Capítulo XXV
É bela a Primavera na Califórnia. Nos vales, as flores das árvores frutíferas parecem
águas perfumadas, brancas e cor-de-rosa, num mar pouco profundo. Então, as primeiras
gavinhas das uvas, rebentando das vinhas nodosas, pendem, cobrindo os troncos. As
colinas, cheias e verdes, arredondam-se, macias como seios. E, na planície, as hortas
estendem-se em filas de muitas léguas: filas de alface de um verde pálido, de pequenas
couves-flores de forma alongada e de alcachofras tingidas de um cinzento verdoengo,
quase irreal.
As folhas rebentam nas árvores, e as pétalas tombam das árvores frutíferas,
atapetando a terra de branco e de cor-de-rosa. Os ovários das flores entumecem,
aumentam e começam a colorir-se: cerejas e maçãs, pêssegos e peras, limões, cujo fruto
encerra a flor. A Califórnia inteira apressa-se a produzir e a fruta torna-se pesada. Os
ramos, pouco a pouco, dobram-se sob o próprio peso, de maneira que se torna necessário
colocar escoras para que possam suportar o seu fardo.
Por detrás dessa fecundidade, há homens de inteligência, de conhecimentos e de
habilidade, homens que fazem experiências com as sementes, que vão desenvolvendo a
técnica que proporciona maiores colheitas das plantas, cujas raízes têm de resistir aos
milhões de inimigos terrestres: ao bolor, aos insectos, à ferrugem e às doenças das plantas.
Esses homens trabalham cuidadosa e infatigavelmente para aperfeiçoarem as sementes e as
raízes. E ao lado deles encontram-se os químicos, borrifando as árvores no combate contra
a peste, enxofrando as uvas, para aniquilar doenças e podridões, míldio e outras
enfermidades. Doutores em medicina preventiva, homens da fronteira, espreitando as
moscas da fruta, o escaravelho japonês; homens que obrigam as árvores doentes a
quarentena ou que as destroem pelo fogo - homens de ciência. Os homens que enxertam as
árvores jovens ou as vinhas novas são os mais hábeis de todos.
É que o seu ofício é o de um cirurgião, e tão fino e tão delicado como o deste, e esses
homens têm de possuir as mãos e o coração de um cirurgião, para fenderem a casca, para
colocarem os enxertos, para atarem as feridas, protegendo-as do ar. São homens notáveis.
Ao longo das filas, caminham os camponeses; arrancam as ervas da Primavera,
deitando-as na terra, a fim de a tornar fértil. Abrem o chão, para que mantenha a água
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perto da superfície, estriam-no por meio de pequenos fossos de irrigação, destroem as
ervas daninhas que poderiam beber a água destinada às árvores.
E, durante todo esse tempo, os frutos vão crescendo, e as flores rebentam nas
vinhas, pendendo em compridas umbelas. Com o correr dos dias, o calor aumenta e as
folhas tingem-se de verde-escuro. As ameixas alongam-se, como ovinhos verdes de
pássaro, e os ramos curvam-se ao peso e abaixam-se sobre os suportes que os escoram. As
peras, pequenas e duras, adquirem forma e nos pêssegos desponta a primeira penugem. As
flores da uva perdem as suas pétalas minúsculas, e as contas pequenas e duras
transformam-se em botões verdes, e os botões começam a adquirir peso. Os homens que
trabalham nos campos e os proprietários dos pequenos pomares vigiam e fazem cálculos.
Este ano é fecundo e abundante. E os homens sentem orgulho, pois são capazes, devido à
sua perícia, de tornarem o ano fecundo e abundante. Eles têm transformado o mundo com
a sua técnica extraordinária. O trigo curto e delgado tornou-se cheio e produtivo. De
pequenas maçãs azedas fizeram maçãs grandes e doces, e aquela vinha velha, que crescia
entre árvores, alimentando as aves com os seus frutos minúsculos, engendrou milhares de
variedades; vermelhas e pretas, verdes e rosadas, purpúreas e amarelas; e cada variedade
tem o seu gosto característico. Os homens que trabalham nos campos experimentais
criaram frutas novas: nectarinas e quarenta espécies de ameixas e de nozes, com uma casca
fina como o papel. E continuam trabalhando, escolhendo, enxertando, mudando; estão-se
compelindo a si mesmos, compelindo a terra a produzir.
As primeiras cerejas amadurecem. Um cent e meio a libra. Meu Deus! Mas a gente
pode lá colhê-las por esse preço! Cerejas pretas e cerejas encarnadas, cheias e doces, e as
aves comem a metade de cada cereja, e as vespas infiltram-se nos buracos feitos pelas aves.
Os caroços caem no chão, secos, com pedaços pretos agarrados.
As ameixas purpúreas tornam-se doces e macias. Santo Deus! É impossível colhê-las,
secá-las e enxofrá-las. A gente não pode pagar salários, seja que salários for. E as ameixas
purpúreas alcatifam o chão. Primeiro, a pele enruga um pouco e os enxames de moscas
apanham o seu festim. Sobre o vale paira um cheiro de podridão. A polpa torna-se escura e
a colheita murcha no chão.
As peras fazem-se amarelas e macias. Cinco dólares a tonelada. Cinco dólares por
caixas de quarenta a cinquenta libras. As árvores mondadas e cuidadas... homens
especializados... e colher as frutas e pô-las em caixas, carregar os camiões, entregar as frutas
na fábrica de conservas... quarenta caixas por cinco dólares. Mas não pode ser... a gente não
pode! E as frutas amarelas caem no chão pesadamente, e nele rebentam. As vespas
mergulham na polpa mole, e espalha-se um cheiro de fermentado e de podridão.
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Depois, vêm as uvas... Não se pode fazer bom vinho. O pessoal não pode comprar
bom vinho. Arranquem os cachos das vinhas, uvas boas, uvas podres, uvas carcomidas.
Espremam os talos, espremam o que está sujo e podre; tudo.
Mas nas cubas há míldio e ácido fórmico.
Ponham enxofre e ácido tânico.
A fermentação não exala o aroma rico do vinho, mas odores de decadência e de
drogas.
Não faz mal. De qualquer maneira têm álcool. A gente pode embriagar-se mesmo
assim.
Os pequenos fazendeiros observam como as dívidas sobem insensivelmente, como o
crescer da maré. Cuidaram das árvores, sem vender a colheita, podaram e enxertaram e não
puderam colher as frutas. Os homens de ciência trabalharam e meditaram e as frutas
apodrecem no chão e a mistura deteriorada nas cubas de vinho empesta o ar. E provem o
vinho... nada nele existe do aroma das uvas; há somente enxofre, ácido tânico e álcool.
Este pequeno pomar, para o ano que vem, pertencerá a uma grande companhia, pois
o proprietário será sufocado pelas dívidas.
Este parreiral passará a ser propriedade do banco. Apenas os grandes proprietários
podem subsistir, visto que também possuem fábricas de conservas. Quatro peras
descascadas e partidas pelo meio, cozidas e postas em latas custam sempre quinze cents. E
as peras enlatadas não se estragam. Conservam-se anos.
A podridão alastra por todo o Estado e o cheiro doce torna-se uma grande
preocupação nos campos. Os homens que sabem enxertar as árvores e tornar fecundas e
fortes as sementes, não encontram meios de deixarem a gente esfaimada comer os seus
produtos. Homens que criaram novas frutas para o mundo, não sabem criar um sistema
pelo qual as tais frutas possam ser comidas. E o malogro paira sobre o Estado como um
grande desgosto.
As operações praticadas nas raízes das vinhas e das árvores devem ser destruídas,
para que sejam mantidos os preços elevados. E isto o mais triste, o mais amargo de tudo.
Carradas de laranjas são atiradas para o chão. O pessoal vinha de milhas de distância para
buscar as frutas, mas agora, não lhes é permitido fazê-lo. Não iam comprar laranjas a vinte
cents a dúzia, quando bastava pular do carro e apanhá-las do chão. Homens armados de
mangueiras derramam querosene por cima das laranjas e enfurecem-se contra o crime,
contra o crime daquela gente que veio à procura das frutas. Um milhão de criaturas com
fome, de criaturas que precisam de frutas... e o querosene derramado sobre as faldas das
montanhas douradas.
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O cheiro da podridão enche o país.
Queimam café como combustível de navios. Queimam o milho para aquecer; o
milho dá um lume excelente. Atiram batatas aos rios, colocando guardas ao longo das
margens, para evitar que o povo faminto intente pescá-las. Abatem porcos, enterram-nos e
deixam a putrescência penetrar na terra.
Há nisto tudo um crime, um crime que ultrapassa o entendimento humano. Há nisto
uma tristeza, uma tristeza que o pranto não consegue simbolizar. Há um malogro que opõe
barreiras a todos os nossos êxitos; à terra fértil, às filas rectas de árvores, aos troncos
vigorosos e às frutas maduras. Crianças atingidas de pelagra têm de morrer porque a laranja
não pode deixar de proporcionar lucros. Os médicos legistas devem declarar nas certidões
de óbito: “Morte por inanição”, porque a comida deve apodrecer, deve, por força,
apodrecer.
O povo vem com redes para pescar as batatas no rio, e os guardas impedem-no. Os
homens vêm nos carros ruidosos apanhar as laranjas caídas no chão, mas as laranjas estão
untadas de querosene. E ficam imóveis, vendo as batatas passarem flutuando; ouvem os
gritos dos porcos abatidos num fosso e cobertos de cal viva; contemplam as montanhas de
laranjas, rolando num lodaçal putrefacto. Nos olhos dos homens reflecte-se o malogro.
Nos olhos dos esfaimados cresce a ira. Na alma do povo, as vinhas da ira crescem e
espraiam-se pesadamente, pesadamente amadurecendo para a vindima.
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Capítulo XXVI
A família Joad descansava, após o jantar, no acampamento de Weedpatch, numa
tarde em que franjas extensas de nuvens se deitavam sobre o sol poente que lhes tingia as
fímbrias de vermelho. A mãe hesitava, antes de se entregar à tarefa de limpar os pratos.
- A gente tem de fazer seja o que for - dizia ela, apontando para Winfield. - Olhem
para ele! - E, quando todos tinham os olhos pregados no rapazinho, continuou: - Olhem
como ele treme, torcendo-se todo no sono! Olhem para a cor dele! - E os restantes
membros da família, envergonhados, tornavam a cravar os olhos no chão. - Massa frita -
disse a mãe. - Há um mês que a gente aqui está. O Tom só trabalhou cinco dias. Todos
vocês têm procurado e não encontram serviço nenhum. E têm medo de falar nisso. O
dinheiro foi-se. E vocês com medo de falar nisso. Quando chega a noite, o que fazem é
jantar e tratar de sair. Não têm coragem de falar no que se passa. Mas tem de ser. A
Rosasharn está a acabar o seu tempo e olhem para a cor dela! Devem falar sobre a nossa
situação. Não quero que nenhum de vocês saia daqui antes de resolver tudo. A gente ainda
tem banha para um dia e farinha para dois. E dez batatas. Fiquem sentados e puxem pela
cabeça.
Todos estavam de cabeça baixa. O pai limpava as unhas espessas com o canivete. O
tio John entretinha-se a arrancar uma lasca do caixote em que estava sentado. Tom mordia
o lábio inferior e afastava-o depois dos dentes.
Deixando os lábios em paz, Tom disse brandamente:
- A gente tem andado sempre à procura, mãe. Andámos até gastar toda a gasolina.
Batemos a todas as portas, a todas as casas de fazendas, mesmo quando já sabíamos que
não valia a pena. É isto o que incomoda a gente; procurar uma coisa que já se sabe que se
não arranja.
A mãe prosseguiu com violência:
- Vocês não têm o direito de perder a coragem. A nossa família vai-se desfazendo aos
poucos. Vocês têm de ter coragem!
O pai contemplava as unhas que acabara de limpar.
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- A gente já devia ter-se ido embora daqui. Mas a gente não quis ir. Por aqui é tudo
tão bonito; as pessoas, tão boas e amigas! E o medo de ter de cair outra vez em
Hooverville.
- E que tem isso? O principal é termos que comer.
Al interveio:
- O tanque de gasolina está cheio. Eu não quis dizer a ninguém, mas ele ainda está
cheio.
Tom sorriu.
- Este Al não é tão tolo como parece.
- Bom, então puxem pela cabeça - disse a mãe. - Não posso mais ver a minha família
a morrer de fome aos poucos. Ainda temos banha para um dia. É tudo, compreenderam?
Dentro em pouco, a Rosasharn vai ter o bebé e tem de se alimentar muito bem. Pensem
nisto.
- Aqui há água quente e umas retretes tão bonitas... - começou o pai.
- Pois sim, mas a gente não pode comer retretes.
- Esteve aqui, hoje, um sujeito à procura de gente para apanhar fruta em Maryswille -
disse Tom.
- Então porque é que a gente não vai para Maryswille? - perguntou a mãe.
- Sei lá! - respondeu Tom. - A coisa não me cheirou lá muito bem. Ele insistia
demais. E não queria dizer quanto pagava. Disse que não sabia ao certo.
- Vamos a Marysville. Não interessa quanto pagam. Vamos para lá! - aconselhou a
mãe.
- É muito longe - disse Tom. - Não temos dinheiro para a gasolina. A gente não
conseguia lá chegar, mãe. A senhora disse para a gente puxar pela cabeça. É o que nós
temos feito sempre.
O tio John então falou:
- Disse-me um sujeito que é agora a época do algodão lá para o norte, para as bandas
de Tulare. Disse que não é muito longe daqui.
- Pois bem; temos de ir e depressa. Não podemos ficar aqui, por mais bonito que isto
seja.
A mãe apanhou o balde e foi até ao departamento sanitário buscar água quente.
- A mãe está a fazer-se tesa - afirmou Tom. - Ela tem andado muito zangada nos
últimos tempos. Até parece que ferve.
O pai respondeu, aliviado:
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- Ainda bem que foi ela quem começou a falar nisto tudo. Estive toda a noite a
queimar os miolos com isto. Agora já se pode falar abertamente no assunto.
A mãe regressava com um balde de água fumegante.
- Então? - inquiriu. - Resolveram alguma coisa?
- Estamos a falar nisso - respondeu Tom. - E se a gente fosse para o norte, colher
algodão? Sabemos que por aqui não se arranja nada. Que tal arrumar tudo e ir para o norte?
A gente chega justamente na época da safra. Até j à tenho vontade de sentir o algodão nas
mãos. O tanque está cheio, não está, Al?
- Está. Quase cheio; devem faltar umas duas polegadas.
- Acho que dá para a viagem.
A mãe pôs um prato em cima do balde.
- Então? - perguntou.
- A senhora ganhou, mãe. Acho que devemos sair daqui já. Não lhe parece, pai? -
perguntou Tom.
- Eu também acho que sim - respondeu o pai.
A mãe lançou-lhe um rápido olhar.
- Quando?
- Bem, esperar muito não vale a pena. Acho melhor a gente, partir amanhã cedo.
- É bom sairmos cedo, realmente. Já lhes disse que a comida está no fim.
- Olhe, mãe, não pense que eu não quem ir. Há já duas, semanas que não tenho
metido na barriga coisa que preste. Enchi-a, é certo, mas garanto-lhe que não tirei nenhum
proveito disso.
A mãe mergulhou o prato no balde.
- Vamos partir amanhã de madrugada.
O pai fungou:
- Parece que as coisas vão mudando – disse, sarcástico. - Lembro-me do tempo em
que era o homem quem dizia o que se devia fazer. Parece que é a mulher agora quem faz
isso. É a altura de uma pessoa puxar por um pau.
A mãe colocou num caixote o prato de folha, limpo e ainda gotejante de água. Sorriu,
debruçada sobre a sua tarefa.
- Vai, vai buscar um pau - disse. - No dia em que a gente tiver um buraco onde
morar, pode ser que tu te possas servir desse pau sem arriscares a pele. Mas agora tu não
fazes coisa nenhuma, não trabalhas e nem sequer pensas. Quando fizeres tudo isso, muito
bem. Então poderás manejar o pau e a tua mulher ficará a fungar e a pôr-se de cócoras
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diante de ti. Mas agora, não. Agora encontras a mulher pela frente. Eu também posso
puxar de um pau para te desancar.
O pai sorriu com um sorriso contrafeito.
- Acho que não é bonito as crianças ouvirem-te falar assim. - Antes de dizeres o que
é justo, enche a barriga das crianças com presunto.
O pai ergueu-se, todo aborrecido, e saiu. O tio John foi-se atrás dele.
As mãos da mãe estavam mergulhadas na água e os seus olhos seguiram os dois
homens que iam saindo. Voltou-se para Tom e disse com orgulho:
- Ele é bom homem. E não se deixa abater. Isso de me dar pancada não é com ele.
Tom deu uma risada.
- A senhora quis levantar-lhe o ânimo, não foi?
- Claro - concordou a mãe. - Imagina um homem que vive preocupado sempre, a
moer o fígado. Não tarda que não desanime de todo e se deixe ficar sem poder reagir. Mas,
se alguém conseguir fazê-lo enraivecer, a coisa muda. Entra nos eixos, garanto-te. Sabes? O
pai não disse nada, mas está a rebentar de raiva. Agora, entra nos eixos, vais ver.
Al levantou-se e disse:
- Vou dar uma voltinha.
- Seria melhor verificares se o camião está em condições de seguir viagem -
aconselhou Tom, em ar de advertência.
- Está. Já verifiquei.
- Se não estiver, vais-te ver às voltas com a mãe.
- Já disse que está.
Al saiu, caminhando com pose ao longo da rua das tendas. Tom suspirou.
- Estou cansado de tudo isto, mãe. A senhora tem de me espicaçar também a mim.
- Tu tens mais energia, Tom. Não precisas disso. Eu confio em ti. Os outros... de
certo modo, são para mim uns estranhos. Todos, menos tu. Tu não és dos que desistem,
Tom.
Tom não gostou da responsabilidade que lhe caía sobre os ombros.
- Não gosto lá muito disso, mãe - confessou. - Quero ser livre como o Al, enraivecerme
como o pai ou embriagar-me como o tio John.
A mãe sacudiu a cabeça.
- Mas tu não podes, Tom; mesmo que queiras, não podes. Eu já tinha essa certeza
ainda tu eras pequenino. Há pessoas que só se preocupam consigo e nada mais. Vê o Al... é
um rapaz que só tem uma preocupação: andar atrás das raparigas. Tu nunca assim foste,
Tom.
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- Fui, sim, então não fui? - perguntou Tom. - E ainda assim sou.
- Não, tu não és. Tudo o que fazes não é só por ti. Quando te prenderam, eu já sabia
que isso iria acontecer. Tu és dos eleitos.
- Ora, mãe, deixe-se disso. Isso é fantasia sua.
A mãe colocou as facas e os garfos nos pratos.
- Pode ser. Pode ser que seja fantasia minha. Rosasharn: vem enxugar estes talheres e
guardá-los depois!
A rapariga ergueu-se, com um respirar de asmática; e a barriga saliente empinava-se
diante dela. Dirigiu-se indolentemente para o caixote e apanhou um prato lavado.
- Tem a pele tão esticada que nem consegue fechar os olhos.
- Não brinques com ela - advertiu a mãe. - A Rosasharn é uma boa rapariga. É
melhor tu ires dizer adeus aos teus conhecidos.
- Está bem - respondeu Tom. - Vou aproveitar para saber a que distância fica o tal
sítio.
A mãe disse a Rosasharn:
- Ele não diz isso para te aborrecer. Onde estão a Ruthie e o Winfield?
- Escapuliram-se atrás do pai. Vi-os sair.
- Está bem. Deixa-os brincar um pouco.
Rosa de Sharon executava preguiçosamente a sua tarefa. A mãe observava-a com
atenção.
- Não te sentes bem? Estás com uma cara tão fatigada!
- Não tomei o leite que devia tomar...
- Eu sei. Mas não foi possível arranjar-te leite. Rosa de Sharon volveu com ar
sombrio: - Se o Connie se não tivesse ido embora, a gente, agora, podia arranjar uma
casinha e ele ia estudar e tudo. E eu teria o leite que quisesse e então nasceria um bebé bem
bonito e gordo. Assim o bebé não vai ser forte. Eu precisava de beber leite. - Tirou
qualquer coisa do bolso do avental e levou-a rapidamente à boca.
A mãe perguntou:
- Engoliste qualquer coisa. Que foi?
- Nada.
- Nada? Eu vi. Diz lá o que foi.
- Foi um pedacinho de cal que achei ali fora.
