Capítulo XXI
Os homens errantes, sempre em busca de alguma coisa, haviam-se tornado nómadas.
As pessoas que até aí tinham vivido no seu pedaço de terra, que até então tinham vivido e
morrido nos seus quarenta acres, que haviam comido deles ou neles passado fome, todas
essas famílias tinham agora o Oeste inteiro, para nele vaguearem à vontade. E corriam pelo
país fora, à procura de trabalho. As estradas estavam metamorfoseadas em caudais de
homens e nas valas, à beira das estradas, formigavam multidões de homens. Atrás deles
vinham outros a caminho. As grandes estradas formigavam de povo em marcha. No oeste
central e no sudoeste vivia um povo simples e agrário, que não era influenciado pela
indústria, um povo que nunca empregara máquinas nas suas propriedades, nem conhecia o
poder ou o perigo das máquinas em mãos de particulares. Era um povo que ainda não
sentira as contradições da indústria; um povo de sentidos ainda bastante penetrantes para
perceber o ridículo da vida industrial-
E, de repente, as máquinas expulsaram esse povo e esse povo enxameou nas
estradas. A movimentação alterou-lhe a natureza; as estradas, os acampamentos, o espectro
da fome e finalmente esta última alteraram-lhe a natureza. As crianças sem comida,
alteraram-na; alteraram-na as viagens intermináveis. Era um povo migrante. Alterava-o a
hostilidade do ambiente e essa hostilidade caldeava-o, era a hostilidade que costumava
impelir pequenas cidades a formar grupos armados, como que para repelir um invasor, a
formar bandos munidos de picaretas, grupos de empregados e de patrões armados de
carabinas, protegendo-se contra a sua própria gente.
Reinou o pânico no Oeste, quando se multiplicaram os homens nas estradas. Os
homens receavam pelas suas propriedades. Homens que nunca tinham tido fome viam os
olhos dos esfaimados. Homens que nunca na sua vida tinham sentido verdadeira
necessidade de qualquer coisa viam a chama da necessidade arder nos olhos dos homens
das estradas. E os homens das cidades e dos campos suburbanos que rodeavam as cidades
preparavam a defesa. Tinham estabelecido que eles é que eram bons e que os outros - os
invasores - eram maus, como fazem sempre os homens antes dos combates. E diziam:
“São uns malditos duns Okies, uns ignorantes imundos. São uns degenerados, uns maníacos
sexuais. Uns ladrões, esses Okies danados, que roubam tudo o que encontram. Não têm a
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consciência do direito de propriedade.” E esta última afirmação era realmente verdadeira,
pois, como pode um homem que nada possui compreender as preocupações dos que
possuem alguma coisa? E os que se defendiam, diziam: “São uns imundos que espalham
epidemias. Não podemos consentir que os filhos deles frequentem a mesma escola que os
nossos. Eles são estranhos. O que é que tu dirias se a tua irmã fosse passear com um
deles?”
A gente das cidades esforçava-se por adoptar ares de crueldade. Formava grupos e
companhias e armava-os; armava-os com cassetetes, bombas de gás e carabinas. A terra é
nossa - diziam. É bom a gente não perder de vista esses danados desses Okies. E as terras
não pertenciam aos homens armados, mas estes pensavam que eram os donos das terras. E
os empregados, que se exercitavam à noite, nada possuíam de seu e os donos de lojas
insignificantes não possuíam outra coisa além de dívidas. Mas até um emprego é alguma
coisa; até uma dívida é alguma coisa. O empregado pensava: “Ganho quinze dólares por
semana; talvez um desses malditos Okies se contentasse com doze.” E o patrão pensava:
“Não posso competir com um homem que não tem dívidas.”
E os homens em êxodo espraiavam-se pelas estradas e havia fome e miséria nos seus
olhos. Não empregavam argumentos nem possuíam um sistema certo de agir; tinham
apenas o seu número e as suas necessidades. Quando aparecia trabalho para um homem,
havia logo dez a disputá-lo, lutavam por ele, aceitando uma paga miserável. “Se aquele tipo
trabalha por trinta cents, eu trabalho por vinte e cinco.”
“Se ele trabalha por vinte e cinco, eu trabalho por vinte.”
“Não, eu... eu, que tenho fome. Trabalho nem que seja por quinze.” “Trabalho
mesmo só pela comida. Os meus filhos! Só queria que o senhor os visse! Estão com o
corpo cheio de furúnculos, estão que nem podem andar. Dei-lhes frutas podres, apanhadas
do chão; incharam terrivelmente. Eu; eu trabalho até por um pedacinho de carne.”
E isso causava satisfação, pois, embora os salários diminuíssem, os preços dos
géneros mantinham-se altos. Os grandes proprietários estavam contentes e mandavam
distribuir ainda mais impressos para atrair mais gente. Os salários baixavam e os preços
mantinham-se altos. Não tarda muito que não haja de novo escravos no nosso país.
Foi então que os grandes proprietários e as companhias inventaram um novo
método. Um grande proprietário comprava uma fábrica de frutos de conserva. E, quando
as peras e os pêssegos amadureciam, ele descia o preço das frutas abaixo do custo da
produção. Como fabricante de frutas de conserva, ele pagava a si mesmo um preço baixo
pelas frutas e, mantendo alto o preço das frutas em conserva, auferia óptimos lucros. Os
pequenos proprietários, que não possuíam fábricas de frutas de conserva, perdiam as suas
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propriedades, que eram absorvidas pelos grandes proprietários, pelos bancos e pelas
companhias, às quais pertenciam essas fábricas. Com o tempo, diminuía o número das
propriedades. Os pequenos proprietários não tardavam a mudar-se para as cidades por um
certo tempo, onde esgotavam o crédito, os amigos, as relações. Depois, acabavam por sair
também para as estradas. E as estradas formigavam de homens ávidos de trabalho, prontos
a assassinar por causa do trabalho.
As companhias e os bancos trabalhavam para a sua própria ruína, mas ignoravam-no.
Os campos estavam prenhes de fruta, mas nas estradas marchavam homens que morriam
de fome. Os celeiros estavam repletos, mas as crianças cresciam raquíticas e inchava-lhes o
corpo com as pústulas da pelagra. As grandes companhias ignoravam quão estreita é a linha
divisória entre a fome e a ira. E o dinheiro, que podia ter sido empregado na melhoria de
salários, gastava-se em bombas de gás, em carabinas, em agentes e espiões, em listas negras
e exércitos bélicos. Nas estradas, os homens deslocavam-se como formigas, à procura de
trabalho e de comida.
E a ira começou a fermentar.
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Capítulo XXII
Já era tarde quando Tom Joad atravessou um atalho, à procura do acampamento de
Weedpatch. Em volta, viam-se poucas luzes e apenas um clarão indicava no firmamento a
direcção de Bakersfield. O caminhão rodava vagarosamente; de vez em quando, gatos
bravos atravessavam o caminho. Numa encruzilhada, surgiu um pequeno aglomerado de
casas de madeira pintada de branco.
A mãe, sentada à frente, dormitava e o pai vinha há muito calado e taciturno.
Tom cortou o silêncio:
- Não sei onde fica esse acampamento. Talvez seja melhor esperar até de madrugada
e perguntar a alguém.
Estacionou ao pé de um marco do caminho e, no mesmo. instante, parou outro carro
na encruzilhada. Tom inclinou-se para fora do veículo.
- Olá – disse - o senhor não sabe onde fica o acampamento do governo?
- Aí mesmo em frente.
Tom atravessou a estrada e foi andando em frente. Passadas algumas centenas de
metros, parou novamente. Uma alta cerca de arame marginava a estrada e, logo a seguir,
diante de um largo portão abria-se um caminho, pelo qual Tom enveredou.
O veículo deu um salto e depois caiu com estrondo sobre as rodas.
- Meu Deus! - exclamou Tom. - Não vi essa corcova.
Um guarda saiu do alpendre e veio direito ao caminhão, encostando-se a ele.
- Para a outra vez já faz a coisa mais devagar.
- Mas para que é isto logo à entrada?
O guarda, riu.
- É que há muitas crianças aqui que costumam andar para aí a brincar. Se apenas se
avisam os motoristas para andarem devagar, não ligam nenhuma. Mas, se se lembrarem
deste montão de terra aqui à entrada, garanto que já entram com menos pressa.
- Ai, é? Oxalá não tenha quebrado alguma peça. Ouça: há aí lugar para nós?
- Dá-se um jeito. Quantos são?
Tom pôs-se a contar pelos dedos.
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- Eu, o pai, a mãe, o Al, a Rosasharn, o tio John, a Ruthie e o Winfield. Estes dois
são ainda crianças.
- Bem, parece-me que há lugar para todos. Vocês trouxeram coisas onde possam
dormir?
- Temos camas e uma barraca grande.
O guarda subiu para o estribo do camião.
- Vá andando até ao fim desta fila aqui e depois corte à direita. Vocês vão ficar no
departamento sanitário número 4.
- O que é isso?
- Chuveiros, casas de banho e tanques para lavar a roupa.
- Aqui há água corrente? - perguntou a mãe.
- Claro que há.
- Oh, graças a Deus! - exclamou ela.
Tom ladeou a fila de tendas mergulhadas na obscuridade. No edifício sanitário ardia
uma lamparina pequena.
- Pode parar - disse o guarda.- E um bom sítio e acaba de ficar vago.
Tom desligou o motor do camião.
- Está bem aqui?
- Está. Agora você deixe os outros tirarem as coisas do caminhão, enquanto eu faço
o registo. Preciso de ir dormir. Amanhã de manhã, o comité aqui do acampamento vem
fazer-lhes uma visita para vocês explicarem umas coisas.
Tom baixou os olhos.
- Polícia? - perguntou.
O guarda riu.
- Não, nada de polícia... A gente tem as nossas próprias autoridades. Aqui somos nós
quem elege a nossa polícia. Bom, venha daí.
Al saltou do caminhão e pôs-se a andar por ali.
- Vamos ficar aqui?
- Vamos, sim - disse Tom. - Ajuda o pai a descarregar as coisas enquanto eu vou ao
escritório.
- Mas cuidado, não façam barulho - recomendou o guarda. - Há muita gente a
dormir.
Tom seguiu-o na escuridão. Subiu os degraus do escritório e penetrou numa salita
onde havia apenas uma escrevaninha velha e uma cadeira. O guarda sentou-se à
escrevaninha e pegou numa ficha em branco.
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- Nome?
- Tom Joad.
- Ali aquele homem é seu pai?
- É.
- Qual é o nome dele?
- Tom Joad, também.
O interrogatório continuou. De onde são, há quanto tempo estão neste estado, onde
trabalharam até agora, etc. O guarda ergueu os olhos:
- Não somos metediços, mas precisamos de saber certas coisas.
- É natural - disse Tom.
- Bem... vocês têm dinheiro?
- Muito pouco.
- Então não estão sem recursos?
- Temos muito pouco dinheiro. Porquê?
- Olhe, aqui paga-se um dólar por semana, mas vocês podem trabalhar para pagar a
dívida que contraírem. Transportar o lixo, limpar o acampamento e outras coisas
semelhantes.
- Bom, então a gente vai trabalhar.
- Está bem. Amanhã vocês vão ver o comité, para saberem como se vive aqui no
acampamento. Vão conhecer o código.
- Escute, o que é isso de comité? - perguntou Tom.
O guarda recostou-se na cadeira.
- E uma coisa muito bem organizada. Aqui há cinco departamentos sanitários. Cada
um elege uma pessoa para formar o departamento central. É o comité que executa as leis.
O que eles determinam tem de ser cumprido.
- Mas, e se eles não tiverem razão?
- Bem, a gente deixa de votar nele com a mesma facilidade com que o elegeu. Mas
eles têm feito coisas boas. Quer ouvir uma? Você conhece aqueles pregadores da seita dos
Holy Rollers (Pequena seita religiosa norte-americana, cujo culto se caracteriza pelo exagero da
excitabilidade.) que vivem a perseguir toda a gente com as suas orações e colectas, não
conhece? Pois bem. Um dia, eles quiseram pregar aqui no acampamento. Havia uma
porção de velhos que os queria ouvir. Então o comité teve de decidir. Fizeram uma sessão
e quer ver como resolveram o caso? Disseram assim: “Qualquer pregador pode pregar
neste acampamento. Mas nenhum pode fazer colectas.” Desde então, nenhum pregador
tornou a aparecer por cá. E os velhos ficaram tristes com isso.
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Tom riu.
- Você quer dizer - perguntou - que é gente daqui mesmo, como nós, quem
administra o acampamento?
- Pois claro! E corre tudo multo bem, graças a Deus.
- E não há nenhum polícia?
- Não. O comité central mantém a ordem e elabora o código E que deve regular a vida
no acampamento. Há ainda um comité senhoras. Elas amanhã irão visitar a sua mãe.
Cuidam das crianças e dos departamentos sanitários. Se a sua mãe não trabalhar, tem de
cuidar dos filhos das mulheres que trabalham. E, se ela encontrar trabalho, então serão as
outras quem tomará conta dos filhos dela. Fazem a costura e vem aqui uma professora
ensiná-las. Uma data de coisas assim.
- Então você diz que não há nenhum polícia no acampamento?
- Não, senhor. Nada disso. Aqui a polícia só entra com ordem especial.
- E se alguém se embriaga ou arma, em valentão e tenta brigar? Que é que acontece?
O guarda furou o mata-borrão com a ponta do lápis.
- Bem, a primeira vez é advertido pelo comité central. À segunda sofre uma
advertência grave e, à terceira, é expulso do acampamento.
- Meu Deus, quase que é inacreditável! Ainda a. noite passada, a polícia e uns tipos
que usavam bonés pequenos lançaram fogo àquele acampamento à beira do rio.
- Aqui não podem entrar - disse o guarda. - O que eles fazem às vezes é patrulhar do
lado de fora do acampamento. Principalmente quando há baile.
- Baile?! Meu Deus, será possível?
- Sim, senhor. Os melhores bailes da região são aqui, todos os sábados.
- Porque será que não existem mais sítios como este?
O guarda lançou-lhe um olhar sombrio.
- Bem, isso tem você de adivinhar. E agora é melhor ir dormir.
- Boa noite - disse Tom. - A minha mãe vai gostar disto. Há muito tempo que ela não
é tratada como deve ser.
- Boa noite - disse o guarda. - Agora trate de dormir. O pessoal aqui do
acampamento costuma acordar cedo.
Tom atravessou a rua formada por duas filas de tendas. Os seus olhos já se tinham
acostumado à luz das estrelas. Notou que as filas de tendas eram bem niveladas e que ao pé
delas não havia imundície. O chão da rua tinha sido varrido e regado. O ressonar dos que
dormiam vinha de dentro das tendas. O acampamento inteiro zumbia e ressonava. Tom
caminhava vagarosamente. Aproximou-se do departamento sanitário nº 4 e pôs-se a olhar
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com curiosidade. Era uma construção baixa, tosca e sem pintura. Num telheiro aberto dos
lados estavam os tanques em fileira. Tom notou o caminhão da família Joad, que
estacionava próximo, e para lá se dirigiu sem fazer barulho. A tenda já havia sido armada e
reinava um silêncio completo. Ao chegar mais perto, um vulto surgiu da sombra do camião
e dirigiu-se ao seu encontro.
- És tu, Tom? - perguntou a mãe em voz baixa.
- Sou.
- Chiu - fez ela. - Fala baixo, que estão todos a dormir. Estavam muito cansados.
- A senhora também devia estar já a dormir - disse Tom.
- Pois devia, mas eu queria falar contigo. Está tudo arranjado?
- Está, sim - disse Tom.- Mas agora não lhe vou contar nada. Amanhã de manhã
conto-lhe tudo. Garanto que vai gostar.
Ela sussurrou:
- Ouvi dizer que até têm água quente.
- Têm, sim. Mas agora trate de dormir. já nem me lembro quando é que a senhora
dormiu a última vez.
- O que é que tu não me queres dizer? - insistiu ela.
- Não digo. E melhor ir dormir agora. Subitamente, ela assumiu uns ares de menina
curiosa. - Como poderei dormir, a pensar no que tu me não queres dizer?
- Ora, deixe-se disso. A senhora vai dormir e amanhã veste outro vestido e então...
vai ver.
- Mas não vês que não posso dormir assim?
- Mas a senhora deve dormir - repetiu Tom, com uma risada feliz. - Trate de dormir.
- Boa noite - disse ela baixinho e, curvando-se, entrou na tenda às escuras.
Tom trepou para a prancha traseira do camião e apoiou a nuca nas mãos cruzadas,
encostando os antebraços às orelhas. A noite começava a tornar-se mais fria. Tom abotoou
o casaco no peito e tornou a deitar-se. As estrelas luziam claras, com um brilho agudo,
acima da sua cabeça.
Fazia escuro ainda quando ele acordou. Despertara-o, um leve ruído metálico. Agitou
os membros rígidos e o ar frio da madrugada causou-lhe um arrepio. O acampamento
dormia ainda. Tom levantou-se e lançou um olhar através dos taipais do camião. As
montanhas, a leste, surgiam, coloridas de azul-marinho. Enquanto as olhava, uma luz fraca
irrompia por detrás delas e tingia-lhes os rebordos de um vermelho desbotado. Depois,
subindo, a luz tornava-se mais fria, mais cinzenta e mais escura, até que, mais próximo do
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horizonte ocidental, se misturava com a noite pura. Em baixo, no vale, jazia a terra, que
parecia coberta de um cinzento de alfazema provocado pelo crepúsculo matinal.
Retinia ainda o ruído de ferros que se chocam. Tom olhava as tendas, cuja cor de
cinza era um pouco mais clara do que a do chão. Ã boca de uma das tendas, observou o
clarão alaranjado das chamas que se escapavam de um velho fogão de ferro. De um cano
curto saía uma fumarada cinzenta.
Tom saltou do caminhão. Devagar, dirigiu-se para o fogão. A trabalhar nele, viu uma
rapariga com um bebé num dos braços. O bebé mamava com a cabeça metida na blusa da
rapariga. Esta atiçou o lume, levantando as tampas enferrujadas, para avivar as chamas, e
abriu a porta do fogão. O bebé mamava sofregamente enquanto a mãe o passava com
destreza de um braço para o outro. O menino não a incomodava na sua tarefa, nem lhe
alterava a graça desenvolta dos movimentos. O fogo lançava agora labaredas vermelhas
pelas fendas do fogão e projectava reflexos cintilantes sobre a lona da tenda.
Tom aproximou-se mais. Sentiu o cheiro de presunto frito e de pão torrado. A leste,
a luz aumentava rapidamente de volume e extensão. Tom aproximou-se do fogão e
estendeu sobre ele uma das mãos. A rapariga olhou-o e acenou, ao mesmo tempo que as
suas tranças compridas se moviam levemente.
- Bom dia! - disse ela, virando o presunto na frigideira.
A lona da tenda abriu-se, surgindo um rapaz, seguido de um homem mais idoso.
Vestiam roupas novas de brim azul e nos seus casacos lustrosos brilhavam botões de latão.
Eram homens de feições duras, muito parecidos um com o outro. O mais moço tinha
barba escura e hirsuta e a do mais velho era branca e igualmente hirsuta. Tinham a cabeça e
o rosto húmidos. A água gotejava-lhes dos cabelos e havia gotas dela na barba de ambos.
As faces reluziam. Pararam ao mesmo tempo, olhando com tranquilidade o brilho pálido
da alvorada. Bocejaram simultaneamente, observando a claridade que emergia do rebordo
da montanha. Depois voltaram-se e viram Tom.
- Bom dia! - saudou o homem mais idoso, com uma expressão que não era nem
amigável nem hostil.
- Bom dia! - respondeu Tom.
- Bom dia! - disse o rapaz.
A água que lhes cobria o rosto secava vagarosamente. Os dois chegaram-se ao fogão
e começaram a aquecer as mãos.
A rapariga prosseguia na sua tarefa. Colocou o menino no chão e atou as compridas
tranças com uma fita. E as tranças bamboleavam e bailavam sempre que ela se movia. Pôs
canecas de folha-de-flandres num grande caixote e distribuiu pratos de folha, facas e garfos.
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Despejou numa travessa de folha o presunto, que nadava na banha borbulhante da
frigideira, onde rechinava e encolhia, à medida que se ia tostando. A moça escancarou a
porta do fogão ferrugento, para retirar dele uma panela cheia de empadas altas e compridas.
Quando o aroma das empadas inundou o ar, os dois homens puseram-se a aspirá-lo
profundamente. O rapaz disse em voz baixa:
- Céééus!
O mais velho voltou-se para Tom:
- Já tomou o pequeno almoço?
- Bem, ainda não. Eu estou aqui com a minha família, mas ainda estão todos a
dormir. Estavam muito cansados.
- Então faça-nos companhia. Há comida que chegue, graças a Deus.
- Muito obrigado - agradeceu Tom. - Isso deita um cheiro formidável. Não tenho
coragem de dizer que não.
- Bom cheiro, hein? - disse o rapaz. - Já sentiu alguma vez um cheiro tão bom?
Puseram-se em volta do caixote e acocoraram-se.
- Trabalha por aqui? - perguntou o rapaz.
- Não, mas vontade não me falta - disse Tom. - Chegámos ontem à noite. Ainda não
tive tempo de procurar.
- Pois a gente já trabalhou doze dias.
A rapariga, que se atarefava junto do fogão, interveio:
- Até roupa nova compraram.
Os dois homens olharam as roupas muito duras e muito azuis com um sorriso
acanhado. A rapariga poisou a travessa de presunto e as empadas loiras e altas com uma
tigelinha contendo a gordura do presunto e um bule de café, e acocorou-se também ao lado
deles. O bebé mamava ainda, com a cabeça escondida na blusa da mãe.
Encheram todos os respectivos pratos, derramando gordura de presunto sobre as
empadas e deitaram açúcar no café.
O homem mais idoso encheu a boca, mastigou e engoliu, dando estalos com a língua.
- Que bom, meu Deus! - disse, e tomou a encher a boca.
O rapaz voltou a falar:
- Já há doze dias que não nos falta comida. Estamos a trabalhar bem, recebemos o
nosso dinheiro e comemos todos os dias, sem falhar uma refeição.
Voltou a mastigar com entusiasmo quase frenético e tornou a encher o prato.
Tomaram o café bem quente, derramando a borra no chão e enchendo novamente as
respectivas canecas.
