? - gritou ele. - Se este tipo fosse sério, precisava por ventura de trazer um
polícia com ele?
- Já o viste alguma vez? - insistiu o empreiteiro.
- Hum, hum... Parece-me que o vi, sim. Foi a semana passada, quando houve aquele
roubo de automóveis de saldo. Parece-me que vi por lá este tipo. Sim, senhor! Sou capaz de
jurar que é o mesmo. - Subitamente, o sorriso desvaneceu-se-lhe. - Entre para o carro -
disse, abrindo o estojo do revólver.
Tom disse:
- Vocês não podem provar nada contra ele.
O delegado voltou-se rapidamente:
- Se tu quiseres ir também, é só tornares a abrir o bico. Olha que foram dois os tipos
que eu vi no tal roubo.
- Eu ainda não estava neste Estado a semana passada - respondeu Tom.
- Bem, quem sabe se andam à procura de ti noutra parte? Mete a viola no saco!
O empreiteiro tornou a dirigir-se aos homens:
- Vocês não devem dar atenção a estes danados destes vermelhos. São uns
amotinadores. Só querem metê-los em sarilhos. Repito: tenho trabalho para todos vocês
em Tulare Country.
Os homens nada responderam.
289
O delegado virou-se para eles:
- Talvez não fosse mau vocês irem para lá - disse, e o sorriso pálido voltou a
iluminar-lhe as feições. - A Higiene deu ordem para a gente limpar este acampamento. E, se
se souber que há vermelhos aqui, bem... pode ser que aconteça alguma coisa desagradável.
Acho melhor vocês irem t9dos para Tulare. Vocês por aqui não arranjam nada. Falo como
amigo. Deve vir por aí uma porção de gente com picaretas para derrubar tudo isto. É
melhor vocês saírem antes.
- Já vos disse que preciso de gente. Agora, se vocês não querem trabalhar, bem, isso é
lá com vocês - disse o empreiteiro.
O delegado sorriu.
- Nesta terra só há lugar para quem trabalha. Os vagabundos são postos fora dela.
Floyd mantinha-se muito empertigado ao lado do delegado do sheriff, com os
polegares enganchados no cinto. Tom lançou-lhe um olhar furtivo e depois fixou o chão.
- Pois é isto - disse o empreiteiro - preciso de muita gente lá em Tulare; há trabalho
para todos.
Tom olhou lentamente as mãos de Floyd, notando como os seus tendões se
crispavam nos pulsos. Ergueu também as mãos e enganchou os polegares no cinto.
- Pois é só isto. E amanhã de manhã, não quero ver ninguém aqui.
O empreiteiro entrou no “Chevrolet”.
O delegado virou-se para Floyd:
- Vamos, suba você agora! - Estendeu alarga mão, agarrando o braço esquerdo de
Floyd.
Com um movimento único, Floyd deu uma volta e a sua mão vibrou o golpe. O
punho atingiu em cheio o rosto largo do delegado e, no mesmo instante, Floyd fugiu
correndo, esquivando-se por detrás das tendas. O delegado cambaleou e Tom passou-lhe
uma rasteira. O delegado caiu pesadamente no chão, rolando sobre si mesmo. Depois,
apanhou o revólver. De instante a instante, a figura de Floyd aparecia entre os espaços das
tendas. Mesmo deitado no chão, o delegado disparou a arma. Em frente de uma das tendas,
uma mulher deu um grito e pôs-se a olhar para a mão, que ficara sem articulações. Os
dedos pendiam, seguros pelos tendões de encontro à palma, e a carne dilacerada ficara
branca e exangue. Ao longe, Floyd tornou a aparecer, procurando embrenhar-se nos
salgueiros. O delegado, ainda no chão, tornou a levantar a arma, e, nesse momento, Casy
saiu de repente de entre o grupo de homens. Deu um pontapé na nuca do delegado e
afastou-se, ao mesmo tempo que o homem, pesadão, tombava sem sentidos.
290
O motor do “Chevrolet” roncou forte e o carro saltou, atirando violentamente uma
nuvem de poeira. Galgou a estrada e desapareceu. A mulher, diante da tenda, ainda
contemplava a mão dilacerada. Pequenas gotas de sangue começavam a porejar do
ferimento. E um riso histérico desabrochou-lhe na garganta, um riso uivado, que subia de
tom a cada arfar do peito.
O delegado estava caído de lado, com a boca aberta, em contacto com a poeira.
Tom apanhou o revólver, retirando-lhe o tambor, que arremessou para o meio dos
arbustos. Tirou para fora o projéctil que estava no cano da arma.
- Um tipo como este não devia ter o direito de usar armas - disse. E atirou com a
arma ao chão.
Um grupo havia-se reunido em torno da mulher que tinha a mão ferida. O seu riso
histérico crescia de intensidade, transformando-se em verdadeiros gritos.
Casy aproximou-se de Tom.
- Você tem de fugir - disse ele. - Esconda-se naquele salgueiral e espere. Ele não me
viu dar-lhe o pontapé, mas viu-o a você pregar-lhe a rasteira.
- Não quero fugir - redarguiu Tom.
Casy aproximou a cabeça da dele e cochichou:
- Olhe, Tom. Eles vão tirar-lhe as impressões digitais. Você quebrou a liberdade
condicional. Eles mandam-no de novo para a cadeia.
- Deus do céu! Até me esqueci disso - fez Tom, suspirando.
- Então vá depressa - disse Casy - antes que o homem recupere os sentidos.
- Gostava de ficar com este revólver.
- Não, deixe-o. Quando as coisas acalmarem, volte. Eu aviso-o, dando quatro
assobios fortes.
Tom foi-se afastando vagarosamente, para não despertar suspeitas. Mas, quando já se
encontrava longe do grupo, acelerou o passo, sumindo-se no salgueiral da margem do rio.
Al pôs um pé sobre o corpo do delegado.
- Jesus! Isso é que foi dar-lhe!
Os homens do grupo continuavam a olhar o outro sem sentidos. Nesse instante,
ouviu-se uma sereia a grande distância, em escala crescente; calou-se, silvou novamente,
desta vez mais perto. Os homens ficaram logo nervosos. Agitavam os pés. E debandaram,
indo cada um para a sua tenda. Apenas Al e o pregador permaneceram no local.
Casy voltou-se para Al:
- Vamos, foge também. Vai para a tua tenda. Tu não sabes de nada.