- Mas para que é que comes essas porcarias?
- Sei lá! Sinto desejos...
A mãe calou-se. Afastou os joelhos e esticou a saia entre eles.
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- Eu sei - disse finalmente. - Uma vez, quando estava assim como tu, comi um
pedaço de carvão. Um bom pedaço de carvão. A avó disse-me que não fizesse semelhante
coisa. Mas olha, não fales assim do teu bebé. Não tens o direito de falar assim.
- Ora, não tenho marido, não tenho leite. Não tenho nada!
A mãe continuou:
- Se tu ainda fosses criança, levavas agora uma bofetada. Mesmo na cara, ouviste? -
Levantou-se e entrou na tenda. Um instante depois, regressava com a mão estendida para
Rosa de Sharon.
- Toma! - disse. Trazia nas mãos dois brincos de oiro. - Isto é para ti.
Os olhos da rapariga brilharam por um segundo; mas depois, desviou-os lentamente.
- Não tenho as orelhas furadas.
- Mas eu furo-tas agora.
A mãe voltou a correr, ao interior da tenda, e não tardou a regressar com uma
caixinha de papelão. Rapidamente, enfiou uma linha numa agulha, e, dobrando a linha, fez
nela uma série de nós. Pegou noutra agulha e repetiu a operação. Da caixinha, retirou um
pedaço de cortiça.
- Mas isso vai doer. Isso vai doer!
A mãe postou-se ao lado dela e encostou-lhe a cortiça ao lóbulo da orelha. Depois
espetou a agulha na orelha, fazendo-a penetrar na cortiça, que, do outro lado, servia de
apoio.
A jovem contraiu-se.
- Ui, pica! Vai-me fazer doer!
- Não dói mais do que isto.
- Dói, sim, eu sei que dói.
- Pois então, vamos começar pela outra orelha, já que nesta te faz doer.
Apoiou a cortiça e perfurou a outra orelha.
- Vai doer!
- Chiu! - disse a mãe. - Já está pronto.
Rosa de Sharon olhou-a cheia de surpresa. A mãe cortou a linha para tirar as duas
agulhas e fez passar um nó de cada fio através dos lóbulos.
- Pronto - disse a mãe. - Todos os dias, a gente faz passar um nó e, daqui a umas
duas semanas, já estás em condições de usar os brincos. Toma, fica com eles; agora são
teus.
Rosa de Sharon apalpou timidamente as orelhas, contemplando depois a gotinha de
sangue que lhe ficara nos dedos.
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- Não doeu - confessou ela. - Só senti uma picada.
- Já há mais tempo que devíamos ter feito isto - disse a mãe. - Olhou a filha com uma
expressão triunfal. - Bom, vê se acabas de enxugar os pratos, agora, o teu menino vai ser
um bebé bem bonito. Por um pouco que ias ter o menino sem as orelhas furadas. Mas
agora já não há perigo.
- Isso quer dizer alguma coisa?
- Claro que quer dizer muita coisa.
Al caminhava vagarosamente pela rua, dirigindo-se ao estrado da dança. Perto de
uma tenda pequena, muito asseada, soltou um assobio. E continuou a caminhar, até ao fim
dos terrenos. Sentou-se sobre um barranco onde crescia a erva.
As nuvens, a ocidente, já não tinham tarjas vermelhas; agora haviam escurecido no
centro. Al coçou as pernas, contemplando o céu vespertino.
Instantes depois, uma rapariga loira aproximava-se. Era bonita e de traço finos.
Sentou-se também na erva, ao lado de Al, sem dizer palavra. Al enlaçou-a pela cintura,
acariciando-a com os dedos.
- Está quieto! - disse ela. - Fazes-me cócegas.
- Vamo-nos embora daqui amanhã.
Ela olhou-o com surpresa.
- Amanhã? Para onde?
- Para o norte - respondeu ele com desembaraço.
- Mas a gente ia casar, não ia?
- Claro. Um dia, a gente casa-se.
- Mas tu disseste que era daqui a pouco tempo - disse a rapariga furiosa.
- Bem, daqui a pouco ou daqui a algum tempo é a mesma coisa.
- Mas tu prometeste...
Ele começou a avançar com os dedos.
- Deixa-me! - gritou ela. - Tu disseste que casavas comigo.
- Pois disse, sim, senhora.
- E agora vais-te embora?
Al perguntou-lhe:
- Mas que tens tu? Esperas algum menino?
- Não, não espero coisa nenhuma.
Al pôs-se a rir.
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- Quer dizer que perdi o meu tempo.
Ela ergueu o queixo e levantou-se num pulo.
- Vai, vai-te embora, Al Joad! Deixa-me em paz! Não te quero ver mais!
- Ora vem cá. Que é que tu tens?
- Pensas que podes fazer o que te apetecer?
- Escuta, espera aí.
- Tu pensas que não tenho mais ninguém, que és só tu. Pois estás enganado. Há uma
porção de rapazes que me querem. É só eu escolher.
- Ouve lá. Quero conversar contigo.
- Não oiço coisa nenhuma. Põe-te a andar.
Al virou-se de súbito e segurou-lhe os tornozelos, fazendo-a tropeçar. Apanhou-a na
queda e enlaçou-a com os braços, tapando-lhe a boca com a mão. Ela procurou mordê-lo
mas ele pôs a mão em concha e manteve-a no chão com o outro braço. Instantes depois, a
rapariga já se não debatia e, daí a pouco, ambos riam sobre a erva seca.
- Olha, a gente volta não tarda - disse Al. - Nessa altura, eu hei-de ter os bolsos
cheios de massa. E a gente vai até Hollywood, ver as fitas.
A rapariga estava deitada de costas. Al debruçou-se sobre o corpo dela. E viu-lhe nos
olhos os reflexos da estrela da tarde e os reflexos das nuvens negras.
- Vamos de comboio - disse ele.
- Quanto tempo vão ficar por lá? - inquiriu ela.
- Naturalmente um mês - foi a resposta.
A noite estendeu o seu manto escuro. O pai e o tio John, em companhia dos outros
chefes de família estavam acocorados em frente do escritório. Examinavam a noite e o
futuro. O director, de fato branco, rasgado mas limpo, apoiava os cotovelos na balaustrada
da varanda. Tinha o rosto cansado, abatido.
Huston ergueu os olhos para o director:
- Seria melhor o senhor ir ver se dorme.
- A ideia não é nada má. Ontem à noite nasceu uma criança no departamento nº 3.
Vou-me transformando a pouco e pouco numa parteira perfeita.
- Um homem tem de perceber dessas coisas - disse Huston. - Sobretudo um homem
casado.
- Nós vamo-nos embora - disse o pai. - Amanhã de manhã.
- Sim? Para onde vão?
- Lá para as bandas do norte. Vamos ver se chegamos para as primeiras colheitas do
algodão. Por aqui não se arranja trabalho. E não há nada que se coma.
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- E lá? Vocês têm a certeza de que vão arranjar trabalho? - perguntou Huston.
- Não, mas temos a certeza de que por aqui é que não se arranja.
- Mais tarde, talvez. Nós vamos esperar - disse Huston.
- Bem, vontade de esperar mais um pouco também não nos falta - continuou o pai. -
Aqui têm sido muito bons... e há toilettes e tudo. Mas a gente precisa de comer. Temos o
tanque cheio de gasolina. Podemos andar um bocado na estrada. Aqui, a gente tomava
banho todos os dias. Nunca na minha vida andei tão limpo. É engraçado... dantes, eu
tomava banho uma vez por semana e nunca me pareceu que cheirasse mal. Agora, se não
tomo banho um dia, começo logo a ter mau cheiro. Gostava de saber se isso acontece por
se tomar banho todos os dias.
- Talvez você nunca tivesse dado pelo seu cheiro - disse o director.
- Pode ser. Seria bom se a gente pudesse ficar...
O director levou a palma das mãos à fronte.
- Acho que esta noite vamos ter outro menino - disse.
- Na nossa família, também estamos à espera de um - informou o pai. - Gostava que
ele nascesse aqui. Acredite que gostava, e muito.
Tom, Willie e Jule, o mestiço, estavam sentados à beira do estrado de dança,
baloiçando as pernas.
- Tenho uma onça de Durham - disse Jule. - Quer fumar?
- Se quero! - respondeu Tom. - Há um ror de tempo que não fumo.
Enrolou cuidadosamente o cigarro pardusco, tendo o cuidado de não desperdiçar
nem um fiapo de tabaco.
- Pois é; é pena vocês irem-se embora. A sua gente é muito simpática - disse Willie.
Tom acendeu o cigarro.
- Pensei muito a respeito da nossa partida. Meu Deus, como eu gostava que nos
fixássemos em qualquer parte!
Jule recebeu de novo a onça de tabaco.
- Isto tudo não anda certo - disse. - Eu tenho uma filhinha. julguei que ela pudesse ir
à escola, quando a gente chegasse aqui ao acampamento. Mas, qual! Nunca se pode parar
muito tempo num sítio! Passamos a vida de um lado para o outro. - Oxalá a gente não
precise de ir morar outra vez em Hooverville - disse Tom. - Ali, confesso, vivíamos sempre
com medo.
- Foram os polícias que vos puseram de lá para fora?
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- Fiquei com medo de vir a matar algum - continuou Tom. - Estivemos lá pouco
tempo, mas vivíamos com o sangue a ferver. A polícia foi lá um dia e catrafilou um amigo
meu só porque ele teve a coragem de manifestar a sua opinião. Caramba! Até fazia ferver o
sangue!
- Você já tomou parte nalguma greve? - perguntou Willie.
- Não.
- Pois eu pensei muito tempo nisso. Porque é que os policias não vêm aqui e não
pintam o, diabo, como fazem noutros sítios? Você acha que é aquele tipo baixinho do
escritório que os impede de vir até cá? Não, senhor.
- Nesse caso, o que é? - inquiriu Jule.
- Eu lhe digo, E porque todos vivem unidos aqui. A polícia não pode vir buscar uma
pessoa só ao acampamento. Para isso, tinha de levar o acampamento inteiro. E eles não
têm coragem para tanto. Basta a gente dar um grito e logo uns duzentos homens se põem
de pé. Uma vez, um tipo contou-me que fora encarregado de organizar o pessoal, por
conta da União e disse que em qualquer sítio se podia fazer o mesmo. Basta a gente ser
solidário. Eles não hão-de querer meter-se com duzentos homens. Mas um só, isso
catrafilam-no logo.
- Pois sim - disse Jule. - Suponhamos que vocês organizam a União. Nessa altura, vão
precisar de chefes. Se quiserem prender gente, é aos chefes que eles vão engavetar. Aonde é
que a União vai parar depois?
- Aí é que está - disse Willie. - A gente tem de resolver isso mais dia menos dia. Há
um ano que ando por esta zona e os salários por cá não fazem outra coisa senão baixar.
Um homem, ainda que trabalhe, não ganha o suficiente para sustentar a família. E a coisa
piora de dia para dia. Não vale a pena a gente ficar por aqui sentado, a morrer de fome. Eu
já riem sei o que hei-de fazer. Quem tem uma parelha de cavalos, não se importa de ter de
lhes dar de comer durante o tempo em que não trabalham. Mas se se trata de homens, não
se lhes dá nem um chavo. Parece-me que os cavalos valem mais do que os homens. Não
compreendo nada disto.
- Bem, eu nem quero pensar no caso, Mas tenho de pensar - disse Jule. - Tenho de
pensar por causa da minha filha. Vocês sabem como ela é bonitinha. A semana passada até
ganhou um prémio de beleza aqui no acampamento. Pois não sei o que vai ser dela. Está
tão magrinha que nem calculam. E uma coisa que não posso suportar. Ela é tão bonitinha!
Meu Deus! Ainda acabo por fazer alguma loucura.
- Como? - perguntou Willie.- Que é que você vai fazer? Roubar, para ser preso? Ou
matar e depois ser enforcado?
398
- Não sei - respondeu Jule. - Fico doido quando penso nessas coisas. Fico completamente
doido.
- Estes bailes daqui vão-me fazer falta - disse Tom. - São os mais lindos que vi na
minha vida. Bom, parece-me que vou dormir. Adeus. A gente ainda se há-de encontrar
qualquer dia.
- Decerto que se encontra - disse Jule.
- Então, até mais ver.
E Tom sumiu-se na escuridão.
Na tenda da família Joad, envolta em trevas, Ruthie e Winfield estavam deitados nos
respectivos colchões; a mãe jazia deitada ao lado deles. Ruthie sussurrou:
- Mãe!
- Que é? Então ainda não dormes?
- Mãe, terão um jogo de “croquet” lá no sítio para onde a gente vai amanhã?
- Não sei. Trata de dormir, que a gente tem de sair cedo.
- Eu gostava de ficar aqui, mãe. Aqui temos a certeza de que há o “croquet”.
- Chiu! Está calada!
- Mãe, hoje o Winfield bateu num miúdo.
- Ele não devia ter feito isso.
- Eu sei. Foi o que eu disse, mas ele deu um soco no nariz do menino. E, Jesus,
como o sangue corria. Aquilo era mesmo à bruta...
- Não fales assim. Não é bonito.
Winfield virou-se e disse furioso:
- Aquele velhaco disse que a gente era Okie. Que ele não era, porque tinha vindo do
Oregon, mas que nós éramos uns safados de uns Okies. Foi por isso que eu lhe bati.
- Chiu! Mas não devias ter feito isso. Não interessa que ele nos chame nomes feios.
Isso não nos pode fazer mal nenhum.
- Pois sim, mas eu é que não consinto que ele o faça - exclamou Willie com violência.
- Chiu! Dorme!
- Mãe, só queria que a senhora visse como o sangue corria pela, roupa dele! - insistia
Ruthie.
A mãe tirou a mão direita de dentro do cobertor e assentou os dedos no rosto de
Ruthie. Por um instante, a menina ficou imóvel, rígida, mas, logo a seguir, desatou num
choro fungado e silencioso.
399
No departamento sanitário, o pai e o tio John estavam sentados em compartimentos
contíguos.
- Toca a aproveitar, que é a última vez - disse o pai. - Isto aqui é bonito. Lembras-te
como as crianças ficaram com medo quando descarregaram a água pela primeira vez?
- Até eu mesmo não me sentia lá muito tranquilo - respondeu o tio John, puxando
cuidadosamente o fato-macaco sobre os joelhos. - Estou a tornar-me ruim. Sinto o pecado
a rondar à minha volta.
- Deixa-te disso - acudiu o pai - Pecar é que não podes. Custa pelo menos dois
dólares e a gente está sem cheta.
- Eu sei. Mas tenho maus pensamentos.
- Está bem. Podes pecar em pensamento. É coisa que não custa dinheiro.
- Pois sim, mas nem por isso deixo de pecar - volveu o tio John.
- Mas assim é mais barato - insistiu o pai.
- Olha, tu queres saber? Isto de pecar é mais sério do que tu pensas.
- Eu sei. Tu sentes sempre vontade de pecar quando as coisas vão mal.
- É isso mesmo - confirmou o tio John. - Sempre assim fui. Não te contei nem
metade das coisas que fiz na vida.
- Nem é preciso. Podes guardá-las para ti.
- Estas retretes tão bonitas dão-me a ideia de que estou a cometer um pecado.
- Então vai para o mato! Bem, abotoa as calças e vamos tratar de dormir.
O pai ajeitou nos ombros as alças do fato-macaco e apertou a fivela. Puxou a
manivela da retrete e olhou, pensativo, o redemoinhar da água dentro dela.
Era ainda escuro quando a mãe despertou a família toda. Do departamento sanitário,
de portas entreabertas, saía o clarão pálido das lâmpadas nocturnas. Das tendas, ao longo
da rua, vinham sons variados de ressonar.
- Vamos, toca a levantar! - gritou a mãe . - São horas de a gente partir! já é quase dia.-
Levantou o tubo de vidro da lâmpada de querosene, que emitiu um silvo brusco, e acendeu
a torcida. - Vamos, andem todos, depressa!
No chão, os homens começavam a mexer-se vagarosamente. Cobertas e cobertores
eram atirados para trás. Olhos sonolentos fixavam a luz, vesgos e meio cegos. A mãe
enfiou o vestido sobre a roupa de baixo com que dormira.
400
- Não há café - disse. - Mas tenho umas empadas para vocês. Vamos comê-las na
viagem. Levantem-se, andem! Precisamos de carregar o caminhão. Vamos! E não façam
barulho. Não há necessidade de acordar os vizinhos.
Decorreram alguns momentos antes que eles estivessem bem acordados.
- Não saiam daqui! - advertiu a mãe, dirigindo-se às crianças.
A família vestiu-se. Os homens desataram a lona da tenda e ajeitaram tudo na
carrosserie do caminhão.
- Tomem cuidado, de modo que fique tudo bem plano! - avisou a mãe.
Estenderam os colchões por cima da carga, amarrando a lona no lugar do costume e
erguendo-a sobre o pau da armação.
- Pronto, mãe - disse Tom. - Está tudo pronto.
A mãe segurava um prato de empadas frias.
- Muito bem. Tomem. Uma para cada um de vocês. E é só o que temos.
Ruthie e Winfield pegaram com avidez nas respectivas empadas e treparam para o
caminhão. Cobriram-se com um cobertor e deitaram-se, adormecendo logo, ainda com as
empadas frias e duras nas mãos. Tom sentou-se ao volante e calcou o arranque. O motor
roncou, mas emudeceu logo a seguir.
- Que o diabo te leve, Al! - gritou Tom. - Tu deixaste a bateria a descarregar.
Al refilou:
- Ora, como diabo é que tu querias que eu a não deixasse descarregar, não tendo
gasolina?
Tom deixou escapar um sorriso.
- Bem, sei lá! Mas a culpa é tua. Agora, vê se dás aí um jeito com a manivela.
- A culpa não é minha, já te disse.
Tom desceu do carro e tirou a manivela da caixa por baixo do assento.
- Então a culpa é minha, pronto! - disse.
- Deixa ver essa manivela. - Al tomou-a das mãos de Tom. - Empurra a ignição para
baixo, que é para não me levar o braço.
- Está bem. Vai torcendo.
Al cansou-se a dar voltas e mais voltas com a manivela. Por fim, o motor pegou e
começou a roncar e a tremer, enquanto Tom, cautelosamente, ia calcando o acelerador.
Aumentou a ignição e reduziu o gás.
A mãe subiu para a frente, ao lado dele.
- A gente acordou o acampamento todo com este barulho.
- Ora! Eles adormecerão de novo.
401
Al subiu para o assento pelo outro lado.
- O pai e o tio John vão em cima da carga. Querem dormir mais um bocado.
Tom pôs o camião em movimento e foi rondando em direcção ao portão principal.
O guarda deixou o escritório e projectou sobre o veículo a luz da sua lanterna eléctrica.
- Esperem um instantinho - disse.
- Que há?
- Vocês vão-se embora?
- Pois vamos.
- Então tenho de lhes dar saída no livro de registo.
- Fixe!
- Já sabem para onde vão?
- Vamos a ver como são as coisas lá pelo norte.
- Muito bem. Felicidades! - disse o guarda.
- Igualmente. Passe bem.
O carro foi contornando lentamente o barranco, e entrou logo na estrada, a mesma
por onde tinham vindo, passando por Weedpatch, rumo ao oeste, até chegar à estrada 99.
Tomou então, a direcção norte, rodando pela larga faixa de cimento até Bakersfield. O dia
ia nascendo quando chegaram aos arredores da cidadezinha.
- Para qualquer lado que se olhe, há restaurantes. Por toda a parte há cafés. Olhem,
esse café aí fica aberto toda a noite. Aposto que têm mais de dez bidões de café formidável
a ferver lá dentro - disse Tom.
- Cala a boca - disse Al.
Tom sorriu maliciosamente:
- Bem me queria parecer que tu tinhas arranjado uma pequena logo de entrada.
- E então?
- É por isso que ele anda aborrecido, mãe. Não é nada agradável uma companhia
assim.
Al respondeu irritado:
- Não te incomodes. Não tarda muito, também, que eu largue sozinho por aí fora. É
mais fácil um tipo sozinho ganhar a vida do que com a família.
- Em nove meses, também tu arranjavas família. Eu bem vi como tu te divertias lá no
acampamento.
- Estás maluco. Eu ia era trabalhar numa garage e comer em restaurantes - respondeu
Al.
- E em nove meses tinhas mulher e filho.
402
- Estás a sonhar!
- Tu és um espertalhão. Mas um dia, apanhas uma mocada na cabeça - disse Tom.