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A luz da madrugada ia adquirindo um brilho avermelhado. O pai e o filho pararam
de comer. Tinham o rosto voltado para leste e iluminado pelo clarão avermelhado. A
imagem da montanha coroada de luz reflectia-se-lhes nos olhos. Tornaram a derramar
borra de café no chão e ergueram-se ao mesmo tempo.
- Bom, a gente agora tem de ir - disse o mais velho.
O rapaz dirigiu-se a Tom:
- Ouça. A gente anda a colocar canos. Se você quer vir connosco, é possível que a
gente lhe arranje também trabalho por lá.
- Oh, é muita amabilidade da vossa parte! E muito obrigado pelo almoço.
- Não tem de quê - disse o mais velho. - Vamos a ver se conseguimos alguma coisa
para si, se tem empenho nisso.
- Lá vontade de trabalhar não me falta - disse Tom. - Esperem um instantinho; vou
só avisar a família. - Correu para a tenda dos Joads, e, curvando-se um pouco, olhou para
dentro.
Na obscuridade que reinava sob a lona não conseguiu enxergar senão o avultar das
formas das pessoas que ainda dormiam. Mas eis que alguém se movimentava agora entre as
roupas das camas. Era Ruthie, que se espreguiçava como uma serpente, com os cabelos
para os olhos. Estava vestida, com a roupa amarrotada e todo torcido em volta do corpo.
Arrastou-se cuidadosamente e depois levantou-se. Os seus olhos cinzentos brilhavam,
claros e calmos, após uma noite de sono. Não havia malícia neles. Tom afastou-se da tenda
e fez sinal para que a rapariguinha o seguisse.. Quando ele tornou a virar-se, ela olhou-o.
- Meu Deus! Tu estás uma raparigaça! - exclamou ele.
A pequena desviou o olhar, dominada por um repentino acanhamento.
- Ouve - disse-lhe Tom - não acordes ninguém, mas, quando eles acordarem, diz-lhes
que fui ver se arranjava trabalho para mim, ouviste? E diz à mãe que já almocei com uns
vizinhos. Estás a ouvir?
Ruthie disse que sim; virou a cabeça e os seus olhos eram uns olhos inocentes de
criança.
- Não acordes ninguém - tornou a recomendar Tom, e voltou a correr para junto dos
seus novos amigos.
Ruthie tinha-se aproximado cautelosamente do departamento sanitário e agora
espreitava para dentro da construção pela porta entreaberta.
Os dois homens aguardavam a volta de Tom. A rapariga tinha arrastado um colchão
para fora da tenda e colocara sobre ele o bebé, indo lavar a louça.
Tom disse:
321
- Quis avisar a minha gente do que ia fazer. Estavam todos a dormir ainda.
E os três homens desceram a rua formada pelas tendas.
O acampamento começava a animar-se. Em volta das fogueiras recém-acesas
trabalhavam mulheres, cortando a carne e sovando a massa do pão. Os homens
atarefavam-se junto das tendas e dos automóveis. O céu, agora, estava cor-de-rosa. Diante
do escritório, um velhote magro limpava cuidadosamente o chão com um ancinho. Atirava
com força o seu instrumento de trabalho, de maneira que os dentes ficavam marcados na
terra.
- Você hoje levantou-se cedo, hein, velhinho? - disse o rapaz, ao passar pelo homem
do ancinho.
- Então? Tenho de ganhar o dinheiro do aluguer.
- Qual aluguer, qual carapuça! - disse o rapaz. - Você estava bêbedo como o diabo no
sábado passado. Toda a noite cantou sentado na taberna. Foi por isso que o comité lhe deu
esse trabalho.
Iam andando à beira da estrada salpicada de óleo. Um renque de nogueiras crescia à
margem da estrada. Os contornos do sol surgiam no topo das montanhas.
Tom disse:
- É engraçado. Comi com vocês e nem lhes disse o meu nome e nem vocês me
disseram ainda como se chamavam. O meu nome é Tom Joad.
O homem mais velho olhou-o com um leve sorriso.
- Aposto que você está aqui há muito pouco tempo.
- Estou aqui há poucos dias.
- Pois claro. Eu tinha a certeza disso. Aqui passa-se uma coisa muito engraçada. A
gente perde o hábito de se apresentar. Há gente a mais. Bem, eu chamo-me Timothy
Wallace e este é o meu filho Wilkie.
- Muito prazer em conhecê-los - respondeu Tom. - Vocês estão aqui há muito
tempo?
- Há dez meses - disse Wilkie. - Chegámos aqui o ano passado, logo depois da cheia.
Livra! A gente passou por coisas que você nem pode imaginar. já estávamos quase a morrer
de fome.
Os pés deles batiam ruidosamente na estrada. Passou um caminhão repleto de
homens e cada um desses homens parecia terrivelmente absorto. Todos eles se agarravam a
um ponto qualquer do veículo e olhavam sombriamente diante de si.
- Vão para a Companhia do Gás - disse Timothy. - Estão lá muito bem empregados.
- A gente podia ter vindo no nosso caminhão - disse Tom.
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- Para quê?
Timothy ajoelhou-se e apanhou do chão uma noz verde. Experimentou-a com o
polegar e atirou-a na direcção de um melro pousado numa cerca. O pássaro levantou voo,
deixou que a noz tombasse abaixo dele e depois voltou a poisar no mesmo sítio, acamando
com o bico as penas lisas e brilhantes.
- Vocês não têm carro? - perguntou Tom.
Os dois Wallaces permaneceram calados e Tom, olhando-os no rosto, viu que se
sentiam envergonhados.
Wilkie disse:
- Não precisamos de carro. Daqui até ao sítio onde a gente trabalha é apenas uma
milha.
Timothy falou em voz alta, irritado:
- Não, a gente não tem carro. Vendemos o nosso. Teve de ser. já não tínhamos que
comer; não tínhamos nada. Não havia meio de arranjarmos trabalho. Por aqui passam
sempre todas as semanas uns tipos que querem comprar carros. Eles vêem quando nós
estamos cheios de fome e então compram os nossos carros. Quando a fome aperta muito,
levam um carro quase de graça. E... bem, a gente já estava cheia de fome. Vendemos o
carro por dez dólares. - E cuspiu para a estrada.
Wilkie disse tranquilamente:
- Estive a semana passada em Bakersfield. Vi-o no meio de uma porção de carros
usados. Sabe qual era o preço por que o tinham marcado? Setenta e cinco dólares!
- Era o único recurso que nos restava - explicou Timothy. - Ou a gente deixava que
eles nos roubassem o carro, ou era a gente que tinha de lhes roubar alguma coisa. Até
agora, nunca precisámos de roubar nada - caramba! - mas já estivemos bem perto disso.
Tom interveio:
- Sabe? Toda a gente afirmava que havia por aqui muito trabalho. Até andaram a
distribuir uns impressos onde diziam que precisavam de gente e que pagavam bem.
- Hum... - fez Timothy - nós também vimos esses impressos. Mas não há nada muito
trabalho. E os salários estão sempre a baixar. Estou farto até aos olhos de dar cabo da
cabeça para arranjar dinheiro para a comida.
- Mas vocês agora têm trabalho... disse Tom.
- Pois temos, mas não será por muito tempo. Trabalhamos para um tipo fixe. É dono
de umas terrazitas e trabalha ao nosso lado. Mas a coisa-raios! - não vai durar muito.
Tom perguntou:
323
- Mas então por que diabo vocês me levam ainda a mim para lá? Indo eu, o trabalho
acaba mais depressa. Vocês assim ficam prejudicados.
Timothy sacudiu lentamente a cabeça.
- Não sei porque é que a gente fez isso. E uma coisa que não faz sentido. A gente
queria comprar um chapéu novo para cada um de nós, mas agora acho que já não pode ser.
Olhe, o terreno é este aqui, à direita. O serviço é bem bom. Pagam trinta cents à hora. E o
sujeito para quem a gente trabalha é um tipo muito camarada.
Deixaram a estrada e tomaram por um caminho ensaibrado que atravessava uma
pequena horta. Por detrás das árvores, ia uma casinha pintada de branco, ladeada por
algumas árvores de sombra, e um barracão. Atrás deste estendia-se um parreiral e, logo a
seguir um campo de algodão. Ao passarem pela casinha branca, a porta abriu-se ruidosamente;
um homem robusto e queimado pelo sol desceu os degraus das traseiras. Trazia na
cabeça um carapuço de papel, para se proteger dos raios solares. Enrolava as mangas da
camisa ao atravessar o pátio. Os seus olhos ensombrados por grossas sobrancelhas,
queimadas de sol franziam-se mim jeito de mau humor. O rosto era vermelho como um
tomate.
- Bom dia, sr. Thomas - disse Timothy.
- Bom dia - respondeu o homem, num tom irritado.
Timothy apresentou:
- Este aqui é o Tom Joad. Talvez o senhor lhe possa dar trabalho.
Thomas fitou Tom com olhos sombrios. Depois, soltou uma curta risada, de
sobrolho ainda carregado.
- Oh, pois não! Naturalmente, posso dar-lhe trabalho! Posso dar trabalho a toda a
gente. Quem sabe se vocês ainda me trazem mais uns cem homens...
- Desculpe. A gente pensou... - começou a defender-se Timothy.
Thomas interrompeu-o:
- Sim, também eu pensei. - Virou-se com rapidez e encarou os homens. - Tenho que
lhes dizer uma coisa. Tenho pago trinta cents à hora, não tenho?
- Tem si, sr. Thomas, mas...
- Pois é. E, em troca, vocês faziam um trabalho que valia os trinta cents.
As suas mãos, grandes e calosas, batiam uma na outra.
- A gente tem-se esforçado...
- Eu sei, que diabo! Mas, de hoje em diante, só posso pagar vinte e cinco cents,
ouviram? Vocês aceitam ou largam, como quiserem. - O seu rosto encolerizado tornou-se
ainda mais vermelho.
324
Timothy respondeu:
Mas a gente trabalha a valer. O senhor mesmo disse isso, não disse?
- Disse, sim, senhor? Mas parece que já não sou eu que contrato os meus homens. -
Engoliu a saliva. - Olhem - disse. - Eu tenho aqui uns sessenta e cinco acres de terra. Vocês
já alguma vez ouviram falar da Associação dos Fazendeiros?
- Já, sim senhor.
- Pois bem. Eu sou sócio dessa coisa. Ontem à noite tivemos uma reunião. Vocês
sabem quem realmente dirige agora a Associação dos Fazendeiros? Pois vou dizer-lhes: é o
Banco do Oeste. Quase todo esse vale pertence ao banco, e o que ainda lhe não pertence
está-lhe hipotecado. Bom, ontem à noite, um dos gerentes do banco veio falar comigo e
disse-me assim: “Olhe, a gente soube que você paga trinta cents à hora. Acho melhor você
baixar isso para vinte e cinco.” E eu respondi: “Alas porquê? Eu tenho comigo uma gente
boa, muito trabalhadora. Valem bem trinta.” E ele disse: “Não se trata disso. É que toda a
gente paga a vinte e cinco. Se você pagar trinta, vai arranjar encrencas aos outros. E, por
falar nisso - acrescentou ele - você vai precisar para o ano que vem daquele empréstimo do
costume para as futuras colheitas, não vai?” - Thomas suspendeu a fala. Arfava de
indignação. - Estão a ver? Pois é isto. Passam a ganhar apenas vinte e cinco, e é se
quiserem.
- Mas a gente tem trabalhado como deve - disse Timothy atrapalhado.
- Você ainda não compreendeu a coisa? O banco dá trabalho a dois mil homens e eu
somente a três. E eu tenho a minha terra hipotecada ao banco. Se vocês vêem algum
remédio para esta situação, digam. Eu não vejo. Estou completamente bloqueado.
Timothy sacudiu a cabeça.
- Não vejo nada.
- Esperem um instantinho. - Thomas correu para dentro de casa. A porta fechou-se
com violência atrás dele. Regressou pouco depois, trazendo um jornal na mão.- Já viram
isto aqui? Vou ler-lhes: “Cidadãos, irritados com a acção dos agitadores vermelhos,
lançaram fogo a um acampamento de refugiados. A noite passada, um grupo de cidadãos,
enfurecidos pela agitação que se estava a desenvolver num campo de refugiados próximo,
lançou fogo a todas as suas tendas e expulsou os agitadores desta região.
Tom começou:
- Bem, eu... - Mas calou-se.
Thomas dobrou cuidadosamente o jornal e meteu-o no bolso. Conseguira dominar
os nervos. Disse tranquilamente:
325
- Esses homens foram mandados pela Associação. Denunciei-os agora. Se souberem
disto, para o ano que vem tiram-me a minha fazenda.
- Bem, palavra quê não sei o que hei-de dizer - murmurou Timothy. - Se ali havia
realmente agitadores, compreende-se que o pessoal se tivesse irritado.
- Já há tempos que ando a observar isto - disse Thomas. - Surgem sempre agitadores
quando se baixam os salários. É infalível. Não se pode fazer nada. Com os diabos! Esses
tipos dominam-nos por completo. Bom, vamos a ver. - Aceitamos vinte e cinco?
Timothy pôs os olhos no chão.
- Eu aceito - respondeu.
- Eu também - disse, por sua vez, Wilkie.
Tom disse, por fim:
- Parece que vim bater a má porta. Pois olhem, eu também aceitava os vinte e cinco.
Que é que se há-de fazer?
Thomas tirou do bolso um lenço grande de cor parda e enxugou com ele a boca e o
queixo.
- Não sei por quanto tempo isto poderá ainda aguentar-se. Não consigo
compreender como é que vocês conseguem alimentar as vossas famílias com tão pouco
dinheiro.
- Enquanto trabalhamos, sempre podemos. Quando não há trabalho, é que são elas! -
respondeu Wilkie.
Thomas consultou o relógio.
- Bom - disse - vamos começar a escavar este fosso. É verdade, vou contar-lhes uma
coisa. Vocês moram naquele acampamento do governo, não moram?
- Moramos sim - respondeu Timothy um pouco admirado.
- Há lá baile todos os sábados, não há?
Wilkie sorriu:
- Há, sim.
- Bom, então é conveniente vocês terem cautela para o sábado que vem.
Timothy retesou o corpo e aproximou-se de Thomas.
- Que é que o senhor quer dizer com isso? Eu faço parte do comité central. Preciso
de saber.
Thomas parecia preocupado.
- Mas não vá dizer a ninguém que fui eu que os informei, há?
- O que há? - perguntou Timothy.
326
- Bem, a associação não gosta lá muito desses acampamentos do governo, porque
não pode mandar a polícia intervir. E aquele pessoal faz as suas próprias leis – dizem - e
sem ordem de prisão não se pode prender ninguém ali dentro. Mas, se lá houvesse uma
briga forte, com tiroteio, etc., então a polícia poderia entrar e correr com todos do
acampamento para fora.
Timothy nem parecia o mesmo; tinha os ombros bem erguidos e os olhos frios.
- Bem, e então?
- Não digam a ninguém o que acabo de vos contar - pediu Thomas, inquieto. - Vai
haver barulho no acampamento, sábado que vem. E os polícias estão prontos a invadir o
recinto.
Tom perguntou:
- Mas, pelo amor de Deus, porquê? Aquela gente nunca fez mal a ninguém...
- Vou-lhes dizer porquê - começou Thomas. - Aquele pessoal do acampamento está
habituado a ser tratado como gente. E, se tiver de voltar para os acampamentos dos
“acocorados”, vai revoltar-se a valer. - Tornou a enxugar o rosto com o lenço. - Bem, agora
vão trabalhar. Meu Deus! Falei tanto que sou capaz de perder a minha fazenda. Mas que
hei-de fazer? Gosto de vocês e pronto.
Timothy dirigiu-se a ele e estendeu-lhe a mão endurecida e magra, que Thomas
apertou.
- Ninguém saberá quem nos informou, garanto-lhe. E muito obrigado. Não vai haver
briga nenhuma.
- Bom, agora tratem de trabalhar - disse Thomas - e por vinte e cinco a hora.
- Por vinte e cinco - respondeu Wilkie. - Sim, por ser para quem é.
Thomas dirigiu-se a casa.
- Eu volto já - disse. - Vocês podem começar. - A porta bateu atrás dele.
Os três homens começaram a andar, passando o pequeno barracão caiado, e ao
longo da margem de um campo. Chegaram a um fosso comprido e estreito, à beira do qual
havia alguns tubos de cimento armado.
- É aqui que a gente trabalha - informou Wilkie.
O velho tirou duas picaretas de dentro do barracão e depois mais três pás. E disse a
Tom:
- Aqui tem a sua menina.
Tom agarrou na picareta.
- Santo Deus! Sinto-me bem a valer com isto na mão.
327
- Espere pelas onze horas. Então é que eu quero ver se ainda se sente bem - atalhou
Wilkie.
Caminharam até à extremidade do fosso. Tom tirou o casaco e atirou-se para cima de
um monte de entulho. Depois, saltou para dentro do fosso. Cuspiu nas mãos. A picareta
subiu no ar e tombou pesadamente. Tom gemeu baixinho.
A picareta tornou a subir e a cair, e, no momento em que ela penetrava no solo,
desprendendo a terra, Tom tornou a gemer de satisfação.
- Veja, pai - observou Wilkie - temos aqui um trabalhador de alto lá com ele. Até
parece que está casado com aquela picaretazinha.
Tom respondeu:
- Levou tempo! (Hum!) Há anos que andava a suspirar por isto. (Hum!) Até que
enfim! (Hum!) O chão esboroava-se-lhe debaixo dos pés. O sol brilhava. agora nas árvores
frutíferas, e as folhas dos vinhedos tingiam-se de um verde dourado. Tom abriu uma faixa
de uns seis pés de comprimento; saltou para o lado e enxugou a testa. Wilkie veio pôr-se
detrás dele. A pá subia e descia, e a terra voava para cima e um montão que se formava à
beira do fosso em crescimento.
- Já me falaram desse comité central - declarou Tom. - Então você faz parte dele,
hein?
- Faço, sim - respondeu Timothy. - E é uma responsabilidade. Toda aquela gente...
Fazemos o que podemos e todo aquele pessoal, por sua vez, faz o que pode. Só queria que
esses grandes fazendeiros nos não chateassem tanto. Só queria isso.
Tom voltou ao seu trabalho dentro do fosso e Wilkie descansou um pouco. Tom
disse:
- E a aquilo da briga no sábado (hum!) no baile, aquela briga de que ele falou? (Hum!)
Para que é que eles fazem essas coisas?
Timothy seguia no rasto de Wilkie e a sua pá aplainava o fundo do fosso, tornando-o
apto a receber os tubos de cimento.
- Acho que eles querem correr connosco - disse Timothy. - Têm medo de que a
gente se organize - é o que me parece. E pode ser que tenham razão. O nosso
acampamento é uma organização perfeita. Cada um toma conta de si mesmo. Temos a
melhor orquestra de corda da região. Temos uma pequena conta corrente no armazém,
para poder fiar aos companheiros que não têm que comer. Por cinco dólares, pode-se
comprar comida suficiente e o acampamento fica sendo o fiador desses cinco dólares. A
gente nunca teve encrencas com a polícia. Acho e é por isso que os grandes fazendeiros
andam com medo. Não nos podem meter na cadeia; é por isso que ele andam com medo.
328
Pode ser que pensem que, já que nos governamos tão bem, possamos também fazer outras
coisas.
Tom saltou para a beira do fosso e enxugou o suor dos olhos.
- Vocês ouviram falar do que aquele jornal disse sobre os agitadores, lá no norte, em
Bakersfield?
- Claro que ouvimos - disse Wilkie. - Não se fala noutra coisa.
- Pois eu estava lá nessa altura. Não havia lá agitadores, isso a que chamam
vermelhos. Que diabo querem eles dizer com isso de vermelhos?
Timothy aplainou uma pequena saliência no fundo do fosso.
O sol punha-lhe fulgores na barba branca de pêlos eriçados.
- Há muita gente que quer saber o mesmo. - Riu. - Um dos nossos rapazes descobriu
a coisa. - Alisava a terra cuidadosamente com a pá. - Há aí um tipo que se chama Hines. É
dono de uns trinta mil acres de terra, com pêssegos e uvas, e tem uma fábrica de frutas e
um lagar. Bem, ele vive constantemente a gritar contra “os malvados dos vermelhos”.
“Esses vermelhos dos diabos levam o país à ruína”, diz ele. “A gente tem de os enxotar
daqui, a esses patifes desses vermelhos.” Bem, um outro tipo que acabava de chegar do
Oeste, ouviu a coisa. Coçou a cabeça e disse: “Olhe, sr. Hines, eu estou aqui há pouco
tempo. O senhor pode dizer-me quem são esses malvados desses vermelhos?” Bem,
rapazes, o Hines respondeu assim: “Um vermelho é um desses filhos da mãe que exigem
trinta cents à hora quando a gente só quer pagar vinte e cinco.” O rapaz ficou a pensar no
caso, coçou a cabeça e disse: “Olhe, sr. Hines, eu não sou nenhum filho da mãe, mas
também quero trinta cents à hora. Quem é que os não quer? Que diabo, sr. Hines, se assim
é, então toda a gente é vermelha.” - Timothy meteu a pá no fundo do fosso e a terra lisa
brilhou nos lugares cortados pelo instrumento.
Tom riu.
- Se assim é, também eu sou vermelho. - A sua picareta vibrou no ar e a terra estalou
debaixo dela com um baque surdo. O suor escorria-lhe pela testa e ao longo do nariz,
brilhando também no pescoço. - Caramba! - exclamou. - Que bela coisa é uma picareta!
(Hum!), quando a gente se sabe servir dela! (Hum!) O que é preciso é que o homem e a
picareta se entendam bem.
Os três homens trabalhavam em fila e o fosso ia-se alongando. O Sol brilhava com
intensidade sobre eles e espalhava calor, um calor que aumentava à medida que o dia
avançava.