- E o senhor?
291
Casy sorriu.
- Alguém tem de tomar a responsabilidade. Eu não tenho filhos. O mais que me
pode acontecer é eles pregarem comigo na cadeia. Talvez lá se este a melhor do que aqui
fora.
- Mas eles não têm razão para fazer isso - afirmou Al.
- Some-te! - replicou Casy com violência. - Não te metas nisto!
Al resistiu:
- Eu não recebo ordens suas.
Casy respondeu com suavidade:
- Olha, rapaz, se tu te metes nesta história, não és só tu quem vai sofrer; vais
apoquentar a família toda. Para ti não tem importância, mas quem vai sofrer é o teu pai e a
tua mãe. E também pode ser que mandem o Tom para McAlester outra vez.
Al hesitou:
- Está bem - disse por fim - mas não posso deixar de dizer que o senhor não passa de
um louco varrido.
- E porque não? - perguntou Casy.
A sereia silvava constantemente e estava cada vez mais próxima. Casy pôs-se de
joelhos e virou o corpo do delegado. O homem gemia e mexia as pálpebras, procurando
abrir os olhos. Casy limpou a poeira que lhe cobria os lábios. Todas as famílias estavam
agora dentro das respectivas tendas, com as entradas bem fechadas. O poente tingia a
atmosfera de vermelho e emprestava um tom de bronze à lona das tendas.
Pneus chiaram na estrada e um carro aberto penetrou rapidamente no acampamento.
Quatro homens, armados de carabinas, saltaram para fora do carro. Casy ergueu-se e foi ao
encontro deles.
- Que diabo aconteceu aqui?
- Nada, tive de ensinar esse tipo aí - explicou Casy.
Um dos recém-chegados foi ao encontro do delegado, que já voltara a si e tentava
com dificuldade sentar-se.
- Como foi isso?
- Foi simples - disse Casy. - O homem armou em valentão e eu tive de lhe dar para
baixo! Então ele deu um tiro e feriu uma mulher que estava lá em baixo. E eu atirei-me de
novo a ele.
- Então que é que você fez primeiro?
- Respondi-lhe - volveu Casy.
- Suba para o carro.
292
- Pois não - disse Casy, entrando no automóvel e sentando-se no assento traseiro.
Dois dos homens ajudaram o delegado a pôr-se de pé.
O homem apalpava a nuca cautelosamente. Casy continuou:
- Ali em baixo há uma mulher que pode morrer com uma hemorragia. Apanhou um
tiro na mão.
- Bom, depois vamos ver isso. Mike, foi este o tipo que o agrediu?
O homem, ainda entontecido, olhou, com olhos perturbados, para Casy.
- Não, parece-me que não foi este.
- Fui eu, sim senhor, garanto que fui eu - afirmou Casy. Desta vez, deu com o seu
menino.
Mike sacudiu vagarosamente a cabeça.
- Não, não me parece que tenha sido você. Livra! Estou a sentir-me mal.
Casy disse:
- Estou pronto a ir com vocês. Não quero mais complicações.
O que eu acho é que vocês devem ir ver essa mulher que foi ferida.
- Onde está ela?
- Ali, naquela tenda... ali adiante.
O chefe dos delegados dirigiu-se para a tenda, com a carabina na mão. Gritou
qualquer coisa através da lona e entrou. Um momento depois, tornou a sair e voltou para
junto dos companheiros. E disse, com certo orgulho na voz:
- Meu Deus! O que uma bala de 45 pode fazer! já puseram um torniquete à mulher.
Depois a gente manda cá o médico.
Ao lado de Casy sentaram-se dois polícias. O chefe tocou a sereia. No acampamento
não havia a menor manifestação de vida. Todas as tendas se mantinham. fechadas e todos
permaneciam dentro delas. O motorista pôs o motor a trabalhar; o carro começou a rodar e
descreveu uma curva, deixando o acampamento. Entre os guardas, Casy sentava-se
orgulhoso. Tinha a cabeça erguida e os músculos do pescoço salientes. Nos lábios, bailavalhe
um leve sorriso e no seu rosto havia uma curiosa expressão de triunfo.
Depois da retirada dos polícias, aquela gente começou a sair das tendas. O Sol já
declinara por completo e a branda luz azul da tardinha pairava sobre o acampamento. As
montanhas, a leste, mostravam-se ainda aloiradas pelos últimos raios solares. As mulheres
tornaram a acocorar-se junto das fogueiras, que se haviam apagado. E os homens voltaram
a formar grupos e, acocorados, palestravam em voz baixa.
293
Quase arrastando-se para fora das tendas dos Joads, Al dirigiu-se ao salgueiral e
assobiou, chamando por Tom. A mãe saiu e começou a juntar galhos secos para fazer uma
pequena fogueira.
- Pai - disse ela - a comida não vai ser muita. Comemos tão tarde!
O pai e o tio John ficaram-se a ver a mãe descascar as batatas, cortá-las e deitá-las
cruas numa frigideira cheia de banha.
- Para que é que esse pregador do diabo se lembrou de fazer aquilo? - perguntou o
pai.
Ruthie e Winfield aproximaram-se de gatas, para ouvir a conversa.
O tio John traçava, com um prego comprido e enferrujado, sulcos profundos na
terra.
- Ele sabia muito a respeito de pecados. Um dia perguntei-lhe e ele explicou-me. Mas
não sei se ele tem razão. Disse-me que um sujeito só peca quando pensa que está a pecar. -
Os olhos do tio John mostravam cansaço e tristeza. - Eu fui toda a minha vida um homem
cheio de segredos - disse - fiz coisas de que nunca falei.
A mãe, ao pé da fogueira, virou-se para ele:
- Não contes nada à gente, John - disse ela - conta tudo ao bom Deus. Não
sobrecarregues os outros com os teus pecados. Não é bonito.
- Mas esses pecados mortificam-me - confessou John.
- Acredito, mas não contes nada à gente. Vai até ao rio, mete a cabeça na água e
conta à água os teus pecados.
Enquanto a mãe falava, o pai acenava lentamente com a cabeça.
- Ela tem razão - disse. - É um alívio podermos falar quando temos de dizer alguma
coisa, mas não convém fazê-lo porque apenas espalhamos os nossos pecados.
O tio John olhava as montanhas douradas pelo sol e as montanhas reflectiam-se-lhe
nos olhos.