- E quem é que ma dá?
- Ora! Há sempre uns gajos capazes disso - esclareceu Tom.
- Tu pensas que, lá porque te aconteceu aquilo...
- Vejam se acabam com isso - interveio a mãe.
- A culpa é minha - disse Tom. - Quis divertir-me à custa dele. Não te quis ofender,
Al. Não sabia que gostavas assim tanto daquela pequena.
- Qual gostar? Não gosto de pequena nenhuma.
- Bem, então não gostas. Não quero discutir contigo.
O caminhão ia já nos limites da cidadezinha.
- Olhem aquelas lojas de cachorros quentes - disse Tom. - Há por aqui centenas
delas.
- Tom, eu tenho aqui um dólar; consegui poupá-lo - segredou a mãe. Tens assim
tanto desejo de café que valha a pena gastá-lo?
- Não, mãe, estava a brincar.
- Mas, se tu tens assim tanta vontade, podes ficar com ele.
- Não, não quero.
- Então vê se deixas de falar tanto em café - disse Al.
Tom demorou seu tempo a responder-lhe:
- Parece que ando sempre a meter os pés pelas mãos - disse. Esta é a estrada por
onde passámos naquela noite.
- Espero que a gente não tenha que passar outra vez por uma coisa assim - disse a
mãe. - Que noite terrível!
- Se foi! Também não gostei muito, confesso.
A direita do veículo em marcha, o Sol galgava o horizonte.
O caminhão projectava uma sombra volumosa, que os acompanhava e se espraiava
sobre os moirões das cercas da beira da estrada. Passaram perto de Hooverville, já
reconstruída.
- Olhem! - exclamou Tom. - Parece que veio gente nova para cá. Mas o resto não
mudou nada.
Pouco a pouco, Al foi perdendo o mau humor.
- Disseram-me que há gente aqui a quem queimaram as coisas bem umas quinze a
vinte vezes. Escondem-se nos salgueiros, e, depois de a polícia se ir embora, voltam a
403
armar outra barraca de ervas. São como marmotas. Estão tão acostumados a isso que já
nem ficam aborrecidos com essas coisas. Para eles, tudo isso é como o mau tempo.
- A mim, aquela noite também me pareceu mau tempo - disse Tom. - Iam agora
subindo a estrada principal. E os raios de sol causavam-lhes arrepios. - As manhãs já vão
sendo frescas - continuou Tom. - O Inverno está à porta. Só quero que a gente consiga
ganhar algum dinheiro antes de ele chegar. Viver de Inverno numa tenda não deve ser nada
agradável.
A mãe suspirou e depois ergueu a cabeça.
- Tom - disse ela - a gente tem de arranjar uma casa no Inverno. Não podemos deixar
de ter uma casa para morar. A Ruthie tem boa saúde, mas o Winfield está fraquinho. A
gente tem de arranjar uma casa para morar, antes que venham as chuvas. E o povo diz que
por aqui chove a cântaros.
- Havemos de ter uma casa, sim, mãe. Fique descansada. A senhora vai ter a sua casa.
- Basta que tenha tecto e soalho. As crianças não devem dormir na terra.
- Vamos a ver, mãe.
- Bem, eu não quero que vocês tenham preocupações desde já.
- Vamos a ver, mãe.
- Às vezes sinto-me desesperada. Às vezes, começo a perder, até, a coragem.
- Nunca vi a senhora perder a coragem.
- Às vezes, de noite, acontece-me.
Um sibilar agudo, vindo da frente do caminhão, chegou-lhes aos ouvidos. Tom
segurou o volante com firmeza e travou. O caminhão parou com estrépito. Tom suspirou.
- Bem, lá se foi - disse, encostando-se ao espaldar do assento.
Al saltou e foi examinar o pneu dianteiro da direita.
- Um prego enorme! - gritou.
- Tens para aí remendos de pneu?
- Não - respondeu Al. - Acabou-se tudo. Há ali ainda umas tiras, mas a cola foi-se
toda.
Tom virou-se para a mãe com um sorriso melancólico, dizendo:
- A senhora não devia ter confessado que ainda tinha um dólar. A gente tinha de se
arranjar sem ele. - Saltou também e foi ver o pneu já completamente vazio.
Al mostrou-lhe um prego enorme, que sobressaía do pneu esvaziado.
- Foi este - disse.
- É claro! Naturalmente este era o único prego da estrada, mas nós tínhamos de
passar por cima dele.
404
- Então a coisa é difícil? - perguntou a mãe.
- Nem por isso, mãe, mas a gente tem de arranjar isto depressa.
A família desceu do caminhão.
- Pneu furado? - inquiriu o pai, Lançou um olhar ao pneu e calou-se.
Tom ajudou a mãe a sair do assento da frente e retirou de sob a almofada uma lata de
tiras de borracha para remendos. Pegou numa fita de borracha e alisou-a; depois, pegou no
tubo da cola e espremeu-o.
- Está quase seca – disse - mas pode ser que ainda dê qualquer coisa. Bem, Al, põe
um calço nas rodas traseiras e vamos ver se levantamos este calhambeque.
Tom e Al entenderam-se bem no trabalho. Calçaram com pedras as rodas traseiras,
colocaram o macaco sob o eixo dianteiro e suspenderam o caminhão. Retiraram os pneus,
encontraram * lugar do furo, mergulharam um pano no tanque de gasolina * lavaram bem a
câmara-de-ar, em volta do ponto perfurado. Depois, e enquanto Al esticava o pneu, no
lugar da perfuração, sobre os joelhos, Tom rasgou o tubo de cola e untou cuidadosamente
com ele a tirazinha de borracha.
- Agora deixa-se secar enquanto eu corto um remendo. - Cortou com todo o cuidado
um pedaço de remendo azul e arredondou-o com todo o jeito. Al mantinha a câmara-de-ar
distendida em cima dos joelhos e Tom pregou-lhe o remendo.
- Pronto - disse. Agora põe-na no estribo, para eu poder dar-lhe umas pancadas com
o martelo. - Bateu cuidadosamente o remendo; depois, esticou o pneu e examinou os
bordos da aplicação. - Bom, acho que aguenta. Vamos metê-la no pneu e enchê-la de ar.
Mãe, parece que não precisa de gastar o seu dólar.
- A gente devia ter um pneu de reserva - opinou Al. - É preciso ter sempre um pneu
de reserva, cheio e pronto a montar. Pode haver um furo de noite...
- Com o dinheiro de um pneu de reserva, a gente ia mas era comprar café e carne -
disse Tom.
Zumbia já sobre a grande estrada o tráfego matinal e o sol começava a aquecer e a
brilhar. A brisa, suave e suspirosa, soprava do sudoeste com intermitências. As montanhas
de ambos os lados do imenso vale mal se distinguiam na neblina cor de leite.
Tom estava a encher a câmara-de-ar quando um roadster, procedente do Norte,
parou do outro lado da estrada. Um homem de rosto queimado do sol, de fato leve cor de
cinza, saltou do carro e dirigiu-se ao camião. Estava sem chapéu. Sorria e os seus dentes
muito alvos destacavam-se fortemente da cor tostada da pele. No terceiro dedo da mão
esquerda usava uma aliança de oiro maciço. Do colete pendia, suspensa de uma fina
corrente, uma bolinha de futebol feita de ouro.
405
- Bom dia - disse o homem, amavelmente.
Tom deixou de dar à bomba e ergueu os olhos.
- Bom dia.
O homem passou os dedos pelos cabelos curtos, hirsutos e grisalhos.
- Vocês andam à procura de trabalho, hein?
- Se andamos! Até pelos cantos o procuramos.
- Sabem colher pêssegos?
- Nunca trabalhámos nisso - interveio o pai.
- Mas somos capazes de fazer seja o que for - respondeu Tom apressadamente. -
Colhemos o que houver.
Os dedos do homem brincavam com a bolinha de ouro.
- Bem, se quiserem, há por aqui muito trabalho, a umas quarenta milhas para o norte.
- Isso fazia-nos jeito - disse Tom. - Diga ao certo onde é e vamos já para lá.
- Pois bem, então sigam para o norte até Pixley: são umas trinta e cinco ou trinta e
seis milhas. Depois, dobrem para leste e sigam mais umas seis milhas. Aí perguntem pelo
rancho Hooper. Vão encontrar bastante serviço.
- Perfeitamente. Vamos já para lá.
- Não sabem de mais alguém que queira trabalhar?
- Sabemos, sim. Lá no acampamento de Weedpatch, há gente à farta, à procura de
trabalho.
- Bom, então vou dar um pulo até lá. Nós temos trabalho para muita gente. Não se
esqueçam disso. Em Pixley, dobrem para leste e tomem a estrada que vai dar ao rancho
Hooper.
- Perfeitamente - disse Tom. - Muito obrigado ao senhor. A gente precisava muito de
trabalhar.
- Está bem. Então, vão o mais depressa possível. - Atravessou a estrada; entrou no
roadster aberto e continuou a marcha em direcção ao sul.
- Vinte vezes cada um - disse Tom, apoiando o peso do corpo na bomba. - Um, dois,
três, quatro...
Quando chegou aos vinte, Al pegou na bomba e depois seguiu-se o pai, que, por seu
turno, cedeu o lugar ao tio John. O pneu estava finalmente cheio. Três vezes a bomba teve
de percorrer a roda.
- Bom, baixa agora o carro; quero ver como ficou - disse Tom.
Al afrouxou o macaco e o caminhão baixou, assentando sobre as rodas.
- Parece que está bem assim - disse. - Tem ar suficiente; um pouco a mais até, talvez.
406
Atiraram as ferramentas para dentro do caminhão.
- Bom, vamo-nos embora, andem! - mandou Tom. - Parece que a gente arranjou
finalmente trabalho.
A mãe tornou a sentar-se entre Tom e Al no assento da frente. Desta vez, foi Al
quem pegou no volante.
- Vai devagarinho; não vá rebentar com o aquecimento - recomendou Tom.
Rodaram entre campos doirados pelo sol da manhã. A neblina erguera-se acima das
colinas, que se mostravam agora límpidas e pardas, cortadas de folhas cor de púrpura
carregado. Pombos bravos levantavam voo das cercas à passagem do veículo.
Inconscientemente, Al acelerou a marcha.
- Devagar! - tornou a recomendar Tom.- O pneu rebenta se tu o cansares assim. A
gente tem de chegar até esse rancho de qualquer maneira. Pode ser que ainda hoje mesmo
se encontre trabalho.
A mãe exclamou, excitada:
- Com quatro homens a trabalhar, talvez até a gente consiga comprar qualquer coisa a
crédito. A primeira coisa que tenho de comprar é café, visto que te faz tanta falta. Depois,
um pouco de farinha e de fermento em pó e um pouco de carne. Não vamos compraicarne
já hoje; podemos deixar isso para mais tarde. Talvez para sábado. E sabão. Preciso
muito de sabão. Só gostava de saber onde é que a gente irá passar a noite. - E continuou a
tagarelar. - E leite. Preciso de comprar um pouco de leite para a Rosasharn. Ela precisa
bastante dele... Foi o que disse a enfermeira.
Uma cobra serpeou pela estrada. Al deu uma guinada ao volante para a atropelar e
depois tomou de novo a direita.
- Era uma cobra rateira - disse Tom. - Não devias ter feito isso.
- Não gosto de cobras - respondeu Al alegremente. -- Tenho raiva a tudo quanto é
cobra. Até parece que me dão volta aos intestinos.
O tráfego matinal aumentava na estrada. Representantes de casas comerciais em
luxuosas limousines, com os nomes das firmas pintados nas portinholas; transportes de
gasolina vermelhos e brancos, arrastando correntes a tinir ruidosamente, pesados
caminhões de largas portas, pertencentes aos grandes armazéns de vendas por grosso de
géneros alimentícios, na faina de entregar a mercadoria. Era fértil e rica a terra que se
estendia à beira da estrada. Havia pomares com frondosas árvores carregadas de frutas e
parreirais onde trepadeiras verdes atapetavam o chão entre as filas de vinha. Havia
canteiros de melões e havia trigais. Casas brancas, engrinaldadas de rosas espreitavam por
entre a verdura. E o sol irradiava, loiro e quente.
407
No assento dianteiro do camião, a mãe, Al e Tom sentiam grande alegria.
- Há muito tempo que não estava tão contente - disse a mãe. - Se a gente colher
bastantes pêssegos, poderemos até arranjar uma casa para morar e até pagar o aluguer de
muitos meses. É preciso a gente arranjar uma casa.
- Vou economizar - disse Al. – Vou fazer economias e depois vou à cidade ver se
arranjo um emprego numa garage. Em seguida, alugo um quarto e passo a comer em
restaurantes. E vou ao cinema todas as noites. O cinema é barato. Vou ver fitas de cowboys.
As mãos firmaram-se-lhe mais no volante.
O radiador começou a borbulhar e a expelir vapor.
- Tu não o encheste todo? - perguntou Tom.
- Enchi, sim, mas estamos com vento pelas costas. E por isso que a água está a
ferver.
- Está um lindo dia - disse Tom.- Em MacAlester, no meio do trabalho, eu pensava
sempre nas coisas que iria fazer quando saísse. Pensava em sair dali e caminhar sempre a
direito, sem parar em lado nenhum. Agora parece-me que isso já foi há tanto tempo! Parece
que já foi há anos que eu estive preso. Havia lá um guarda - ó que tipo danado! - Dava-me
cabo da vida. E eu estava disposto a fazer-lhe a cama. Acho que é por isso que fiquei com
tanta raiva aos polícias. Para mim, todos os polícias me parece terem a cara dele. Estava
sempre vermelha corno o diabo! Uma autêntica cara de porco. Disse que tinha um irmão
no Oeste.
O costume dele era mandar para o irmão os libertos condicionalmente, para
trabalharem de graça. Quando eles se revoltavam, voltavam para a cadeia, por terem
desrespeitado a liberdade condicional. Pelo menos, era o que lá se dizia...
- Não penses mais nessas coisas - suplicou a mãe. - Agora, vamos ter boa comida.
Muita farinha e toucinho.
- Tanto faz pensar como não - respondeu Tom. - Não lucro nada em querer afastar
estes pensamentos. Um dia, eles tinham de voltar. Lá em McAlester havia um gatuno.
Ainda não lhes falei dele. Era parecido com o Happy Hooligan. (Os Hooligan formaram, outrora,
um bando de malfeitores. Existe também uma comédia em que a família Hooligan é conhecida pelas suas
ruidosas travessuras. Poderá aqui interpretar-se Happy Hooligan como o Bandido Felizardo.) Era
incapaz de fazer mal a uma mosca. Estava sempre a falar em fugir. A gente chamava-lhe o
Hooligan.. Tom riu, ao lembrar o caso.
- Não penses nessas coisas - volveu a suplicar a mãe.
- Continua - disse Al. - Conta lá isso do tal tipo.
408
- Essas coisas já não têm importância, mãe - volveu Tom. - Bem, esse gatuno só
pensava em fugir. Fazia projectos e projectos para se pôr ao fresco. Mas não era capaz de
manter os projectos em segredo. Toda a gente tinha de saber; até os próprios guardas. Um
dia experimentou fugir, mas levaram-no pela mão, de novo até à cela. Outro dia, desenhou
um plano para saltar um muro. Naturalmente, mostrou o desenho a torto e a direito mas
toda a gente resolveu calar a boca. Escondeu-se e aquela gente toda, nem pio! Quando o
Hooligan descia calmamente pela corda, os guardas abriram o saco e levaram-no lá para
dentro outra vez. A malta riu tanto que nem calculam. Mas o Hooligan ficou acabrunhado
a valer com essa história e pôs-se a chorar, a chorar e tanto chorou que adoeceu. Tinha o
moral completamente abatido. Acabou por abrir as veias com um alfinete e morreu porque
perdeu muito sangue e tinha o moral em baixo. Era um pobre diabo, que não fazia mal a
ninguém. Há gatunos bem engraçados nas cadeias!
- Não fales mais nisso - pediu a mãe. - Conheci a mãe do Floyd Cara-Bonita. O rapaz
não era mau, também. Mas fizeram o diabo com ele.
O Sol estava quase a pino. A sombra do camião encurtava-se e sumia-se debaixo das
rodas.
- Ali em frente deve ser Pixley - disse Al. - Vi uma placa ali atrás.
Entraram numa cidadezinha e viraram em direcção a leste, penetrando numa estrada
mais estreita. Pomares guarneciam as margens da estrada, formando uma verdadeira nave.
- Oxalá seja fácil a gente achar esse tal rancho - disse Tom.
- Aquele homem disse que era o rancho Hooper e que qualquer pessoa podia
informar onde era. Deus queira que haja um armazém perto.? Pode ser que a gente consiga
comprar umas coisas fiadas, já que são quatro homens a trabalhar. Se arranjar crédito,
poderei fazer um bom jantar. Estou com vontade de fazer um guisadinho saboroso - disse
a mãe.
- E café - acrescentou Tom. - Talvez arranje até uma onçazita de tabaco para mim.
Há muito tempo que não fumo.
Lá longe, a estrada via-se bloqueada por automóveis e uma fila de motocicletas
brancas alinhava à margem da estrada.
- Deve ter sido um desastre - disse Tom.
Quando se aproximaram, um guarda da polícia estadual, de botas de cano alto e de
cartucheiras, surgiu detrás do último dos muitos carros que ali estacionavam. O guarda
levantou a mão e Al travou. O polícia encostou-se familiarmente à borda do camião.
- Aonde é que vocês vão?
409
- Disseram-me que havia trabalho nesta região. Que precisam de gente para apanhar
pêssegos - respondeu Al.
- Então vocês querem trabalhar?
- Se queremos! - exclamou Tom.
- Muito bem. Esperem um instante. - Foi até à beira da estrada e gritou: - Mais um! já
são seis. Vamos deixar esta caravana passar.
Tom gritou:
- Eh, o que há?
O polícia tornou atrás vagarosamente:
- Há ali em frente um pequeno ajuntamento, mas vocês não se preocupem. Vão
andando sempre em frente. Sigam a fila.
Ouviam-se agora as explosões dos motores das motocicletas que se punham em
marcha. A fila de veículos que obstruía a estrada pôs-se a rodar, seguida pelo caminhão da
família Joad. Duas motocicletas iam à frente e duas outras fechavam a fila.
Tom disse, inquieto:
- Só queria saber o que significa tudo isto.
- Pode ser que a estrada esteja impedida - respondeu Al.
- Mas a gente não precisa de quatro polícias para nos acompanhar. Não, não estou a
gostar disto.
As motocicletas que iam à frente aceleraram a marcha. A fila dos carros velhos fez o
mesmo. Ai apressou-se a ficar bem junto do último.
- Todos eles têm gente da nossa. Todos eles - comentou Tom. - Não estou a gostar
desta história.
Subitamente, os polícias que iam na dianteira, saíram da estrada para meterem por
um caminho de chão de cascalho. Os velhos calhambeques arfavam atrás deles. As
motocicletas troavam. Tom viu uma fileira de homens parados na vala da beira-estrada;
tinham as bocas abertas, como se estivessem a berrar qualquer coisa; brandiam os punhos e
um sentimento de fúria estampava-se-lhes nas faces. Uma mulher gorda correu ao encontro
dos carros, mas uma motocicleta ruidosa cortou-lhe o caminho. Abriu-se um portão alto,
de grades. Os seis calhambeques passaram através dele e o portão fechou-se logo. As
quatro motocicletas deram a volta e foram rodando, apressadas, na direcção em que tinham
vindo. E, agora que os motores barulhentos, soavam mais longe, já se distinguiam
claramente os gritos distantes dos homens parados na vala. Dois homens flanqueavam o
caminho de cascalho. Ambos estavam armados de espingardas.
Um dos homens gritou:
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- Vamos, andem! Porque diabo estão à espera? Os seis veículos seguiram em frente;
deram meia volta e chegaram a um campo de pêssegos.
Havia ali umas cinquenta casinhas quadradas, de telhados achatados, cada qual com
uma porta e uma janela, e todas elas formando um grande quadrado. Ao fundo do
acampamento erguia-se um tanque de água. Defronte via-se um pequeno armazém de
mercearia. E, no extremo de cada fileira de casinhas quadradas, estavam postados dois
homens armados de carabina e com reluzentes estrelas de prata nas camisas.
Os seis veículos pararam. Dois amanuenses andavam de um lado para o outro.
- Querem trabalhar?
Tom respondeu:
- É claro que queremos. Mas que é que há por aqui?
- Você não tem nada com isso. Querem trabalhar ou não?