329
Quando Tom a deixou, Ruthie ficou por alguns instantes a espreitar à entrada do
departamento sanitário. Não era muito corajosa quando Winfield não estava a seu lado e a
levava à gabarolice. Pôs um pé descalço no chão de cimento para em seguida o retirar. Na
rua das tendas, uma mulher surgiu e começou a acender o lume num fogão de campanha
feito de folha. Ruthie deu alguns passos na direcção da mulher, mas não podia deixar
aquilo. Esgueirou-se por fim até à tenda dos Joads e olhou para dentro. A um dos lados, o
tio John estava deitado no chão, de boca entreaberta, ressonando, com a garganta cheia de
roncos e de marulhos. O pai e a mãe, tapados com o mesmo cobertor, estavam mais
afastados da entrada e, portarito, da luz exterior. Al tinha-se deitado mais longe, do lado
oposto ao do tio John e tinha um braço a tapar-lhe os olhos. Rosa de Sharon e Winfield
estavam perto da entrada da tenda, e, ao lado de Winfield, cavava-se o vazio deixado por
Ruthie. Acocorou-se, continuando a olhar o interior da tenda. O seu olhar fixou-se na
cabeça cor de palha de Winfield. E, enquanto ela o observava, o pequeno abriu os olhos,
cravando nela um olhar sério, Ruthie pôs um dedo nos lábios, fazendo-lhe sinal com a
outra mão. Winfield lançou um olhar a Rosa de Sharon, que, a seu lado, dormia com a boca
entreaberta. Cautelosamente, Winfield ergueu um pouco o cobertor. Saiu de rastos,
subtilmente e aproximou-se de Ruthie.
- Quando te levantaste? - cochichou.
Ela fê-lo afastar-se da tenda com mil cuidados e, quando viu que estavam em
segurança, declarou:
- Não dormi toda a noite. Estive sempre a pé.
- Isso é que não estiveste! Sempre me saíste uma mentirosa de alto lá com um
charuto.
- Ai, sim? Então, se é mentira, não te conto nada. Não te conto como mataram um
homem com um punhal e como veio aqui um urso e levou uma criança.
- Qual urso, nem qual carapuça! - disse Winfield inquieto, penteando para trás, com
os dedos os cabelos e dando puxões entre pernas ao macaco que vestia, para o chegar ao
seu lugar.
- Então está bem. Não veio urso nenhum. Está bem - tornou ela, sarcástica. - E
também não é verdade que existem coisas de louça branca como as que a gente viu uma
vez nos catálogos.
Winfield olhou-a com gravidade. Apontou para o departamento sanitário.
- Ali dentro, hein?
- Não sei. Sou uma mentirosa de alto lá com um charuto. Para que é que eu hei-de
contar-te coisas?
330
- Vamos lá ver - propôs Winfield.
- Eu já lá estive - afirmou Ruthie. - Já me sentei em cima daquela louça e até mijei
nela.
- Tu não fizeste nada disso - contradisse Winfield.
Foram até às instalações sanitárias e, dessa vez, Ruthie não sentiu medo.
Corajosamente, conduziu o irmão até ao interior do departamento. As retretes seguiam-se
em fila a um lado da grande sala e cada uma delas formava um compartimento isolado e
tinha a sua porta. A porcelana branca rebrilhava. Na parede fronteira, corria uma fila de
Iavatórios, enquanto na terceira parede havia três compartimentos com chuveiros.
- Estás a ver? - disse Ruthie. - São as bacias que a gente viu naquele, catálogo. -
Aproximaram-se os dois de uma das bacias e Ruthie, num acesso de bravata, levantou a
saia e sentou-se nela. - Não te contei que já aqui estiveste.
Como para confirmar o que dizia, ouviu-se um murmúrio de água dentro da retrete.
Winfield ficou embaraçado. A mão dele movimentou a alavanca da água. A água
precipitou-se num tumulto. Ruthie deu um salto e saiu a correr. Um pouco afastados, ela e
Winfield ficaram-se a olhar o compartimento misterioso. O silvo da água correndo
persistia.
- Vês o que tu fizeste? - fez Ruthie. - Quebraste aquilo. Em bem vi.
- Não quebrei nada. Palavra de honra que não.
- Eu vi, sim - disse Ruthie. - Não se te pode mostrar nada bonito, que tu não tenhas
logo vontade de escangalhar tudo!
Winfield baixou a cabeça. Olhou para Ruthie, e os seus olhos encheram-se de
lágrimas. Tremia-lhe o queixo, e Ruthie arrependeu-se imediatamente.
- Não faz mal - disse ela. - Eu não digo nada a ninguém. A gente diz que aquilo já
estava quebrado. Não, é melhor dizermos que nem estivemos aqui.- Levou o irmão para
fora do departamento.
O Sol surgia agora no topo das montanhas e brilhava sobre os tectos de chapa
ondulada dos cinco departamentos sanitários que havia no acampamento. Lançava os seus
raios sobre a lona cinzenta das tendas e no chã o varrido da rua. O acampamento
despertava. O lume ardia nos fogareiros de campanha feitos de latas de querosene e de
chapas de ferro. O cheiro do fumo pairava no ar. Abriam-se as tendas e apareciam homens
nas ruas. Em frente da tenda dos Joads, a mãe olhava a rua para cima e para baixo. Os seus
olhos passeavam pela rua fora. Viu as crianças e dirigiu-se a elas.
- Já estava preocupada - disse a mãe. - Não sabia onde é que vocês estavam.
- Andámos a ver isto - respondeu Ruthie.
331
- Onde está o Tom? Tu não o viste?
Ruthie tomou um ar de importância.
- Vi, sim senhora. Tom acordou-me e disse-me para lhe dizer...- Fez uma pausa,
como querendo salientar a importância da futura revelação.
- Dizer-me o quê? - perguntou a mãe.
- Ele mandou-me dizer... - e Ruthie fez nova pausa, para que Winfield apreciasse
devidamente a sua posição de importância.
A mãe levantou a mão, ameaçando Ruthie:
- Fala...
- Arranjou trabalho - disse Ruthie com rapidez. - Foi trabalhar. - Olhou apreensiva a
mão erguida da mãe.
A mão baixou-se, estendendo-se depois para Ruthie. E a mãe cingiu a filha num
abraço apertado e convulsivo, soltando-a daí a pouco.
Embaraçada, Ruthie cravava os olhos no chão. E mudou de assunto.
- Mãe, a senhora já viu? Ali há umas bacias brancas, muito bonitas.
- Estiveste lá dentro? - perguntou a mãe.
- Sim. Eu e o Winfield - disse, acrescentando traiçoeiramente: - Mãe, o Winfield
quebrou uma daquelas bacias.
Winfield corou e olhou para Ruthie com raiva.
- E ela mijou na bacia - disse maldosamente.
A mãe sentia-se apreensiva.
- Que é que vocês andaram a fazer? Venham mostrar-me, andem! - Fê-los entrar no
departamento. - Que é que vocês fizeram? - perguntou.
Ruthie apontou com o dedo.
- Foi ali. Fazia che... che, mãe. Mas agora já parou.
- Mostra o que fizeste! - mandou a mãe.
Relutante, Winfield dirigiu-se para a bacia.
- Não puxei com força - disse. - Só agarrei naquilo e... A água tornou a cair com força
na retrete.
Winfield deu um salto para o lado.
A mãe riu, atirando a cabeça para trás. Ruthie e Winfield observavam-na, ressentidos.
- Mas é assim mesmo que isto funciona - explicou a mãe. - Eu já tinha visto isso.
Quando se acaba, puxa-se o botão.
Esmagava-os a vergonha de tamanha ignorância. Foram para a rua, observar a
refeição de uma família numerosa.
332
A mãe viu-os sair e depois olhou à sua volta. Dirigiu-se aos gabinetes dos chuveiros e
examinou-os. Foi até aos lavatórios e passou os dedos pela porcelana branca e lisa. Abriu
um pouco a torneira, estendendo o dedo para receber a corrente e sobressaltou-se quando
a água quente lhe correu para a mão. Ficou um instante a contemplar o lavatório. Depois,
colocou a válvula do lavatório, encheu metade com água quente e metade com água fria.
Lavou as mãos na água morna e, a seguir, lavou o rosto. Humedecia os cabelos com os
dedos quando ouviu o soar de passos no chão de cimento atrás de si. Virou-se
rapidamente. Um homem de idade olhava-a com ar escandalizado.
- Como entrou aqui? - perguntou. ele com indignação.
A mãe engoliu em seco. Sentia a água cair-lhe em pingos grossos pelo queixo e
molhar-lhe o vestido.
- Eu não sabia - defendeu-se. - Pensei que isto era para uso de todos.
O homem idoso encarou-a de sobrecenho carregado.
- É para homens - disse com severidade. Foi até à porta e apontou para um letreiro
em que estava escrito: HOMENS. - Aí tem a prova. Então não viu?
- Não - disse a mãe, envergonhada. - Ainda não tinha visto. Para onde devem ir as
mulheres?
A cólera do homem dissipou-se.
- A senhora acaba de chegar, não é? - perguntou, com mais afabilidade.
- Cheguei a meio da noite - respondeu a mãe.
- Então ainda não falou com o comité?
- Que comité?
- Ora, o comité das senhoras.
- Não, senhor. Ainda não falei.
Ele disse com visível orgulho:
- O comité há-de ir visitar a senhora daqui a pouco e dar-lhe todas as explicações. A
gente cuida das pessoas recém-chegadas o melhor que pode. Bem, se a senhora quiser ir ao
toilette das senhoras, tem de ir pelo outro lado do edifício. Aí é que é o das senhoras.
A mãe perguntou com, inquietação:
- O senhor disse que o comité das senhoras me vai visitar na minha tenda?
O homem inclinou a cabeça:
- Vai, sim. Não deve demorar.
- Muito obrigada - disse a mãe. E foi andando à pressa para a tenda.
- Pai! - gritou ela, mal chegou. - John, levantem-se, andem! Vão-se lavar!
Olhos sonolentos e estremunhados ergueram-se para ela.
333
- Vamos, todos! - clamou a mãe. - Levantem-se, lavem a cara e penteiem-se!
O tio John estava pálido e parecia doente. Tinha uma contusão vermelha no queixo.
O pai perguntou:
- Que houve?
- O comité! - gritou a mãe. - Vem aí um comité de senhoras visitar a gente.
Levantem-se e lavarem a cara. Enquanto a gente dormia e ressonava, o Tom saiu, arranjou
serviço e até já está a trabalhar. Vamos! Tratem de se levantar!
Deixaram a tenda, sonolentos. O tio John cambaleava um pouco e sentia o rosto
dorido.
- Vão ali àquela casa e lavem a cara - ordenou a mãe.
- A gente vai comer e depois põe-se à espera do comité. - Dirigiu-se para, junto de um
monte de lenha próximo da tenda; fez uma fogueira e foi buscar os utensílios de cozinha. -
Papas de milho com molho de toucinho - monologava ela - é uma coisa que se faz
depressa. A gente tem de se despachar. - E continuou monologando.
Ruthie e Winfield olhavam-na, admirados.
A fumarada das fogueiras pairava sobre o acampamento. Ouviam-se vozes por todos
os lados.
Rosa de Sharon, despenteada e ainda com os olhos cheios de sono, arrastou-se para
tora da tenda. A mãe ergueu os olhos da farinha de milho que media às mancheias. Notou
o vestido sujo e amarrotado da filha, o seu cabelo despenteado e todo emaranhado.
- Vai-te pôr mais decente - ordenou a mãe com severidade. - Aí em frente podes
lavar-te bem. Tens aí um vestido limpo, que eu lavei. E penteia-te. E tira-me essas remelas
dos olhos, anda! - A mãe parecia. excitada.
Rosa de Sharon respondeu, enfadada:
- Não me sinto bem. Quem me dera que o Connie tivesse vindo! Não me sinto capaz
de fazer nada sem o Connie.
A mãe virou-se completamente para ela. A farinha de milho, amarela, colara-se-lhe às
mãos e aos pulsos.
- Rosasharn - disse com severidade – vê se crias um pouco de coragem. Tu já
choramingaste o suficiente. Vem aí um comité de senhoras visitar-nos e a nossa família não
se pode apresentar assim suja, ouviste?
- Mas eu não me sinto bem, mãe. A mãe avançou alguns passos e estendeu as mãos
sujas de farinha.
- Vai imediatamente - ordenou. - Há ocasiões em que a gente guarda só para nós
aquilo que sente, compreendes?
334
- Vou vomitar - gemeu Rosa de Sharon. - Pois vomita tudo de uma vez. É natural
que tenhas vontade de vomitar. Acontece isso a todas nós. Vomita de uma vez e depois
trata de te arranjares. Lava os pés e calça os sapatos. - Tomou à sua tarefa. - E entrança esse
cabelo! - recomendou.
Na frigideira, a banha espirrava para o lume e, quando a mãe deitou nela uma
colherada de massa, a gordura deu um forte estalo e espirrou mais fortemente sobre o ume.
Numa cafeteira, ao lado, o café começou a transbordar e o seu aroma espalhou-se no ar.
O pai voltava do departamento sanitário; a mãe examinou-o com olhos críticos. O
pai perguntou:
- Tu disseste que o Tom arranjou trabalho?
Sim, senhor. E partiu antes de nós acordarmos. Bom, vai abrir aquele caixote e tira
de lá um fato-macaco limpo e uma camisa. Olha, eu estou muito ocupada. Vê se dás um
jeito às orelhas da Ruthie e do Winfield. Lá dentro há água quente. És capaz de me fazer
isso, és? Esfrega bem as orelhas das crianças e o pescoço também. Esfrega, até que brilhem
e fiquem vermelhos.
- Nunca te vi assim nervosa - comentou o pai.
A mãe gritou:
- Já é tempo de a família voltar a andar como deve. Durante a viagem era impossível,
mas agora pode muito bem ser. Deixa o teu fato sujo na tenda que eu, depois, o lavarei.
O pai entrou na tenda e voltou logo a seguir, vestindo um fato-macaco azul, bastante
desbotado, mas limpo, e uma camisa.
E levou as crianças tristonhas e inquietas até ao departamento sanitário.
A mãe gritou-lhe:
- Esfrega-lhes bem as orelhas!
O tio John deixou o departamento sanitário dos homens e olhou em volta. Depois,
tornou a entrar, sentou-se numa das retretes e quedou-se a pensar, por muito tempo,
encostando a cabeça dorida às mãos.
A mãe retirou do lume a frigideira que continha as papas loirinhas e estava a deitar
colheres de gordura para uma nova frigideirada, quando uma sombra se projectou sobre
ela. Olhou por cima do ombro. Um homem de baixa estatura ' inteiramente vestido de
branco, estava atrás dela. Era um homem de rosto magro @ vincado, queimado de sol, no
qual cintilavam uns olhinhos joviais. Era delgado como um palito. Tinha a roupa muito
limpa mas esfiampada nas costuras. Olhava para a mãe com um sorriso nos lábios.
- Bom dia - disse.
A mãe viu o fato branco e o seu rosto adquiriu uma expressão de desconfiança.
335
- Bom dia - respondeu.
- A senhora é que é a senhora Joad?
- Sou, sim, senhor.
- Bem, o meu nome é Jim Rawley. Sou o director do acampamento. Resolvi dar um
pulo até aqui, para ver se estava tudo em ordem. A senhora não precisa de nada?
A mãe olhava-o com desconfiança.
- Não, senhor - disse ela.
Rawley informou:
- Eu já estava a dormir quando a sua família chegou, ontem à noite. Ainda bem que
conseguiram uma vaga. - A voz dele era carinhosa.
A mãe disse com simplicidade:
- Aqui é tudo tão bonito! Principalmente os tanques de lavar a roupa.
- Espere que as mulheres comecem a lavar. Elas vêm daqui a pouco. Garanto que a
senhora nunca ouviu tanto barulho na sua vida. Parece um congresso. Sabe o que elas
fizeram ontem, senhora Joad? Resolveram cantar, cantar em coro. Cantaram um hino e,
enquanto cantavam, iam esfregando a roupa. Foi pena a senhora ter perdido esse
espectáculo.
A expressão de desconfiança ia desaparecendo do rosto da mãe.
- Deve ter sido bonito - disse ela. - Então o senhor é que é o chefe disto?
- Não - disse ele.- O pessoal faz todo o meu trabalho. Cuidam da limpeza do
acampamento, mantêm a ordem, fazem tudo, enfim. Nunca vi uma gente assim. Estão a
fazer roupas na sala das reuniões. E brinquedos. Nunca vi uma gente assim.
A mãe baixou os olhos para o vestido sujo.
- A gente ainda não pôde lavar-se convenientemente - disse. - Em viagem, a gente
suja-se muito.
- Ora, como se eu não soubesse disso! - foi a resposta dele. Pôs-se a cheirar. - Este
café que cheira tão bem é o que a senhora está a fazer?
A mãe sorriu:
- Cheira bem, não cheira? Assim, ao ar livre, tem bom cheiro. - E acrescentou com
orgulho. - Seria uma honra para nós - se o senhor quisesse almoçar connosco.
Ele acocorou-se ao lado da fogueira. Com esse gesto, quebrou-se a resistência final
da mãe.
- Seria um grande prazer para nós - continuou ela. - Não temos coisas muito finas,
mas o senhor será bem-vindo.
O homem sorriu.
336
- Já tomei o meu pequeno almoço, mas aceito uma xícara de café. Cheira tão bem!
- Pois não. Com muito prazer.
- Não há pressa.
A mãe deitou o café de uma grande lata para uma caneca de folha. E disse:
- Não temos ainda açúcar. Talvez hoje se arranje algum. Se o senhor está acostumado
a tomar o café com açúcar, não vai gostar.
- Mas eu tomo sempre o café sem açúcar - foi a resposta. - O açúcar estraga o paladar
do café.
- Bem, eu gosto do café um pouco doce - disse a mãe. Examinou-o súbita e silenciosamente,
surpresa com tão rápida intimidade. Devassou-lhe o rosto e não encontrou senão
traços de amabilidade. Notou-lhe as costuras do casaco branco no fio e sentiu-se
tranquilizada.
Ele sorvia o café.
- Acho que as senhoras não tardam a vir visitá-la.
- Mas a gente ainda não está limpa - disse a mãe.- Elas deviam vir depois de tudo
estar mais arranjado.
- Ora! Elas sabem como são essas coisas - tranquilizou-a o director. - Quando elas
aqui chegaram, aconteceu-lhes o mesmo. Pois claro. Se os comités aqui do acampamento
servem para alguma coisa é precisamente porque também já passaram por essas
dificuldades. - Tomou o resto do café e ergueu-se. - Bem, tenho de ir andando. Se a
senhora precisar de alguma coisa, é só dar um pulo até ao meu escritório. Estou sempre lá.
Mas que café formidável! Muito obrigado. - Colocou a caneca em cima. do caixote, ao pé
das outras, acenou com a mão e afastou-se, caminhando pela rua das tendas abaixo. A mãe
ouviu-o ainda conversar com outras pessoas, à medida que ia avançando.
A mãe, baixando a cabeça sobre o peito, lutou contra o irresistível desejo de chorar.
O pai regressava com as crianças, que tinham ainda os olhos humedecidos por causa
da dor que a esfrega das orelhas lhes havia causado. Pareciam muito submissas e brilhavam
de asseio. A pele do nariz de Winfield, queimada do sol, começava a levantar.
- Pronto - disse o pai - Tirei-lhes bem duas camadas de porcaria. Por pouco, ia
também a pele. Quase que tive de lhes chegar a roupa ao pêlo para os segurar.
A mãe examinou as crianças.
- Estão bem bonitos - disse. - Tenho ali papas de milho com molho para vocês.
Depois, vamos tirar tudo do caminho e arrumar as coisas lá dentro.
O pai encheu os pratos de folha das crianças e o seu também.
- Só queria saber como foi que o Tom arranjou trabalho.
337
- Não sei.
- Bem, se ele arranjou, também nós seremos capazes de o arranjar.
Al, muito excitado, regressava à tenda.
- Que sítio formidável! - exclamou. Serviu-se de papas e encheu a caneca de café. -
Sabem o que um tipo aí adiante está a fazer? Está a construir uma roulotte. Ali perto, atrás
daquela tenda. E a roulotte vai ter camas, fogão e tudo. Pode-se morar lá dentro. Meu Deus!
Aquilo é que é viver bem! A gente pode, parar em qualquer sítio, que está sempre como em
sua casa.
- Eu preferia uma casinha autêntica - disse a mãe. - Assim que for possível, vamos
tratar de arranjar uma casinha.
O pai interrompeu:
- Al, depois de termos comido, tu, eu e o tio John vamos, no caminhão, procurar
trabalho.
- Perfeitamente - respondeu Al. - Eu gostava de me empregar numa garagem, se é
que por aqui precisam de empregados. E um trabalho de que eu gosto. Podia ter um
Fordeco, mesmo desses pequenos e antigos. Pintava-o de amarelo e ia ver tudo por aí. Vi
uma pequena bem bonita, aqui na rua. Pisquei-lhe o olho. Mas que pequena formidável,
bonita como o diabo!
O pai comentou com severidade:
- E melhor tu tratares de trabalhar em vez de andares por aí a namoriscar.
O tio John saía do departamento sanitário e aproximava-se lentamente. A mãe olhouo
e franziu as sobrancelhas.
- Mas tu nem te lavaste - começou ela. Então, notou como o tio John estava abatido,
fraco e cheio de tristeza. Acho melhor tu ires para a tenda e deitares-te um pouco. Parece
que te sentes mal.
Ele sacudiu a cabeça.
- Não - respondeu. - Eu cometi um pecado, e agora tenho que receber o castigo. -
Acocorou-se num desespero mudo, e encheu a xícara de café.
A mãe retirou da frigideira as últimas papas e disse como casualmente:
- O director do acampamento esteve aqui e tomou café comigo.
O pai, lentamente, ergueu o olhar:
- Sim? Que é que ele queria já?
- Nada. Apenas passar o tempo – disse a mãe, com afectação. - Sentou-se aqui e
tomou uma caneca de café. Disse que nem sempre se encontrava um café tão bem feito.
- Mas o que é que ele queria? repetiu o pai.
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- Nada, já disse. Veio só para saber como é que a gente ia.
- Não acredito - volveu o pai. - Se calhar, veio por aí meter o nariz, farejar coisas...
- Nada disso - gritou a mãe, zangada. - A gente percebe logo quando alguém vem
para espiar. uma coisa que eu vejo à légua.
O pai derramou no chão a borra do café.
- Não faças isso, ouviste? - censurou a mãe. - Isto aqui é um lugar limpo.
- Pois é. Estou vendo que acaba por ser tão limpo que nem se pode viver aqui - disse
o pai, arreliado. - Avia-te, Al. Vamos ver se a gente arranja trabalho.