- Eu bem quero enterrá-los cá no fundo - disse. - Mas não consigo. E isso vive a
roer-me cá por dentro.
Por detrás dele, Rosa de Sharon surgiu cambaleante à porta da tenda.
- Onde está o Connie? - perguntou em tom irritado. - Há que tempos que o não vejo.
Onde foi ele?
- Eu não o vi - respondeu a mãe. - Se o encontrar, digo-lhe que venha ter contigo.
- Não me sinto bem - disse Rosa de Sharon. - O Connie não me devia deixar
sozinha.
A mãe olhou o rosto inchado da filha.
294
- Estiveste a chorar, não foi?
As lágrimas brotaram de novo nos olhos de Rosa de Sharon.
A mãe prosseguiu com voz firme:
- Tens de te conter. Todos nós estamos contigo. Vem daí e ajuda-me a descascar
umas batatas. Preocupas-te apenas contigo.
A rapariga quis voltar para a tenda, esforçando-se por fugir aos olhares severos da
mãe, mas estes obrigaram-na a dirigir-se lentamente para junto da fogueira.
- Ele não devia deixar-me - lastimou-se, mas as lágrimas já lhe não brotavam dos
olhos.
- O que deves é trabalhar - disse a mãe. - Estás sempre na tenda, e, por isso, só vives
a pensar em ti. Eu nunca pude tomar conta de ti. Vou fazê-lo agora. Pega nessa faca e trata
de descascar essas batatas.
A rapariga obedeceu, pondo-se de joelhos.
- Deixe-o voltar - disse furiosa - e ele vai ver!
A mãe sorriu calmamente.
- Ele qualquer dia é bem de te dar uma sova. E a culpa é tua. Só vives a chorar e a
armar em mimalha! Eu até lhe agradecia se ele te desse uma ensinadela.
Os olhos da rapariga luziam de indignação mas permaneceu calada.
O tio John enterrou mais profundamente o prego ferrugento no chão, com o auxílio
do dedo polegar.
- Preciso de contar uma coisa - disse ele.
O pai desabafou:
- Então, conta, que diabo! Quem foi que mataste?
O tio John enfiou o polegar na algibeira das calças, tirou de lá uma nota de banco
suja e amarrotada.
- Cinco dólares - disse, exibindo a nota.
- Roubaste-a? - inquiriu o pai.
- Não, é dinheiro meu. Tenho estado a guardá-lo.
- E teu, não é assim?
- É meu, sim, mas eu não tinha o direito de o guardar só para mim.
- O que é que tem isso? - perguntou a mãe. - Não vejo nisso pecado nenhum: o
dinheiro é teu.
O tio John disse lentamente:
- Não é só o facto de o ter guardado só para mim. Guardava-o para tomar uma
pinga. Sabia que não tardaria a altura em que eu tinha de tomar uma pinga. Quando me
295
começo a chatear, já sabem: tenho de apanhar uma bebedeira pela certa. Pensei que esse dia
ainda vinha longe, mas agora... o pregador entregou-se à polícia para salvar o Tom.
O pai acenava com a cabeça, pondo a mão aberta atrás das orelhas para ouvir
melhor. Ruthie avançou como um cachorrinho, arrastando-se sobre os cotovelos e
Winfield seguiu-a. Rosa de Sharon tirou com a ponta da faca um grande olho de batata. A
noite aprofundava-se, tornando-se de um azul mais carregado.
A mãe disse positiva:
- Não vejo porque te havias tu de embebedar lá porque o pregador salvou o Tom.
John respondeu tristemente:
- Não sei bem o motivo. Mas sinto-me muito acabrunhado. Foi só avançar e dizer:
“Fui eu.” E os guardas levaram-no. E agora não tenho remédio senão embebedar-me.
O pai continuava meneando a cabeça.
- Mas porque é que tu vens contar isso à gente? Eu, no teu caso ia beber, se não visse
outro remédio.
- Tinha chegado o momento de eu poder fazer uma coisa formidável para me livrar
do grande pecado da minha alma - disse o tio John com tristeza. E deixei fugir a ocasião!
Não a agarrei pelos cabelos. E pronto! Agora, foi-se! Escuta: - disse - dá-me dois dólares.
O pai, relutante, meteu a mão no bolso e tirou uma carteira de couro.
- Mas tu não precisas de sete dólares para te embebedares. Com certeza que não vais
tomar champanhe, pois não?
O tio John estendeu-lhe a nota.
- Fica com isso e dá-me dois dólares. Dois dólares chegam bem para eu me
embebedar. Não quero ter também o pecado de gastar muito dinheiro. Só gasto aquilo que
tiver no bolso. Sempre assim fui.
O pai pegou na nota suja e deu ao tio John dois dólares em moedas de prata.
- Pega – disse - a gente faz sempre o que acha que deve fazer. Ninguém tem
autoridade para te dar conselhos.
O tio John pegou nas moedas.
- Mas tu não me vais ficar com raiva, pois não? Sabes que tenho de fazer isto.
- Não, santo nome de Cristo! - respondeu o pai. - Tu lá sabes o que fazes.
- Era incapaz de me aguentar esta noite de outra maneira - disse ele. Dirigiu-se à mãe:
- E tu? Vais querer-me mal por isso?
A mãe levantou os olhos.
- Não - disse ela brandamente - não, acho que tu deves ir.
296
O tio John ergueu-se e foi andando com ar desamparado pela noite fora. Alcançou a
estrada e atravessou-a em direcção à venda. À entrada do guarda-vento, tirou o chapéu,
atirou-o ao chão e pisou-o com o calcanhar, como se se estivesse castigando a si mesmo. E
o chapéu preto ali ficou abandonado, sujo e cheio de amolgões. Entrou na venda e dirigiuse
para as prateleiras onde se encontravam as garrafas de whisky, abrigadas por uma tela de
arame.
O pai, a mãe e as crianças tinham observado o tio John afastar-se. Rosa de Sharon
cravou os olhos nas batatas, com ressentimento.
- Coitado do John! - disse a mãe. - Adiantaria alguma coisa se eu... não, acho que não
adiantava. Nunca vi um homem tão apoquentado.
Ruthie voltou-se de lado na terra. Aproximou a cabeça da de Winfield e puxou-lhe a
orelha, de modo a ficar-lhe à altura da boca.
- Tenho que tomar uma pinga - cochichou.