- Queremos, sim.
- Nome?
- Joad.
- Quantos homens?
- Quatro.
- Mulheres?
- Duas.
- Crianças?
- Duas?
- E todos podem trabalhar?
- Acho que sim.
- Muito bem. Vão ficar na casa 63. O salário é cinco cents a caixa. E nada de frutas
pisadas. Muito bem, vão indo. Podem começar a trabalhar já.
Os veículos puseram-se em movimento. Nas portas de cada uma das casinhas
vermelhas e quadradas havia um número pintado.
- Sessenta - disse Tom. - Esta é a sessenta. Deve ser por aqui. Olhem, sessenta e um,
sessenta e dois... É aqui.
Al encostou o caminhão mesmo à porta da casinha. A família apeou-se, olhando,
desnorteada, em torno de si. Dois polícias aproximaram-se. Olharam fixamente o rosto de
todos.
- Nome?
- Joad - respondeu Tom com impaciência. - Digam-me uma coisa o que é que há por
aqui?
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Um dos polícias tirou do bolso uma comprida lista.
- Bem, aqui não constam. Tu já viste esta gente alguma vez? Vê o número do
caminhão. Nada? Na lista também não figuram. Acho que não há nada contra eles. -
Dirigiu-se a Tom.- Ouçam bem, nós não queremos questões, ouviram? Façam o vosso
trabalho e não se metam onde não são chamados, que tudo correrá bem.
Viraram-lhes bruscamente as costas e foram-se embora. Ao fim da rua poeirenta,
pararam e sentaram-se em dois caixotes de onde podiam controlar tudo.
Tom acompanhou-os com o olhar.
- Não há dúvida – disse - eles pretendem que a gente se sinta como em sua casa.
A mãe abriu a porta da casinha quadrada e entrou. O soalho estava salpicado de
gordura. No quarto - o único - havia somente um fogão de folha enferrujada, que assentava
sobre quatro tijolos. O cano, todo ferrugento, subia, perfurando o telhado. O aposento
trescalava a suor e a gordura. Rosa de Sharon postara-se ao lado da mãe.
- A gente vai morar aqui? - perguntou.
A mãe calou-se por instantes.
- Naturalmente - disse por fim. - E, depois de lavado, não será muito mau. É preciso
fazer uma boa limpeza.
- Eu gostava mais da tenda - disse a rapariga.
- Mas aqui não é terra dura; é soalho - lembrou a mãe. - E, quando chover, não
entrará água. - Virou-se para a porta. - Acho que o melhor é descarregar - acrescentou.
Sem pronunciar palavra, os homens começaram a descarregar. Uma sensação de
medo caíra sobre eles. Reinava o silêncio no grande bloco de casas quadradas. Uma mulher
passou na rua mas nem se dignou olhá-los. Caminhava de cabeça baixa; fiapos e tiras
pendiam-lhe da barra do vestido sujo e rasgado.
Também sobre Ruthie e Winfield caíra o desânimo. Nem pensavam em escapulir-se,
para lançar uma vista de olhos ao local. Mantinham-se ao pé do caminhão, junto da família.
Os seus olhos passeavam, desamparados, pela rua poeirenta. Winfield achou um pedacinho
de arame de embalagem e ficou a torcê-lo para a frente e para trás até que o partiu. Da
parte mais curta, fez uma espécie de manivela, que se pôs a voltear entre os dedos.
Tom e o pai levavam os colchões para dentro da casa quando um funcionário
chegou. Usava calças de caqui, camisa azul e gravata preta. Cavalgavam-lhe o nariz óculos
de aro de prata e os seus olhos, muito vermelhos, por detrás das lentes grossas, pareciam
fatigados. As pupilas estavam paradas, fixas como olhos de boi. Inclinou-se para a frente, a
fim de olhar para Tom.
- Quero inscrevê-los na lista - disse. - Quantos vão trabalhar?
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Tom respondeu:
- Somos quatro homens. O serviço é muito pesado?
- É apanhar pêssegos - disse o funcionário. - É trabalho por peça. Pagamos a cinco
cents a caixa.
- E as crianças podem ajudar?
- Podem, desde que trabalhem com cuidado.
A mãe chegou à porta.
- Assim que acabar de limpar a casa, vou também ajudar. Olhe, a gente não tem nada
que comer. Poderemos receber algum dinheiro por conta?
- Já, não. Mas podem comprar fiado ali no armazém, dentro das possibilidades dos
vossos ganhos.
- Bom, então vamos a ver isso depressa - disse Tom. - Hoje quero comer carne e
pão. Aonde é que a gente deve ir?
- Eu vou para lá agora. Venham comigo.
Tom, e o tio John seguiram o funcionário pela rua poeirenta abaixo até ao pomar,
parando junto dos pessegueiros. As folhas estreitas começavam já a tingir-se de um amarelo
pálido. Os pêssegos pareciam globozinhos doirados e vermelhos nos ramos. Havia pilhas
de caixotes vazios entre as árvores. Os que se ocupavam da colheita corriam pressurosos
para cá é para lá, enchiam de frutos os baldes de que estavam munidos e descarregavamnos
nos caixotes e levavam estes à casa de verificação. Nessa secção, onde as pilhas de
caixotes aguardavam os camiões de transporte, havia funcionários a tomar nota dos nomes
dos que faziam a entrega do produto das suas colheitas.
- Mais quatro para vocês - disse o guia a outro empregado.
- Muito bem. Vocês já colheram pêssegos alguma vez?
- Nunca -, respondeu Tom.
- Bom, então trabalhem com cuidado. Nada de frutas pisadas, nada de frutas caídas.
Pela fruta ofendida não se paga nada. Vamos: peguem nestes baldes.
Tom pegou mim balde de três galões e olhou para dentro.
- Mas o fundo está furado - comentou.
- É natural - retorquiu o funcionário míope. - E para evitar que o roubem. Muito
bem, podem começar nesta fila. Andem, vamos!
Os quatro Joads pegaram nos baldes e entraram no pomar.
- Eles não perdem tempo - salientou Tom.
- Meu Deus! - exclamou Al. - Que diferente que era se eu trabalhasse numa garagem!
O pai, que os seguia docilmente, disse, virando-se para Al:
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- Bom, é preciso acabares de uma vez para sempre com essa história. Andas sempre a
queixar-te, a choramingar e a suspirar. Tens de fazer o trabalho que houver. Não estás
ainda tão homem que não possas apanhar uma boa sova.
A cólera enrubesceu o rosto de Al. Por um pouco não explodiu.
Tom aproximou-se dele.
- Vamos, Al - disse calmamente. - Pão e carne, não te esqueças! A gente precisa de
comer.
Iam colhendo pêssegos e lançando-os nos, baldes. Tom trabalhava com rapidez. Um
balde cheio, dois baldes. Despejou-os no caixote. Três baldes. O caixote estava cheio.
- Ganhei um níquel - gritou, levantando o caixote e correndo com ele à secção de
controle.- Esta aí vale cinco cents - disse ao funcionário encarregado daquele serviço.
O homem olhou para o caixote e virou alguns pêssegos.
- Ponha de lado. Estão estragados - disse. - Não os preveni de que tomassem
cuidado? As frutas estão todas pisadas, amachucadas. Não posso registar esse caixote. Ou
vocês colocam os pêssegos com cuidado nos caixotes ou trabalham de graça.
- Mas olhe... que diabo...
- Trabalhe com cuidado. Você foi avisado antes de começar.
Tom desviou o olhar sombrio.
- Fixe! - disse, por fim. - Fixe! Voltou ligeiro para junto dos outros. - Podem deitar
para o lixo tudo o que colheram.- Estão como os meus pêssegos. Não se aproveitam. O
homem não os aceita.
- Mas, com todos os diabos... - começou Al.
- A gente tem de apanhar os frutos com mais cuidado. Não se pode atirar com eles
para dentro do balde. Têm de se colocar com muito cuidado.
Começaram de novo, e, dessa vez, trataram as frutas com mais delicadeza. Os
caixotes enchiam-se mais devagar.
- Acho que a gente podia combinar uma coisa - sugeriu Tom. - Se a Ruthie, o
Winfield e a Rosasharn colocassem as frutas nos caixotes, a coisa ia mais depressa. - Saiu,
levando o novo caixote para a casa de verificação - E este agora? - perguntou. - Não vale os
cinco cents?
O funcionário examinou os pêssegos, retirando alguns das camadas inferiores do
caixote.
- Bom, isto já vai melhor - disse. Registou o caixote. - Sempre com muito cuidado! -
recomendou.
Tom voltou a correr.
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- Ganhei um níquel - gritou. - Agora é só fazer assim vinte vezes e estou com um
dólar ganho.
Trabalharam ininterruptamente a tarde toda. Ruthie e Winfield vieram ao encontro
deles. O pai disse-lhes:
- Vocês também podem trabalhar. Vão pondo os pêssegos no caixote, mas com
muito cuidado, ouviram? Não, assim não, tem de ser um por um.
As crianças acocoraram-se e foram retirando os pêssegos do balde sobressalente.
Havia ali uma fileira de baldes, já pronta para elas. Tom transportava os caixotes cheios à
casa de verificação.
- São sete - dizia. - São oito. A gente já ganhou quarenta cents. Com quarenta cents, já
se compra uma bela posta de carne.
A tarde ia passando. Ruthie tentou escapar-se.
- Estou muito cansada - choramingou. - Quero ir descansar.
- Tu vais ficar onde estás - intimou o pai.
O tio John colhia com lentidão. Não conseguia encher mais do que um balde, ao
mesmo tempo que Tom enchia dois. O, seu ritmo mantinha-se inalterável.
Lá pelo meio da tarde, a mãe chegou, cansada, a arrastar os passos.
- Quis vir antes – disse - mas a Rosasharn teve um desmaio. Perdeu os sentidos.
- Vocês comeram pêssegos? - perguntou ela às crianças. - Pois bem, garanto que vão
apanhar diarreia.- O corpo atarracado e forte da mãe mexia-se com agilidade. Pouco
depois, abandonava o seu balde, passando a colocar as frutas no avental. Quando o Sol se
pôs, tinham enchido ao todo vinte caixotes.
Tom colocou no chão o vigésimo caixote.
- Um dólar - disse. - Até que horas se trabalha? - perguntou ao funcionário.
- Até que escureça, contanto que consigam ver.
- Bom, a gente agora já terá crédito? Mãe, tem de ir ao armazém comprar coisas para
comermos.
- Perfeitamente. Vou dar-lhe um vale para um dólar. - Preencheu um cartãozinho e
entregou-o a Tom.
Este levou o cartão à mãe.
- Pronto. Isto é para a senhora- disse. - Pode comprar o que quiser, no valor de um
dólar, ali no armazém.
A mãe poisou o balde, endireitando os ombros.
- Cansa um pouco da primeira vez, não achas?
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- É natural, mas a gente depressa se acostuma. Bom, agora o melhor é ir comprar
qualquer coisa para comermos.
A mãe perguntou:
- O que é que tu preferias?
- Carne - respondeu Tom. - Carne, pão e um bule cheio de café com açúcar. Mas um
pedaço de carne bem grande.
Ruthie gemeu:
- Mãe, estamos cansados.
- Então venham comigo. Tu também, Winfield.
- Eles já estavam cansados quando começaram - disse o pai. - Galinha de campo não
quer capoeira. Só querem andar a correr por aí. E preciso pôr-lhes a rédea curta.
- Depois de a gente se instalar, têm de ir para a escola - disse a mãe.
Saiu vagarosamente, e Ruthie e Winfield seguiram-na com timidez.
- A gente tem de trabalhar todos os dias? - perguntou Winfield.
A mãe parou, esperando que as crianças a alcançassem. Agarrou em Winfield pela
mão e continuou a caminhar.
- Não é trabalho pesado. Até vos faz bem - disse. - E, olhem, vocês agora já ajudam.
Se todos trabalharem, daqui a pouco vamos morar numa casa bem bonita. Todos têm de
ajudar.
- Mas eu estou tão cansado!
- Eu sei. Também eu estou. Todos se cansam. Mas pensem noutra coisa. Pensem
como vai ser bonito quando vocês forem para a escola.
- Eu não quero ir para a escola. A Ruthie também não quer. A gente viu as crianças
que vão â escola. Não prestam. Chamaram-nos Okies. Eu não vou à escola.,
A mãe olhou a cabeça cor de palha do menino com ar de comiseração.
- Não me apoquentem agora, por favor - suplicou ela. - Deixem que a gente se
acomode primeiro, Então, sim, podem tornar-se rabinos outra vez. Mas agora, não. já
temos coisas que cheguem para nos apoquentarem.
- Eu comi dois pêssegos - disse Ruthie.
- Pois então vais ter dores de barriga. E a retrete fica longe daqui.
O armazém da companhia era um barracão bastante amplo, feito de chapas de zinco
ondulado. Não tinha vitrina. A mãe ergueu o guarda-vento e entrou. Um homem magro
estava de pé, atrás do balcão. Era completamente calvo e tinha a cabeça de uma esquisita
cor azulada. As sobrancelhas, largas e pardacentas, arqueavam-se sobre os olhos, formando
um arco tão largo que lhe dava ao rosto um aspecto de surpresa e de susto permanentes.
416
Tinha o nariz comprido, fino e recurvo, como um bico de pássaro. Pêlos castanho-claros
obstruíam-lhe as narinas. Sobre as mangas da camisa azul, usava meias mangas de cetim
preto. Apoiava os cotovelos no balcão quando a mãe entrou.
- Boa tarde - disse ela.
O homem olhou-a com interesse. Levantou as sobrancelhas e respondeu:
- Boa tarde.
- Tenho um vale de um dólar.
- Pois não! Pode fazer compras no valor de um dólar - informou, soltando um riso
agudo. - Sim, senhora. No valor de um dólar. Um dólar. - Fez um gesto largo, abrangendo
com as mãos todas as mercadorias. - Pode escolher à vontade. - Puxou para cima, diligente,
as mangas de protecção.
- Queria comprar um pedaço de carne.
- Pois não! Temos toda a espécie de carne - disse ele. - Carne picada, quer carne
picada? Vinte cents a libra é o preço da carne picada.
- Mas é muito caro. Da última vez que comprei, custava quinze cents a libra.
- Bem - soltou outra risada - é caro e não é. Se a senhora for à cidade comprar carne
picada, tem de gastar uns cinco litros de gasolina. Portanto, já vê: aqui não é realmente
caro, porque a senhora não pode gastar um bidão de gasolina.
A mãe disse com aspereza:
- Mas o senhor não teve de gastar gasolina para pôr aqui as suas coisas.
- A senhora está a partir de um ponto de vista errado. Eu não quero comprar carne;
quero vendê-la. Se eu tivesse de comprar, a coisa seria diferente.
A mãe pôs dois dedos sobre os lábios e franziu a testa pensativa.
- Parece que está cheia de nervos e de gordura.
- Bem, não lhe garanto que não vá minguar - disse o homem do armazém. - Nem lhe
garanto que eu a fosse comer, mas isso não quer dizer nada. Há uma porção de coisas que
eu não faria.
Por um instante, a mãe ficou a olhá-lo colérica, mas logo conseguiu controlar a voz.
- E carne mais barata, não tem?
- Ossos para sopa - respondeu ele. - Dez cents a libra.
- Mas são ossos apenas?
- Sim, apenas ossos - respondeu o homem. - Fazem uma boa sopa.
- Carne para cozido, tem?
- Tenho sim, senhora. Claro que tenho. Vinte e cinco a libra.
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- Bem, então não dá para eu comprar carne - disse a mãe. - Mas a minha família
queria carne. Querem todos comer carne, hoje.
- É natural, todos gostam de carne; todos precisam de comer carne. Essa carne
picada é bem boa. A gordura que se derrete pode fazer o molho. É bem boa. Aproveita-se
tudo. E não tem osso.
- Quanto... quanto custa o lombo?
- Ah, a senhora agora quer coisa de luxo. Comida de dia de Natal. Comida para o dia
de Acção de Graças (dia da Acção de Graças - Thanksgiving Day – é a última quinta-feira de
Novembro. Nesse dia, os americanos rendem publicamente graças a Deus pelas mercês recebidas.). Trinta
e cinco cents, a libra. Peru era mais barato mas não tenho peru à venda.
A mãe suspirou.
- Dê-me duas libras de carne picada.
- Sim, senhora. - Empilhou a carne dessorada sobre papel vegetal. - Mais alguma
coisa?
- Sim, quero pão.
- Pois não. Aqui, está. Um pão bem bom e grande. Custa quinze cents.
- Mas este pão é de doze cents.
- Claro que é. Na cidade, a senhora compra-o por doze cents. E ir lá, à cidade, e gastar
cinco litros de gasolina. Que mais? Batatas?
- Sim, batatas.
- Cinco libras por um quarto de dólar.
A mãe olhou-o ameaçadoramente.
- Basta! Eu sei bem o preço da batata na cidade.
O homenzinho comprimiu bruscamente os lábios.
- Nesse caso, a senhora pode ir comprar à cidade. A mãe pôs-se a contemplar os nós
dos dedos.
- Oiça lá! - perguntou com suavidade. - Este armazém é seu?
- Não, sou empregado.
- Nesse caso, porque faz pouco da gente? Que lucra com isso? - Ela ficou a olhar as
mãos enrugadas e brilhantes. O homenzinho permaneceu calado. - De quem é este
armazém?
- Da sociedade dos Ranchos Hooper.
- Então são eles que fazem os preços?
- São, sim, senhora.
Ela ergueu o olhar e sorriu levemente.
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- Todos que vêm aqui devem falar como eu. Não ficam aborrecidos?
Ele hesitou por um instante.
- Ficam, sim, senhora.
- É por isso que o senhor gosta de fazer pouco?
- Que é que a senhora quer dizer com isso?
- É por ser obrigado a fazer coisas assim mesquinhas... È vergonha que o senhor
tem, não é? É por isso que disfarça, fazendo pouco, não é verdade? - A sua voz era suave.
O caixeiro observava-a fascinado. Não respondeu. - Sim, senhor, é isso mesmo - concluiu a
mãe. - Bem, quarenta cents de carne, quinze de pão, vinte e cinco de batatas. São oitenta
cents. Tem café?
- Tenho, sim, senhora. O mais barato é de vinte cents.
- Perfeitamente. E lá se foi o dólar. Sete pessoas a trabalhar e só chegou para o jantar.
- Contemplou a mão. - Bom, embrulhe isso - disse, com rapidez.
- Sim, senhora aquiesceu ele. - Obrigado. - Despejou as batatas num cartucho de
papel e dobrou com cuidado a parte superior.
- Como é que o senhor arranjou um emprego assim? - perguntou.
- A gente precisa de viver, não é verdade? - começou, ele agressivamente. - Todos
têm o direito de comer.
- Todos, quem? - perguntou a mãe.
O homem colocou os quatro volumes em cima do balcão.
- Carne - disse ele - batatas, pão e café. Exactamente um dólar. - A mãe entregou o
vale ao caixeiro e viu o homem lançar no livro de caixa o nome e a importância do vale. -
Pronto - disse ele, por fim. - Está tudo pago.
A mãe pegou nos embrulhos.
- Ouça uma coisa - disse ela.- A gente não tem açúcar para o café. O meu filho, o
Tom queria café com açúcar. Olhe - prosseguiu - eles ainda estão a trabalhar. O senhor
podia vender-me uma porçãozita de açúcar, que eu, daqui a pouco, trazia-lhe o vale.
O homenzinho desviou o olhar, afastando-o o mais possível do rosto da mãe.
- Não posso fazer isso - disse, em voz baixa. - O regulamento não permite. Se eu,
fizesse isso, arranjava um sarilho. Acabava por ser despedido.
- Mas os homens ainda estão lá fora, a trabalhar. Com certeza que já ganharam mais
de dez cents. Arranje-me dez cents de açúcar.
Tom quer café com açúcar. Ele pediu-me.
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- Não posso fazer isso. É contra o regulamento. Sem vale, não se pode entregar
mercadoria. O director anda sempre a dizer isso. Não, não pode ser. Não posso. Prendiamme
logo. Apanham todos os que fazem isso. Sempre. Sempre. Não posso.
- Por causa de dez cents?
- Por causa de seja o que for. - Olhou-a, suplicante. E então a expressão de medo
deixou de lhe alterar as feições. Tirou uma moeda de dez cents do bolso, registou-a na caixa
e colocou-a na gaveta. - Pronto - disse, aliviado. Tirou um saquinho de papel de sob o
balcão, abriu-lhe a boca e colocou nele uma porção de açúcar.