Al limpou a boca com a mão.
- Eu estou pronto - disse.
O pai voltou-se para o tio John:
- Tu não vens? – perguntou.
- Vou, sim.
- Não estás lá com muito boa cara.
- Não me sinto muito bem, mas quero ir com vocês.
Al trepou para o caminhão.
- Precisamos de gasolina - disse. Pôs o motor em movimento.
O pai e o tio John sentaram-se a seu lado e o veículo saiu, rodando rua abaixo.
A mãe seguiu-os com o olhar. Depois, pegou num balde e foi até aos tanques
instalados ao lado do departamento sanitário. Encheu o balde de água quente e levou-o
para a sua tenda. Ocupava-se da lavagem dos pratos e das canecas, quando Rosa de Sharon
apareceu.
- Pus a tua comida num prato - disse a mãe, examinando a filha com atenção. Os
cabelos, penteados, escorriam e a pele rosada reluzia. Trazia um vestido azul, estampado
com pequeninas flores brancas. Calçava os sapatos de salto alto que usara no dia do
casamento. Corou sob o olhar investigador da mãe.
- Tornaste banho. - observou ela.
As palavras brotaram rápidas da boca de Rosa de Sharon:
- Eu estava lá dentro quando entrou uma senhora e começou a tomar banho. A
senhora sabe como é que se faz? A gente entra numa coisa que parece um balcão, mas lá
dentro, dá-se volta a um rodinha e a água começa a cair em cima da gente. Água quente ou
fria, conforme a gente quiser. Eu vi como ela fazia e depois fiz o mesmo.
- Pois vou lá tomar banho também - exclamou a mãe. - Assim que acabar isto, vou lá.
Tu explicas-me como se faz.
339
- Pois sim - respondeu Rosa de Sharon. - Agora vou fazer o mesmo todos os dias.
Sabe, mãe, ela viu que eu estava de barriga e sabe o que me disse? Disse-me que vem aqui,
todas as semanas, uma enfermeira. E aconselhou-me a falar com essa enfermeira, que ela
vai indicar-me tudo o que eu devo fazer para o bebé nascer forte. Disse que todas as
senhoras daqui fazem o mesmo. E eu vou fazer o mesmo também. - As palavras brotavamlhe
precipitadamente dos lábios. - Sabe? A semana passada nasceu um bebé aqui e então
fizeram uma festa no acampamento. Toda a gente deu roupinhas e presentes ao bebé... até
um carrinho lhe deram, um carrinho de vime. Não era novo, mas pintaram-no de cor-derosa
e ficou como novo. Puseram nome ao bebé e fizeram um bolo. Oh, meu Jesus! -
exclamou ela, ofegante, acabando por se acalmar.
- Graças a Deus! Agora, sim. Estamos entre gente da nossa. Bem, vou tomar um
banho - disse a mãe.
- Que bom que isto é! - exclamou a rapariga.
A mãe enxugou os pratos de folha, colocando-os em pilha.
- Nós somos os Joads. Nunca baixámos a cabeça diante de ninguém. O avô do nosso
avô combateu na revolução. Era dono de uma fazendinha, até que ficou cheio de dívidas.
Então... então veio aquela gente! E transformaram-nos... De cada vez que eles vinham era
como se me chicoteassem. A mim e a todos nós. Depois, aquela polícia de Needles! Isso
também me fez mal. Sentia-me miserável, cheia de vergonha. Esta gente aqui é da nossa e o
director disto sentou-se aqui, tomou café comigo e disse: “Senhora Joad, isto... senhora
Joad, aquilo... Como vão as coisas, senhora Joad? - Calou-se e depois soltou um suspiro.-
Pois é isto, voltei a sentir-me gente. - Pôs o último prato na pilha. Entrou na tenda e
revolveu o caixote, à procura dos sapatos e de um vestido limpo. Encontrou também um
pequeno embrulho de papel com os brincos. E, quando passou pela filha, recomendou: -
Rosasharn, quando aquelas senhoras vierem, diz-lhes que volto não tarda nada. - E sumiuse
para os lados das instalações sanitárias.
Rosa de Sharon deixou-se cair pesadamente sobre um caixote, a contemplar os
sapatos que usara no dia do seu casamento, uns sapatos de verniz preto, de lacinhos da
mesma cor. Esfregou as biqueiras com os dedos e depois limpou-os ao avesso da saia.
Sentiu uma pressão no ventre ao curvar-se. Endireitou-se e apalpou o ventre com dedos
cautelosos. E sorria.
Uma mulher robusta atravessava a rua, carregando um caixote, cheio de roupa suja,
em direcção ao tanque. Tinha o rosto queimado do sol e os olhos eram negros e brilhantes.
Trazia um grande avental de linhagem por cima do vestido de chita e calçava sapatos de
340
homem, de cor castanha. Reparou em Rosa de Sharon, acariciando o ventre e notou o
sorriso no rosto da rapariga.
- Hein? - perguntou prazenteiramente. O que é que supõe que vai ter?
Rosa de Sharon corou e baixou os olhos. Depois, ergueu a cabeça e viu que os
olhitos negros e brilhantes da mulher a examinavam.
- Não sei... - murmurou ela.
A mulher colocou no chão o caixote da roupa suja.
- Tem aí um tumor vivo - disse, cacarejando como uma galinha satisfeita. - O que é
que preferia?
- Não sei... Acho que gostaria de ter um menino... sim... um menino, com certeza.
- Você chegou há pouco, não é verdade?
- Foi ontem à noite, irias já muito tarde.
- Vão ficar aqui mesmo?
- Não sei. Se houver por aqui trabalho, a gente fica.
Uma sombra cruzou o rosto da mulher e os seus olhitos adquiriram um brilho duro.
- Se houver trabalho... É só o que se ouve dizer.
- O meu irmão já arranjou. já está a trabalhar.
- Já encontrou trabalho, hein? Bom, talvez vocês sejam criaturas com sorte. Pois
tomem cuidado com a sorte. Não se pode ter confiança nela. - Foi-se aproximando. - Há
apenas uma espécie de felicidade. Mais nenhuma. O que é preciso é ter juízo. Juízo é que é
preciso - disse com ímpeto. - Mas, se você se der ao pecado, então, cautela com o bebé... -
Acocorou-se no chão, em frente de Rosa de Sharon. - Passam-se coisas escandalosas neste
acampamento - disse, sombria. - Há bailes todos os sábados e eles não dançam quadrilhas,
não! Dançam agarrados, como quem se abraça. Eu já os tenho visto.
Rosa de Sharon disse com reserva:
- Eu gosto de dançar as quadrilhas. - E acrescentou com ar virtuoso: - Nunca dancei
da outra maneira.
A mulher queimada do sol abanou a cabeça tristemente:
- Mas há gente que o faz. Mas Nosso Senhor não deixa passar essas coisas. Não,
senhora. Não pense que sim.
- Não, senhora - disse a rapariga com timidez.
A mulher colocou a mão morena e rugosa sobre o joelho de Rosa de Sharon. A
rapariga estremeceu àquele contacto.
- Deixe-me avisá-la. São muito poucos os que vivem aqui no acampamento que
amam Jesus de todo o coração. Aos sábados, à noite, quando a banda começa a tocar
341
aquelas músicas de dança em vez de escolher melodias sagradas, essa gente desata a
rodopiar, sim, senhor, a rodopiar... Eu bem os vejo. Mas não me chego lá nem permito que
os meus o façam. É uma coisa indecente, acredite. - Fez uma pausa enfática e prosseguiu,
num cochichar roufenho.- E não é só isso. Até peças representam. - Vergou o corpo para
trás, inclinando a cabeça, a ver o eleito que em Rosa de Sharon produzia aquela revelação.
- Artistas? - perguntou a rapariga, tomada de respeitoso medo.
- Não, senhora - explodiu a mulher. - Não são actores, essas criaturas já condenadas!
São gente daqui, gente da nossa. Até as crianças representam! Eu nem quis ver. Mas ouvios
contar o que iam fazer. É o demónio que anda à solta neste acampamento.
Rosa de Sharon escutava-a de olhos arregalados e de boca aberta.
- Na escola, uma vez, a gente representou uma peça sobre o Menino Jesus, no
Natal...
- Bem, isso era outra coisa. Uma peça sobre o Menino Jesus é outra coisa. Mas não
sei bem se mesmo isso se deve fazer. Mas o que eles fizeram aqui não foi nenhuma
representação do Natal. Foi um pecado, uma loucura, uma coisa do demónio. As pessoas
andavam a pavonear-se, a gabar-se, a mostrar aquilo que na realidade não são. E dançavam
agarrados uns aos outros, que era uma indecência!
Rosa de Sharon suspirou.
- E não eram poucos - continuou a mulher morena.- Hoje em dia, podem-se contar
pelos dedos são autênticos cordeiros do Senhor. Mas não pense você que eles vão escapar
ao castigo, não, senhora. Deus vai apontando os pecados; vai-os somando todos. Deus está
sempre a observar e eu também. Duas criaturas já pagaram os pecados que cometeram.
- Ah, sim? - perguntou Rosa de Sharon, palpitante.
A voz da mulher morena ia subindo de tom e de intensidade.
- Quer saber como foi? Era uma rapariga que estava à espera de um bebé, assim
como você. Também tomou parte na tal representação e começou também a dançar
daquela maneira indecente.- E a sua voz tornou-se fria e sinistra: - Ela começou a
emagrecer, a emagrecer... e o bebé, quando nasceu, nasceu morto.
- Meu Deus! - exclamou Rosa de Sharon, pálida como um espectro.
- Nasceu morto, todo ensanguentado. É claro, que, depois disso, ninguém mais lhe
falou. E ela teve de se ir embora daqui. Quem peca por vontade é assim que acaba. Sim,
senhora! E havia outra ainda que fazia a mesma coisa. Essa também começou a emagrecer
cada vez mais. E sabe o que aconteceu? Uma noite foi-se embora. Dois dias depois, estava
de volta. Disse que tinha ido visitar não sei quem... Mas, quando voltou... já vinha sem o
bebé. Sabe o que é que eu penso? Acho que o director a tirou daqui para ela ir fazer um
342
aborto. Ele não acredita no pecado. Disse-mo, a mim. Disse-me que pecado é ter fome e
sentir frio. Foi ele mesmo quem disse que nisso não via Deus, e que elas estavam magras
porque não tinham que comer. Mas eu respondi-lhe à letra.- A mulher ergueu-se e deu
alguns passos para trás. O olhar dela fuzilava. Apontou rigidamente o indicador na direcção
do rosto de Rosa de Sharon. - Eu respondi-lhe: “Saia de ao pé de mim! Eu já sabia que o
demónio andava à solta neste acampamento. Agora sei quem ele é. Saia, Satanás!” E, por
Deus, ele foi-se embora. E tremia... parecia um verme! Depois, pediu-me: “Por favor, não
faça as pessoas infelizes.” Infelizes? “E então as almas dessa gente? O que é que aconteceu
àqueles bebés que nasceram mortos e àquelas infelizes pecadoras que representavam no
teatro?” Ele ficou a olhar para mim, arreganhou os dentes, o malvado, e foi-se embora. Viu
que tinha encontrado uma verdadeira serva de Deus. E eu disse-lhe ainda: “Eu, aqui, ajudo
Jesus a ver o que se passa. E você e esses outros pecadores não hão-de escapar ao castigo”.
- Apanhou o caixote da roupa suja. - Tenha cuidado. Eu já a preveni. Cuidado com a
criança que traz na barriga; afaste-se do pecado! - E foi andando, titânica, com os olhos a
luzir, de virtude.
Rosa de Sharon acompanhou-a com o olhar. Baixou a cabeça e escondeu-a entre as
mãos, desatando a soluçar. Uma voz suave soou junto dela. Ergueu os olhos,
envergonhada. Era o director, pequeno, com o seu fato branco.
- Não lhe dê importância - disse ele - não se preocupe, minha filha.
Os olhos de Rosa de Sharon estavam cegos de lágrimas.
- Mas eu também fiz o que ela condena - choramingou. - Também já dancei assim.
Não quis confessar-lho, mas já fiz o mesmo. Foi em Sallisaw. Eu e o Connie.
- Ora. Não se preocupe com isso - disse o director.
- Mas ela assegura que eu vou perder o meu bebé...
- Eu sei que ela costuma dizer isso. Ando sempre com os olhos nela. É boa mulher,
mas tem a mania de fazer os outros infelizes.
Rosa de Sharon sorveu as lágrimas.
- Ela contou que conheceu duas raparigas que perderam os seus bebés neste
acampamento.
O director acocorou-se ao lado dela.
- Olhe - disse - eu também as conheci. O que elas tinham era muita fome e muito
cansaço. Trabalhavam demais. E viajavam aos solavancos sobre os buracos das estradas.
Estavam doentes. A culpa não foi delas.
- Mas ela disse...
- Não se incomode com o que ela disse. Ela gosta de semear o desassossego.
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- Mas ela afirmou que o senhor é o demónio.
- Eu sei que ela diz isso. É porque eu a não deixo andar a atormentar as pessoas. -
Fez-lhe uma festa no ombro. - Não se incomode. Ela não sabe o que faz. - E afastou-se
com ligeireza.
Rosa de Sharon acompanhou-o com o olhar. Os ombros estreitos do homenzinho
agitavam-se ao ritmo dos seus passos. Ela estava ainda a seguir-lhe o vulto delgado quando
a mãe voltou, limpa e corada, com os cabelos bem penteados e húmidos, presos atrás.
Trazia um vestido de ramagens e os velhos sapatos, todos gretados. Tinha também posto
os brincos nas orelhas.
- Pronto - disse a mãe. - Fiz como tu disseste. Meti-me debaixo do chuveiro e deixei
a água quente cair sobre mim. E estava lá uma senhora que me disse que a gente podia
fazer isso todos os dias se quisesse. E, olha, o comité das senhoras já veio?
- Hum... Hum... - respondeu a rapariga, fazendo um sinal negativo.
- Estiveste aqui este tempo todo e nem ao menos arrumaste a tenda.
Enquanto falava, a mãe pegou nos pratos de folha.
- Temos de pôr tudo em ordem - disse. - Vamos, anda. Pega nessa saca e varre com
ela o chão. - Recolheu os pratos, colocou as panelas no caixote e levou-o para a tenda. -
Faz as camas bem feitas! - ordenou. - Mas que bem que me fez aquela água quente!
Rosa de Sharon obedeceu com indiferença.
- A senhora acha que o Connie virá esta noite?
- Talvez sim e talvez não. Sei lá!
- Mas ele sabe onde a gente está, não sabe?
- Sabe, sim.
- Mãe, parece-lhe que o poderiam matar quando deitaram fogo ao acampamento?
- Não! - disse a mãe confiadamente. - Ele sabe mexer-se quando quer. É ligeiro que
nem um coelho e sabido que nem uma raposa.
- Quem me dera que ele viesse!
- Ora! Virá quando vier.
- Mãe..
- Eu queria era que tu trabalhasses.
- Sim, mas... Mãe, acha que é pecado a gente dançar e representar no teatro e que eu
por causa disso, posso ficar sem o meu bebé?
A mãe interrompeu a tarefa e pôs as mãos na cintura.
- Mas que conversa vem a ser essa? Tu nunca trabalhaste no teatro...
344
- Eu não. Mas aqui, no acampamento houve uma rapariga que o fez e o bebé nasceu
morto e cheio de sangue, como se fosse castigo.
A mãe tinha os olhos fitos nela.
- Quem foi que te disse isso?
- Foi uma mulher que passou por aqui. Depois passou aquele homem baixo, de fato
branco e afirmou que não tinha sido por causa disso.
A mãe franziu a testa.
- Rosasharn - disse ela - vê se deixas de te preocupar sempre contigo. Assim, ralas-te
e acabas por chorar. Não sei que bicho te mordeu. A nossa família nunca foi assim.
Aceitava de olhos secos tudo o que lhe acontecia. Aposto que foi o Connie quem te meteu
essas ideias na cabeça. Esse rapaz tem a mania das grandezas. - E prosseguiu com
severidade: - Rosasharn, tu és apenas uma pessoa, e, no mundo, há muita, muita gente.
Deixa-te estar no teu lugar. Conheço uma porção de gente a quem meteram na cabeça essa
história dos pecados e que acabaram por pensar que não valiam um chavo aos olhos do
Senhor.
- Mas, mãe...
- Cala a boca e agora vai trabalhar. Tu não és nem tão importante nem tão
insignificante que valha a pena incomodar o bom Deus com as tuas histórias. Eu acabo por
te dar uma bofetada se continuas a preocupar-te tanto com a tua pessoa. - Varreu a cinza
para dentro da cova do lume e varreu as pedras em volta. Então viu o comité a aproximar-se
na rua. - Vai trabalhar, anda! – disse - aí vêm as senhoras. Vai trabalhar, para eu poder
orgulhar-me de ti. - Não ergueu os olhos, mas sabia que o comité estava próximo.
Não poderia haver dúvida alguma de que era o comité: três senhoras muito limpas e
com os seus melhores vestidos; uma, magra, de cabelos que pareciam fios e de óculos de
aros de metal; outra, gorducha, de cabelos grisalhos e crespos com uma boca pequena, de
linhas suaves e doces, e a terceira, parecida com um mastodonte, de pernas e nádegas
excessivamente grossas, seios volumosos e musculosa como um cavalo de tiro. O seu andar
era o de uma pessoa segura de si. O comité atravessou a rua cheio de dignidade.
A mãe achava-se propositadamente de costas para elas, como se estivesse distraída.
Elas pararam, rodaram e ficaram em fila. E a mais gorda fez-se ouvir primeiro numa voz
estrondosa:
- Bom dia, a senhora é que é a senhora Joad, não é verdade?
A mãe voltou-se com rapidez, como se tivesse sido apanhada de surpresa.
- O quê? Ali, sim, sou eu. Como é que a senhora sabe o meu nome?
345
- Nós somos do comité - respondeu a mulher alta. - Somos o comité das senhoras do
departamento sanitário nº 4. Soubemos o seu nome no escritório.
A mãe disse, confusa:
- Ainda não estamos muito apresentáveis. Seria um grande prazer para mim se as
senhoras pudessem sentar-se um bocadinho enquanto eu lhes fazia um pouco de café.
A gorducha do comité atalhou:
- Mas, Jessie, apresente-nos também à senhora Joad. Jessie é a presidente - explicou.
Jessie disse cerimoniosamente:
- Senhora Joad; esta aqui é Annie Littlefield; esta é Ella Summers e eu chamo-me
Jessie Bullitt.
- Muito prazer em conhecê-las - respondeu a mãe. - Não querem sentar-se? Aliás
ainda não há lugar para se sentarem - acrescentou - mas vou já fazer um cafèzinho.
- Não, não - disse Annie - não se incomode connosco. Nós demos um pulo até aqui
apenas para a cumprimentar e ver como vai. Queremos que a senhora se sinta aqui
plenamente à vontade.
Jessie Bullitt observou com severidade:
- Annie, agradecia-lhe que se não esquecesse de que a presidente sou eu.
- Pois, não. Eu sei. Mas, para a semana que vem, sou eu.
- Pois então, espere até à semana que vem. A gente reveza-se todas as semanas -
explicou.
- Mas não tomam um cafèzinho? - perguntou a mãe embaraçada.
- Não, muito obrigada. - Jessie voltou a exercer a sua autoridade. - Primeiro,
queremos mostrar-lhe o que há no departamento sanitário, e, depois, se a senhora quiser,
pode entrar para o clube das senhoras e assumir um cargo qualquer. Claro que não é
obrigada a entrar para o clube.
- Isso custa muito caro?
- Não custa nada. Apenas é preciso trabalhar um bocadito. E, quando a senhora for
mais conhecida, até pode ser eleita para o comité - interrompeu Annie. - Jessie representa no
comité o acampamento inteiro. É pessoa importante no comité.
Jessie sorriu com orgulho.
- Fui eleita por unanimidade - disse. - Bem, senhora Joad, acho que é altura de lhe
mostrarmos como são as coisas aqui no acampamento.
A mãe interrompeu:
- Esta é a minha filha, Rosasharn.
- Muito prazer - disseram as senhoras do comité.
346
- É melhor ela vir também connosco.
A enorme Jessie falou novamente; tinha um ar misto de dignidade e de benevolência.
O seu discurso tinha o ar de ensaiado.
- Não pense que a gente se quer meter na sua vida, senhora Joad. Neste
acampamento há uma porção de coisas que são de uso colectivo. E nós temos leis feitas
por nós mesmas. Bem, vamos até ao departamento. E uma das coisas de uso colectivo. Por
isso, todos nós ternos de cuidar dele. - Foram andando vagarosamente até à secção dos
tanques de lavar roupa, que eram em número de vinte. Oito estavam ocupados. As
mulheres debruçavam-se sobre eles, a esfregar roupa suja, e, no chão muito limpo, de
cimento, havia pilhas de peças de roupa torcidas. - A senhora pode servir-se desses tanques
quando quiser - disse Jessie. - A única obrigação que tem é deixá-los limpos.
As mulheres ergueram as cabeças num movimento de curiosidade. Jessie informou
em voz alta:
- Estas são as senhoras Joad e Rosasharn. Vieram morar aqui, connosco.
As mulheres cumprimentaram a mãe, em coro, e a mãe fez uma pequena reverência
desajeitada e disse:
- Muito prazer em conhecê-las.
Jessie foi adiante do comité até aos toilettes e chuveiros.
- Já aqui estive - disse a mãe.- Até tomei um banho.
- Fez muito bem. É para isso que eles aqui estão - volveu Jessie. - E o regulamento
aqui é o mesmo: deixar tudo muito limpo. Todas as semanas se organiza um comité que está
encarregue de lavar e de esfregar bem o chão todos os dias. E possível que a senhora
também entre nesse comité. Cada uma de nós trás o sabão.
- Temos de comprar sabão. Estamos sem nenhum - disse a mãe.
A voz de Jessie tornou-se quase reverente:
- A senhora já se tinha servido de uma coisa assim? - perguntou, apontando para os
usos sanitários.
- Já, sim senhora. Ainda hoje de manhã.
Jessie suspirou:
- Bom, então está bem.
Ella Summers disse:
- A semana passada...
Jessie interrompeu-a, com severidade:
- Senhora Summers, eu é que conto...