Winfield fungou de riso, apertando os lábios. As duas crianças afastaram-se sempre
de gatas, retendo a respiração e com os rostos vermelhos do esforço de conterem o riso.
Foram-se arrastando, a contornar a tenda. Ergueram-se num pulo e foram correndo, a
gritar. Enfiaram-se no salgueiral, e, uma vez escondidos, estoiraram em gargalhadas
irreprimíveis. Ruthie revirou os olhos e cambaleava, com os braços e as pernas frouxos,
tropeçando comicamente, com a língua pendente da boca.
- Estou bêbeda - disse.
- Olha - gritou Winfield. - Olha para mim! Eu... eu sou o tio John. - Deixou pender
os braços e pôs-se a trepar e a bufar, dando voltas e voltas até entontecer.
- Não - disse Ruthie - não é assim. É assim, queres ver? Eu sou o tio John e estou
bêbeda como o diabo.
Al e Tom caminhavam calmamente pelo salgueiral, encontrando-se com as crianças,
que cambaleavam como doidas. A escuridão agora começava a adensar-se. Tom estacou,
fazendo um esforço para enxergar.
- São a Ruthie e o Winfield, não são? Que diabo estão eles a fazer?
Foram-se aproximando.
- Vocês estão malucos? - perguntou Tom.
As crianças imobilizaram-se, embaraçadas.
- Nós... nós estávamos a brincar - respondeu Ruthie.
- Mas que brincadeira tão parva! - disse Al.
Ruthie retorquiu descaradamente:
- É tão parva corno qualquer outra.
297
Al continuou a andar, dizendo a Tom:
- A Ruthie anda mesmo a pedir um pontapé no rabo. Anda mesmo a fazer por isso.
Agora vinha mesmo a calhar.
Ruthie, atrás dele, fez uma careta, escancarando a boca com o auxílio dos dedos
indicadores; deitou-lhe a língua de fora; insultou-o por todos os modos ao seu alcance. Mas
Al nem sequer se voltou. Ruthie voltou para junto de Winfield, para recomeçarem a
brincadeira, mas a coisa já estava estragada. Ambos sentiram isso.
- Vamos até ao rio dar um mergulho - sugeriu Winfield.
Foram os dois andando pelo salgueiral, irritadíssimos contra o irmão.
Al e Tom dirigiram-se lentamente para a tenda. Tom disse:
- O Casy não devia ter feito aquilo. Eu devia ter adivinhado o que ele ia fazer. já
outro dia se tinha queixado de não poder fazer nada pela gente. O Casy é um tipo muito
engraçado, Al, anda sempre a cismar.
- Pois se é pregador! - disse Al. - Os pregadores têm sempre coisas na cabeça.
- Aonde te parece que tenha ido o Connie?
- Deve ter ido aliviar a barriga...
- Livra! Nesse caso foi para bem longe, pois está-se a demorar como o diabo!
Chegaram ao aglomerado de tendas, mantendo-se colados às paredes de lona. junto à
tenda de Floyd, ouviram chamar e pararam. Aproximaram-se da entrada da tenda e
acocoraram-se. Floyd ergueu um pouco a lona.
- Vocês vão-se embora daqui?
- Não sei - disse Tom. - Você acha melhor?
Floyd riu com azedume:
- Não ouviu o que o polícia disse? Se a gente não abalar, deitam fogo a todo o
acampamento. Se você pensa que esse delegado aguenta uma coisa daquelas sem mais nem
menos e não vai tratar de se vingar, é porque não está bom da cabeça. Garanto que essa
gente volta hoje mesmo à noite, para queimar tudo.
- Então é melhor a gente tratar de fugir - concordou Tom. - Para aonde vai você?
- Eu vou para o norte, já lhe disse. - Escute. Um tipo disse-me que havia aqui perto
um acampamento do governo. Você, por acaso não sabe onde ele fica? - perguntou Al.
- Ora! Aquilo deve estar completamente cheio.
- Sim, mas onde é que fica?
- E descer pela 99 umas doze a catorze milhas para o sul e depois virar a leste, em
direcção a Weedpatch. Fica lá perto. Mas aquilo deve estar à cunha.
- O sujeito disse-me que aquilo lá é bonito a valer - disse Al.
298
- E com certeza. Dizem que as pessoas lá são tratadas corno gente e não como cães.
E polícias é coisa que lá não há. Mas está cheio...
- O que eu não sou capaz de compreender é porque é que aquele polícia armou em
teso. Parece que queria à viva força armar uma zaragata. O que ele queria era aquilo - disse
Tom.
- Não sei corno é a coisa por aqui, mas no Norte conheci um polícia que era uma
excelente criatura - afirmou Floyd. - Ele contou-me que na zona dele, os polícias têm de
caçar gente para meter no xadrez. O sheriff ganha setenta. e cinco por dia por cada preso
que meter na cadeia e só gasta vinte e cinco para lhe dar de comer. Não tendo presos, deixa
de ganhar dinheiro. O tal polícia disse-me que passou uma semana sem prender ninguém, e
então o sheriff disse-lhe que tratasse de arranjar presos ou então que entregasse o emblema.
Também esse gajo que esteve aqui parecia disposto a prender gente de qualquer maneira.
- Bom, então é melhor a gente ir-se embora daqui - disse Tom. - Até logo, Floyd!
- Até logo, Tom! A gente ainda se encontra, Pelo menos, faço votos por isso.
- Bem, adeus! - disse Al. Atravessaram o acampamento mergulhado nas trevas e
foram andando em direcção à tenda dos Joads.
O azeite crepitava, espirrando na frigideira cheia de batatas. A mãe mexia as rodelas
grossas de batata com uma colher. O pai estava sentado ao lado dela, cingindo os joelhos.
Rosa de Sharon encontrava-se no interior da tenda.
- É o Tom! - gritou a mãe. - Graças a Deus!
- A gente tem de se ir embora daqui - disse Tom.
- Que é que há de novo?
- O Floyd disse que os polícias vão queimar o acampamento hoje mesmo, de noite.
- Mas porquê? Porquê, raios? - perguntou o pai. - A gente não fez nada!
- Ai, nada! Quase que matámos um polícia!
- Mas a culpa não é de todos.
- Pelo que o polícia disse, vamos ser todos escorraçados daqui.
Rosa de Sharon perguntou:
- Viste o Connie?
- Vi, sim - respondeu Al - Ia a caminho do rio para os lados do sul.
- Ele... ia-se embora?