- Perfeitamente, a senhora está servida. Agora, está tudo em ordem. Depois, a
senhora traz o vale e eu tiro os dez cents.
A mãe ficou a estudar-lhe as feições. Segurou o saquinho de açúcar sem olhar para
ele e colocou-o sobre a pilha dos outros pacotes que tinha no braço.
- Muito obrigada - disse, baixinho. Dirigiu-se para a porta e depois voltou-se
subitamente. - Aprendi uma coisa - disse. - Todos os dias aprendo coisas. Se alguém se
encontra em apuros e anda preocupado, na miséria, deve procurar gente da sua, gente
pobre. São os únicos que sabem ajudar-se uns aos outros. - O guarda-vento bateu atrás
dela.
O homenzinho apoiou os cotovelos no balcão e seguiu a mãe com o olhar cheio de
surpresa. Um gato gordo de pêlo castanho, mosqueado de amarelo, pulou para cima do
balcão, arrastou-se preguiçosamente para o pé do homem. Veio roçar-se-lhe nos braços. O
caixeiro levantou a mão e encostou o animal ao rosto.
O gato ronronou alto, enquanto a ponta da cauda abanava de um lado para o outro.
Tom, Al, o pai e o tio John regressaram do pomar quando já a escuridão era
profunda. Os seus pés batiam pesados no caminho.
- Quem é que ia pensar que estender as mãos para apanhar fruta fazia doer tanto as
costas? - perguntou o pai.
- Daqui a uns dias isso passa - disse Tom, com ar encorajador. - Olhe, pai, estou com
vontade de ir por aí fora, depois do jantar, para ver porque é esse barulho. Quer vir
comigo?
- Não - respondeu o pai. - Eu quero trabalhar por algum tempo sem pensar em mais
nada. já gastei demasiado a cabeça, caramba! Vou-me sentar um pouco e depois dormir.
- E tu, Al?
Al desviou o olhar.
420
- Primeiro, vou dar uma olhadela aqui por isto - disse. - Bem, e o tio John já sei que
também não vem. Vou ter de ir sozinho. Tenho curiosidade de saber o que se passa.
- Era preciso que a curiosidade me espicaçasse muito para eu ir... com esses polícias
todos aí fora... - volveu o pai.
- Pode ser que, à noite, eles não estejam lá - sugeriu Tom.
- Pode ser mas eu é que não me vou certificar. E é melhor não dizer nada à mãe para
ela não ficar preocupada.
Tom dirigiu-se a Al:
- Então tu não sentes curiosidade?
- Primeiro quero ver aqui o acampamento - respondeu Al.
- Ver as pequenas, não é?
- Isso é comigo - disse Al, com azedume.
- Bom, eu vou seja como for - volveu Tom.
Deixaram o pomar e entraram na rua poeirenta que dividia as filas de barracas
vermelhas. A luz amarela das lâmpadas de querosene escapava-se das portas abertas, e, lá
dentro, na meia escuridão, recortavam-se sombras negras de pessoas que se moviam. No
fim da rua, via-se ainda um polícia sentado, com a carabina encostada ao joelho.
Quando passaram pelo polícia, Tom parou.
- Pode dizer-me se há por aqui algum sítio onde se possa tomar um banho?
O guarda olhou-o no lusco-fusco. Finalmente, dignou-se falar:
- Vê esse tanque de água aí?
- Vejo.
- Bem, há-de lá encontrar uma mangueira.
- Há água quente?
- Ouça, quem é que você pensa que é? O milionário J. P. Morgan?
- Não - respondeu Tom. - Tenho a certeza que não sou. Bem, boa noite.
O guarda grunhiu desdenhosamente.
- Imaginem! Água quente. Caramba, daqui a pouco até querem banheiras! -
Acompanhou os quatro Joads com um olhar sombrio.
Outro guarda surgiu por detrás da última casa.
- O que é que há, Mack?
- Veja esses danados desses Okies: “Há água quente?”
O segundo guarda colocou a carabina no chão.
421
- Isso é do acampamento do governo - disse. - Aposto em como esse tipo esteve
num acampamento do governo. A gente só terá sossego quando fizer uma limpeza a esses
acampamentos. Qualquer dia exigem lençóis limpos, vais ver!
Mack perguntou:
- Que tal vai aquilo lá fora? Tiveste alguma notícia?
- Nada, aquela gente passa o dia a berrar. Agora, quem toma conta deles é a polícia
do Estado. Deixa estar que eles vão aprender a andar direitos. Disseram-me que é um tipo
alto, um filho da mãe magro, quem acende a mecha. Vão agarrá-lo esta noite e acaba-se
com a algazarra.
- Mas, se aquilo terminar assim tão depressa, a gente fica sem ter mais nada que fazer
- disse Mack.
- Não te incomodes. A gente vai ter muito que fazer. Esses danados desses Okies! É
preciso vigiá-los constantemente. Se a coisa acalmar, sempre se pode dar um jeito para os
assanhar outra vez.
- Acho que vai haver sarilho quando eles baixarem os salários.
- Se vai! Olha, não te preocupes com o nosso trabalho. Enquanto o Hooper lhes
apertar a tarracha, não há perigo.
Na casa dos Joads, o fogo ardia no fogão. Os fritos de carne picada espirravam e
assobiavam na banha e as batatas borbulhavam na água. A casa estava cheia de fumo e a luz
amarelada da lâmpada lançava grandes sombras negras na parede. A mãe trabalhava
apressadamente, debruçada sobre o fogão, enquanto Rosa de Sharon, sentada num caixote,
olhava para ela, descansando o ventre pesado nos joelhos.
- Estás melhor agora? - perguntou a mãe.
- O cheiro da comida agonia-me. E, apesar disso, estou com fome.
- Vai sentar-te à porta - disse a mãe. - Preciso desse caixote aí, para fazer lenha.
Os homens chegaram.
- Carne, santo Deus! - exclamou Tom. - E café. já sinto o cheiro. Que fome, meu
Deus! Fartei-me de comer pêssegos, mas não adiantei nada. Mãe, onde é que a gente se
lava?
- Ali no tanque. Podes ir já. Mandei agora mesmo a Ruthie e o Winfield lavarem-se
lá.
Os homens saíram de novo.
- Vamos depressa, Rosasharn - ordenou a mãe. - Senta-te na cama ou fica ali à porta,
anda. Tenho de rachar esse caixote.
422
A rapariga ergueu-se, apoiando-se nas mãos. Dirigiu-se pesadamente para um dos
colchões e sentou-se nele. Ruthie e Winfield entraram discretamente; a julgar pelo seu
silêncio e por ficarem colados à parede, queriam passar despercebidos.
A mãe olhou-os.
- Tenho a impressão de que vocês gostam que esteja escuro aqui dentro - disse.
Agarrou Winfield e apalpou-lhe os cabelos. - Bem, molhado estás tu, mas limpo aposto que
não.
- Não havia sabão - queixou-se Winfield.
- Sim, é verdade. Não pude comprar sabão. Mas talvez amanhã já possa.
Voltou para junto do fogão, distribuiu os pratos de folha e começou a servir o jantar.
Dois bocados de carne para cada um e uma batata, grande, cozida. E em cada prato
colocou três fatias de pão. Depois de ter tirado toda a carne da frigideira, despejou em cada
prato um pouco de molho. Os homens voltaram de novo, com os rostos a gotejar e os
cabelos brilhantes de água.
- Quero comer! - gritou Tom.
Pegaram nos pratos. Comeram sem pronunciar palavra, avidamente, absorvendo
com o pão o molho do fundo dos pratos. As crianças foram para um canto da casa.
Puseram os pratos no chão e ajoelharam-se em frente da comida, corno se fossem animais.
Tom engoliu o último pedaço de pão.
- A senhora tem mais alguma coisa, mãe?
- Não - respondeu ela. - Só isto. Vocês ganharam um dólar e o que comemos custou
um dólar certinho.
- Um dólar?
- Eles vendem as coisas mais caras. Dizem para irmos comprar à cidade se não
gostarmos.
- Ainda não enchi a barriga - disse Tom
- Bem, amanhã, vocês trabalham o dia todo. Amanhã à noite teremos mais fartura.
Al limpou a boca com a manga do casaco.
- Vou dar uma volta por ai.
- Espera, vou contigo. - Tom foi atrás dele. Lá fora, no escuro, aproximou-se do
irmão. - Então tu não queres ir comigo?
- Não. já disse que quero dar uma volta por aqui.
- Muito bem - disse Tom.
Voltou-lhe as costas e foi descendo, vagarosamente, a rua. A fumarada que se
escapava das casas pairava quase à altura do chão e as lâmpadas faziam projectar na rua a
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sombra das portas e das janelas. Sentados nos degraus das portas, havia homens varando a
escuridão com os olhos. Tom distinguia o mover de cabeças na direcção dos seus passos.
No fim da rua, tomou por uma vereda poeirenta através dos caminhos de restolho e os
montões negros das medas de feno avultavam à luz das estrelas. A fina lâmina da Lua
flutuava, baixa, rio ocidente, e a nuvem alongada da Via Láctea esboçava-se muito clara no
firmamento. Os passos de Tom soavam abafadamente na poeira da vereda. Tom enfiou as
mãos nos bolsos e caminhou em direcção ao portão principal. Um talude descia perto da
vereda e Tom distinguia o murmúrio da água, passando por cima da erva da vala de
irrigação. Subiu o talude e olhou a água negra, onde se reflectiam, deformadas, as estrelas.
Diante dele, estendia-se agora a estrada - um remendo negro no meio do restolho amarelo.
Os faróis de automóveis que nela deslizavam apontavam-lhe o caminho. Tom prosseguiu a
sua rota. À luz das estrelas, podia divisar o portão de arame farpado.
Um vulto surgiu à margem da estrada. Uma voz inquiriu:
- Eh, quem está aí?
Tom parou e ficou imóvel.
- Quem é você?
Um homem pôs-se de pé e aproximou-se dele. Tom distinguiu-lhe um revólver na
mão. Depois, o jacto de luz de uma lanterna eléctrica caiu-lhe em cheio no rosto.
- Aonde é que você quer ir?
- Bem, a parte nenhuma. Ando a passear. já nem se pode passear livremente?
- É melhor ir passear para outro lado.
Tom perguntou:
- Então, a gente não pode sair daqui de dentro?
- Não, esta noite não. Bom, quer voltar a bem, ou quer que eu apite para que os
outros o levem?
- Não, que diabo, não é preciso. A mim tanto me faz. Se isso pode dar sarilho, não
vale a pena. Vou-me embora, pois!
O vulto pareceu aliviado. A luz da lanterna extinguiu-se.
- É para seu próprio bem, ouviu? Aqueles diabos daqueles grevistas eram capazes de
se meter com você.
- Quais grevistas?
- Aqueles danados daqueles vermelhos.
- Eu não sei de nada. Que é isso?
- Então não os viu quando chegou aqui?
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- Bem, eu vi uma porção de gente, mas havia tantos polícias que acabei por não
perceber coisa nenhuma, Pensei que fosse um desastre na estrada.
- Bem, é melhor ir andando.
- Perfeitamente, cavalheiro.
Tom voltou-se, regressando pelo caminho de onde viera. Andou tranquilamente uns
cem metros, depois parou e ficou à escuta. O guincho gorjeado de um coati soou, vindo
das proximidades da vala de irrigação, e, de muito longe, chegou-lhe aos ouvidos o furioso
uivar de um cão preso. Tom sentou-se na margem da vereda, ficando à escuta. Ouviu o
riso, agudo e suave ao mesmo tempo, de um noitibó e o deslizar subtil de um bicho
qualquer, que se arrastava no meio das moitas. Inspeccionou o horizonte em ambas as
direcções - duas placas escuras em que nada se mexia. Tom ergueu-se e foi andando para a
direita, vagarosamente, metendo-se entre o restolho. Caminhou inclinado para a frente,
quase tão baixo como os montículos de feno. Movimentava-se com lentidão e, de vez em
quando, parava, a escutar. Por fim, aproximou-se de uma cerca de arame - cinco fios de
arame farpado, bem esticados. Deitou-se de costas, rente à cerca, enfiou a cabeça através
do fio mais baixo, ergueu o arame com as mãos e passou-se por baixo, colado ao chão,
auxiliando-se com movimentos de pés.
Ia a levantar-se quando um grupo de homens passou junto à margem da estrada.
Tom esperou que eles se afastassem bastante antes de se pôr de pé, para os seguir.
Procurou avistar tendas de ambos os lados da estrada. Passaram alguns automóveis. Um rio
atravessava os campos, e a estrada cavalgava o rio por meio de uma pequena ponte de
cimento armado. Tom debruçou-se sobre a balaustrada da ponte. Ao pé do barranco
profundo, descobriu uma tenda onde ardia uma lâmpada. Observando-a por um instante,
distinguiu sombras humanas que se projectavam sobre a lona, pelo lado de dentro. Tom
subiu uma vedação e desceu para a ravina através de, um matagal de salgueiros anões e de
mato. No fundo, à margem do riacho deparou-se-lhe com um atalhozinho. Diante da tenda
via-se um homem sentado em cima de um caixote.
- Boa noite! - disse Tom.
- Quem é você?
- Eu? Bem... eu ando a passear por aqui.
- Conhece alguém neste sítio?
- Não. Já lhe disse que ando a, passear por aqui.
À entrada da tenda surgiu uma cabeça. uma voz soou:
- Que é que há?
- Casy! - bradou Tom. - Casy! Meu Deus, o que é que você faz por aqui?
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- Deus do céu, mas é o Tom Joad! Entre, Tommy, venha cá para dentro!
- Você conhece-o? - perguntou o homem que estava sentado à porta da tenda.
- Se o conheço! Meu Deus, conheço-o há muitos anos. Viemos juntos para o Oeste.
Venha, Tom, entre para aqui, ande! - Agarrou Tom pelo cotovelo e puxou-o para dentro da
tenda.
Lá dentro havia mais três homens, e, a meio da tenda, ardia uma lâmpada. Os
homens, desconfiados, ergueram os olhos. Um deles, de rosto moreno e sombrio,
estendeu-lhe a mão.
- Muito prazer - disse. - Ouvi o que o Casy disse. Então é este o amigo de que
falaste?
- É este mesmo, pois! Mas venha cá, onde está a sua família, Tommy? O que é que
faz por aqui?
- Foi o seguinte: a gente ouviu dizer que havia serviço por aqui. Quando chegámos,
esperava-nos uma porção de polícias que, nos foram empurrando lá para dentro, para o
rancho. Colhemos pêssegos toda a santa tarde. Vi uma porção de tipos a berrarem ria
estrada. Ninguém me quis dizer quem eram e então eu vim ver pessoalmente. Mas como
veio você parar aqui, Casy?
O pregador inclinou-se um pouco para a frente e a luz amarelada da lamparina
incidiu-lhe na testa alta e pálida.
- O xadrez é um sítio engraçado - disse. - Como sabe, eu queria ir como Jesus ao
deserto, para buscar uma solução. Às vezes, cheguei a estar perto dela. Mas onde a
encontrei foi na cela, na cadeia. - Os seus olhos brilhavam, vivos e alegres. - Era uma cela
ampla, muito velha. Estava sempre cheia. Era gente a chegar e gente a sair. Naturalmente,
conversei com todos eles.
- Naturalmente - disse Tom. - Você passa o tempo a falar. Se tivesse de subir à forca,
passava todo o tempo a falar com o carrasco. Nunca vi um tipo tão falador!
Os homens da tenda riram. Um deles, de rosto enrugado, dava palmadinhas no
joelho.
- Anda sempre a falar – disse - mas a gente gosta de o ouvir.
- O homem foi pregador - esclareceu Tom. - Não lhes contou?
- Contou, sim.
Casy sorria.
- Pois é isto - prosseguiu. - Comecei a compreender as coisas. Alguns tipos de entre
os presos eram beberrões, mas muitos tinham ido para lá por terem roubado qualquer
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coisa. E quase sempre tinham roubado porque precisavam de uma coisa e a não podiam
arranjar de outra maneira. Compreende? - perguntou.
- Não - respondeu Tom.
- Bem, havia lá gente às direitas, sabe? O que os estragou foi precisarem de coisas.
Então comecei a compreender. É a miséria que provoca todos os males. Mas a coisa ainda
me não aparecia com toda a clareza. Ora bem, um dia, deram-nos feijão azedo. um tipo
começou a refilar, mas não ganhou nada com isso. Berrou que nem um cabrito. Veio um
guarda, olhou para dentro e foi-se embora. Então, um outro tipo começou também a
berrar. E acabámos por berrar todos. Até parecia que a cadeia ia explodir. Então passou-se
uma coisa. Eles vieram a correr e deram-nos outra comida. Sim, senhor. Trocaram a
comida. Compreende?
- Não - respondeu Tom.
Casy apoiou o queixo às mãos.
- Talvez eu não consiga explicar-me bem - continuou. - Talvez você consiga achar a
solução sozinho. Onde está o seu boné?
- Vim sem ele.
- Como vai a sua irmã?
- Ora! Engordou que nem uma vaca. Aposto que aquilo é coisa de gémeos. Precisa
de um carrinho de mão para transportar a barriga. Anda sempre a segurá-la com as mãos.
Mas você ainda me não disse o que se passa aqui.
O homem moreno explicou:
- Estamos em greve.
- Mas olhe, cinco cents a caixa não é muito dinheiro, mas dá para se ir vivendo.
- Cinco cents? - gritou o moreno. - Cinco cents? Eles estão a pagar-vos cinco cents a
vocês?
- Então? Hoje, já a gente ganhou um dólar e meio.
Um silêncio pesado caiu sobre a tenda. Casy cravou o olhar, através da boca da
tenda, na noite escura.
- Escute, Tom - disse, por fim - nós também viemos para aqui, com a ideia de
trabalhar. Eles disseram que a gente ia ganhar cinco cents a caixa. Nós éramos muitos.
Depois de chegarmos, disseram que não pagavam mais do que dois cents e meio. Ora, com
esse dinheiro, nem a gente podia comer, quanto mais, tendo filhos... Bem, nessa altura
dissemos que não podíamos aceitar e eles caíram em cima da gente, puseram-nos fora e
chamaram polícia que nunca mais acabava. E agora pagam cinco a vocês. Quando
conseguirem acabar a nossa greve, acha que ainda continuarão a pagar-vos cinco cents?
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- Não sei - respondeu Tom. - Sei que, agora, é o que pagam.
- Olhe - disse Casy - procurámos acampar juntos, e eles caíram em cima de nós,
dispersaram-nos que nem a uma vara de porcos e bateram em muitos; espancaram a nossa
gente. Correram connosco, como se fôssemos porcos, e hão-de fazer-vos o mesmo. Não se
pode aguentar por muito tempo uma coisa assim. Há aqui gente que não come há dois dias.
Você volta ainda hoje para o acampamento do pomar?
- Sim, quero ver se volto - respondeu Tom.
- Então, Tom, diga a toda a gente como as coisas são, ouviu? Diga-lhes que estão
matando a gente à fome, o que é o mesmo que dar punhaladas nas suas próprias costas. E
eles vão começar a pagar a dois cents e meio assim que se desembaraçarem de nós. E tão
certo como dois e dois serem quatro.
- Direi tudo - garantiu Tom. - Mas não sei como o poderei dizer. Nunca vi tanto gajo
armado de carabinas. São capazes de não deixarem ninguém falar. Ali, no acampamento, o
pessoal é pouco amigo de arranhar. Anda tudo de cabeça baixa, e nem sequer bom dia
dizem à gente.
- Tente explicar-lhes a situação, Tom. Assim que nos afastarem daqui, vão começar a
pagar-vos a dois cents e meio. Você sabe o que isso significa: uma tonelada de pêssegos
colhida e carregada por um dólar.- Deixou pender a cabeça sobre o peito. - Não, não pode
ser. Isso não dá nem para comer; não dá para comer nada.
- Vou tentar explicar tudo ao pessoal de lá.
- Como vai a sua mãe?
- Vai muito bem, até. Ela gostou muito daquele acampamento do governo. Até havia
água quente e banhos!
- Sim, ouvi dizer isso.
- Aquilo lá era muito bonito. Mas não havia maneira de se arranjar trabalho e por isso
a gente teve de se vir embora.
- Eu gostava muito de estar num acampamento assim - disse Casy. - Só para ver. Um
sujeito contou-me que lá não havia polícia.
- Não há, não. É a própria gente de lá que faz o policiamento.
Casy ergueu os olhos, excitado.