A outra cedeu:
347
- Perfeitamente.
Jessie continuou:
- A semana passada, quando a senhora era a presidente, eu não me metia nas suas
explicações.
- Pois sim, mas conte o que aquela senhora fez - volveu Ella.
- Bem - disse Jessie. - Não é costume deste comité meter-se em mexericos, mas eu vou
contar a coisa, sem citar nomes. A semana passada chegou ao acampamento uma senhora,
e veio aqui antes que o comité lhe tivesse feito uma visita. Pois bem, ela pegou nas calças do
marido; pô-las de molho na bacia da retrete e disse: - Livra! Mas isto é muito baixinho.
Deviam fazer isto mais alto; a gente fica com as costas doridas de tanto se curvar. Porque é
que não teriam feito isto mais alto? - O comité sorriu com um sorriso de superioridade.
Ella interrompeu de novo:
- E a tal mulher ainda disse mais. Disse assim: “Não dá para se pôr muita roupa suja
de uma vez; é muito pequena.”
Ella teve de enfrentar o olhar severo de Jessie.
Esta prosseguiu:
- Também temos os nossos aborrecimentos com o papel higiénico. O regulamento
diz que ninguém pode tirar o papel higiénico daqui.- Deu um estalo agudo com a língua. -
Todo o acampamento contribui para a compra do papel higiénico. - Calou-se por um
instante, para confessar depois:- O nº 4 está a gastar papel higiénico demais. Alguém o
rouba pela certa. Até na assembleia geral das senhoras, se discutiu o assunto. “O
departamento nº 4 das senhoras gasta demasiado papel higiénico.” disseram. Imagine! Na
assembleia geral!
A mãe seguiu a narrativa com a respiração em suspenso.
- Roubam o papel? Porquê? - perguntou.
- Bem - disse Jessie - não é a primeira vez que isso acontece. Da outra vez, eram três
meninas que tiravam o papel para fazer bonecas. Apanhámo-las em flagrante. Mas agora
não podemos imaginar quem seja. Mal se coloca um rolo, logo se gasta. Imagine, até na
assembleia tiveram de falar no caso! Uma senhora disse que a gente devia arranjar uma
campainhazinha para tocar cada vez que o rolo de papel girasse. Assim, a gente poderia
fiscalizar o papel que se gastava. - Sacudiu a cabeça. - Mas, francamente, não sei o que heide
fazer. Andei preocupada com isso toda a semana. Alguém rouba o papel higiénico do nº
4.
Da porta veio uma voz chorosa:
- Senhora Bullit!
348
O comité voltou-se.
- Senhora Bullit, eu ouvi o que a senhora disse. - Uma mulher muito corada e cheia
de suor apareceu à porta. - Não tive coragem de ir denunciar-me à assembleia. Não tive
coragem, senhora Bullitt. Iam rir-se de mim.
- De que é que a senhora está a falar? - perguntou Jessie.
- Pois é... nós todas... pode ser que seja a gente. Mas nós não roubámos nada, não,
senhora Bullitt.
Jessie aproximou-se dela. O suor caía em grandes bagas da testa da mulher cheia de
confusão.
- Não ternos culpa, senhora Bullitt.
- Diga de uma vez o que tem a dizer - ordenou Jessie. - Esta secção tem passado uma
vergonha por causa da falta do papel higiénico.
- Toda a semana... Não tivemos culpa... senhora Bullitt. A senhora bem sabe que eu
tenho cinco filhas.
- Sei, e que é que elas fizeram? - perguntou Jessie com voz ameaçadora.
- Não fizeram nada. Apenas se serviram do papel. É a verdade, verdadinha.
- Mas não tinham esse direito. Quatro a cinco folhas é o suficiente. Que é que elas
têm?
A mulher guinchou:
- Era diarreia, senhora Bullitt. Todas as cinco com diarreia. Nós estamos mal de
dinheiro. Comeram uvas verdes. Apanharam uma diarreia terrível. Tinham de correr para
aqui de dez em dez minutos. - Começou a defender as filhas: - Mas não roubavam o papel,
não, senhora.
Jessie suspirou:
- A senhora já devia ter contado tudo isso. Devia ter dito.
O nosso departamento passou por uma vergonha, só porque a senhora não disse
nada. Diarreia, toda a gente pode ter.
A voz humilde ganiu:
- Que é que eu havia de fazer? Não pude impedir que comessem uvas verdes. E cada
vez é pior.
Ella Summers explodiu:
- Mas, e o auxílio? Elas deviam receber o auxílio!
- Senhora Summers - atalhou Jessie - aviso-a pela última vez: a presidente não é a
senhora, sou eu. - Voltou-se para a mulher, toda assustada e vermelha. - A senhora não tem
dinheiro, senhora Joyce?
349
A mulher baixou os olhos, envergonhada.
- Não, senhora. Mas com certeza que brevemente encontraremos trabalho.
- Não se incomode com isso - disse Jessie.- Não é nenhum crime. A senhora vai
daqui direitinha ao armazém de Weedpatch comprar artigos de mercearia. O acampamento
tem lá um crédito até vinte dólares. A senhora pode fazer compras no valor de vinte
dólares. Depois, quando arranjar trabalho, devolve esse dinheiro ao comité central. Mas,
senhora Joyce, a senhora sabia isto; como é que teve coragem de deixar as suas filhas
passarem fome?!
- A gente nunca aceitou esmolas - disse a senhora Joyce.
- A senhora bem sabe que isto não é uma esmola - gritou Jessie, enfurecida. - Neste
acampamento não há esmolas. Nenhum de nós as aceitaria. Bem, agora, a senhora trate de
ir ao armazém fazer as suas compras. Traga a nota e entregue-ma.
A senhora Joyce replicou com timidez:
- Mas, e se a gente nunca mais estiver em condições de pagar? Há muito tempo que a
gente não tem trabalho...
- A senhora só paga se puder. Se não puder, isso não é da minha conta nem da sua.
Houve um homem que deixou este acampamento já há mais de dois meses e agora
mandou-nos o dinheiro que ficou a dever. A senhora não tem o direito de deixar as suas
filhinhas passarem fome neste acampamento.
- Sim, senhora - respondeu, submetida, a senhora Joyce.
E apressou-se a desaparecer.
Jessie, toda encolerizada, dirigiu-se ao comité:
- Ela não tem o direito de se fazer fina. Não tem o direito de nos fazer uma coisa
destas.
- Está aqui há muito pouco tempo. Pode ser que não soubesse - disse Annie
Littlefield. - Talvez que já lhe tivesse acontecido dirigir-se a uma organização de
beneficência. Não, Jessie, não me mande calar agora. Também tenho o direito de falar. -
Dirigiu-se à mãe. - Quando se recorre alguma vez à caridade, abre-se dentro de nós uma
ferida que não sara nunca. Aqui não há esmolas, mas, quando alguma vez se foi forçado a
aceitar uma esmola, nunca mais a gente esquece. Aposto que nunca lhe aconteceu isso,
Jessie.
- Não, nunca - disse Jessie.
- Bem, a mim já me aconteceu - continuou Annie. - Foi no Inverno passado. A gente
já estava quase a morrer de fome. Eu, meu marido e as crianças. E chovia. Alguém nos
aconselhou a procurar o Exército de Salvação. - O seu olhar fuzilou. - A gente estava com
350
muita fome; foi preciso pormo-nos de rojo para termos que comer. Acabaram com toda a
nossa dignidade aqueles... tenho um ódio àquela gente que nem sei! Pode ser que à senhora
Joyce também tenha acontecido qualquer coisa assim. Pode ser que ela pensasse que o que
se dava aqui também era uma esmola. Senhora Joad, nós não consentimos isso no nosso
acampamento. Não permitimos que ninguém dê seja o que for a outra pessoa. Quem
quiser, pode fazer as suas ofertas ao acampamento, que, depois, o comité encarrega-se de
distribuir tudo. Não queremos aqui esmolas. - A sua voz tornou-se rouca e violenta.- Odeio
aquela gente - disse. - Nunca vi o meu marido tão humilhado, mas eles... o Exército de
Salvação conseguiu desmoralizá-lo.
- Já ouvi falar nisso - murmurou brandamente. - Já, já. Bom, temos de continuar a
nossa volta com a senhora Joad.
- Aqui é tudo tão bonito! - exclamou a mãe.
- Vamos à sala de costura - sugeriu Annie. - Há lá duas máquinas de costura. Fazemse
lá vestidos e arranjam-se os cobertores. Talvez a senhora venha a gostar de trabalhar lá.
Quando o comité chegara de visita à mãe, Ruthie e Winfield puseram-se sorrateiramente
fora de alcance.
- E se nós fôssemos ouvir o que elas dizem? - propôs Winfield. Ruthie segurou-lhe o
braço.
- Não - respondeu ela - por causa dessas filhas da mãe é que a gente teve de se lavar.
Não, quero ir.
Winfield ameaçou:
- Tu contaste aquilo da retrete à mãe. Pois agora, vou dizer-lhe o que chamaste
àquelas senhoras.
Uma sombra de medo cobriu o rosto de Ruthie.
- Não faças isso. Eu contei porque sabia que tu não tinhas quebrado coisa nenhuma.
- Isso é que tu não sabias! - gritou Winfield.
Ruthie continuou:
- Vou dar uma volta por aí.
Foram caminhando pela rua formada pelas tendas e espreitando para dentro de
todas, com um ar atoleimado e estranho. Ao fim do departamento, abria-se uma praça,
onde haviam traçado uma marcação de “croquet”. Meia dúzia de crianças brincava, com ar
de seriedade, na praça. Diante de uma tenda, uma senhora de idade, sentada num banco,
tomava conta delas. Ruthie e Winfield apressaram o passo.
351
- A gente pode brincar também? - perguntou Ruthie.
As crianças olharam para ela. Uma menina de tranças disse:
- Na outra partida já podem entrar.
- Mas eu quero entrar já! - gritou Ruthie.
- Agora não pode. Só quando terminar a partida. Ruthie saltou para cima da
marcação, com modos ameaçadores.
- Mas eu quero brincar já, pronto!
A menina das tranças segurava o martelo com firmeza. Ruthie saltou-lhe em cima,
esbofeteou-a, empurrou-a e arrebatou-lhe o martelo das mãos.
- Eu não disse que ia brincar? - perguntou triunfalmente.
A senhora de idade levantou-se do banco. Ruthie encarou-a com ar sombrio. A
senhora disse:
- Deixem-na brincar corno fizeram com o Ralph a semana passada.
Todas as crianças puseram os martelos no chão e deixaram silenciosamente o recinto.
Mantiveram-se a distância, a olhar com os olhos parados, inexpressivos. Ruthie lançou-lhes
um olhar. Depois, deu com o martelo numa bola e correu atrás dela.
- Vem cá, Winfield! - gritou ela. - Arranja um martelo. Mas logo se pôs a olhar, cheia
de espanto.
Winfield tinha-se juntado às crianças que, afastadas, observavam Ruthie, e também
ele a olhava com olhos igualmente inexpressivos.
Teimosa, Ruthie deu outra pancada na bola, levantando grande nuvem de poeira.
Fingiu que se divertia extraordinariamente. E as crianças continuavam a ficar de lado, a
observar. Ruthie juntou duas bolas e bateu-as simultaneamente. Virou as costas aos olhos
que a observavam e não tornou a voltar-se. De repente, avançou para elas com o martelo
na mão.
- Agora venham brincar! - exigiu.
As crianças afastavam-se silenciosamente, à medida que ela se ia aproximando. Por
um instante cravou os olhos nelas; depois, atirou o martelo de pau ao chão e correu para a
sua tenda, a chorar. As crianças voltaram então para o campo de jogo.
A menina das tranças disse a Winfield:
- Tu podes entrar na partida.
A vigilante advertiu-as:
- Se ela quiser voltar e se portar bem, vocês deixam-na entrar no jogo. Tu também
eras assim mazinha, lembras-te, Amy?
352
O jogo continuou, enquanto Ruthie na tenda da família Joad, chorava, sentindo-se
profundamente infeliz.
O camião rodava por bonitas estradas, passando por pomares, onde os pêssegos
começavam a tingir-se de cor-de-rosa, por parreiras de cachos de uvas de um verde pálido,
sob renques de nogueiras, cujos ramos se debruçavam até meio da estrada. Em cada portão
de pomar, Al diminuía a marcha do camião. Em cada portão, havia o seguinte aviso: “Não
temos necessidade de trabalhadores. Entrada proibida”.
Al disse:
- Mas, olhe, pai, há-de haver trabalho quando essas frutas estiverem maduras. É um
sítio bem apanhado este. Antes que a gente lhes pergunte, eles já vão avisando que não há
trabalho.
O pai retorquiu:
- Quem sabe? Talvez fosse melhor a gente entrar num sítio qualquer e perguntar se
sabem onde há trabalho. Acho que era o que a gente devia fazer.
Um homem de fato-macaco e camisa azuis ia caminhando à beira da estrada.
Al parou o camião junto dele.
- Faz favor... Pode-me informar onde é que há trabalho por aqui? - perguntou.
O homem parou e sorriu com amargura. Faltavam-lhe os dentes da frente.
- Eu não sei - respondeu. - O senhor sabe? Andei por aqui toda a semana e não
consegui arranjar coisa nenhuma.
- O senhor mora no acampamento do governo? - perguntou Al.
- Moro, sim.
- Então venha daí. Suba para o camião e vamos procurar trabalho juntos.
O homem subiu por um dos lados de veículo e saltou para dentro.
- Tenho a impressão de que não conseguimos arranjar trabalho nenhum. Pois, se
nem sabemos onde o procurar! - disse o pai.
- A gente devia ter falado com aquela gente do acampamento - observou Al. - Tio
John, o senhor está melhor?
- Estou mal - respondeu o tio John - dói-me tudo e é bem feito. Eu devia ir-me
embora para um sítio onde não fizesse recair sobre a família o peso dos meus pecados.
O pai colocou a mão sobre o joelho do tio John.
- Escuta, John, tu não te vais embora nem coisa nenhuma. A família tem-se ido
desfazendo. O avô e a avó morreram, Noah e Connie fugiram e o pregador foi preso.
353
- Tenho um palpite de que a gente ainda vai encontrar o Casy - disse o tio John.
Os dedos de Al brincavam com a bola da ponta da alavanca de mudanças.
- O senhor está muito mal para ter palpites - disse. - O diabo leve tudo isto. É
melhor a gente voltar, falar lá no acampamento e saber onde devemos procurar trabalho.
Isto assim é o mesmo que procurar agulha em palheiro. - Fez parar o veículo, debruçou-se
para fora e gritou para trás: - Olhe aqui, ó! Vamos voltar para o acampamento, para
sabermos onde é que há trabalho por aqui. Não vale a pena gastar gasolina à toa.
O homem debruçou-se por cima do taipal da carrosserie.
- Está bem - concordou. - Eu já tenho os presuntos gastos de tanto calcorrear. E
ainda não comi nada hoje.
Al deu a volta no meio da estrada, para regressar ao acampamento.
- A mãe vai ficar danada, principalmente por o Tom ter arranjado trabalho com tanta
facilidade e a gente não - disse o pai.
- Pode ser que ele afinal não tivesse arranjado - respondeu Al. – Talvez tenha saído
para procurar trabalho, como nós. Eu só queria era achar emprego numa garagem. Ia
aprender depressa as coisas porque gosto deste trabalho.
O pai resmungou qualquer coisa; depois todos se mantiveram silenciosos até
chegarem, ao acampamento.
Quando o comité a deixou, a mãe sentou-se num caixote, diante da tenda dos Joads,
olhando para Rosa de Sharon com uma expressão acanhada.
- Pois é isto - disse. - Sim, senhora; há muito tempo que não era assim tão bem
tratada. Aquelas senhoras foram muito gentis, não achas?
- Tenho de ir trabalhar para a enfermaria - atalhou Rosasharn - disseram elas. - É da
maneira que fico a saber tudo o que diz respeito aos bebés...
A mãe abanou a cabeça, com ar de quem se encontrava .maravilhada.
- Que bom se a gente encontrasse trabalho e entrasse algum dinheiro! - Os seus
olhos perdiam-se distantes. - Se eles trabalhassem e nós fizéssemos o mesmo aqui, com
esta gente tão boa, ao pé... Logo que puder, compro um fogãozinho bonito. Não são nada
caros. Depois, a gente comprava uma tenda maior, com espaço suficiente. E depois
arranjávamos colchões. Esta tenda ficava só para a gente dormir. Sabes? Vamos ao baile no
sábado à noite. Dizem que a gente pode levar pessoas amigas se quiser. Que pena não
termos amigos para convidar, não achas? Talvez os homens tenham a quem convidar...
Rosa de Sharon olhou rua abaixo.
354
- Olhe, aquela mulher disse que eu ficava sem o meu bebé ... - começou ela.
- Vê se acabas com isso - advertiu a mãe.
Rosa de Sharon disse baixinho:
- Eu estou a vê-la. Lá vem ela, suponho... Mãe, não a deixe ...
A mãe voltou-se e encarou a figura que se aproximava.
- Como vai? - perguntou a mulher. - Sou a senhora Sandry, Lisbeth Sandry. Já falei
com a sua filha hoje de manhã.
- Como vai? - perguntou a mãe por seu turno.
- A senhora está de bem com Deus?
- Muito bem - respondeu a mãe.
- Redimida dos seus pecados?
- Sim.
O rosto da mãe conservava-se fechado, com ar de quem está na defensiva.
- Muito bem. Fico muito contente por saber isso - volveu Lisbeth.- Há por aqui
muitos pecadores. A senhora está numa terra horrível. Tudo por aqui é maldade. Gente má.
Acções medonhas; pessoas como nós, com sangue do cordeiro, dificilmente podem
suportar uma coisa assim. Estamos completamente rodeados de pecadores.
A mãe corou ligeiramente, mas cerrou com firmeza os lábios.
- Pois a mim parece-me que esta gente daqui é muito boa - respondeu.
A senhora Sandry arregalou os olhos.
- Boa?! - exclamou. - A senhora acha que uma gente que dança assim de maneira tão
indecente, pode ser boa?! Pois olhe, a sua alma eterna não poderá ter sossego neste
acampamento. Ontem de noite fui a Weedpatch tomar parte num culto. Sabe o que disse o
pregador? Disse assim: “Reina a maldade nesse acampamento.” E mais: “O pobre ali aspira
a ser rico.” E disse ainda: “Eles dançam coisas imorais, quando deviam lamentar-se dos
seus pecados, gemer e chorar.” Sim, senhora, foi o que ele disse. “Cada um dos que não
estão aqui presentes não passa de um pecador de alma negra”, disse ele. Fazia bem ouvi-lo
falar assim. Pode crer. E a gente sabia que estava redimida, salva, porque não entrou
naquelas danças.
As faces da mãe tingiram-se de cor de púrpura. Ergueu-se inteiramente e encarou a
senhora Sandry.
- Suma-se! - gritou. - Suma-se daqui imediatamente, antes que eu me torne uma
pecadora, dizendo-lhe para onde deve ir, ouviu? Vá lá para os seus choros e gemidos.
A senhora Sandry fitou-a boquiaberta. Deu um passo para trás. E então mostrou-se
enfurecida.
355
- Pensei que vocês fossem cristãos!
- E é que somos - exclamou a mãe.
- Não, vocês não são. O que vocês são é pecadores, que hão-de arder todos no
inferno. E hei-de falar de vocês na reunião, isso é que eu hei-de! Até já estou a ver a vossa
alma negra a arder. Vejo até uma criança inocente a arder no ventre desta rapariga.
Um grito agudo rompeu dos lábios de Rosa de Sharon. A mãe, baixando-se, apanhou
um pau.
- Suma-se daqui! - disse friamente - e não volte cá mais. já conheci gente da sua
espécie. Vamos, vá, ponha-se a andar e depressa! - A mãe avançou em direcção à senhora
Sandry.
A mulher recuou um momento e, de repente, atirou a cabeça para trás e rompeu num
choro que mais parecia um uivo. Tinha os olhos revirados. Os ombros e os braços
bamboleavam, frouxos, e, do canto da boca, escorria-lhe uma saliva grossa. Uivava sem
descanso; eram uivos profundos, apavorantes de animal selvagem. Homens e mulheres
acorreram de outras tendas e aproximavam-se, assustados e silenciosos. Lentamente, a
mulher foi vergando os joelhos. Os uivos foram degenerando num lamento borbulhante e
tremido. Caiu de lado, com os braços e as pemas torcidas. Via-se-lhe o branco dos olhos.
Um homem arriscou em voz baixa:
- O espírito. Ela recebeu o espírito.
A mãe não fazia o menor movimento, fixando o vulto torcido no chão.
O director ia passando, por acaso, no local.
- Há alguma novidade?.
A multidão abriu alas, deixando-o passar. Ele lançou um olhar à mulher.
- É para lamentar - disse. – Algum de vocês quer levá-la para a tenda?
A multidão, silenciosa pôs-se a arrastar os pés. Dois homens curvaram-se, levantando
depois a mulher, um agarrou-a por debaixo dos braços e outro segurou-a pelos pés. E
levaram-na seguidos do povo, que os acompanhava vagarosamente.
Rosa de Sharon arrastou-se para dentro da sua tenda; deitou-se no chão e cobriu o
rosto com um cobertor.
O director olhou para a mãe e o seu olhar desceu até ao pau que ela ainda segurava.
Sorriu com um sorriso fatigado.
- A Senhora bateu-lhe? – perguntou.
A mãe contemplava ainda a multidão, que dispersava lentamente.
- Não, mas era capaz disso. É a segunda vez hoje que ela deixa a minha filha quase
maluca.
356
- Não vale a pena bater nessa mulher – disse o director. - Ela não regula bem, é o que
é; não regula bem. – E acrescentou baixinho: - Só quero que ela se vá embora daqui, ela e a
família. Ela, só, provoca mais complicações do que todo o resto do acampamento.
A mãe acalmara-se.
- Se ela aqui voltar, ainda acabo por lhe bater. Não sei se me poderei conter. Não lhe
consinto que me rale a pequena outra vez.
- Não há perigo, Senhora Joad. A senhora não a tornará a ver - garantiu o director. -
Ela só costuma maçar as pessoas recém-chegadas. Não volta aqui, não. Pensa que a
senhora, é uma pecadora.
- Bem, e é o que eu sou, na verdade - respondeu a mãe.