- Não sei.
A mãe dirigiu-se à rapariga:
- Rosasharn, tu estás muito esquisita. Que foi que o Connie te disse?
- Ele disse que era melhor ter ficado em casa, a estudar tractores.
299
Todos se quedara m. caiados. Rosa de Sharon olhava para a fogueira e os seus olhos
cintilavam à luz das chamas. As batatas assobiavam alto na frigideira. A rapariga fungou e
limpou o nariz com as costas da mão.
- O Connie não valia nada - disse o pai. - Já tinha notado isso. Só tinha garganta.
Rosa de Sharon ergueu-se e meteu-se na tenda. Deitou-se em cima do colchão, virouse
sobre o ventre e enterrou a cabeça nos braços cruzados.
- Acho que não vale a pena a gente ir buscá-lo - disse Al.
O pai respondeu:
- Para quê? Ele não presta para nada... Para que é que a gente precisa dele?
A mãe olhou para a tenda, em cujo interior Rosa de Sharon estava deitada no colchão
e avisou:
- Pschiu! Não digam isso!
- Porque não? Se ele não prestava... - insistiu o pai. - Era um desses homens que
vivem a falar no que vão fazer. E nunca fazem nada. Enquanto ele estava com a gente, eu
não dizia nada, mas, agora que ele se foi...
- Chiu! - fez a mãe com brandura.
- Chiu porquê, santo Deus?! Porque é que me hei-de calar. Ele pôs-se a mexer, ou
não?
A mãe mexeu as batatas com a colher, e o azeite fervente espirrou. Pôs mais lenha na
fogueira e as labaredas vivas ergueram-se, iluminando a tenda; depois disse:
- Mas a Rosasharn vai ter uma criança e a metade dessa criança é do Connie. Não faz
bem a uma criança criar-se no meio de gente que diz que o pai não servia para nada.
- Talvez seja melhor mentir, não? - perguntou o pai.
- Isso também não - interrompeu a mãe. - Vamos fazer de conta que ele morreu. Tu
não dirias mal dele se ele tivesse morrido, pois não?
Tom interveio:
- Eh lá, que é que vocês estão a dizer? A gente ainda não sabe se o Connie se foi
embora. Não podemos perder tempo a conversar. Vamos tratar de comer e sair daqui para
fora.
- Vamo-nos embora? Mas chegámos agora mesmo... - A mãe olhou-o na escuridão
levemente atenuada pela luz avermelhada das chamas.
Tom explicou com paciência:
- Vão lançar fogo ao acampamento esta noite, mãe. A senhora sabe que eu não sou
daqueles que olham para essas coisas de braços cruzados, e o pai e o tio John também não.
300
Pegávamo-nos à pancada, e eu não posso arriscar-me a ser de novo preso. Hoje ia
acontecendo isso mesmo, se o pregador se não tivesse metido no caso.
A mãe continuava a mexer as batatas que fritava no azeite quente. Por fim, decidiuse:
- Bom, então vamos. Vamos comer depressa e partir.- E foi distribuindo os pratos de
estanho.
- E o John? - perguntou o pai.
- Onde está o tio John? - repetiu Tom.
O pai e a mãe mantiveram-se calados um momento.
- Foi apanhar uma bebedeira - disse o pai.
- Deus do céu! - exclamou Tom. - Escolheu uma bonita hora! Aonde é que ele foi?
- Não sei - respondeu o pai.
Tom levantou-se.
- Ouçam - disse. - Comam todos e vão pondo as coisas no camião. Eu vou procurar
o tio John. Deve estar naquela taberna do outro lado da estrada.
Tom saiu à pressa. Diante de quase todas as tendas e barracas ardiam pequenas
fogueiras e o brilho das chamas projectava-se no rosto dos homens e das mulheres
esfarrapados, e nas crianças acocoradas. Nalgumas tendas, a claridade de uma lâmpada de
querosene brilhava através da lona, agigantando a sombra das pessoas na tela.
Tom galgou o atalho poeirento e atravessou a estrada em direcção à tabernica. Parou
à entrada do guarda-vento, lançando um olhar para o interior. O dono da loja, um
homenzinho encanecido, de bigodes em desalinho e olhos aguados, apoiava-se ao balcão,
lendo o jornal. Os seus braços magros estavam nus. Usava um comprido avental branco.
Atrás dele e à sua volta havia latas de conserva armadas em montes, pirâmides e muralhas.
À entrada de Tom, o homem cerrou os olhos, como se estivesse fazendo a pontaria com
uma espingarda.
- Boa noite - perguntou - perdeu alguma coisa?
- Perdi o meu tio - disse Tom.- Ou então foi ele que se perdeu, ou coisa semelhante.
O homem grisalho esboçou uma expressão em que havia simultaneamente surpresa e
aborrecimento. Levou delicadamente um dedo à ponta do nariz e ficou-se a esfregá-lo e a
coçá-lo.
- Vocês andam sempre a perder a família - disse. - Mais de dez vezes ao dia, entra
aqui um tipo a dizer: “Se o senhor vir um homem que se chama assim ou assado, e que tem
uma cara assim ou assado, faça o favor de lhe dizer que a gente foi para o Norte.” E isto
constantemente.
301
Tom riu.
- Muito bem, se o senhor vir um ranhoso de um rapaz chamado Connie um pouco
parecido com um coiote, diga-lhe que vá para o inferno e que a gente já foi para o Sul. Mas
eu não ando à procura desse tipo. Procuro um sujeito aí de uns sessenta anos, de calças
pretas, já com cabelos brancos. Ele não esteve aqui a comprar whisky?
Os olhos do dono da taberna brilharam.
- Ah... já sei! Esteve aqui, sim, senhor. Nunca vi uma coisa assim! Antes de entrar na
venda, atirou o chapéu ao chão e pisou-o à doida. Tenho aqui o chapéu. Guardei-o. - E
tirou o chapéu sujo e amarrotado da parte inferior do balcão.
Tom pegou no chapéu.
- É o dele, é. Obrigado.
- Ele comprou duas garrafinhas de whisky e não disse coisa nenhuma. Tirou a rolha e
meteu o gargalo na boca. Mas agora a lei não permite que se beba nas vendas. Por isso, eu
disse-lhe: “Olhe que é proibido beber aqui dentro. Tem de ir beber lá para fora.” Pois sim,
senhor! Saiu e ia jurar que esvaziou as garrafas em quatro goladas. Só o vi atirar fora as
garrafas vazias e encostar-se à porta. Os olhos dele já estavam bem carregados. Ele disseme:
“Muito obrigado.” E foi-se embora. Nunca na minha vida vi um homem beber daquela
maneira.