- E nunca lá há desordens? Nem brigas, nem roubos, nem bebedeiras?
- Nada disso - esclareceu Tom.
- E se alguém pretendesse armar zaragata? Que é que acontecia?
- Punham-no fora do acampamento.
- E havia muitos casos desses?
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- Qual o quê! Passei lá um mês e só se deu um caso desses.
Os olhos de Casy continuavam a brilhar de excitação. Dirigiu-se aos outros homens.
- Vêem? - exclamou. - Não lhes dizia? Os sarilhos causam mais sarilhos do que
evitam. Ouça, Tom, veja se dá um jeito para que eles se passem para o nosso lado. Em
quarenta e oito horas, a coisa fazia-se. Os pêssegos já estão maduros. Convença-os a
fazerem isso.
- Eles, se calhar, não querem - disse Tom. - Estão a ganhar cinco cents. É só o que
lhes interessa.
- Mas, assim que a greve for abafada, eles começam a ganhar metade.
- Eles não acreditam nisso, pela certa. Ganham cinco cents; não querem saber de mais
nada.
- Bem, mas de qualquer forma, diga-lhes isto, ouviu?
- O pai é que não vai nisso - disse Tom. - Conheço-o bem. Diz logo que não tem
nada com isso.
- E verdade - confirmou Casy, desconsolado. - Acho que você tem razão. Ele, para
aprender, tem de apanhar primeiro.
- A gente já não tinha nada que comer. Esta noite comemos carne, Não muita, mas
sempre comemos carne. Você acha que o pai vai deixar de comer carne só por causa dos
outros? E a Rosasharn tem de beber leite. Você julga que a mãe vai deixar o bebé de
Rosasharn. morrer só porque uns tipos andam aos berros cá do lado de fora do portão?
Casy disse tristemente:
- O que eu queria era que eles compreendessem como é a coisa, Queria que eles
vissem que este é o único meio de garantirem a carne que querem comer. Ora, diabos os
levem! As vezes, sinto-me cansado de tudo isto. Cansado, que só Deus sabe! uma vez
conheci um tipo. Levaram-no para a cadeia quando eu ainda lá estava. E ele tentou fundar
um sindicato. Já tinha começado quando os vigilantes desfizeram tudo. Sabe o que
aconteceu? Aquela mesma gente que ele pretendia ajudar, voltou a casaca. Nem o queria
ver. Fugiam dele como o diabo da cruz; tinham medo de que algum os visse na companhia
dele. Diziam assim: “Vá, põe-te a andar! Tu és um perigo para nós!” Sim, senhor, era o que
diziam, e o pobre do homem sofria com isso! Acrescentava então: “Isto não é nada, pois na
Revolução Francesa, era pior... todos os que a fizeram morreram decapitados. É sempre
assim. É tão natural como a chuva. Quem faz estas coisas sabe que não está a brincar. Fálas
porque tem de as fazer. Porque as tem no sangue. Olha o George Washington, por
exemplo - dizia ele. - Fez a revolução e aqueles filhos da mãe viraram-se contra ele, Com
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Lincoln, foi a mesma coisa. A própria gente dele o quis matar. Isso é tão natural como a
chuva.”
- Mas não tem graça nenhuma - comentou Tom.
- Lá isso não tem, não. Aquele tipo lá da cadeia dizia assim: “De qualquer maneira, a
gente faz o que pode.” E acrescentava: “A única coisa que nos deve importar é dar sempre
um passo em frente, por mais pequeno que ele seja. Se depois, a coisa fizer marcha atrás,
nunca recuará tanto como andou para a frente. É uma coisa que se pode provar, e é por
isso que vale a pena agir, Está provado que nada é inútil, mesmo que o pareça.”
- Conversa - disse Tom. - Conversa e mais nada. Veja o meu irmão, o Al. O que lhe
interessa é andar à cata das pequenas. Não liga a mais coisa nenhuma. Em dois dias, arranja
uma rapariga. Pensa nela todo o dia e toda a noite. Bem lhe importa a ele que se dêem
passos para cima, para baixo ou para o lado!
- Pois claro - respondeu. Casy. - É natural. Ele faz exactamente o que tem a fazer.
Todos nós somos assim.
O homem que estava sentado à porta abriu a tenda.
- Diabo, não estou a gostar nada disto - disse. Casy olhou-o.
- Que há?
- Sei lá! Só sei que sinto uma comichão por todo o corpo. Estou nervoso que nem
um gato.
- Mas porquê?
- Não sei. Parece-me que estou a ouvir qualquer coisa e, quando vou ver o que é, não
vejo coisa nenhuma.
- Não tem importância. São nervos - disse o moreno. Ergueu-se e saiu. Um instante
depois regressava. - Está a passar uma nuvem enorme pelo céu. Parece-me que traz
trovoada. É por isso que você sente essas comichões. É da electricidade.
Tornou a sair e os outros dois ergueram-se também e deixaram a tenda.
Casy disse mansamente:
- Todos eles sentem comichões. Os polícias andaram aí a dizer que nos iam fazer ver
o diabo. Eles pensam que o chefe sou eu, porque estou sempre a falar.
O moreno tornou a aparecer.
- Casy, apague essa lâmpada e venha cá para fora, Está a passar-se qualquer coisa.
Casy baixou a torcida. A chama amarela mergulhou na lenda, crepitou um segundo e
morreu. Casy saiu às apalpadelas, seguido de Tom.
- Que é que há? - perguntou Casy baixinho.
- Não sei. Ora ouça.
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Um coro de sapos coaxando quebrava o silêncio, unindo-se à serrazina aguda dos
grilos. Mas, através dessa cortina musical, percebia-se um som de passos abalados na
estrada, o ruído de torrões de terra seca, rolando pelo barranco até, ao rio e o estalar de
galhos secos para os lados da água.
- Não ouço nada de extraordinário. Vocês estão nervosos - tranquilizou-os Casy. -
Todos nós andamos nervosos. Estamos incapazes de discernir... Você ouve alguma coisa,
Tom?
- Oiço, sim - respondeu Tom. - Acho que vem aí gente por todos os lados. É melhor
a gente tratar de fugir daqui.
O homem moreno cochichou:
- Por baixo do arco da ponte... por aí. Custa-me tanto abandonar a minha tenda!
- Vamos - disse Casy.
Moveram-se em silêncio, caminhando ao longo da margem do rio. O arco da ponte
erguia-se diante deles como a boca de uma caverna. Casy abaixou-se e penetrou na
cavidade, com Tom na cola. Os seus pés resvalaram e mergulharam na água. Andaram uns
vinte metros, e o seu pesado resfolegar ecoava sob o tecto abobadado. Então chegaram ao
lado oposto e aí se detiveram, endireitando o busto.
Um grito agudo soou:
- Lá estão eles! - Os focos de duas lanternas eléctricas incidiram sobre os homens,
paralisando-os, cegando-os. - Não se mexam! - As vozes vinham das trevas. - É ele! Aquele
patife, à frente! É ele mesmo!
Casy, às cegas, cravava os olhos nos focos brilhantes. Respirava com dificuldade.
- Oiçam – disse - vocês não sabem o que estão a fazer. Estão a ajudar a matar
crianças à fome.
- Cale a boca, seu vermelho, seu filho da mãe!
Um homenzinho rechonchudo e vigoroso surgiu na luz. Segurava um cacete novo
em folha.
Casy continuou:
- Vocês não sabem o que estão a fazer.
O homem pesadão brandiu o cacete. Casy, procurando esquivar-se, foi justamente
apanhado no movimento. A pesada maça bateu-lhe com estrondo na têmpora, provocando
um eco sinistro de ossos que se partem. Casy tombou de lado, fora do raio de luz das
lanternas.
- Meu Deus, George! Mataste o homem...
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- Inclina a luz para a cara dele - disse George. - Este filho da mãe teve o que merecia.
O raio de luz da lanterna desceu, procurou e acabou por achar a cabeça esmagada de Casy.
. Tom lançou um olhar ao pregador. A luz iluminava as pernas do homem pesadão e o
cacete branco e novo. Tom armou um pulo silenciosamente e arrebatou-lhe a arma. O
primeiro golpe foi mal calculado e alcançou o ombro do homenzinho, mas o segundo caiulhe
em cheio na cabeça, e, quando ele tombou, mais três golpes lhe abalaram o crânio. As
luzes bailavam em redor. Ouviram-se gritos, rumor de pés em correria e o estalar de ramos
de arbustos. Tom quedou-se ao lado do homem que abatera, e então uma maça passou-lhe
rente à cabeça, atingindo-o de raspão. Tom sentiu como que um choque eléctrico, e
desatou a correr para os lados do rio, com o busto vergado. Ouviu o chapinhar de passos
dos que o seguiam. De repente, voltou-se para a direita e arrastou-se pelo barranco,
serpenteando por entre o restolho, embrenhando-se no mais cerrado de um maciço de
arbustos venenosos. Deixou-se ficar ali deitado. Os passos soavam agora mais próximos e
os fachos de luz insinuavam-se até ao rio. Tom saiu, rastejando das moitas, subindo mais
para o barranco. Chegou a um pomar. Ainda lhe vinham aos ouvidos os gritos dos homens
que o procuravam no fundo do barranco, ao lado do rio. Abaixou-se e largou a correr pelas
terras cultivadas. Os torrões desprendiam-se e rolavam a seus pés. À frente, enxergou os
arbustos que mareavam os limites do campo, arbustos que se perfilavam ao longo de uma
vala de irrigação, Pulou uma cerca e penetrou, aos ziguezagues, entre vinhedos e amoreiras.
Depois deitou-se e ficou imóvel, num arquejar rouco. Apalpou o rosto dormente e o nariz.
Estava com o nariz esmagado e o sangue gotejava-lhe pelo queixo. Continuou imóvel,
deitado sobre o ventre até que conseguiu dominar-se por completo. Começou então, a
rastejar até à beira do rio. Banhou o rosto na água fria, rasgou uma tira da camisa azul,
mergulhou-a na água e encostou-a ao rosto e ao nariz feridos. A água ardia-lhe no rosto,
produzindo-lhe uma sensação de queimadura.
A nuvem negra atravessava o céu - um colchão de trevas entre as estrelas. A noite
recaíra no silêncio.
Tom penetrou na água e sentiu o fundo faltar-lhe debaixo dos pés. Transpôs o rio a
nado, em duas braçadas, saltando para a outra margem e alçando o corpo com dificuldade.
A roupa colava-se-lhe à pele. Fez um movimento e a roupa soltou-se com um pequeno
ruído. Os pés chapinhavam dentro dos sapatos. Sentou-se finalmente e tirou-os para os
esvaziar. Torceu as bainhas das calças, despiu o casaco e torceu-o também.
Ao longo da estrada, Tom via os focos de luz bailar, pesquisando nas valas. Calçou
os sapatos e saiu, caminhando cautelosamente por entre as moitas. Os pés já não
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chapinhavam. Instintivamente, encontrou a outra extremidade do matagal, e, por fim,
alcançou a vereda. Cheio de cautela, aproximou-se do bloco de casas.
Um guarda, que julgou ter ouvido qualquer coisa de suspeito, gritou:
- Quem está aí?
Tom atirou-se ao chão, e o foco da lanterna eléctrica passo-lhe por cima do corpo.
Arrastou-se em silêncio até à porta da família Joad. Os gonzos rangeram. A mãe perguntou,
com voz calma:
- Quem é?
- Sou eu, Tom.
- Vê se dormes um pouco. O Al ainda não voltou.
- Deve ter encontrado alguma pequena.
- Bom, dorme - disse ela baixinho. - Deita-te aí, perto da janela.
Tom dirigiu-se ao sítio que lhe fora que lhe fora indicado e despiu a roupa molhada.
Já sob o cobertor, sentiu arrepios. O rosto pisado deixava de estar dormente e toda a
cabeça lhe começou a latejar.
Uma hora depois chegou Al. Aproximou-se cautelosamente e pisou a roupa molhada
de Tom.
- Chiu! - ciciou Tom.
Al cochichou:
- Tu ainda estás acordado? Como foi que te molhaste?
- Chiu! - repetiu Tom. - Amanhã te conto.
O pai virou-se de costas e o seu ressonar encheu o quarto de roncos e de ruidosos
suspiros.
- Estás gelado - disse Al.
- Chiu, dorme!
O quadrilátero da janela recortava-se cinzento na escuridão do quarto.
Tom não conseguiu dormir. Os nervos do rosto ferido voltaram à vida, a palpitar; os
ossos doíam-lhe e o nariz quebrado inchara e latejava com uma dor que parecia sacudir-lhe
o corpo todo. Deixou-se ficar a contemplar o pequeno quadrilátero da janela, vendo as
estrelas surgir e acompanhando-as até desaparecerem. Ouvia os passos regulares dos
guardas, indo e vindo com intervalos regulares.
Por fim, os galos cantaram ao longe e, gradualmente, a janela foi-se tornando mais
clara. Tom apalpou o rosto inchado com as pontas dos dedos, e, a esse movimento, Al
grunhiu e murmurou qualquer coisa em sonho.
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Chegou, finalmente, a madrugada. Das casas muito unidas, filtravam-se ruídos de
gente que acordava, rachar de lenha, tinir de panelas que se chocavam. No crepúsculo
acinzentado, a mãe ergueu-se subitamente no leito. Tom distinguia-lhe o rosto entumecido
pela acção do sono. Ela ficou a olhar a janela durante um bom bocado. Depois, afastou o
cobertor e procurou o vestido. Ainda sentada, enfiou-o pela cabeça e, com os braços
erguidos, deixou-o deslizar até à cintura. Pôs-se de pé e puxou o vestido até aos tornozelos.
Então, descalça, foi cautelosamente até à janela e olhou para fora. Enquanto contemplava a
claridade crescente, os seus dedos ligeiros desfaziam as tranças e alisavam as madeixas,
tornando a entrançá-las. Por um momento, uniu as mãos e permaneceu imóvel. O seu
rosto recortava-se distintamente na claridade da janela. Depois, voltou-se e caminhou
cautelosamente entre os colchões e achou a lâmpada. O tubo quebra-luz guinchou.
Acendeu o pavio.
O pai virou-se, rolando e circunvagou um olhar sonolento.
- Pai, tens algum dinheiro? - perguntou ela.
- Hem? Tenho sim. Um vale de sessenta cents.
- Bem, então levanta-te e vai comprar um bocado de farinha e de toucinho. Vamos,
anda depressa!
O pai bocejou.
- O armazém já estará aberto?
- Se não estiver, manda-o abrir. Vocês têm de comer antes de ir para o trabalho.
O pai começou a enfiar o fato-macaco e vestiu sobre ele o casaco cor de ferrugem.
Foi indolentemente até à porta, espreguiçando-se e bocejando.
As crianças acordaram e espreitaram por debaixo dos cobertores, como ratinhos.
Uma ténue claridade enchia o quarto a claridade incolor que precede o nascer do Sol. A
mãe lançou um olhar aos colchões. O tio John já estava acordado. Al dormia
profundamente. Os olhos da mãe procuraram Tom e fixaram-se nele por um instante.
Depois, dirigiu-se ao filho. Tom tinha o rosto muito inchado, de uma cor azulada; nos
lábios e no queixo criara-se uma crosta de sangue enegrecido. Os bordos da ferida que lhe
dilacerava a face estavam inchados e repuxados.
- Tom - segredou ela - que foi que te aconteceu?!
- Chiu! - murmurou ele. - Não fale alto. Tive uma briga.
- Tom!
- Não tive outro remédio, mãe.
Ela ajoelhou-se ao lado dele.
- E agora, estás em apuros, não? Passou-se longo tempo antes que ele respondesse.
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- Sim - disse. - Em grandes apuros. Não posso ir trabalhar. Tenho de me esconder.
As crianças, rastejando, aproximaram-se, de olhos arregalados, em que reluzia uma
sôfrega curiosidade.
- Que foi que lhe aconteceu, mãe?
- Calem-se! - intimou a mãe. - Tratem de lavar a cara.
- Não há sabão.
- Então lavem-na só com água, andem!
- Que é que o Tom tem?
- Não lhes disse que calassem a boca? E não digam nada a ninguém.
As crianças afastaram-se, acocorando-se junto à parede oposta, onde sabiam que
poderiam passar despercebidas.
- Mas é coisa grave? - perguntou a mãe.
- Nariz quebrado.
- Não, eu refiro-me ao sarilho em que te meteste.
- Sim, muito grave.
Al abriu os olhos e olhou para Tom.
- Meu Deus, em que é que tu te meteste?
- Que é que há? - perguntou o tio John.
O pai entrou ruidosamente.
- Já estava aberto. - Pôs no chão, ao lado do fogão, um saquinho de farinha e um
pacotezito de toucinho. - Que é que há de novo? - perguntou.
Tom alçara-se por um instante, apoiando-se num cotovelo mas tornou a deitar-se.
- Meus Deus, como me sinto fraco? Vou contar-lhes tudo. É melhor - vocês saberem
já. Mas estão ali os miúdos...
A mãe olhou para eles. Estavam encolhidos, fazendo-se pequeninos de encontro à
parede.
- Vão-se lavar, já disse!
- Não - atalhou Tom. - Eles devem ouvir. Senão, vão começar a tagarelar por aí.
- Mas que diabo foi que houve? - inquiriu o pai.
- Vou contar tudo. A noite passada, eu saí para ver porque era que aquela gente
gritava tanto lá fora. Então, encontrei o Casy.
- O pregador?
- Sim, pai. O pregador. Era ele quem dirigia a greve. E andava gente atrás dele para o
prender.
- Quem é que o queria prender? - perguntou o pai.
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- Não sei. Sujeitos daquela mesma espécie dos que nos mandaram voltar naquela
noite. Estavam armados de cacetes. - Fez uma pausa. - Mataram-no. Esmagaram-lhe a
cabeça. Eu estava ao pé dele. Fiquei doido. Apanhei um cacete... - Sombrio, deixou que o
seu olhar voltasse à cena da noite anterior, àquela profunda escuridão, às lanternas
eléctricas, enquanto dizia: - Eu... eu agarrei num cacete e atirei-me a um daqueles gajos...
A mãe tinha a respiração suspensa. O pai ficou imóvel, como de pedra.
- Mataste-o? - perguntou ele baixinho.
- Eu... não sei. Estava como louco. Dei para matar.
- Eles viram-te? - inquiriu a mãe.
- Não sei, não sei. Acho que sim. Alumiaram a gente com as lanternas...
Durante alguns segundos, o olhar da mãe prendeu-se a ele, insistentemente.
- Pai - disse ela - racha alguns desses caixotes, para fazer lenha. A gente tem de comer
qualquer coisa. Vocês têm de ir trabalhar. Ruthie, Winfield, se alguém perguntar qualquer
coisa... o Tom está doente, compreenderam? Se vocês falarem, ele vai para a cadeia.
Compreenderam?
- Sim, senhora.
- Vigia as crianças, John. Não as deixes falar com ninguém.
Ela acendia o lume, enquanto o pai rachava um caixote dos que antigamente
continham os seus bens. Procurou a massa de farinha e colocou a cafeteira de café em cima
do fogão. A madeira seca pegou rapidamente fogo e as chamas subiam com ruído pelo
cano da chaminé.
O pai acabou de partir os caixotes. Aproximou-se de Tom.
- O Casy... ele sempre foi bom tipo. Como foi que ele se meteu numa alhada
daquelas?
Tom respondeu sombriamente.
- Eles tinham vindo para aqui, para trabalharem... a cinco cents cada caixa de pêssegos.
- É o que nós ganhamos.
- Pois é. O que nós fizemos foi furar a greve. Eles ultimamente só pagavam dois cents
e meio àquela gente.
- Mas esse dinheiro nem dá para comer...
- Eu sei - reconheceu Tom, abatido. - Foi por isso que eles fizeram a greve. Bem,
julgo que esta noite irão acabar com ela. E a gente vai passar a ganhar dois cents e meio.
- Mas que grandes filhos da mãe!
436
- Pois é, pai, o senhor está a ver? O Casy era boa pessoa. Que diabo, não há meio de
eu me esquecer de ontem à noite! Ele, caído no chão, com a cabeça esmagada, feita num
bolo, cheia de sangue. Meu Deus! - Cobriu os olhos com as mãos.
- Bem, mas que é que a gente vai fazer? - perguntou o tio John.
Al levantou-se.
- Eu sei o que vou fazer. Vou-me embora e já.