- Naturalmente. Todos nós somos pecadores, mas não como ela supõe. Ela não
regula bem, senhora Joad.
A mãe olhou-o com gratidão. Depois disse:
- Ouviste isto, Rosasharn? Ela não regula bem; é maluca!
Mas a rapariga nem levantou a, cabeça.
A mãe prosseguiu:
- Eu já o vou avisando. Se ela voltar, não respondo por mim. Sou capaz de lhe bater,
isso é que eu sou!
Ele esboçou um sorriso contrafeito.
- Compreendo muito bem o que a senhora sente. Mas veja se evita, veja se evita. -
Foi-se afastando vagarosamente, em direcção à tenda para onde a senhora Sandry fora
transportada.
A mãe entrou na tenda e sentou-se ao lado de Rosa de Sharon
- Olha - disse-lhe. A rapariga permaneceu imóvel. Suavemente, a mãe ergueu o
cobertor que lhe cobria o rosto. - Aquela mulher é meio doida - acrescentou. - Não
acredites nessas coisas que ela disse.
Rosa de Sharon cochichou apavorada:
- Quando da falou sobre essa coisa de arder... eu senti-me mesmo a, arder...
- Nada. daquilo é verdade - insistiu a mãe.
- Sinto-me tão cansada! - murmurou a rapariga. - Estou farta de tudo o que me tem
acontecido. Quero dormir, quero dormir.
- Então dorme. Aqui é tudo muito bom. Podes dormir à vontade.
- Mas, e se ela voltar?
- Ela não volta - disse a mãe. - Fico sentada ali do lado de fora e não a deixo voltar.
Agora descansa porque não tarda que tenhas trabalho na creche.
357
A mãe ergueu-se com esforço e sentou-se à entrada da tenda. Tinha tomado lugar
num caixote e estava com os cotovelos apoiados nos joelhos, o queixo na concha das
mãos. Via o formigar de vida do acampamento; ouvia o vozear das crianças e o martelar
num aro de ferro, mas o seu olhar perdia-se ao longe.
Ao voltar da estrada, o pai foi dar com ela nessa posição. Acocorou-se ao seu lado.
Lentamente, ela virou os olhos para ele.
- Encontraram trabalho? - perguntou.
- Não - respondeu ele, envergonhado. - Procurámos mas nada conseguimos.
- Onde está o Al, o John e o caminhão?
- Pararam ali adiante, a fazer um conserto. A gente queria arranjar uma ferramentas
emprestadas, mas o homem aconselhou-nos a que fizéssemos a reparação ali mesmo.
A mãe disse tristemente:
- Isto é tudo tão bonito! A gente aqui podia ser bem feliz!
- Sim, se encontrasse trabalho.
Sentindo instintivamente a tristeza que a empolgava, ele ficou-se a estudar-lhe o
rosto.
- Porque te queixas? Se aqui é tudo tão bonito, não tens razão para te lamentares.
Ela contemplou-o por um instante e depois cerrou lentamente os olhos:
- E engraçado, não é? Durante todo o tempo em que andávamos aos solavancos
pelas estradas, não pensei em nada. E agora, que encontro aqui uma gente tão boa, qual é a
primeira coisa que faço? Pensar em coisas tristes... estou a lembrar-me daquela noite em
que o avó morreu e nos o enterrámos. Andava cheia de sacudidelas e de caminhadas e não
pensava tanto. Mas chegámos e é pior, afinal. Lembro-me também da avó e do Noah,
quando se foi embora assim, daquela. maneira! Ir-me embora, rio abaixo! Todas essas
coisas faziam parte de tudo, mas agora vêm outra vez. A avó, uma indigente... enterrada
como indigente! Agora é que custa. Custa muito. E o Noah, que se foi embora rio abaixo...
Ele nem sabia o que iria encontrar. E nós também não; nunca mais saberemos se é vivo ou
morto. Nunca mais. E o Connie que fugiu! Antes, não dava tanto valor a tudo isto. Mas
agora vejo tudo isto. E eu devia sentir-me feliz por estar num sítio assim tão lindo. - O pai
observava-lhe o mexer dos lábios e os olhos completamente fechados. - Agora vejo bem as
montanhas agudas como dentes velhos, ali para aquelas bandas do rio por onde o Noah
seguiu. Lembro-me bem do mato onde o avô foi enterrado. Lembro-me daquele cepo de lá
de casa; ainda tinha uma pena grudada. estava todo cheio de sulcos, e negro de sangue de
galinha.
358
- Vi hoje uns patos bravos - disse o pai, assumindo o tom da mãe. - Voavam muito
alto, para os lados do sul. Parecia que iam cheios de frio. E vi uns melros poisados nos fios
e pombas nas cercas.- A mãe abriu os olhos e encarou-o. Ele prosseguiu: - Vi um
turbilhãozinho de vento que parecia um homem a girar em volta de um campo. E os patos
selvagens, que voavam cada vez mais para o sul...
A mãe sorriu:
- Tu lembras-te? - perguntou. - Lembras-te do que a gente costumava dizer lá em
casa? “O Inverno, este ano, vai chegar cedo” dizíamos nós quando víamos os patos a voar
assim. Era costume dizer-se isso e o Inverno vinha quando tinha de vir. Mas nem por isso a
gente deixava de dizer: “Este ano, ele vem cedo”. Nem sei o que é que nós queríamos dizer
com aquilo!
- Eu vi os melros nos fios - tornou o pai. - Estavam uns pertinho dos outros. E os
pombos... não há nada como um pombo para ficar quieto... quando está no arame das
cercas. Às vezes, são dois, lado a lado... E aquele ventinho redemoinhante... da altura de um
homem, a dançar pelo campo fora! Sempre gostei de ver aqueles redemoinhos do tamanho
de um homem.
- Era melhor não pensar mais na nossa casa - lembrou a mãe. - Já não é a “nossa
casa”. Quem me dera poder esquecê-la! E ao Noah também.
- Ele nunca regulou bem da cabeça... quer dizer... bem, a culpa foi minha.
- Já te disse que não continues com isso metido na cabeça. Se não fosse isso, talvez
nem tivesse vivido...
- Mas eu devia saber...
- Pára com isso agora - pediu a mãe. - Noah era esquisito. Quem sabe? Talvez ele
tenha sido feliz, à beira do rio. Talvez seja melhor assim. A gente não se deve preocupar.
Aqui tudo é muito bonito, e pode ser que vocês encontrem trabalho depressa.
O pai apontou para o céu.
- Olha, lá vêm mais patos selvagens. Que belo bando! Mãe, “o Inverno vai chegar
cedo este ano”. A mãe deu uma risada.
- Às vezes a gente faz coisas e não sabe porquê.
- Lá vem o John - anunciou o pai. - Vem cá, John, senta-te aqui!
O tio John acercou-se deles e acocorou-se em frente da mãe.
- A ente não encontrou nada - disse. - Andámos à toa. Olha, o Al quer falar contigo.
- Precisa de um pneu novo, parece. O outro tem já a borracha toda gasta, diz ele.
- Oxalá que ele encontre um pneu barato. A gente tem já muito pouco dinheiro.
Onde está o Al?
359
- Está lá em baixo, na primeira esquina, à direita. Disse que o pneu é capaz de
rebentar, e a câmara-de-ar também, se a gente não comprar um novo.
O pai afastou-se vagarosamente, os seus olhos iam seguindo o V gigante que os
patos formavam no céu.
O tio John apanhou uma pedra do chão, deixou-a cair e tornou a apanhá-la. Não
olhava para a mãe.
- Não há trabalho – disse.
- Vocês ainda não percorreram tudo - respondeu a mãe.
- Não, mas por toda a parte há cartazes, dizendo que não precisam de trabalhadores.
- Pois sim, mas o Tom arranjou trabalho. Ele ainda não voltou.
O tio John insinuou:
- Quem sabe? Talvez também se tenha ido como o Connie e o Noah.
A mãe lançou-lhe um olhar sobressaltado, mas logo os seus olhos se adoçaram.
- Há coisas que a gente pressente logo - disse ela.- Há coisas de que a gente tem a
certeza. Tom arranjou trabalho e, à noite, estará de volta. Isso te garanto eu. - Sorriu com
satisfação. - Ele é um bom rapaz, não é? - perguntou. - Uma jóia de rapaz!
Automóveis e caminhões regressavam ao acampamento, e os homens dirigiam-se em
grupos ao departamento sanitário. Cada um deles levava no braço um fato-macaco e uma
camisa lavada.
A mãe voltou à realidade:
- John – exclamou - vê se encontras o pai. Diz-lhe para ir ao armazém. Preciso de
feijão e de açúcar... e... e de um pedaço de carne para assar e cenouras... e... diz ao pai para
ele comprar uma coisa boa, seja o que for, contanto que seja realmente boa... para hoje.
Esta noite, temos de comer uma coisa boa.
360
Capítulo XXIII
O povo em êxodo, correndo atrás do trabalho, procurando a vida encarniçadamente,
esse povo também procurava o prazer; andava à cata de prazeres, fabricava prazeres e
sentia fome de divertimentos. Às vezes, o seu prazer consistia em conversar; distraíam-se
com ditos engraçados. E acontecia que, nos acampamentos, à beira da estrada ou nos
fossos dos rios ou à sombra dos sicómoros, o narrador de histórias se revelava, e a gente
reunia-se à luz mortiça das fogueiras, para ouvir os mais dotados. E o interesse com que os
homens ouviam as histórias fazia com que essas histórias se tornassem grandiosas.
Eu estive como recruta na guerra contra Jerónimo...
E o povo escutava, e nos seus olhos fixos reflectiam-se as brasas prestes a extinguirse.
Aqueles índios eram finos que nem um coral... maus corno cobras e silenciosos como
o diabo, quando queriam. Eram capazes de correr por cima de folhas secas sem fazer
barulho. Ora experimentem fazer o mesmo, a ver se são capazes...
E o povo escutava, pensando nos estalidos das folhas debaixo dos pés.
Depois, houve a mudança de tempo e o céu cobriu-se de nuvens. Chegaram no
momento oportuno. Vocês já ouviram dizer que o exército servisse para alguma coisa?
Pode-se-lhe dar dez oportunidades, que não ganha nada com isso. Perde-as todas. Precisou
sempre de juntar dez regimentos para bater cem homens de coragem. Foi sempre assim.
E o povo escutava, e as suas feições imobilizavam-se, à força de atenção. Os
narradores de histórias, concentrando a atenção geral no que diziam, falavam num ritmo
entusiástico, porque sentiam que usavam de termos grandiosos porque as narrativas eram
grandiosas e com elas se sentiam engrandecidos os que escutavam. Urna vez, um rapaz
corajoso pôs-se no cume de uma montanha contra o Sol. Sabia que todos o viam. Abriu os
braços e assim se deixou ficar, contra o Sol, nu corno a madrugada. Talvez estivesse louco.
Não sei. Deixou-se ficar assim, de braços abertos.... parecia uma cruz. Quatrocentos
metros. E a nossa gente... bem, ergueu a vista e esticou o dedo bem molhado, para
descobrir a direcção do vento e deixou-se ficar deitada sem coragem de atirar. É possível
que o índio soubesse disso; é possível que ele sentisse que a gente não era capaz de atirar.
Todos ficaram deitados no chão, com as carabinas na mão, sem ao menos fazerem
pontaria. E todos ficaram a olhar para o índio. Ele tinha uma fita na testa uma pena. Eu vi.
361
E estava nu como o Sol. Durante muito tempo ficámos assim, deitados, a olhar, e ele nem
se mexia. O capitão estava com uma raiva que nem vocês imaginam. - Atirem, seus idiotas,
seus covardes, atirem! - berrou ele. - E nós ficámos deitados na mesma.- Vou contar até
cinco e depois tomo nota dos vossos nomes - gritou o capitão. Sim, senhor. Então, a gente
apontou as carabinas muito devagarinho e cada um estava à espera que o outro atirasse
primeiro. Nunca na vida me senti tão triste como daquela vez. Fiz. pontaria à barriga do
rapaz, que é o único sítio onde o índio é vulnerável, e... então, o índio caiu de costas e veio
a rolar pela montanha abaixo. Nós, depois, fômo-lo ver. Não era tão alto como parecia, lá
no cume da montanha. E estava todo ferido. Tinha o corpo todo golpeado. Tu já viste o
faisão, firme, lindo, com as penas pintadinhas e que até os olhos têm cheios de cores?
Pumba! Estragaste qualquer coisa que valia mais do que tu e apanhas do chão um farrapo,
todo torcido e ensanguentado. E, quando começares a comê-lo, sabe-te mal, porque hás-de
sentir que destruíste uma coisa que nunca mais podes conservar.
E o povo concordava com a cabeça, e, nessas alturas, parecia que o lume se avivava e
que projectava uma réstea de luz nos olhos que perscrutavam o próprio eu.
De braços abertos, contra o Sol. E ele parecia grande... como Deus.
Acontecia também que um homem, desviando vinte cents da comida para o prazer,
fosse a um cinema em Marysville ou Tulare, em Geres ou Mountain View. E voltava,
então, para o acampamento da beira-rio com o cérebro cheio de recordações. E contava o
que tinha visto:
E aquele sujeito rico fingiu que era pobre e a rapariga rica também fingiu que não
tinha dinheiro. Encontraram-se os dois 4uma casa de comes e bebes.
Porquê?
Não sei porquê, mas foi assim.
Para que é que fingiram que eram pobres?
Naturalmente estavam fartos de ser ricos.
Isso é aldrabice!
Afinal, tu queres ouvir a história ou não queres? Continua, então. Eu quero ouvir a
história, claro. Mas eu, se fosse rico... ia era comprar tantas costeletas de porco que as havia
de pendurar à cintura; pendurava-as e comia-as umas a seguir das outras. Mas continua.
Pois é, cada um deles pensava que o outro era pobre. Então são presos, vão parar à
cadeia e não podem sair porque, se não, lá ia cada um deles descobrir a verdade: que o
outro era rico. E o carcereiro maltratava-os porque também pensava que eles eram pobres.
Só queria que tu visses a cara do carcereiro quando descobriu a verdade! Não foi nada,
quase que ia perdendo os sentidos.
362
Mas porque é que eles foram presos? Porquê? Porque estavam numa reunião de
radicais e não eram radicais nem nada. Estavam lá por acaso. E não queriam casar um com
o outro por causa do dinheiro, compreendes?
Então esses filhos da mãe começaram a enganar-se logo de começo, hein?
Sim, mas na fita, faziam tudo aquilo com boas intenções; eram muito amáveis para
toda a gente.
Uma vez eu fui ao cinema e vi uma pessoa tal qual como eu. Mas era mais do que
eu... maior do que eu... e tudo lá era maior.
Bom, eu já tenho bastantes ralações. Quero é ver-me livre delas e ver coisas
diferentes. Contanto que sejam coisas em que a gente possa acreditar...
Então eles casaram-se e descobriram toda a verdade. E também descobriram a
verdade aqueles que tinham sido ruins para eles. Havia lá um tipo que estava convencido de
que valia alguma coisa; percebia tudo... pois ele quase perdeu os sentidos quando viu o
outro entrar todo bem vestido, de chapéu alto na cabeça. Quase desmaiou, sim, senhor. E
também houve um documentário daqueles soldados alemães com passo de ganso. Era de
rebentar a rir.
E sempre que um qualquer arranjava algum dinheiro, tinha o recurso de se
embriagar. Então, acabavam-se os maus bocados e tudo era quente, confortador. Acabavase
a solidão, pois que o cérebro se povoava de amigos e uma pessoa conseguia encontrar os
seus amigos e aniquilá-los. O homem estava sentado num buraco e a terra, debaixo dele,
tornava-se macia. A desgraça doía menos e o futuro deixava de constituir uma ameaça. A
desgraça dois menos e o futuro deixava de constituir uma ameaça. E a fome não rondava
perto; o mundo era suave e sem complicações e o homem podia chegar onde quisesse. As
estrelas passavam maravilhosamente perto e o céu era um encanto! A morte era um amigo,
e o sono, o irmão da morte. Voltavam os tempos antigos... uma rapariga de pés bonitos
com quem se dançava na terra... um cavalo... oh, há tempo que isso aconteceu! Um cavalo e
uma sela. Uma sela de couro trabalhado. Quando foi que isso aconteceu? Eu devia era
arranjar uma rapariga com quem conversar. Seria tão bom! E até – quem sabe? – talvez eu
pudesse dormir com ela. Mas que calor que aqui faz! As estrelas tão pertinho da gente e a
tristeza e o prazer tão perto um do outro; a mesma coisa, no fundo. Só queria era estar
sempre bêbedo. Quem foi que disse que isto era uma bodega? Quem é que se atreve a dizer
isso? Os pregadores, mas esses também têm a sua espécie de bebedeira. As mulheres
363
magras e estéreis, mas elas são tão infelizes que nem sabem o que isso é... Os reformadores,
mas estes não conhecem a vida suficientemente de perto para poderem julgá-la. Não,
senhor... As estrelas estão muito próximas, tão próximas, e eu pertenço à confraria do
mundo. E tudo é sagrado, tudo, até eu mesmo.
Uma gaita é fácil de se trazer. Tira-se do bolso de trás das calças e bate-se com ela na
palma da mão para desalojar a poeira, o cotão do bolso e os fiapos de tabaco. Bom, agora
está em condições. Pode-se fazer tudo com uma gaita; pode-se-lhe arrancar um som agudo
e penetrante e acordes simples ou uma melodia de acordes rítmicos. Pode-se moldar a
música com as mãos em concha, fazendo-a lamentar-se, chorar como uma gaita escocesa,
torná-la volumosa, cheia como um órgão ou fina e amarga como a das flautas das
montanhas. E pode-se tocar e guardar o instrumento no bolso. Tê-lo sempre no bolso,
sempre acompanhando a gente. E pode-se tocar e aprender novos truques, novos métodos
de se moldar o som com as mãos, modulá-lo com os lábios, sem precisar de ninguém que
nos ensine essas coisas. E pode-se fazer experiências às apalpadelas... sozinho na sombra de
uma tarde, ou então, depois do jantar, à entrada da tenda, enquanto as mulheres lavam a
loiça. Pode-se bater com o pé no chão, vagarosamente para marcar o compasso. As
sobrancelhas erguem-se e abaixam-se, acompanhando o ritmo. E, se se perde o
instrumento, ou se alguém o quebra, o prejuízo não é lá muito grande. Pode-se comprar
outra gaita por um quarto de dólar.
Um viola, já tem mais valor. Tem de se aprender. Os dedos da mão esquerda têm de
calejar. O polegar da mão direita também precisa de ter calosidades. Esticam-se os dedos
da mão esquerda como patas de aranha, para acertar bem nas marcações das cordas.
Este violão era de meu pai. Eu era de um tamanho de um percevejo quando ele me
ensinou. E, quando eu já sabia tocar como ele, o meu pai raramente o fazia. Costumava
sentar-se à soleira, escutando-me e batendo com os pés. Às vezes, eu queria meter coisas da
minha lavra no meio da música e ele ficava arreliado até que eu conseguia atinar com a
invenção; então ele ficava aliviado. “Toca – dizia. – Toca qualquer coisa bonita.” Pois é.
Este violão é dos bons. Olha como já está todo arranhado. Foi um milhão de canções que
já tocaram nele, um milhão! Foi esse milhão de canções que afinou assim a madeira.
Qualquer dia, parte-se que nem uma casca de ovo. Não se pode consertar, porque perde o
som. Às vezes, quando toco, de noite, oiço uma gaita na tenda do vizinho a acompanharme.
E é tão bonito, o conjunto!
364
O violino, esse, é difícil de aprender. Poucos sabem tocar violino. As cordas não
estão marcadas. Não há professores.
Eu conversei com um velho, a ver se ele me ensinava. Mas o diabo do velho não me
quis ensinar certos truques. Disse que era segredo. Mas eu pus-me a observá-lo e acabei por
ver como é que ele fazia.
Um violino é agudo como a brisa. Olha, era assim... rápido, nervoso e agudo.
Não é grande coisa este violino que eu tenho. Custou-me dois dólares. Um sujeito
disse-me que há violinos com mais de quatrocentos anos de idade e que então se tornam
aveludados como o whisky. E disse que custam cinquenta e sessenta mil dólares. Não sei,
parece mentira. Tu guinchas um pouco, hein, velho safado? Bom, vocês querem dançar,
não é? Vou pôr resina neste arco, bastante resina, para correr bem. Então é que ele vai
berrar! Até é capaz de se ouvir a uma milha de distância.
E esses três instrumentos tocam à noite: gaita, violão e violino. Tocam músicas de
dança, batendo o ritmo, as cordas fortes do violão palpitando como um coração, a
acompanhar os acordes agudos da gaita e o gemer do violino. As pessoas chegam-se todas.
Não resistem. Tocam, agora, o “Chicken Reel”, a dança dos pintos, e os pés batem o
compasso e um rapaz magro dá três passos rápidos, com os braços pendentes e frouxos.
Fecha-se a roda e começa a dança e os pés batem com força, assentando os calcanhares. As
mãos giram e agitam-se. Os penteados desmancham-se; a respiração torna-se ofegante.
Toca a inclinarem-se para o lado!
Veja aquele tipo do Texas, aquele das pernas compridas e bambas. Bate quatro vezes
com o pé a cada compasso. Nunca vi um sujeito dançar assim. Olhe para ele, a fazer
rodopiar aquela rapariga de Cherokee, aquela do rosto corado, com os dedos grandes dos
pés para fora! Olhe como ela está a arfar, peito para fora e peito para dentro! Parece que
está cansada, hein? Qual cansada, qual o quê! O tipo do Texas tem os cabelos caídos para
os olhos e a boca escancarada. Quase que nem pode respirar. Mas continua a bater quatro
vezes com os pés a cada compasso. E não larga a pequena de Cherokee.
O violino guincha e o violão ribomba. O homem da gaita tem a cara vermelha como
o diabo. O rapaz do Texas e a moça de Cherokee têm a língua de fora, como um cachorro
em dia de calor e ainda continuam a saltar e a dar voltas. Os velhos estão de pé, sorriem
com um leve sorriso e batem com o pé no chão, marcando o ritmo da música.
Foi na escola, lá na minha terra. A Lua caminhava para o oeste. E nós os dois
andámos os dois - ela e eu. A gente não falava, nem palavra dizia. Tínhamos a garganta
seca. Havia um monte de feno ali pertinho. A gente parou e deitou-se nele.