- Foi-se embora? E para que lado? Tenho de o encontrar.
- Olhe, por acaso, sei para onde foi. Nunca vi um tipo beber daquela maneira e, por
isso, estive sempre de olhos pregados nele. Foi para os lados do Norte. Os faróis de um
carro iluminaram-no a certa altura e ele desceu para a valeta. As pernas dele parecia que já
se não aguentavam lá muito bem. Não deve estar longe, não, senhor da maneira como ele
ia...
- Bem, muito obrigado. Vou ver se o encontro - disse Tom.
- Então não quer levar o chapéu dele?
- Quero, quero! Vai precisar dele. Bem, muito obrigado, sim?
- Que é que ele tem? - perguntou o homem grisalho. - Pareceu-me que não estava a
gostar lá muito da bebida. Palavra que não.
- Não é nada. Ele é assim mesmo, meio esquisito. Bem, boa noite. E, se o senhor vir
aquele patife do Connie, pode dizer-lhe que a gente foi para o Sul.
- Isso é difícil. já tenho tantos recados na cabeça, que quase me não lembro de
nenhum.
- Bom, então não se rale - replicou Tom. E passou o guarda-vento, levando o chapéu
preto do tio John, todo sujo e amarrotado.
302
Atravessou a estrada e foi caminhando pela berma. A seus pés estendia-se
Hooverville, com as pequenas fogueiras luzindo na escuridão e as lanternas brilhando
através das tendas. Vinham, não se sabia de onde, os sons de uma viola em lentos acordes,
lentos, sem sequência, como se alguém estivesse a praticar. Tom parou um instante a
escutar; depois prosseguiu vagarosamente o seu caminho à beira da estrada, e, de vez em
quando, tornava a parar, pondo-se à escuta. Andara cerca de um quarto de milha quando
ouviu, por fim, aquele que procurava. De sob um talude, vinha o som de uma voz
desafinada e grossa. Tom inclinou a cabeça para a frente, tentando ouvir melhor.
E a voz monótona cantava: “Dei o meu coração a Jesus; agora Jesus leva-me consigo.
Dei a minha alma a Jesus; agora Jesus é o meu lar”.- O cântico degenerou num murmúrio e
extinguiu-se por completo. Tom desceu o talude a correr, em direcção aos sons. Daí a
pouco parava a escutar. Os sons ouviam-se mais próximo e, no mesmo cântico lento e sem
harmonia: “Oh, na noite em que Maggie morreu, ela chamou-me e deu-me as suas calças,
as calças velhas, de flanela vermelha que ela sempre usara. As calças estavam puídas nos
joelhos... “
Tom avançou cautelosamente. Divisou um vulto negro sentado no chão, e,
aproximando-se, sentou-se ao lado dele. O tio John ergueu a garrafa e o líquido borbulhou
no gargalo.
Tom disse com calma:
- Eh, espere aí. E para mim, não há nada?
O tio John virou a cabeça:
- Quem és tu?
- Então não querem lá ver que o senhor já se esqueceu de mim? O senhor já tomou
quatro goles e eu só um.
- Não, Tom, não brinques comigo. Eu estou aqui sozinho. Tu nunca aqui estiveste.
- Bom, mas agora estou, garanto-lhe. O senhor não me quer dar uma pinguinha?
O tio John tornou a erguer a cabeça e o whisky borbulhou. Abanou depois a garrafa
vazia.
- Acabou-se - disse. - Era bem bom que eu morresse agora. Ter uma morte terrível
ou, pelo menos, morrer um bocadinho. Tem de ser! Sinto-me tão cansado! Muito cansado.
Q2icia sabe? Se eu pudesse não acordar mais, nunca mais!- A voz dele mantinha a mesma
entoação monótona. - Vou usar uma coroa, uma coroa de ouro autêntica.
Tom prosseguiu:
- Tio John, escute. A gente agora tem de partir. O senhor vem comigo e depois pode
dormir à vontade, lá em cima do camião.
303
John sacudiu a cabeça.
- Não, vai tu sozinho. Eu não saio daqui. Não vou, tenho de ficar aqui. Não vale a
pena ir. Não sou útil a ninguém. a arrastar-me com os meus pecados no meio de gente
decente. Não, não vou.
- Vamos, tio John. A gente não pode ir sem o senhor.
- Vai tu só. Deixa-me. Eu não presto, não presto para nada, ouviste? Vivo a sujar
toda a gente com os meus pecados.
- O senhor não é mais pecador do que qualquer outro. John aproximou a cabeça da
de Tom e piscou um olho com gravidade. Tom via-lhe os traços fisionómicos à luz das
estrelas.
- Ninguém sabe dos meus pecados, ninguém: só Deus. Ele é que sabe.
Tom pôs-se de joelhos. Colocou a palma da mão na testa do tio John, que ardia e
estava seca. O tio John afastou a mão do sobrinho desajeitadamente.
- Então, vamos - suplicou Tom. - Venha, tio John.
- Não vou, pronto, já disse. Estou cansado. Vou ficar aqui mesmo. Aqui mesmo, pois
então?
Tom encontrava-se muito próximo dele. Encostou o punho ao queixo do tio John.
Traçou no ar duas pequenas voltas, calculando a distância, e afastou o braço do ombro. O
golpe foi desferido com esmerada perfeição. O maxilar do tio John fechou-se com um
estalido seco, e ele caiu de costas, tentando ainda erguer-se. Mas Tom já se ajoelhava sobre
o corpo do tio, e, quando ele conseguiu firmar-se num dos cotovelos, vibrou-lhe novo
golpe. O velho caiu e ficou imóvel.
Tom levantou-se e, debruçando-se, ergueu o corpo frouxo e vacilante do tio John e
pô-lo ao ombro. Cambaleou um pouco sob aquele peso morto. As mãos caídas do tio John
batiam-lhe nas costas, enquanto subia arquejante para a estrada. Um carro passou por ele e
os faróis lançaram uma luz brilhante, mostrando-o com o homem baloiçando-lhe às costas.
O carro diminuiu por um instante a marcha; 'depois, retomou andamento com um rugido
do motor.