- Não, Al, não podes fazer isso. A gente precisa de ti - disse Tom.- Quem tem de se
ir embora, sou eu. Eu, aqui, sou um perigo. Assim que possa levantar-me, tenho de me ir
embora daqui.
A mãe estava atarefada junto do fogão. Tinha a cabeça meio virada de lado, para
poder ouvir. Despejou um pouco de banha na frigideira e, quando a gordura começou a
chiar, lançou-lhe dentro a massa de farinha.
Tom continuou:
- Tu tens de ficar, Al. Quem é que vai tomar conta do camião?
- Pois sim, mas eu não gosto nada disto aqui.
- É a única maneira, Al. É a tua família. Tu podes ajudá-la. Eu. agora, não posso. Sou
um perigo para vocês.
Al resmungou, furioso:
- Só quero saber porque me não deixam trabalhar numa garagem?
- Mais tarde talvez possas. Tom desviou o olhar e viu Rosa de Sharon deitada em
cima de um colchão. Tinha os olhos desmedidamente abertos.
- Não te preocupes - disse-lhe Tom. - Hoje, vais ter o teu leite.
Ela pestanejou levemente, mas nada disse.
- É preciso que a gente saiba: tu achas que mataste esse gajo, hein? - perguntou o pai.
- Não sei. Estava muito escuro. Não vi. Alguém me deu uma pancada. Não sei. Mas
espero que ele tenha morrido, aquele bandido!
- Tom! - gritou a mãe.- Não fales assim, Tom!
Da rua, vinha o ruído de muitos carros, deslocando-se vagarosamente. O pai foi à
janela e olhou para a rua.
- Vem aí muita gente nova - anunciou.
- Se calhar, acabaram com a greve, como já disse - elucidou Tom. - Parece-me que
hoje já vocês vão começar a trabalhar por dois cents e meio.
- Se assim for, a gente pode trabalhar que nem um negro, que não ganha para comer.
- Eu sei - disse Tom. - Comam pêssegos caídos no chão. Também matam a fome.
A mãe virou a massa de farinha na frigideira e mexeu o café.
437
- Ouçam - disse ela.- Hoje vou comprar farinha de milho. A gente vai comer papas.
E assim que tivermos dinheiro que dê para comprar gasolina, a gente vai-se embora daqui.
Isto aqui não presta. E não admito que o Tom vá sozinho. Não, senhor, nada disso!
- A senhora não pode fazer uma coisa dessas, mãe. Eu sou um perigo para a família,
já disse.
O rosto dela assumira um ar de decisão.
- É o que vamos fazer e pronto. Bom, venham cá e comam. Depois, vã o trabalhar.
Eu também vou, assim que acabar de lavar a louça. A gente precisa de ganhar dinheiro,
agora.
Comeram as empadas tão quentes que rechinavam na boca. Engoliram o café a toda
a pressa e, tornando a encher as canecas, tomaram outra dose de café.
O tio John, debruçado sobre o prato, sacudiu a cabeça.
- Não gosto desta história de nos irmos embora com essa pressa toda. Aposto que
isto é por causa dos meus pecados.
- Ora cala a boca! - gritou o pai. - A gente, agora, não pode perder tempo com os
teus pecados. Anda depressa, a gente tem de se ir embora daqui. Os miúdos que venham
ajudar. A mãe tem razão, a gente deve ir-se embora daqui.
Quando os homens se foram, a mãe ofereceu a Tom um prato e uma caneca.
- É melhor tu comeres qualquer coisa.
- Não posso, mãe. Dói-me tudo. Não posso mastigar.
- Experimenta.
- Não, mãe, não posso.
Ela sentou-se na borda do colchão.
- Conta-me corno se passou tudo, Tom - disse.- Eu tenho de saber bem como foi
tudo, para ver com o que conto. Que foi que o Casy fez? Porque é que o mataram?
- Ele não fez nada. Estava quieto, de pé, com a luz das lanternas a bater-lhe na cara.
- Mas não disse nada? Tu não te lembras se ele disse qualquer coisa?
- Disse sim - respondeu Tom.- Disse assim: “Vocês não têm o direito de matar
ninguém à fome.” Então, um tipo qualquer armou em valente e chamou-lhe vermelho e
filho da mãe. O Casy apenas respondeu: “Vocês não sabem o que estão a fazer.” Nesta
altura, o tal tipo deu cabo dele.
A mãe baixou o olhar e enlaçou as mãos.
- Foi só o que ele disse?... “Vocês não sabem o que estão a fazer”?
- Foi.
- Só queria que a avó pudesse ouvir isto - disse ela.
438
- Mãe... eu nem sabia o que ia fazer. E como isto da respiração: respiramos sem dar
por isso.
- Está bem. Tinha sido melhor se tu não tivesses feito nada. Tinha sido melhor não
teres lá ido. Mas agora, o mal está feito, tinha de ser assim. Não posso culpar-te por isso. -
Foi ao fogão e mergulhou um pano na água quente, que tinha preparado para lavar os
pratos e as canecas. - Pega - disse - põe isto na cara.
Tom pôs o pano quente sobre o nariz e sobre parte do rosto e estremeceu
ligeiramente sob o efeito do calor.
- Mãe, vou-me embora hoje mesmo à noite. Não posso deixá-los correr o risco de eu
ser apanhado aqui.
A mãe respondeu irritada:
- Tom! Há muitas coisas que não posso compreender. Mas o facto de te ires embora
não adianta nada. Só é pior para nós. Ficamos todos abatidos. - E prosseguiu: - Quando a
gente estava na nossa terra, era tudo tão diferente! A terra era uma espécie de fronteira para
nós todos. Os velhos morriam, e nasciam as crianças e a gente era sempre uma só coisa...
uma só família... uma coisa completa e bem definida. Mas agora não é assim. Eu estou que
nem posso mais. Não há mais nada para unir a gente. O Al anda sempre a suspirar e a
resmungar porque se quer ir embora, para ganhar sozinho a sua vida. O tio John mal se
arrasta nas pernas. O pai perdeu o lugar dele; já não é o chefe. A gente vai-se desfazendo
aos poucos, Tom. A família quase que já não existe. A Rosasharn... - A mãe voltou-se e o
seu olhar encontrou os olhos arregalados da filha.- Ela vai ter o bebé e não será uma
família. Não sei. Eu fiz tudo para que a família se não desmantelasse. E o Winfield... como
vai ser se ele continuar assim? Está cada vez mais selvagem e a Ruthie também... São dois
animais selvagens. Eles não podem ter fé em nada. Tom, não te vás embora, fica junto de
nós; tu tens de nos ajudar.
- Muito bem - disse Tom, abatido. - Muito bem. Eu não devia ficar, se; que não
devia, mas fico.
A mãe foi para junto da bacia de lavar os pratos. Lavou os pratos de estanho e
enxugou-os.
- Tu não dormiste, pois não?
- Não.
- Então trata de dormir agora. A tua roupa está molhada. Vou estendê-la por cima do
fogão, para secar. - Terminou a tarefa. Agora, vou sair. Ajudar na colheita. Rosasharn, se
alguém vier, o Tom está doente, compreendes? Não deixes entrar ninguém. - Rosa de
Sharon acenou afirmativamente com a cabeça. - Ao meio-dia, a gente volta. - Dorme agora,
439
Tom. Pode ser que logo à noite a gente se possa ir embora daqui. - Brandamente, dirigiu-se
a ele: - Tom, tu não vais fugir, pois não?
- Não, mãe.
- Com certeza? Ficas mesmo?
- Fico sim, mãe.
- Muito bem. E, Rosasharn, lembra-te bem do que te disse. - Saiu e fechou a porta
com firmeza atrás de si.
Tom ficou deitado, imóvel e uma vaga de sono levou-o à inconsciência; largou-o e
tornou a inundá-lo de novo.
- Tom... Tom!
- Hein? Que, é? - Ele acordou e fitou Rosa de Sharon, cujos olhos brilhavam de
ressentimento. - Que é que tu queres? - perguntou à irmã.
- Tu mataste um homem!
- Sim, mas não fales tão alto. Queres dar o alarme a alguém?
- Que me importa? - gritou ela. - Aquela mulher disse... ela disse-me o que o pecado
fazia. Disse tudo. Como é que eu posso ter um bebé bonito agora? O Connie foi-se
embora e ninguém me dá comida que preste. Nem leite me dão. - A sua voz histérica subia
de tonalidade. - E agora mataste um homem. Corno é que um bebé pode nascer bem desta
maneira? Eu sei... eu sei que vou ter um filho aleijado... é isto, aleijado. E eu nunca dancei
como eles.
Tom ergueu-se:
- Chiu! - fez ele. - Vais fazer com que venha gente.
- Não me interessa. Vou ter um filho aleijado. E eu nunca dancei essas danças
indecentes.
Tom aproximou-se dela.
- Está sossegada.
- Não me toques, ouviste? já não é o primeiro que tu matas. - O seu rosto tingiu-se
de vermelho, num acesso de histeria. As palavras borbulhavam-lhe na garganta. - Não te
quero ver mais. - Cobriu a cabeça com o cobertor.
Tom ouviu-lhe o choro abafado. Mordeu o lábio inferior, quedando-se a contemplar
o chão. Depois, foi até ao leito do pai. beira do colchão estava uma espingarda Winchester
38, pesada e comprida, de fecho automático. Tom apanhou-a e destravou a alavanca, para
ver se havia alguma bala no cano. Examinou o gatilho e verificou que estava travado.
Depois, voltou para o seu colchão. Pôs a espingarda no chão, ao lado, com a coronha para
cima e o cano para baixo. O choro de Rosa de Sharon degenerava em gemidos. Tom
440
tornou a deitar-se e cobriu-se com o cobertor. Cobriu também o rosto inchado, deixando
um pequeno túnel para a passagem do ar necessário à respiração. Suspirou.
- Deus, ó meu Deus!
Lá fora, passava um combóio de carros e ouviam-se vozes:
- Quantos homens?
- Só nós três. Quanto é que vocês pagam?
- Vão morar no 25. O número está na porta de casa.
- Muito bem. Quanto é que pagam?
- Dois cents e meio.
- Meu Deus, mas isso não dá nem para o jantar!
- É o que pagamos. Há aí duzentos homens, vindos do sul; vão ficar satisfeitos de
poderem ganhar dois e meio.
- Mas ouça, senhor...
- Vamos, andem! Querem aceitar ou não? Não posso perder tempo com discussões.
- Mas... - Oiça, quem estabelece os ordenados não sou eu. A mim, só me compete
registar os vossos nomes. Se quiserem aceitar, bem; se não quiserem, podem ir-se embora.
- Casa 25, foi o que o senhor disse?
- Sim, casa 25.
Tom dormitava no seu colchão. Um ruído abafado despertou-o. Deitou a mão à
espingarda, pôs o dedo no gatilho e ergueu o cobertor que lhe tapava o rosto. Rosa de
Sharon estava a seu lado.
- Que é que tu procuras? - perguntou Tom.
- Dorme - disse ela.- Continua a dormir. Vou pôr-me de atalaia à porta. Ninguém
entra.
Por um instante, Tom ficou a perscrutar o rosto dela.
- Muito bem - disse, tornando a cobrir o rosto com o cobertor.
Ao cair da noite, a mãe regressou. Parou no limiar da porta, bateu com os nós dos
dedos e disse: - Sou eu - para que Tom não ficasse preocupado. Abriu a porta e entrou,
trazendo um saquinho. Tom acordou e sentou-se no colchão. A ferida secara e estava tão
tensa que a pele do rosto, que se conservara intacta, rebrilhava. Tinha o olho esquerdo
repuxado e quase fechado.
441
- Veio alguém enquanto eu estive fora? - perguntou a mãe.
- Não - respondeu Tom. - Ninguém. Eles baixaram os salários, não baixaram?
- Como é que tu sabes?
- Ouvi gente a falar nisso aí fora.
Rosa de Sharon lançou à mãe um olhar envergonhado.
Tom apontou para ela com o polegar.
- Ela fez um barulho dos diabos, mãe. Pensa que todas estas coisas são especialmente
contra ela. Se sou o causador de ela estar tão nervosa, acho melhor ir-me embora.
A mãe voltou-se para Rosa de Sharon.
- Que foi que fizeste?
A rapariga disse com amargura:
- Como é que eu poderei ter um bebé bonito com todas essas complicações?
- Chiu! Cala-te! - intimou a mãe. - Eu sei como te sentes, sei que não tens culpa, mas
o melhor é calares o bico, ouviste?
Voltou-se de novo para Tom.
- Não leves a mal, Tom. É duro tudo isto que lhe tem acontecido. Eu sei que a gente,
quando espera um filho, pensa que tudo é contra nós, qualquer coisa que alguém diga
parece logo um insulto, todos nos parecem inimigos. Não leves a mal. A culpa não é dela.
Ela agora tem de sentir assim.
- Mas eu não pretendo fazer-lhe mal algum.
- Chiu! Não fales. - Pôs o saquinho de papel em cima do fogão. - Quase não
ganhámos nada - desabafou. Eu não disse que o melhor era a gente ir-se embora daqui?
Tom, faz-me o favor de me, trazer um bocadito de lenha. Não, tu não podes... Ainda há
um caixote. Racha-se. Eu disse aos outros para trazerem alguns ramos, quando viessem.
Vou fazer umas papas para temperar com açúcar.
Tom levantou-se e transformou em lenha o último caixote, partindo-o em pequenas
ripas. Cautelosamente, a mãe acendeu o lume num canto do fogão, mantendo as chamas
concentradas numa rodela apenas. Encheu de água uma panela e colocou-a, sobre as
chamas. Em breve, a água da panela borbulhava em cima do lume; borbulhava e espirrava.
- Que tal foi a colheita de hoje? - perguntou Tom.
A mãe meteu uma caneca, no saquito de farinha de milho.
- Não me agrada nada falar nisso. Justamente hoje, estive a pensar em como a gente
vivia antigamente, brincávamos, tínhamos alegria. Não gosto disto, Tom. Hoje em dia, já
ninguém brinca, ninguém diz coisas com graça. E, quando as dizem, são pilhérias amargas
que nem chegam a ter graça. Um homem, hoje, disse assim: “A crise. passou. Vi um coelho
442
e não lobriguei perto ninguém que o quisesse caçar.” E um outro respondeu: “O motivo é
outro. É que hoje em dia ninguém tem coragem de matar um coelho. Hoje, agarra-se num
coelho, ordenha-se, tira-se-lhe o leite todo e depois solta-se de novo. O coelho que tu viste
com certeza que não tinha leite; devia estar seco.” E assim que falam. E isto não tem graça;
não é engraçado, como quando o tio John converteu um índio e o levou para casa, e o
índio lhe comeu uma panela inteira de feijões e depois se sumiu com a garrafa de whisky do
tio John. Tom, põe um pano molhado nessa cara, ouviste?
A escuridão aprofundara-se. A mãe acendeu a lanterna e pendurou-a num prego.
Atiçou o fogo e foi lançando a farinha de milho gradualmente na água a ferver.
- Rosasharn – disse - és capaz de continuar a mexer estas papas?
Ouviu-se o ruído de pés correndo lá fora. A porta abriu-se com violência e bateu de
encontro à parede. Ruthie precipitou-se no quarto.
- Mãe! - gritou. - O Winfield desmaiou!
- Onde? Diz lá onde?
Ruthie arfava.
- Ficou branco e, de repente, caiu no chão. Ele comeu muitos pêssegos e andou com
dores de barriga todo o dia. Depois caiu, e que branco que ele estava, mãe!
- Vem mostrar-me onde é que ele está - pediu a mãe. - Rosasharn, tem cuidado com
as papas!
Saiu com Ruthie. Subiu a rua, correndo com dificuldade atrás da menina. Três
homens vinham ao seu encontro na escuridão, e o do meio trazia Winfield nos braços. A
mãe correu para eles.
- É meu filho! - gritou. - Eu pego-lhe
- Deixe, que eu levo-o - disse um dos homens.
- Não, não, dê-mo depressa.
Ela pegou na criança e só quando ia a voltar para trás é que se lembrou de agradecer.
- Muito obrigada - disse ao homem.
- Não tem de quê. O pequeno está muito fraco. Devem ser lombrigas.
A mãe regressou com rapidez, com Winfield a pender-lhe dos braços, o corpo
abandonado, sem alento. A mãe levou-o para dentro de casa e, vergando os joelhos, deitouo
em cima do colchão.
- Agora conta-me como foi - solicitou ela. Winfield abriu os olhos, entontecido,
sacudiu a cabeça e tornou a fechar os olhos. Ruthie disse:
- Foi assim, mãe. Ele passou todo os dia com dores de barriga. Estava sempre a ir lá
fora. Comeu pêssegos que foi uma coisa por demais.
443
A mãe levou a mão à testa do rapazito.
- Não tem febre. Mas está muito fraco e muito pálido.
Tom aproximou-se e tirou a lanterna do prego.
- Eu sei – disse .- Ele o que tem é fome. Tem fraqueza. É melhor comprar uma
porção de leite para ele beber ou então misturem-lho nas papas.
- Winfield - disse a mãe. - Como te sentes? Diz...
- Sinto-me tonto, mãe. Vejo tudo à roda; estou tonto.
- Nunca vi uma diarreia assim - disse Ruthie, com ar importante.
O pai, o tio John e Al entraram em casa. Traziam os braços, cheios de troncos e de
galhos secos, que deixaram cair ao pé do fogão.
- Então que temos agora? - perguntou o pai.
- O Winfield. Precisa de leite.
- Meu Deus! Só vejo gente a precisar de coisas.
- Quanto fizemos hoje? - perguntou a mãe.
- Um dólar e quarenta e dois e meio.
- Bom, vai já buscar uma lata de leite para o Winfield.
- Mas porque diabo havia ele de adoecer logo nesta altura?
- Não sei. Só sei que adoeceu. Bom, vê se trazes o leite. - O pai saiu resmungando. -
Mexeste as papas?
- Mexi, sim.
Rosa de Sharon mexia com mais rapidez, como para provar o que tinha afirmado.
Al queixou-se:
- Deus do Céu! Mãe, então a gente só tem papas para o jantar depois de trabalhar até
ao escurecer?!
- Al, tu bem sabes que a gente tem de se ir embora daqui. Precisamos do dinheiro
para comprar gasolina. Sabes isso muito bem.
- Mas, meu Deus! Gente que trabalha precisa de comer um bocado de carne, mãe!
- Deixa lá isso agora - atalhou ela. - Antes de mais nada, a gente tem de fazer uma
coisa muito mais importante. Tu bem sabes o que é.
Tom perguntou:
- Isso é a meu respeito, não é?
- Depois do jantar, falaremos nisso - disse a mãe. - Al, a gente tem gasolina que
chegue para nos irmos embora?
- Uma quarta parte do tanque, mais ou menos, está cheia - replicou Al.
- O que é que há? Contem lá - pediu Tom.
444
- Depois, tem paciência. Espera. Vai mexendo as papas, anda. Bem, deixem-me
arranjar o café. Vocês escolham: açúcar nas papas, ou no café. Para as duas coisas, não há
que chegue.
O pai voltava com uma lata comprida de leite condensado.
- Onze cents - disse indignado.
- Deixa ver. - A mãe pegou na lata e perfurou-a. Despejou o espesso jacto de leite
numa caneca, que entregou a Tom. - Dá isso ao Winfield.
Tom pôs-se de joelhos, ao lado do colchão.
- Vá, bebe isto, rapaz!
- Não posso. Estou muito doente. Deixa-me.
Tom ergueu-se:
- Ele não pode tomar o leite agora, mãe. Espera-se um bocadinho.
A mãe pegou na caneca e colocou-a no peitoril da janela.
- Que ninguém toque nisto, ouviram? - advertiu. - E para o Winfield.
- A mim ninguém me dá leite - choramingou Rosa de Sharon. - E eu preciso tanto de
o tomar!
- Eu sei, mas tu ainda estás de pé, e o menino está muito doente. As papas já
engrossaram?
- Já, sim, quase que nem as posso mexer.
- Bom, então vamos comer. Está aqui o açúcar. Há só uma colher de açúcar para
cada um. Podem deitá-la nas papas ou no café, como quiserem.
- Eu o que queria era sal e pimenta para as papas - disse Tom.
- Podem deitar sal, se quiserem - acudiu a mãe. - A pimenta acabou-se.
Tinham-se também acabado todos os caixotes. A família teve de se sentar em cima
dos colchões para comer as papas. Serviram-se todos e tornaram a servir-se, até a panela
estar quase vazia.
- Deixem um bocadito para o Winfield - pediu a mãe.