365
Olhe aquele rapaz do Texas e a rapariga. Foram para o escuro; julgam que ninguém
os tinha visto mas eu vi-os. Oh, meu Deus! Se eu ainda pudesse fazer como aquele rapaz
do Texas! Daqui a pouco, a Lua nasce. Vi como o pai da rapariga se levantou para reter os
dois. Mas depois desistiu. Ele sabia que era inútil. Era o mesmo que querer impedir a
chegada do Outono, ou não deixar a seiva ser absorvida pelas plantas. E, daqui a pouco, a
Lua nasce.
Toca mais um pouco... Toca aquela canção. “Quando eu andava pelas ruas de
Laredo”.
As fogueiras vão-se apagando. Não vale a pena atiçá-las outra vez. Para quê? A velha
Lua não tarda a nascer.
À margem de uma vala de irrigação, um velho pregador gesticulava, enquanto o povo
soltava gritos. O pregador corria para cá e para lá, com a fúria de um tigre e fustigava o
povo com as suas palavras; o povo arrastava-se pelo chão, a chorar e a uivar. Ele media
aquela gente com o olhar; calculava-lhe a disposição: experimentava nela o seu poder. E,
quando toda aquela gente se torcia pelo chão, ele inclinava-se e erguia-os, revelando grande
força, um por um, nos braços e gritava: “Recebe-os, Jesus” e atirava com eles à água. Uma
vez todos dentro da vala, com água até à cintura, a olhar o mestre com olhos assustados,
ele ajoelhava-se na margem e rezava por eles. Rezava, implorando que todos eles, homens e
mulheres, rastejassem pelo chã o, a chorar e a uivar. E os homens e as mulheres punham-se
a escutar, com a roupa colada ao corpo e a pingar água. Voltavam depois, para o
acampamento, com os sapatos a chapinhar, fazendo plac-plac, falando baixinho, como
maravilhados.
Estamos redimidos, diziam. Temos a alma branca como neve. Nunca mais podemos
pecar.
E as crianças, molhadas e assustadas, cochichavam entre si:
Estamos redimidos. Não vamos pecar nunca mais.
Só queria saber que pecados serão esses para os cometer.
O povo, em êxodo, procurava, humilde, os prazeres.
366
Capítulo XXIV
Sábado, pela manhã, os tanques de lavar a roupa viam-se todos ocupados. As
mulheres lavavam vestidos, vestidos de algodão cor-de-rosa ou estampados de flores e
penduravam-nos a secar ao sol e esticavam bem os tecidos para os amaciarem. Ao chegar a
tarde todo o acampamento se mostrava azafamado e nervoso, o açodamento febril
contagiou também as crianças, tornando-as ainda mais barulhentas que de costume. Pelo
meio da tarde, começou o banho das crianças, e, à medida que as iam agarrando, domando
e lavando, o barulho nos campos de jogos ia também gradualmente diminuindo. Antes das
cinco horas, as crianças estavam todas devidamente limpas e advertidas de que não deviam
sujar-se de novo. Caminhavam muito direitas pelo acampamento, nas suas roupas limpas, e
tristonhas à força de preocupação.
No grande tablado ao ar livre, afadigava-se o comité. Tinham requisitado todo O fio
eléctrico existente. O ferro-velho da cidade fora vasculhado à cata de fio e todas as caixas
de ferramenta da comunidade tiveram de contribuir com fita isoladora. E agora, todo esse
fio unido, remendado, via-se estendido sobre aquela espécie de palco,.com gargalos de
garrafa a servirem de isoladores. Pela primeira vez, nessa noite, o tablado teria iluminação.
As seis, os homens regressaram do trabalho ou de procurar trabalho e seguiu-se nova onda
de banhos. Lá pelas sete horas 'depois do jantar, os homens Vestiram as suas melhores
roupas, fatos-macacos lavados, camisas azuis bem limpas e, às vezes, até fatos pretos,,
distintos, As raparigas já estavam prontas também, nos seus vestidos estampados, limpos e
bem passados a ferro e com fitas nos cabelos entrançados. As mulheres, preocupadas,
inspeccionavam os membros das respectivas famílias, levantavam as mesas e lavavam a
loiça. No tablado, a orquestra de instrumentos de corda começava a ensaiar, rodeada de
crianças em filas duplas. Estavam todos atentos e excitados.
Na tenda de Ezra Huston, o presidente, estavam reunidos os cinco homens que
compunham o comité central. Huston, um indivíduo alto e magro, de rosto tostado e de
olhos que pareciam lâminas faiscando, falava aos homens, cada um dos quais representava
um departamento sanitário.
- Que sorte a gente ter recebido a informação de que querem estragar o nosso baile! -
dizia ele.
367
Um homem baixinho e gorducho, representante do departamento nº 3, replicou:
- Acho que lhes devíamos dar uma surra mestra, para aprenderem a não se meter
com a gente.
- Não, senhor - disse Huston.-- Nada disso. E justamente isso o que eles querem. Se
conseguirem provocar uma briga, os polícias já poderão penetrar no acampamento. Vão
alegar que a gente sozinha, não sabe manter a ordem. Já fizeram isso noutros sítios. -
Dirigiu-se ao rapaz moreno e de ar melancólico do departamento nº 2: - O pessoal está lá
na cerca, a vigiar quem entra?
O rapaz melancólico acenou com a cabeça:
- Sim, senhor. Doze rapazes. Recomendei-lhes que não batessem em ninguém. Têm
ordem de os pôr fora sem mais nada.
Huston pediu:
- Faça-me um favor, procure o Willie Eatop. Ele é que é o presidente do comité de
diversões, não é?
- É, sim.
- Bom, diga-lhe que quero falar com ele.
O rapaz saiu e voltou pouco depois, na companhia ç1e um homem musculoso do
Texas. Willie Eaton tinha o queixo alongado e frágil, os cabelos cor de poeira, os braços e
as pernas compridos e bamboleantes. Os olhos eram daquele cinzento desbotado, vulgar na
gente do “Cabo de Frigideira”. Entrou sorridente na tenda e as suas mãos giravam
nervosamente em torno dos pulsos.
Huston perguntou:
- Você já ouviu dizer o que se prepara para logo à noite?
Willie sorriu.
- Já - respondeu.
- E tomou as suas precauções?
- Tomei, sim.
- Conte o que fez.
Willie Eaton sorriu satisfeito.
- Bem, normalmente o comité de diversões é composto de cinco membros. Para esta
noite, arranjei mais vinte, todos novos e fortes. Vão dançar, mas com os ouvidos e os olhos
bem abertos. Ao primeiro sinal de discussão ou coisa semelhante, eles cercam de perto o
tipo que se salientar. Já ensaiámos a coisa. Está tudo bem preparado. Ninguém vai notar
coisa nenhuma. Eles começam a sair da pista e o gajo zaragateiro sai com eles no meio do
grupo.
368
- Não se esqueça de recomendar que não dêem pancada em ninguém.
Willie riu alegremente.
- Não há perigo. Já lhes recomendei isso.
- E melhor recomendar de novo, para não sé esquecerem.
- Eles sabem. Pus cinco homens no portão, para verem quem entra no
acampamento. Pode ser que a gente consiga reconhecê-los antes que a briga comece.
Huston pôs-se de pé. Os seus olhos cor de aço tinham um brilho severo.
- Agora, ouça, Willie. Não queremos de forma alguma que, esses homens apanhem,
ouviu? Lá fora, junto do portão, vai, haver polícia. Se armarem desordem, a polícia invade
o acampamento.
- Já tinha pensado nisso - acudiu Willie. - Vamos pô-los nas traseiras do
acampamento, já no campo. Alguns dos rapazes estão encarregados de os fazer voltar elo
mesmo caminho.
- Muito bem. Assim deve dar certo - disse Huston, com ar preocupado. - Mas, muito
cuidado, ouviu, Willie? Não quero que aconteça nada. Você é o responsável. Não batam
naquela gente, seja lá como for. Nada de facas ou de paus; nada de armas.
- Não senhor - respondeu Willie. - Ninguém os deixará marcados.
Huston parecia ainda preocupado.
- Quem me dera poder confiar em você, Willie! Se não puderem, evitar o bater-lhes, é
dar-lhes na cabeça para não haver sangue.
- Sim, senhor - respondeu Willie.
- Você responsabiliza-se pelos rapazes que escolheu?
- Responsabilizo, sim, senhor.
- Muito bem. Se houver qualquer coisa, eu estou no canto direito, do lado de cá do
estrado da dança.
Willie fez a continência de brincadeira e afastou-se.
Huston continuava:
- Não sei. Deus queira que os rapazes do Willie não matem ninguém. Porque diabo
pretendem esses polícias provocar desordem. no nosso acampamento? Porque nos não
deixarão em paz?
O rapaz melancólico do departamento nº 2 interveio:
- Eu já vivi no acampamento da Companhia Sunland de Terras e de Gado. Pois lá -
palavra de honra! - para cada dez homens há um polícia. E uma torneira de água para, pelo
menos, duzentos homens.
O gorducho, por sua vez, disse:
369
- Por Deus, Jeremy! Não me venha agora contar essas coisas. Eu também já lá estive.
Havia lá um bloco de barracas, quinze fileiras de trinta e cinco barracas, com quinze pés de
profundidade. E, para toda essa gente, não há mais que dez retretes. Meu Deus! Aquilo
fede à distância de uma milha! Um dos polícias de lá estávamos nós todos juntos - saiu-se
com esta: “Aqueles danados daqueles acampamentos do governo! - disse ele. - Até dão
água quente ao pessoal e agora os gajos só querem água quente. Dão-se retretes com
autoclismo e agora estão tão acostumados àquelas que já nem podem ver outras!” E disse
também: “Dão coisas assim àquela cambada daqueles Okies e o resultado é que eles já não
são capazes de viver de outra maneira. Naqueles acampamentos do governo, o pessoal não
fala de outra coisa que não seja de reuniões de vermelhos. O que eles querem todos é
receber o dinheiro do Auxílio.”
Huston perguntou:
- E ninguém teve coragem de dar uma sova nesse polícia?
- Não. Estava lá um tipo baixinho que disse assim: “Que é que você quer dizer com
isso de Auxílio?” “- Quero dizer que nós, os contribuintes, estamos a pagar impostos para
que vocês, seus Okies de uma figa, recebam auxílio.” “- Nós pagamos imposto sobre as
vendas, imposto sobre a gasolina e sobre o tabaco que gastamos” - disse o tal homenzinho.
E disse mais: “Os fazendeiros recebem quatro cents do Governo por cada libra de algodão.
Isto não é auxílio?” “O caminho de ferro e as companhias de navegação recebem
subvenções. Isso também não é auxílio?” “- Mas esses fazem uma porção de coisas que são
indispensáveis.” - Alegou o polícia. “- Bem - replicou o tal tipo baixinho - e quem é que
trabalharia nas vossas malditas colheitas se não fosse a gente?”
- E que disse o polícia a isso?
- Ora! Ficou danado e falou assim: “Vocês, seus vermelhos do diabo, só vivem a
provocar questões.” E concluiu: “É melhor você vir daí comigo, ouviu?” Prendeu o tal tipo
baixinho e deram-lhe sessenta dias por vagabundagem.
- E como é que ele resolveria a coisa se o homem estivesse empregado? - perguntou
Timothy Wallace.
O gorducho soltou uma risada.
- Ora! Você a armar em tanso! Você está fartinho de saber que, quando a polícia
embirra com alguém, lhe chama logo vagabundo. É por isso que eles têm raiva ao nosso
acampamento. Aqui, a polícia não entra. Aqui são os Estados Unidos e não a Califórnia.
Huston suspirou:
- Só queria que a gente pudesse continuar aqui. Mas não tarda que eu tenha de me ir
embora. Gosto muito disto. Leva-se uma vida agradável. Meu Deus! Porque é que eles rios
370
não deixam viver em paz, em vez de nos tornarem uns desgraçados e de nos meterem na
cadeia? Juro que qualquer dia acabamos por lutar, se nos não deixarem em paz. - Abafou a
voz.- A gente deve manter a calma - admoestou-se a si próprio. - O comité não tem o direito
de perder as estribeiras.
O gorducho do departamento nº 3 disse:
- Todos aqueles que pensam que o comité navega num mar de rosas deviam
experimentar para saberem o que isto custa. Entre as mulheres houve já um pé de vento na
minha secção. Começaram a largar palavrões e acabaram a atirar lixo umas às outras. O
comité das senhoras não conseguiu resolver o caso e veio ter comigo. Pediram-me para
contar o sucedido na sessão do comité central. Eu disse-lhes que a elas é que competia
resolver o que acontecesse entre mulheres. O nosso comité não pode entrar em batalhas de
lixo.
Huston concordou:
- Fez muito bem.
O crepúsculo, agora, adensava-se mais, e com o progresso da escuridão, o ensaio da
orquestra de instrumentos de corda parecia adquirir maior ressonância. As luzes
acenderam-se e dois homens inspeccionavam os remendos do fio até ao tablado. As
crianças haviam formado um grupo compacto em torno dos músicos. Um rapaz de violão
cantava “Down Home Blues”, tangendo suavemente as cordas, e, à segunda estrofe,
acudiram três gaitas e um violino a acompanhá-lo. Uma multidão deixava as tendas em
direcção ao tablado e ali se quedava numa tranquila expectativa. Os rostos atentos
brilhavam à luz.
A volta do recinto reservado havia uma alta vedação de arame, e, ao longo dela, de
cinco em cinco pés, os vigilantes permaneciam sentados na relva, à espera dos
acontecimentos.
Começavam a chegar, agora, os carros dos convidados: pequenos fazendeiros e suas
famílias ou emigrantes de outros acampamentos. E cada um dos convidados dizia, ao
portão, o seu nome e o da pessoa que o convidara.
A orquestra de instrumentos de corda começou a tocar uma música de dança; tocava
com força; já não ensaiava. Sentados à boca das respectivas tendas, os Eleitos do Senhor
observavam os acontecimentos com as feições endurecidas e cheias de desdém. Não
conversavam; estavam à espera do pecado e o seu jogo fisionómico condenava
terrivelmente o que ia acontecendo.
371
Na tenda dos Joads, Ruthie e Winfield engoliram rapidamente o escasso jantar e
foram correndo em direcção ao tablado. A mãe lê-los voltar para trás; levantou-lhes o
queixo, e, segurando-o com a mão, ficou a examinar-lhes o rosto. Olhou para dentro das
narinas, viu-lhes as orelhas e inspeccionou-lhes os ouvidos. Depois, mandou-os voltar ao
departamento sanitário para lavarem novamente as mãos. Mas eles saíram clandestinamente
pela porta do fundo da construção e dirigiram-se para o local do tablado, metendo-se no
grupo das crianças que se adensava muito perto da orquestra.
Depois do jantar, Al gastara meia hora a barbear-se com a gilete de Tom. Vestia um
fato de fazenda de lã muito cintado e uma camisa às riscas. Tomara um banho, esfregandose
bem e penteara o cabelo para trás. E, quando por um instante, o lavatório ficara sem
ninguém, deleitou-se a sorrir de maneira sedutora para o espelho e, virou o rosto numa
tentativa de observação do seu sorriso de perfil. Ajustou as braçadeiras de borracha e vestiu
o casaco justo. Limpara os sapatos com um pedaço de papel higiénico. Um banhista
retardatário penetrava no recinto. Al apressara-se a sair, caminhando despreocupadamente
até ao tablado de dança, de olho alerta para as raparigas. Próximo do tablado, sentada em
frente de uma tenda, descobriu uma bonita rapariga loira. Foi de lado até onde ela se
encontrava e abriu o casaco para mostrar a camisa.
- Então esta noite tenciona dançar? - perguntou.
A rapariga desviou o olhar sem responder.
- Não se lhe pode dizer uma palavrinha? E se a gente dançasse um bocadinho? - E
acrescentou com despreocupação: - Sei valsar.
Timidamente, a rapariga levantou os olhos e disse:
- Olha a grande coisa! Toda a gente sabe valsar.
- Mas não como eu - respondeu Al. A música soava com mais força agora e ele
começou a bater o compasso com o pé. - Então, vamos dançar... - pediu.
Uma mulher extraordinariamente gorda deitou a cabeça de fora da tenda e lançou-lhe
um olhar sombrio.
- Ponha-se a andar! - gritou com violência. - Esta menina está comprometida. Vai
casar e o noivo vem aí buscá-la.
Com audácia, Al piscou o olho à rapariga e continuou a andar vagarosamente.
Arrastava os pés ao compasso da música, sacudia os ombros e balouçava frouxamente os
braços. A rapariga, interessada, seguiu-o com o olhar.
O pai, na tenda, pôs o prato de folha em cima do caixote e ergueu-se:
- Vamos, John - disse, e explicou à mãe: -- Vamos falar com uns camaradas a respeito
de trabalho.
372
E o pai e o tio John dirigiram-se à casa do director. Tom absorvia com um pedaço de
côdea de pão os restos de gordura que tinha no fundo do prato; comeu o pão e, depois,
entregou o prato à mãe, que o deitou num balde de água quente. Lavou-o e passou-o a
Rosa de Sharon, para que ela o enxugasse.
- Tu não vais ao baile? - perguntou a mãe.
- Vou, sim - respondeu Tom. - Estou num comité. A gente está a preparar uma
brincadeira a uns tipos daí.
- Mas tu ainda agora chegaste e já pertences a um comité? - estranhou a mãe. -
Naturalmente, é porque encontraste trabalho.
Rosa de Sharon voltou-se, para guardar o prato no seu lugar. Tom apontou para ela.
- Meu Deus, como ela está gorda! - troçou. Rosa de Sharon, corando, pegou noutro
prato que a mãe lhe passava,
- E natural que esteja gorda - respondeu a mãe.
- Está até mais bonita - acrescentou Tom.
A rapariga corou mais ainda e baixou a cabeça.
- Deixa-te disso - pediu-lhe com voz branda.
- E natural que esteja- retorquiu a mãe. - Uma rapariga que espera um bebé torna-se
sempre mais bonita.
- Se ela continua a engordar assim, vai precisar de um carrinho de mão para
transportar a barriga.
- Bom, vê se acabas com isso - disse Rosa de Sharon, metendo-se dentro da tenda.
A mãe riu.
- Tu não devias arreliá-la.
- Ora! Ela até gosta - respondeu Tom.
- Eu sei que ela gosta, mas, agora, também a aborrece. Está triste por causa do
Connie.
- Bem, o que eu acho é que ela deve deixar o Connie de uma vez para sempre. O
rapaz parece que anda a estudar para presidente dos Estados Unidos.
- Não a aborreças, Tom - pediu a mãe. - Ela está num momento difícil.
Willie Eaton aproximou-se com um sorriso nos lábios.
- Você é que é o Tom Joad?
- Sou, sim, senhor.
- Bem, eu sou o presidente do comité das diversões. Vamos precisar dos seus serviços.
Um amigo falou-me de si.
- Pois não! Estou pronto a ajudar - disse Tom. - Conhece a minha mãe?
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- Muito prazer - disse Willie.
- Igualmente.
Willie continuou:
- Bom, primeiro você vai até ao portão e depois segue para o pé da pista de dança.
Olhe bem para os tipos que entram, para ver se descobre os tais. Um outro camarada fica
consigo. Depois, tratem de dançar também e de estar com o olho bem aberto.
- Está bem. Farei o melhor possível - disse Tom.
A mãe interveio, receosa:
- Não vai haver briga, pois não?
- Não, senhora - respondeu Willie. - Não vai haver briga nenhuma.
- Nem pensar nisso - acrescentou Tom. - Bem, cá vou. Logo nos veremos no baile,
mãe.
Os dois homens afastaram-se rapidamente em direcção ao portão principal.
A mãe empilhou num caixote os pratos lavados e enxutos.
- Sai daí! - gritou. Não tendo recebido resposta, gritou mais alto ainda: - Rosasharn,
vem cá!
A rapariga saiu da tenda e prosseguiu na tarefa de limpar pratos.
- O Tom estava a brincar contigo.
- Eu sei. Não me zanguei por isso. Mas não quero que ninguém me veja nesta figura.
- Contra isso não há remédio. Todos reparam. Mas a gente sente-se satisfeita quando
vê uma rapariga que está à espera de um menino. Isso faz a gente ficar contente e divertida.
Tu não vais ao baile?
- Vontade não me falta... mas, não sei... Queria que o Connie aqui estivesse. - A voz
dela subiu de tom. - Mãe, quem me dera que ele aqui estivesse! Quase que não posso
suportar mais...
A mãe olhou-a atentamente:
- Eu sei – disse - mas olha, Rosasharn, não nos envergonhes!
- Não tenho essa intenção, mãe.
- Bem, não nos envergonhes. Preocupações que cheguem já nós temos, era o que
faltava era ainda a vergonha...
Os lábios da rapariga tremiam.
- Eu... eu não vou ao baile. Não posso... Oh, mãe, ajude-me! - Sentou-se, escondendo
a cabeça entre os braços.
A mãe limpou as mãos à toalha de enxugar a louça e, acocorando-se aos pés da filha,
pôs-lhe ambas as mãos sobre os cabelos.
374
- Tu és uma boa rapariga - disse. - Foste sempre muito boazinha, vou olhar por ti,
não te incomodes.- A sua voz tornava-se mais animada. - Sabes o que vamos fazer? Vamos
ao baile; sentamo-nos num lugarzinho e ficamos a ver aquilo. Achas bem? Se alguém quiser
dançar contigo, eu digo que tu estás muito fraca que não te sentes bem. Assim, podes ouvir
a música e ver tudo.
Rosa de Sharon ergueu a cabeça.
- A mãe não me vai deixar dançar, não?
- Não, não vou.
- E não deixa ninguém tocar-me?
- Não.
A rapariga soltou um suspiro. E disse, com desespero na voz:
- Não sei que fazer, mãe, não sei; com franqueza, não sei.
A mãe deu-lhe umas palmadinhas nos joelhos.
- Escuta - disse. - Olha para mim. Vou dizer-te uma coisa. Daqui a pouco tudo
melhorará, vais ver. Daqui a pouco. Olha que é verdade. Bem, agora, vem comigo. Vamonos
lavar e vestir um vestido bonitinho, hein? E vamos ao baile. - Foi conduzindo Rosa de
Sharon até aos lavatórios.