Tom ofegava ao chegar a Hooverville, depois da marcha pela estrada até ao
caminhão dos Joads. John voltava a si, agitando-se fracamente. Tom depô-lo
cuidadosamente no chão.
O acampamento havia sido levantado durante a sua ausência. Al passava as trouxas
para o caminhão. A lona estava pronta para ser estirada por cima da carga.
- Que bebedeira desgraçada! - exclamou Al.
Tom desculpou-o:
304
- Coitado! Tive de lhe dar um soco e derrubá-lo, senão, não vinha comigo.
- Não o feriste, hein? - perguntou a mãe.
- Acho que não. Ele está a vir a si.
O tio John jazia no chão. Parecia muito fraco e doente. Vómitos sacudiam-lhe o
corpo frequentemente.
- Guardei um prato de batatas para ti, Tom - disse a mãe.
Tom soltou uma curta risada.
- Palavra que não tenho vontade nenhuma de comer.
O pai gritou:
- Está tudo pronto. Al, amarra a lona!
O camião estava carregado e pronto a partir. O tio John havia adormecido. Tom e Al
içaram-no para cima da carga, enquanto Winfield, nas traseiras, imitava os gestos do tio
John quando vomitava e Ruthie tapava a boca com a mão, para não desatar às gargalhadas.
- Pronto! - repetiu o pai.
Tom perguntou:
- Onde está a Rosasharn?
- Está aí - respondeu a mãe. - Rosasharn, vem cá. Vamo-nos embora.
A rapariga estava sentada no chão, completamente imóvel. Tinha o queixo caído
sobre o peito. Tom dirigiu-se a ela.
- Anda - disse-lhe.
- Não vou! - respondeu ela, sem sequer erguer a cabeça.
- Tens de vir.
- Quero o Connie. Só saio daqui com ele. Três carros deixavam o acampamento,
subindo para a estrada: carros velhos, carregados de objectos para acampar e de gente.
Arrastaram-se pelo barranco acima e afastaram-se, perfurando a escuridão com os faróis.
- O Connie há-de encontrar-nos depois - disse Tom. - Deixei na venda um recado
para ele. Mandei-lhe dizer para onde vamos. Ele há-de dar connosco depois.
A mãe também se aproximou, ficando ao lado de Tom.
- Anda, Rosasharn, anda, querida - disse ela com ternura.
- Quero esperar pelo Connie.
- Não podemos esperar por ninguém.
A mãe inclinou-se, cingiu a filha com os braços e ajudou-a a levantar-se.
- Ele depois vai ter com a gente - disse Tom. - Não te preocupes. Ele vai ter com a
gente.
Foram caminhando ao lado de Rosa de Sharon.
305
- Pode ser que ele tenha ido comprar os livros para estudar - exclamou a rapariga. -
Talvez ele quisesse fazer-nos uma surpresa.
A mãe respondeu-lhe:
- Sim, pode ter sido isso. Conduziram-na até ao caminhão e ajudaram-na a subir. A
rapariga meteu-se debaixo da lona e desapareceu na toca de sombra.
O homem de barbas, que morava na barraca de tecto de ervagem, aproximou-se,
postando-se timidamente ao lado do camião. Parou, numa atitude de expectativa, com as
mãos atrás das costas.
- Vocês não deixam aqui nada que preste? - inquiriu finalmente.
- Que eu saiba, não. A gente não tem nada que deixar - disse o pai.
- Você não se vai embora também? - perguntou Tom.
O barbudo encarou-o durante algum tempo.
- Não - disse por fim.
- Mas vão lançar fogo ao acampamento.
Os olhos inquietos fixaram-se no chão.
- Eu sei. Eles já têm feito isso muitas vezes.
- Mas então por que diabo não se vai embora?
Os olhos desvairados ergueram-se por um instante, para se tornarem a baixar, e a luz
moribunda das chamas reflectia-se muito vermelha.
- Sei lá! Levamos tanto tempo a arrumar as coisas!
- Se eles queimarem tudo, vocês ficam sem nada.
- Eu sei. Vocês não deixam nada que preste?
- Não, a gente já fez a limpeza; levamos tudo - disse o pai.
E o homem afastou-se com passos hesitantes.
- Que é que ele tem? - perguntou o pai.
- A culpa é da polícia - respondeu Tom. - Disseram-me que tem a mania da
perseguição. Deve ter apanhado muita pancada na cabeça.
Outra caravana deixava o acampamento, galgando o barranco e rodando estrada fora.
- Vamos, pai, vamo-nos embora - disse Tom. - O senhor, eu e o Al vamos sentados
na frente. A mãe pode ir em cima da carga. Não, mãe, a senhora vai no meio. - Tom meteu
a mão no assento e retirou uma grande chave inglesa. - Al, tu vais sentar-te lá atrás. Toma,
pega nisto. Se alguém quiser saltar para o camião, dás-lhe com isso na cabeça.
Al pegou na chave e trepou para o carro. Sentou-se com as pernas cruzadas,
segurando na mão a chave inglesa. Tom tirou de baixo do assento o macaco e colocou-o
no chão, ao lado do pedal do travão.
306
- Pronto! - disse. - Mãe, agora suba e sente-se aí no meio.
- E eu não fico com coisa nenhuma? - perguntou o pai.
- O senhor pode pegar no macaco - disse Tom. - Mas queira Deus que a gente não
precise dele.
Premiu o arranque e o calhambeque barulhento começou a trabalhar. O motor
pegou, esmoreceu e tornou a pegar. Tom acendeu as luzes do camião e deixou o
acampamento em primeira. As luzes embaciadas apontavam nervosamente a estrada.
Subiram para a faixa de cimento e foram rodando em direcção ao sul. Tom disse:
- Há horas em que um tipo fica completamente transtornado.
A mãe interrompeu-o:
- Tom, tu disseste... tu prometeste-me que não serias assim. Prometeste...
- Eu sei, mãe, e estou a esforçar-me por cumprir. Mas esses malvados desses polícias!
A senhora já viu algum sheriff que não tenha um rabo de padeiro? E mexem o rabo de
propósito, como que para fazer balançar o revólver. Mãe - continuou - se fosse a lei que
estivesse contra nós, vá lá. Mas não é a lei. Eles torturam-nos a alma; querem que a gente
viva a bajulá-los e que nos arrastemos pelo chão como cães, com o rabo entre as pernas.