Winfield sentou-se e bebeu o leite e, imediatamente, se sentiu acometido de uma
fome canina. Colocou a panela das papas entre as pernas, comeu tudo o que ali encontrou
e ainda rapou os lados da panela. A mãe deitou o resto do leite condensado numa caneca
que passou a Rosa de Sharon. A rapariga bebeu-o furtivamente, encolhida a um canto. A
mãe deitou café bem quente nas canecas e entregou uma caneca a cada um dos membros
da família.
- Bom, agora contem-me o que há - pediu Tom. - Eu preciso de saber.
O pai disse, embaraçado:
445
- Eu preferia que a Ruthie e o Winfield não ouvissem isto. Não poderão sair por um
bocado?
- Não; é melhor que fiquem - disse a mãe. - Eles têm de proceder como gente
crescida, apesar de o não serem ainda. Ruthie, Winfield, vocês não devem contar nada do
que ouvirem aqui, porque isso pode causar-nos grandes desgostos, compreendem?
- A gente não conta nada - disse Ruthie. - Já somos crescidos.
- Então estejam caladinhos.
Haviam colocado as canecas no chão. A chama curta. e bojuda da lanterna, como se
fosse uma asa tosca de borboleta, projectava nas paredes uma meia luz amarelada.
- Vá, digam lá agora - tornou a pedir Tom.
- Pai, é melhor contares tu - disse a mãe.
O tio John engoliu o café.
O pai começou:
- Bem, eles baixaram os salários, como tu tinhas dito. E chegou uma porção de gente
nova para trabalhar na colheita. Eles tinham tanta fome que trabalhavam nem que fosse só
para ganhar uma bucha de pão. E, quando um ia a pegar num pêssego, já outro o tinha
apanhado primeiro. Quase que já acabaram com a colheita toda. Chegaram a brigar... um
tipo disse que lá uma árvore era dele e outro disse a mesma coisa. Foi um caso sério.
Trouxeram aquela gente de bem longe! De El Centro. Gente faminta como o diabo.
Trabalham todo o dia por um pedaço de pão. Eu disse àquele homem que faz o registo do
pessoal: “A gente não pode trabalhar por dois cents e meio a caixa”, e ele respondeu-me:
“Perfeitamente, então larguem. Esses homens podem”. Então eu respondi: “Quando eles
tiverem a barriga bem cheia, também não hão-de querer”: E ele, toca de me responder:
“Ora, adeus! Esses pêssegos hão-de estar todos colhidos antes que eles tenham a barriga
cheia”.
O pai fez uma pausa.
- Aquilo ali foi um verdadeiro inferno - disse o tio John. - E disseram-me que vem aí
mais duzentos homens, esta noite.
- Bem, e a outra história? - perguntou Tom.
O pai permaneceu em silêncio por alguns instantes.
- Tom - disse finalmente - parece que tu fizeste um serviço bem feito.
- Eu já calculava que assim fosse. Não consegui ver nada mas calculava isso mesmo.
- O pessoal não fala noutra coisa - confirmou o tio John. - Enviaram corpos de
polícia e voluntários para toda a parte, e até já falam em linchar o tipo, se o encontrarem, é
claro.
446
Tom lançou um olhar às crianças, que estavam de olhos arregalados. Quase não
pestanejavam. Era como se estivessem com medo de que alguma coisa acontecesse
precisamente no segundo em que fechassem os olhos.
- Bem, o ti o que fez esse serviço, só o fez depois de os outros terem morto o Casy.
O pai interrompeu-o:
- Mas eles contam as coisas de outra maneira. Dizem que ele atirou primeiro.
Tom soltou um suspiro.
- Ah, sim?
- Estão a pôr todos de prevenção contra nós. Eu bem ouvi. É toda essa gente
fardada, os homens da casa da guarda... o diabo a quatro... Dizem que hão-de apanhar o
tipo, dê lá por onde der.
- Eles sabem como ele é?
- Bem... parece-me que se não lembram bem da cara dele. Mas ouvi dizer que sabem
que o tipo está ferido. Acham que ele terá...
Tom ergueu lentamente a mão e apalpou o rosto ferido.
- Mas o que eles dizem não é verdade - gritou a mãe.
- Calma, mãe! - aconselhou Tom. - Eles fazem o que querem. Tudo o que essa gente
fardada disser contra nós tem de ser verdade.
A mãe perscrutou as faces de Tom àquela luz débil, observando-lhe principalmente
os lábios.
- Tu prometeste-me... - começou ela.
- Mãe... quem sabe se eu... se esse tipo não se devia ir embora? Se... se esse tipo
tivesse feito alguma coisa de ruim, podia ser que pensasse isto: “Muito bem, devo morrer
na forca. Cometi uma acção má e agora devo pagar.” Mas ele não fez nada de mal. Não
está arrependido do que fez. É como se tivesse morto uma doninha fedorenta.
Ruthie interrompeu-o:
- Mãe, o Winfield e eu sabemos de tudo. Não há necessidade de ele falar assim:
“aquele tipo” na nossa frente.
Tom riu:
- Ora esse tipo não quer ser enforcado, pois está pronto a fazer a mesma coisa em
qualquer altura. E também não quer arranjar complicações à família. Mãe, tenho de me ir
embora.
A mãe tapou a boca com a mão, tossiu e pigarreou, para aclarar a voz.
447
- Tu não podes ir - disse. - Onde é que tu te ias esconder? Não podes confiar em
ninguém, a não ser em nós. A gente podia esconder-te e arranjar-te de comer até que tu
ficasses bem da cara.
- Mas, mãe...
Ela pôs-se de pé.
- Não, tu não te vais embora. Vens connosco. Al, tu levas o camião em marcha atrás,
até à porta. já sei como é que hei-de fazer a coisa. A gente põe um colchão no fundo do
carro e o Tom sobe depressa; então, a gente pega noutro colchão e dobra-o um bocadinho,
para formar uma cova e o Tom esconde-se nela. Depois, a gente coloca qualquer coisa à
frente e de volta. Ele pode respirar pelo lado, não é verdade? Pois é isto. Não me
contrariem! O que nós vamos fazer é isto.
O pai queixou-se:
- É, estou a ver que um marido já não pode dizer nada. Ela é o quero, posso e mando
disto tudo. Deixa estar, assim que estivermos instalados, tu vais ver.
- Pois que venha esse tempo e então tu farás o que quiseres - disse a mãe. - Bom, Al,
anda! já está bastante escuro.
Al dirigiu-se ao, camião. Estudou bem o caso e recuou para junto dos degraus.
- Vamos, depressa! - comandou a mãe. - Ponham esse colchão lá dentro.
O pai e o tio John atiraram-no pela parte traseira do camião.
- O outro, agora! - Alçaram o segundo colchão. - Agora, sobe, Tom, e enfia-te no
meio dos colchões. Anda, depressa!
Tom, rápido, subiu para o carro e deixou-se cair sobre o ventre. Estendeu um dos
colchões e puxou o segundo sobre si. O pai ergueu-o no meio, unindo-o dos lados, de
maneira que o colchão formava um arco sobre o corpo de Tom, que assim podia ver e
respirar através das frestas laterais do camião. O pai e o tio John carregaram o veículo com
rapidez, empilhando os cobertores por cima da gruta de Tom, colocaram os baldes dos
lados e estenderam por detrás o último colchão. As panelas, as frigideiras e as roupas de
reserva iam à solta, pois que os caixotes tinham sido aproveitados para fazer lenha.
Estavam quase a acabar de fazer o carregamento quando lhes apareceu um guarda, de
carabina enfiada no braço esquerdo.
- Que é que estão ai a fazer? - perguntou.
- Vamo-nos embora - respondeu o pai.
- Porquê?
- Bem... ofereceram-nos um emprego... um emprego bom.
- Ah, sim? E onde?
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- Ali para baixo. Perto de Weedpatch.
- Deixe-me dar-lhes uma olhadela. - Assestou o foco da lanterna eléctrica no rosto do
pai, depois, no do tio John e no de Al. - Não vinha mais um rapaz com vocês?
Al perguntou:
- O senhor refere-se àquele vagabundo? Um baixinho e pálido?
- Sim. Parece-me que era um tipo desse género.
- A gente encontrou-o no caminho para cá. Foi-se embora hoje de manhã, quando
baixaram os salários.
- Como é que você disse que ele era?
- Baixinho e pálido.
- Você não reparou se ele, esta manhã, tinha a cara ferida?
- Não, não tinha nada na cara - respondeu Al. - Ouça: ali aquela bomba de gasolina
ainda está a funcionar?
- Está; até às oito.
- Bom, então subam! - gritou Al. - Se a gente quiser chegar a Weedpatch antes do
amanhecer,. temos de andar depressa. A senhora vem à frente, mãe?
- Não, eu gosto mais de ficar aqui atrás. Pai - disse ela - tu ficas atrás também. Deixa
a Rosasharn sentar-se na frente, no meio de Al e do tio John.
- Pai, dê-me o vale - pediu Al. - Vou comprar gasolina, e quero ver se ele me dá o
troco.
O guarda ficou a acompanhá-los com o olhar, vendo-os descer a rua e dobrar à
esquerda, para o lado onde ficava a bomba de gasolina.
- Deite dois - disse Al.
- Então vocês não, vão para longe?
- Não, não vamos para longe. O senhor troca este vale, não troca?
- Bem... a verdade é que não estou autorizado a fazer isso...
- Ouça - disse Al. - Arranjámos um bom emprego e temos de chegar lá ainda hoje.
Senão, perdemos o emprego. Faça lá esse jeito.
- Bem, mas você assina-me o vale.
Al saiu do camião e foi até ao radiador.
- Pois claro que assino - respondeu. - Retirou a tampa do radiador e encheu-o de
água.
- Você disse dois litros, não foi?
- Foi, sim.
- Para onde é que vocês vão?
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- Para o sul. Arranjámos trabalho por lá.
- Sim? É difícil arranjar trabalho, principalmente trabalho regular.
- Foi um amigo nosso, que no-lo arranjou - esclareceu Al. - Está à nossa espera.
Bom, até, qualquer dia.
O camião descreveu uma curva, atravessou o atalho poeirento e entrou na estrada. A
luz ténue dos faróis bailou sobre a faixa e o farol do lado direito começou a tremeluzir,
devido a má *ligação. A cada solavanco, as panelas e frigideiras, postas sobre o topo da
carga entrechocavam-se, retinindo com estrondo.
Rosa de Sharon gemeu baixinho.
- Estás a sentir-te mal? - perguntou a mãe.
- Sim, sinto-me sempre mal. O que eu queria era poder estar sentada, e sossegadinha
em qualquer ponto bonito! Que bom, se a gente tivesse ficado em casa, e nunca tivesse
feito esta viagem! O Connie nunca me teria abandonado. Ia estudar e arranjava um bom
emprego.
Nem Al nem o tio John lhe responderam. Sentiam-se embaraçados por causa do
Connie.
Ao portão do pomar, pintado de branco, o guarda aproximou-se do camião.
- Vocês vão-se realmente embora?
- Vamos - respondeu Al. - Vamos para o norte. Encontrámos trabalho.
O guarda projectou o foco da lanterna sobre o camião e fê-lo cair em cima do toldo.
Sob a intensidade do clarão, as feições da mãe e do pai surgiam como petrificadas.
- Muito bem - disse o guarda, abrindo o portão.
O camião virou para a esquerda e subiu a estrada 101, a grande estrada que vai de
norte a sul.
- Tu sabes para onde vamos? - perguntou o tio John.
- Não - respondeu Al. - É sempre assim: a gente vai andando e nem sabe para onde.
já estou farto disto tudo.
- A minha hora está pr6xima - disse Rosa de Sharon, com ar mal-humorado. - É
melhor a gente procurar um sítio agradável onde eu possa ficar.
O ar da noite estava frio e denunciava as primeiras geadas. À margem da estrada, as
folhas já começavam a cair das árvores frutíferas. A mãe estava sentada encostada à parede
lateral do veículo, e o pai, à sua frente, do lado oposto.
- Vais bem, Tom? - perguntou a mãe. A voz dele soou, abafada:
- Vai-se um pouco apertado aqui. A gente já saiu do rancho?
- Já, mas é preciso cuidado. ode ser que nos façam parar - aconselhou a mãe.
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Tom ergueu uma das pontas do colchão que o encobria. Na penumbra do carro, as
panelas retiniam ruidosamente.
- Tenho a impressão, aqui, de que estou dentro de uma ratoeira - disse Tom. - Se vier
alguém, ponho depressa o colchão para baixo. - Apoiou-se no cotovelo. - Meu Deus,
parece que está a arrefecer, hem?
- Há muitas nuvens no céu - sentenciou o pai. - Dizem que o Inverno, este ano, vem
cedo.
- Os esquilos já estão a construir as suas casas, e já há grãos no chão? - perguntou
Tom. - Meu Deus! Vocês estão sempre a fazer previsões acerca do tempo. Qualquer coisa
vos serve para isso. Aposto que até são capazes de fazer previsões de tempo por causa de
um par de cuecas usadas.
- Não sei - disse o pai - mas parece que o Inverno vem aí. Só quem viva aqui há
bastante tempo é que poderá sabê-lo ao certo.
- Em que direcção vamos? - perguntou Tom.
- Não sei. O Al virou à esquerda. Parece que vai pelo mesmo caminho por onde
viemos.
- Não sei o que ser é melhor - disse Tom. – Parece-me que, se formos pela estrada
principal, corremos o risco de encontrar mais polícias. E, com a minha cara da maneira
como está, apanham-me logo. Talvez fosse melhor irmos por estradas menos importantes...
- Bate aí na tábua para o Al parar um instante - pediu-lhe a mãe.
Tom bateu com o punho na tábua da cabina. O camião parou bruscamente à
margem da estrada. Al saiu e encaminhou-se para as traseiras do camião. As cabeças de
Ruthie e de Winfield apareceram a espreitar por debaixo do cobertor.
- Que é que tu queres? - perguntou Al.
- É melhor a gente assentar no que vai fazer - disse a mãe. - Talvez seja bom seguir
por estradas de menos importância.
O Tom acha que é melhor.
- É por causa da minha cara - disse Tom. - Se me virem, descobrem logo tudo.
Qualquer polícia me reconheceria.
- Bom, então qual é o rumo que vocês querem tomar? Eu queria ir para o norte. No
sul já a gente esteve.
- Está bem - assentiu Tom. - Mas vai por estradas de menos importância.
- E se parássemos agora um bocado e dormíssemos? Amanhã de manhã cedo,
continuávamos - propôs Al.
A mãe contrariou com vivacidade:
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- Agora não. Deixa a gente afastar-se um bocado primeiro.
- Fixe!
Al tornou a pegar no volante e o camião prosseguiu a marcha.
Ruthie e Winfield tornaram a cobrir as cabeças.
- O Winfield, vai bem? - perguntou a mãe.
- Vai - respondeu Ruthie.- Tem estado a dormir.
A mãe encostou-se de novo à parede lateral do carro.
- Nem sei o que a gente sente quando nos andam a perseguir. Começo a sentir-me
revoltada com estas coisas.
- É o que acontece a toda a gente - disse o pai. - Toda a gente. Viste aquela briga hoje
de manhã? Uma pessoa muda com tudo isto. Lá naquele acampamento do governo não
éramos assim.
Al descreveu uma curva para a direita e entrou num caminho coberto de cascalho,
sobre o qual deslizavam as luzes amarelas. Acabara-se a fila de árvores frutíferas e, em seu
lugar, viam-se pés de algodão. Percorreram vinte milhas, atravessando campos de cultura
de algodão, ziguezagueando por caminhos estreitos. O caminho, agora, seguia paralelo a
um riacho orlado de arbustos, atravessando-o por meio de uma pequena ponte de cimento
e continuando, do outro lado, a seguir o riacho. E então as luzes fizeram aparecer à beira
do riacho longas filas de vagões de carga, vermelhos, sem rodas, e um grande cartaz,
colocado à beira do caminho, dizia: Procuram-se trabalhadores para a colheita do algodão.
Al diminuiu a marcha do veículo. Tom espreitou para fora, por entre as pranchas do
camião. A um quarto de milha dos vagões, Tom tornou a bater na tábua da cabina. Al
parou à beira do caminho e saiu de novo.
- Que é que queres agora?
- Desliga o motor e vem cá - disse Tom.
Al voltou à cabina, dirigiu o veículo até à vala, desligou o motor, apagou os faróis e
subiu pela parte lateral do camião.
- Pronto - disse.
Tom trepou por entre as panelas e pôs-se de joelhos diante da mãe.
- Olhem - disse. - Eles andam à procura de gente para colher o algodão. Está escrito
naquele cartaz. Ora eu estive a pensar na maneira de ficar com vocês sem causar
complicações. Quando a minha cara estiver boa, pode ser que tudo corra bem, mas, por
enquanto, não. Vocês viram aqueles vagões ali atrás? É neles que moram os trabalhadores
da safra do algodão. Pode ser que eles precisem de mais gente. Não seria má ideia ver se
arranjavam trabalho e conseguiam morar num daqueles vagões. Que lhes parece?
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- E tu? - perguntou a mãe.
- Bem, a senhora viu aquele riacho ali, todo coberto de moitas, não viu? Eu podia
esconder-me no matagal, que ninguém me via. À noite, a senhora levava-me qualquer coisa
de comer. Vi um cano de água ali atrás. Talvez eu possa dormir nele.
- Meu Deus, que bom, se eu pudesse lidar de novo com o algodão! É um serviço que
conheço bem! - exclamou o pai.
- E esses vagões devem ser bons para lá viver - disse a mãe. - São bonitos e parecem
secos. Tu achas que o mato ali dá para tu te esconderes, hem, Tom?
- Dá, sim. Eu reparei bem. Hei-de arranjar um cantinho bem escondido. Assim que a
cara melhorar, saio de lá .
- Mas tu vais ficar com a cara toda marcada... - lembrou a mãe.
- E isso que tem? Toda a gente tem cicatrizes...
- Eu, uma vez, apanhei quatrocentas libras - disse o pai. - É verdade que foi uma
colheita dura de roer. Mas, se todos nós trabalharmos, dá para se ganhar bastante dinheiro.
- A gente podia até comprar carne - sugeriu Al. - Bom, e que é que a gente vai fazer
agora?
- Vamos voltar para o sítio dos vagões e dormir um bocado dentro do carro até de
manhã - disse o pai. - Depois, talvez a gente possa começar a trabalhar. Mesmo no escuro,
distingo as cabeças do algodão.
- E o Tom? - perguntou a mãe.
- Ora! Não pense mais em mim, mãe. Eu levo um cobertor comigo. Reparem bem
no sítio. Há lá um cano de água. Se a senhora quiser, pode levar-me um bocado de pão,
batatas ou papas e deixar-me o que for perto do cano. Eu, depois, procuro a comida.
- Está bem.
- Eu também acho que é uma boa ideia - disse o pai.
- Pois claro que é boa - insistiu Tom. - E assim que eu melhorar da cara, saio de lá e
venho trabalhar com vocês.
- Bem, então seja - concordou a mãe. - Mas toma cuidado. Não te arrisques, ouviste?
Não deixes que ninguém te veja por enquanto...
Tom voltou de gatas até às traseiras do camião e saltou para a margem da estrada.
- Boa noite - disse.
A mãe viu o vulto do filho fundir-se com a noite e sumir-se entre os arbustos da
margem do rio.
- Meu Deus, oxalá que tudo corra bem! - suspirou ela.
- Então, vamos voltar? - perguntou Al.
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- Sim - respondeu o pai.
- Vai devagarinho - recomendou a mãe. - Quero ver bem aquele cano que ele disse.
Tenho de ver bem onde fica.
Al recuou, tornou a entrar na estradita e deu a volta. Foi rodando lentamente até à
fila de vagões onde a escuridão reinava. Os faróis do carro iluminavam as pranchas que
ligavam as portas dos vagões ao chão. Não havia sombra de movimento na noite. Al
desligou as luzes.
- Tu e o tio John vão lá para trás - disse ele a Rosa de Sharon. - Eu vou dormir aqui
mesmo no assento.
O tio John ajudou a rapariga, pesada, a trepar pela parte traseira do veículo. A mãe
empilhou as panelas num pequeno espaço. A família anichou-se nas traseiras do camião.
Num dos vagões, soou um choro de criança, choro convulsivo e prolongado. Um
cão passou a trote, a bufar e a fungar; depois rodou vagarosamente à volta do camião dos
Joads. Um marulhar de água corrente subia do leito do riacho.
7ª parte »»»