O pai e o tio John estavam acocorados no meio de um grupo de homens, na sacada
do escritório.
- Hoje, por um pouco, quase que arranjávamos trabalho - dizia o pai. - Se tivéssemos
chegado uns minutos mais cedo... já tinham contratado dois tipos. Sim, senhor. Até foi
engraçado. Estava lá um contra-mestre que disse assim: “Acabámos de contratar dois tipos
a vinte e cinco. A gente podia dar trabalho a mais homens ainda, mas só pagando vinte
cents. Podíamos dar trabalho a muita gente ainda, nesta base de vinte. Volte ao seu
acampamento e avise que temos trabalho para muitos homens a vinte cents a hora.
Os homens acocorados agitavam-se nervosamente. Um, muito alto, espadaúdo, cujo
rosto estava completamente ensombrado pelo chapéu preto, deu uma pancada no joelho.
- Eu já conheço essa manobra, com um raio! - gritou.
- E vão arranjar homens. Não falta para aí quem tenha fome. Não se pode dar de
comer a uma família quando se ganha vinte was à hora, mas não há-de faltar quem aceite
assim mesmo. Muita gente há-de querer ir para lá. E eles até vão fazer leilão. Meu Deus!
Daqui a pouco, até hão-de querer que a gente pague para ter o gosto de trabalhar.
- Nós íamos aceitar os vinte cents mesmo - disse o pai. - Precisamos de trabalhar; é
claro que a gente aceitava. Mas aqueles dois tipos que tinham sido contratados, antes,
olharam-nos de tal maneira que a gente não teve coragem de aceitar.
375
O homem do chapéu preto disse:
- É de endoidecer quando se pensa muito nisso. Eu trabalhei para um gajo que nem
pode recolher a safra. Recolher custa mais que todo o valor da safra, e ele nem sabe o que
há-de fazer.
- Olhe, parece-me... - e o pai calou-se. O círculo de homens manteve-se silencioso,
disposto a ouvi-lo. - Bem, eu estive a pensar que a gente devia ter aí um acre de terra nossa.
A minha mulher podia arranjar uns biscatos e criar porcos e galinhas. E nós, homens,
podíamos trabalhar e voltar para casa depois. E as crianças podiam frequentar a escola.
Nunca vi escolas como as daqui.
- Os meus filhos não gostam das escolas daqui - disse o homem do chapéu preto.
- Porquê? Elas são tão bonitas!
- Pois é por isso mesmo. Uma criança esfarrapada, descalça, não pode ver as outras,
de sapatos e meias e calças bonitas e ainda por cima a chamarem-lhe Okie. O meu filho foi
para a escola. Todos os dias tinha de brigar. Isso até foi bom para ele. Fez-se teso. Todos
os dias brigava. Voltava para casa, com a roupa rasgada e o nariz a escorrer sangue. E a
mãe depois, ainda lhe batia. Mandei-a acabar com isso. Não havia razão para toda a gente
malhar no miúdo. Deus do Céu! Mas garanto que alguns daqueles meninos bonitos
passaram mal, ai passaram, passaram! Apanharam a valer, aqueles filhos da mãe, de
calcinhas catitas! Não sei, não sei...
O pai perguntou:
- Bem, e que diabo hei-de eu fazer? A gente já está sem dinheiro. Um filho meu
arranjou trabalho, mas é por pouco tempo. E o que ele ganha não dá para todos
comermos. Acho que vou aceitar essa proposta de vinte cents. É o único remédio.
O homem do chapéu preto ergueu a cabeça. A luz via-se-lhe bem a barbicha que
pespontava o queixo, e o pescoço musculoso, onde os fios da barba corriam como pêlo de
animal.
- Sim, senhor - disse ele com amargura. - Faça isso, faça. Eu ainda ganho vinte e
cinco. Você pega no meu trabalho por vinte e eu vou passar fome de novo e depois tenho
de aceitar trabalho até por quinze. Perfeitamente, pode ir.
- Mas que diabo hei-de eu fazer? - perguntou o pai. - Não posso morrer de fome, lá
porque você ganha vinte e cinco.
O homem do chapéu preto tornou a baixar a cabeça e o seu queixo mergulhou na
sombra.
- Não sei - disse. - Palavra que não sei o que hei-de dizer. É triste a gente ter de
trabalhar doze horas por dia e ainda por cima não comer à vontade. E andar sempre a fazer
376
contas. O meu miúdo já não come o suficiente. Não posso estar sempre a pensar no
mesmo, caramba! É de dar com um homem em doido!
Tom estacionava junto do portão, a observar os que chegavam para tomar parte no
baile. Um projector bem colocado iluminava-lhes as feições. Willie Eaton disse:
- Tenha os olhos bem abertos! Vou mandar o Jule Vitela para aqui. É meio índio.
Um óptimo camarada. Olho alerta, hein? Veja se descobre os tipos.
- Fixe! - respondeu Tom. Ficou a observar os que entravam; as famílias dos pequenos
proprietários das redondezas; raparigas de cabelos entrançados e rapazes todos acatitados
para o baile. Jule não tardou a aparecer também, colocando-se ao lado de Tom.
- Venho ajudá-lo - disse.
Tom observou-lhe o nariz de falcão, o rosto de maçãs salientes e o queixo pequeno e
retraído.
- Dizem que você é meio índio. Mas você parece um índio puro.
- Não - respondeu Jule - só meio. Mas quem me dera ser puro-sangue! Assim, podia
ter um pedacinho de terra no “Reservado” do governo. Os índios puro-sangue levam boa
vida, alguns, pelo menos...
- Repare bem em quem entra - disse Tom.
Os convidados iam entrando pelo portão. Famílias de fazendeiros e de refugiados de
acampamentos vizinhos. Crianças que procuravam libertar-se das mãos dos pais, que as
retinham calmamente.
Jule continuou a falar:
- Engraçada, esta história do baile. A nossa gente está numa situação desgraçada, mas
o facto de terem o direito de convidar os amigos para o baile dá-lhes um bocadito de
ânimo e de orgulho. E as pessoas respeitam-nos por causa destes bailes. Conheço um
sujeito que é dono de uma fazendinha. já lá trabalhei. Vem aqui, ao baile. Fui eu que o
convidei. Ele acha que o nosso baile é o único decente de toda a região. Disse que pode-se
trazer aqui a mulher e as filhas sem receio. Eia! Olhe para aquilo, ali!
Três jovens passaram o portão; tinham aspecto de operários e vestiam fatos de
fustão. Caminhavam ao lado uns dos outros.
O guarda, ao portão, interrogara-os e eles haviam respondido e passado.
- Vigie esses tipos! - disse Jule. Foi falar com o guarda: - Quem foi que convidou
aqueles três gajos? - perguntou.
- Um tal Jackson, do departamento nº 4.
377
Jule voltou para junto de Tom.
- Parece-me que aqueles é que são os tais.
- Como é que sabe?
- Sei lá! E um palpite. Parecem assustados. Vá atrás deles e diga ao Willie para os
vigiar e para perguntar ao Jackson, do departamento nº 4; se foi ele quem os convidou,
traga-o. Quero saber se disseram a verdade. Eu fico aqui à espera.
Vagarosamente, Tom seguiu os três rapazes, os quais se dirigiram ao estrado da
dança, pondo-se ordeiramente no extremo da multidão. Tom viu Willie perto da orquestra
e fez-lhe um sinal.
- Que é que há? - perguntou Willie.
- Aqueles três ali, vê-os?
- Vejo, sim.
- Disseram que eram convidados do Jackson, do departamento nº 4,
Willie estendeu o pescoço e, vendo Huston, chamou-o com um sinal.
- Aqueles três gajos - disse. - Acho melhor a gente procurar o Jackson, do
departamento nº 4, e perguntar-lhe se foi ele quem os convidou.
Huston girou sobre os calcanhares e afastou-se. Instantes depois, regressava na
companhia de um homem do Kansas, magro e ossudo.
- Aqui está o Jackson - disse Huston. - Ouça, Jackson, vê aqueles três tipos, ali?
- Vejo.
- Foi você quem os convidou?
- Não.
- Então não os conhece?
Jackson olhou-os mais detidamente.
- Conheço, sim. Trabalhei com eles na fazenda do Gregório.
- Então eles sabem o seu nome?
- Naturalmente. A gente trabalhou mesmo lado a lado.
- Bom - volveu Huston. - Convém deixá-los em paz. Se se portarem bem, podem
ficar. Obrigado, senhor Jackson.- Virou-se para Tom: - Belo trabalho. Parece-me que estes
são os tais.
- Foi o Jule quem os descobriu - informou Tom.
- Não é de admirar, caramba! - comentou Willie.- Foi o sangue de índio que os
farejou. Bem, vou mostrar esses gajos à rapaziada.
Um adolescente, de uns dezasseis anos, chegou a correr, abrindo caminho entre a
multidão. Estacou, ofegante, diante de Huston.
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- Sr. Huston - disse - estive no sítio que o senhor indicou. Está lá um automóvel
parado, com seis homens, no meio dos eucaliptos, e está outro carro com quatro homens
no caminho do norte. Pedi-lhes lume. Eles estão armados de carabinas; vi-lhes as armas.
Os olhos de Huston tornaram-se duros e cruéis.
- Willie, garantes-me que está tudo em ordem?
Willie sorriu satisfeito.
- Garantido, senhor Huston. Não vai haver novidade.
- Pois bem. Cuidado, não se metam com eles, hein? Lembrem-se bem disto. Se for
possível consegui-lo sem armar escândalo, gostava de ver esses tipos. Eu vou para a minha
tenda.
- Vamos a ver o que se pode arranjar - disse Willie.
O baile, propriamente, ainda não começara, quando Willie subiu ao tablado.
- Vamos à quadrilha! - gritou.
A orquestra não tocava ainda. Raparigas e rapazes subiram ao tablado, formando oito
grupos distintos. Ficaram à espera, parados. As raparigas tinham as mãos à frente e
entretinham-se a mexer os dedos. Os rapazes tamborilavam sem descanso com os pés. Em
torno do tablado encontravam-se os velhos, sorrindo brandamente, enquanto seguravam as
crianças, para que elas não invadissem o recinto. E, afastados, viam-se os Eleitos do
Senhor, de feições endurecidas e ameaçadoras, a observar o pecado.
A mãe e a Rosa de Sharon estavam assentadas num banco, a olhar a cena. E, cada
vez que um rapaz vinha pedir a Rosa de Sharon para dançar, a mãe dizia: “Não, senhor.
Desculpe, mas ela não se sente bem.” - Rosa de Sharon corava e os seus olhos brilhavam.
O mestre-sala avançou até ao centro do tablado e ergueu as mãos:
- Tudo pronto? Então, vamos começar!
A orquestra começou a tocar o Chicken Reel, num tom penetrante e límpido. O
violino esganiçou-se; as gaitas emitiam sons nasais e agudos e os violões tangiam as cordas
graves. O mestre-sala indicou a disposição dos pares e os grupos puseram-se em
movimento. Ondulavam para a frente e para trás... e “dêem as mãos e façam girar a dama.”
Frenético, o mestre-sala marcava o ritmo com os pés; andava de um lado para o outro e
esboçava as figuras, à medida que as ia anunciando.
- Façam girar as damas devagar! Dêem as mãos. Vamos. A música subia e baixava de
volume, e o bater rítmico dos pés no chão soava como rufar de tambores.
- Uma volta à direita e outra volta à esquerda! Larguem as damas, e costas com
costas!- O mestre-sala cantava alto e monotonamente. O penteado das raparigas, tão
cuidadosamente arranjado?, ia-se desfazendo, e o suor formava pérolas na testa dos
379
rapazes. Os dançarinos eméritos mostravam as suas habilidades. E os velhos, à beira do
estrado, contagiados pelo ritmo, batiam palmas com timidez e batucavam com os pés;
sorriam e, quando os olhares se encontravam, acenavam com a cabeça.
A mãe inclinou-se para Rosa de Sharon, dizendo-lhe ao ouvido:
- Talvez tu me não acredites, mas o teu pai, quando era rapaz, era um dos melhores
dançarinos que eu vi na minha vida. - E a mãe sorria. - Isto faz-me lembrar os velhos
tempos - disse.
E, nas feições de outros espectadores, estampava-se o brilho das recordações.
- Lá para cima, na zona de Muskogee, há vinte anos, havia um cego que tocava
rabeca...
- Uma vez, vi um tipo que batia os calcanhares quatro vezes num salto só...
- Os suecos, lá em Dakota... sabes o que costumavam fazer? Punham pimenta no
chão e a pimenta pegava-se aos vestidos das raparigas, que ficavam assanhadas como potras
com cio. Ás vezes, faziam isso, aqueles malvados daqueles suecos...
À distância, os Eleitos do Senhor, sustinham os filhos, impacientes.
- Olhem o pecado! - diziam-lhes. - Aquela gente vai toda para o inferno, a cavalo
num ferro de fogão em brasa.
E as crianças mantinham-se caladas e nervosas.
- Mais uma volta e depois descanso - cantou o mestre-sala. - Toquem depressa, que
vamos parar não tarda nada.
As raparigas já estavam suadas e vermelhas. Dançavam de boca aberta e tinham no
rosto uma expressão grave. Os rapazes atiravam para a nuca os cabelos compridos,
saltavam e sapateavam nas pontas dos pés ou batiam os calcanhares. Os grupos
movimentavam-se para dentro e para fora, cruzando-se, vindo para fora, redemoinhando e
a música guinchava.
E, de repente, acabou. Os dançarinos imobilizaram-se, a arquejar de fadiga. As
crianças escapuliram-se das mãos dos pais e correram para o estrado, perseguindo-se
loucamente umas às outras; corriam, esgueiravam-se, roubavam bonés e puxavam
mutuamente os cabelos. Os dançarinos sentaram-se, abanando-se com as mãos. Os
componentes da orquestra punham-se de pé, estendiam os braços e as pernas e tornavam a
sentar-se. E os guitarristas afinavam com brandura as cordas das guitarras.
Willie tornou a gritar:
- Escolham os seus pares pala a nova quadrilha se têm coragem!
Os dançarinos puseram-se de pé. Outros rapazes chegavam, à procura de raparigas
com quem pudessem dançar. Tom vigiava os três suspeitos. Viu-os abrir caminho através
380
da multidão que ladeava o estrado e dirigirem-se a um dos grupos que se tinham formado
para começar a dança. Fez um sinal a Willie, e este foi dizer qualquer coisa ao violinista.
Este arrancou alguns guinchos do instrumento. Vinte rapazes começaram a aproximar-se
com ar negligente. Os três suspeitos haviam chegado ao recinto. E um deles disse:
- Eu é que vou dançar com esta pequena.
Um rapaz loiro olhou-o cheio de surpresa
- Mas ela é o meu par...
- Olhe lá, 6 seu grande filho...
Um assobio penetrante soou ao longe, na escuridão. Os três provocadores viram-se
cercados por essa altura. E cada um deles se sentiu seguro por mãos fortes. Então, a
muralha de homens começou a afastar-se lentamente do estrado.
Willie berrou:
- Vamos!
A música guinchou de novo, o mestre-sala indicou os passos e os pés começaram a
bater no chão.
Um carro de turismo, vindo da estrada, aproximou-se do portão.
O motorista gritou:
- Abram a porta! há aí uma briga.
O guarda permaneceu imóvel.
- Aqui dentro não há desordem nenhuma. Não ouve a música a tocar? Quem é você?
- Sou o delegado da polícia.
- Tem ordem de prisão?
- Quando se verifica desordem, não há necessidade de ordem de prisão.
- Está bem, mas é que não há desordem nenhuma! - objectou o guarda.
Os homens, no interior do carro, ouviam a música tocar e os gritos do mestre-sala.
Lentamente, o carro de turismo foi rodando e postou-se numa encruzilhada, à espera.
Metidos no meio da muralha de guardas especiais, os três provocadores viam a sua
acção completamente neutralizada. Achavam-se agarrados pelos pulsos e tinham as bocas
tapadas por mãos possantes. Quando chegou a um ponto escuro do acampamento, a
muralha desfez-se.
Tom disse:
- Foi um serviço bem feito. - Prendia os braços de um dos provocadores por detrás.
Willie vinha do tablado, a correr para eles.
- Belo trabalho! - disse. - Bom. Agora basta que fiquem aqui seis homens. Ó Huston,
quer ver estes gajos?
381
Mas Huston já se aproximava, surgindo da escuridão.
- São estes os tais, hein?
- São - confirmou Jule. - Iam justamente começar, mas nem chegaram a dar o
primeiro soco.
- Quero ver a cara deles.
Dispuseram os prisioneiros de maneira que Huston lhes pudesse ver as feições. Mas
os três rapazes conservavam a cabeça baixa. Huston iluminou-lhes o rostos sombrios com
uma lanterna eléctrica.
- Porque fizeram isto? - perguntou. Não houve resposta. - Quem os mandou fazer
isto?
- Nós não fizemos nada, com os diabos! Queríamos apenas dançar.
- Dançar o quê? Tu querias era dar uma sova naquele rapazito - disse Jule.
Tom informou:
- Senhor Huston, justamente no momento em que esses tipos entravam na pista,
alguém deu um assobio.
- Sim, eu sei. Os polícias chegaram logo ao portão. - Dirigiu-se novamente aos
prisioneiros. - Bom, vocês não vão levar nenhuma sova. Só quero que me digam quem foi
que os mandou provocar barulho no nosso baile. - Ficou à espera de uma resposta. -
Vocês, afinal, são gente da nossa - disse Huston, com tristeza. - Vocês são dos nossos.
Como tiveram a coragem de querer fazer uma coisa destas? A gente sabe de tudo -
acrescentou.
- Meu Deus, a gente também precisa de viver!
- Mas quem foi que vos mandou provocar barulho? Quem lhes pagou este serviço.
- Ninguém nos pagou nada.
- Nem vai pagar. Não houve briga, não há dinheiro. Não é verdade?
Um dos homens amarrados disse:
- Pode fazer o que quiser. A gente não diz nada. Huston baixou a cabeça por um
instante. Depois, falou brandamente:
- Muito bem. Nem precisam dizer nada. Mas, pelo amor de Deus, não esfaqueiem
pelas costas a vossa própria gente. Nós também queremos viver a nossa vida; ter alguns
instantes de alegria e manter a ordem entre nós. Não venham estragar todo este nosso
trabalho. Pensem um pouco nisto tudo. Vocês só fazem mal a você s mesmos. Muito bem,
rapaziada. Peguem neles e ponham-nos lá fora, pela cerca do fundo. Mas não lhes batam.
Eles não sabem o que fazem.
382
O grupo começou a mover-se em direcção ao fundo do acampamento, e Huston
ficou-se a olhá-lo.
Jule disse:
- Pelo menos, um bom pontapé hão-de levar.
- Não, não façam isso! - gritou Willie. - Eu prometi que não lhes bateríamos.
- Mas só um pontapé, um só! - suplicou Jule. - Para os fazer voar pela cerca.
- Não, senhor - perseverou Willie. - Escutem, desta vez, vocês escapam. Mas ficam
avisados. Se isto acontecer outra vez, vocês hão-de passar um mau bocado: rebentamoslhes
os ossos todos. Podem dizer isto lá aos vossos companheiros.
O Huston supõe que vocês são dos nossos. Pode ser que sejam. Mas eu até fico
danado só de pensar nisso.
Chegaram à cerca. Dois dos guardas que ali se encontravam sentados ergueram-se e
foram ao encontro deles.
- Temos aqui uns amigos com vontade de se irem embora cedo - disse Willie.
Os três rapazes galgaram a cerca e desapareceram na escuridão.
E o grupo regressou rapidamente ao estrado da dança. A orquestra tocava “Ol'Dan
Tucker”, a guinchar em tom lamentoso. Ali perto, diante do escritório, os homens ainda se
conservavam acocorados a palestrar, e as notas agudas iam morrer-lhes nos ouvidos.
O pai vaticinou:
- Isto vai mudar brevemente. Não sei como vai ser, mas muda. Pode ser que a gente
não chegue a ver isso. Mas essa mudança está para breve. Toda a gente anda inquieta. Nem
a gente pode pensar, de tão nervosa que anda.
O homem do chapéu preto tornou a erguer a cabeça e a luz projectava-se-lhe na
barbicha hirsuta. Apanhou alguns seixos do chão e atirou-os como berlindes com o auxílio
do polegar.
- Não sei. Também acho que a coisa vem aí, como você diz. Um sujeito contou-me o
que se passou em Akron, no estado de Ohio, nas companhias de borracha. Eles foram
buscar gente à serra, para trabalhar por salários baixos. Um dia, aquele pessoal da serra
entrou para a União. Pois foi o diabo. Os negociantes, os legionários, toda aquela gente
berrava de raiva. “Vermelhos!” gritavam. E queriam expulsar a União de Akron. Os
pregadores falavam sobre o assunto; os jornais uivavam, e as companhias distribuíam
picaretas e compravam gás lacri... mejante ou lacrimogénio, sei lá! Livra, pareciam uns
verdadeiros demónios, aqueles rapazes da serra! - Interrompeu-se, apanhando mais seixos
para os atirar. - Sim, senhor... Foi em Março do ano passado. Num domingo, cinco mil
daqueles tipos da serra começaram a atirar ao alvo nos arredores da cidade. Cinco mil
383
homens marchavam, armados de carabinas. Atiraram ao alvo, e depois regressaram,
marchando como soldados. Foi só o que fizeram mas, desde então, não, houve mais
questões. Os comités de cidadãos devolveram as picaretas que tinham recebido, e os
negociantes ocuparam-se com os seus negócios; ninguém apanhou pancada; não puseram
ninguém em barricas de alcatrão, nem untaram quem quer que fosse com penas de galinha,
nem mataram ninguém. - Houve um silêncio prolongado, e então o homem do chapéu
preto continuou: - Esta gente daqui está-se a fazer ruim como o diabo. Queimaram aquele
acampamento e lançaram-nos as culpas. Pensei muito a esse respeito. Toda a gente tem
espingardas. Pensei que talvez a gente pudesse fundar um clube de tiro ao alvo, e fazer
concursos de tiro todos os domingos.
Os homens olharam-no e tornaram a pregar os olhos no chão. Mexiam
nervosamente os pés e apoiavam-se ora numa perna ora noutra.
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