Eles querem desmoralizar-nos. Santo Deus! Mãe, ainda há-de chegar o dia em que um
homem só poderá ser um tipo decente quando partir os dentes a um polícia. Eles o que
querem é fazer-nos perder a dignidade!
A mãe respondeu:
- Tu prometeste, Tom. O pobre do Floyd foi assim que começou. Eu conheci a mãe
dele. E eles deram conta do rapaz...
- Estou a esforçar-me por manter a calma, mãe. Deus sabe que assim é. Mas a
senhora não quer com certeza que eu ande a rojar-me no chão como uma cadela que
apanhou pancada, pois não?
- Estou a rezar, Tom, a pedir a Deus que evites essas coisas. A nossa família está a
desmantelar-se. Tens que te dominar.
- Vou tentar, mãe. Mas é duro a gente dominar-se quando um desses rabos de
padeiro nos provoca. Se fosse a lei que estivesse contra nós, era diferente. Mas lançar fogo
aos acampamentos não é da lei.
O caminhão ia avançando aos solavancos. À frente, via-se uma pequena fila de luzes
vermelhas pela estrada fora.
- Parece-me que é um desvio.
Diminuiu a marcha e parou. Imediatamente um grupo de homens cercou o
caminhão. Estava armado de picaretas e de carabinas. Os homens traziam capacetes, mas
307
havia alguns com bonés da Legião Americana. Um dos homens encostou-se à janela, do
caminhão. Exalava um bafo quente, a whisky.
- Para onde é que vocês querem ir? - Aproximou o rosto avermelhado do de Tom.
As faces deste crisparam-se. Baixou a mão e, às apalpadelas, segurou no macaco. A
mãe travou-lhe do braço com firmeza. Tom disse:
- Está bem, mãe... - e então a sua voz adquiriu um tom de servilidade, tornando-se
chorosa: - A gente não é daqui - disse. - Disseram-nos que havia trabalho num sítio
chamado Tulare:
- Vocês vão por caminho errado, diabo! Não queremos aqui nenhum Okie dos
diabos, ouviu?
Tom sentia os ombros e os braços retesados e um arrepio sacudiu-lhe o corpo. A
mãe apertou-lhe o braço com mais força.
O caminhão estava rodeado à frente por homens armados. Alguns de entre eles, para
terem uma aparência militar, usavam fardas e cingiam boldriés.
Tom lamuriou:
- Então por onde é que a gente deve ir, senhor?
- Dê meia volta e siga para os lados do Norte. E não volte cá antes da safra do
algodão!
Todo o corpo de Tom estremeceu.
- Sim, senhor - disse.
Voltou o carro e foi andando pelo caminho que acabara de percorrer. A mãe soltoulhe
o braço, acariciando-o com brandura. E Tom procurou reter um grande soluço
abafado.
- Não te rales - disse a mãe. - Não te rales.
Tom assoou-se para fora do carro e limpou os olhos com a manga do casaco.
- Esses filhos da mãe!
- Fizeste bem - disse a mãe com ternura.
O camião penetrou numa estrada lateral, que não era cimentada e avançou por ela
cerca de cem jardas. Então apagou as luzes e desligou o motor. Saiu do carro com o
macaco na mão.
- Aonde vais? - perguntou a mãe.
- Vou dar uma vista de olhos por aqui. A gente não vai para o Norte.
As lanternas encarnadas movimentavam-se na estrada. Tom viu-as passar pelo
entroncamento da estrada lateral com a estrada principal e sumirem-se nesta. Momentos
depois, chegou-lhes aos ouvidos barulho de gritos, seguido de um intenso clarão que se
308
ateara lá para os lados de Hooverville. O clarão cresceu de intensidade, espraiou-se e
ouviram-se estrondos. Tom tornou a subir para o caminhão. Deu uma volta e regressou
pela estrada lateral, com as luzes do veículo apagadas. Novamente na estrada principal,
tomou a direcção do Sul e acendeu os faróis.
A mãe perguntou timidamente:
- Aonde vamos, Tom?
- Para o Sul - foi a resposta. - Não vou consentir que esses bandidos nos enxotem
daqui sem mais nem menos. Não pode ser! Vamos contornar a cidade mas não a
atravessamos.
- Sim, mas para aonde é que a gente vai? - O pai falou pela primeira vez. - Só queria
saber para aonde vamos.
- Vamos à procura daquele acampamento do governo - disse Tom. - Um tipo
informou-me de que não há lá polícias. Mãe, eu tenho de os evitar; estou com medo de
acabar por dar cabo de um.
- Calma, Tom - aconselhou a mãe num tom apaziguador. - Calma, Tommy. Tu já
procedeste bem uma vez. Vê se fazes sempre assim.
- Sim, e aos poucos vou perdendo a vergonha.
- Calma! Tens de ter paciência. Olha, a nossa gente ainda há-de existir quando eles
morrerem. Nós viveremos, Tom, havemos de existir sempre. Ninguém nos pode destruir.
Nós somos o povo; vamos sempre para diante.
- Sim, mas apanhando sempre também.
A mãe riu
- Sim, lá isso também é verdade. Talvez seja por isso que somos tão resistentes.
Aquela gente rica nasce e vai-se, e os filhos morrem antes de tempo. Acaba-se-lhes a raça.
Mas nós, Tom, nós continuamos. Não percas a calma, Tom, outros tempos hão-de vir!
- Como é que a senhora sabe disso?
- Sei lá! Só sei que sei.
Iam entrando na cidade, e Tom lançou-se numa rua lateral, evitando assim a zona do
centro. À luz dos candeeiros olhou o rosto da mãe - um rosto tranquilo, com uma estranha
expressão nos olhos, parecidos com os olhos eternos de uma estátua. Tom estendeu a mão
e tocou levemente no ombro dela num gesto irreprimível. Depois, retirou a mão.
- Nunca na minha vida ouvi a senhora falar tanto - disse.
- É que nunca tive tanta razão para falar - replicou a mãe. Seguindo as ruas desviadas,
contornou a cidade e depois voltou para trás. Num entroncamento via-se a placa indicando
a estrada 99. Continuaram rumo ao Sul.
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- Bem, de qualquer maneira, não conseguiram atirar connosco para o Norte - disse
Tom. - A gente vai para onde quiser, nem que seja de rastos.
As luzes esmaecidas incidiam sobre a larga e negra estrada que se desenrolava à sua
frente.
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