Capítulo XXVII

“Procuram-se trabalhadores para a colheita do algodão. Cartazes no caminho,
impressos distribuídos, impressos cor de laranja... Procuram-se trabalhadores.”
Ali, ao cimo da estrada - diz o impresso.
As plantas verde-escuras tornaram-se fibrosas e as pesadas cápsulas sentem-se
comprimidas nos respectivos invólucros. Algodão branco, que estala como o milho a assar!
Que bom tocarmos nos flocos de algodão com as mãos, delicadamente, com a ponta
dos dedos!
Eu sei colher algodão como deve ser.
Aqui está o homem, é este mesmo.
Eu queria colher algodão.
Tem saco?
Saco, não, não tenho.
Cada saco custa um dólar. Descontar-se-á nas primeiras cinquenta libras que você
colher. Oitenta cents por cem libras à primeira passagem pelo campo e noventa à segunda.
Pode arranjar um saco aí. Um dólar. Se não tem um dólar, a gente desconta-o nas primeiras
cento e cinquenta que você fizer. É o costume, bem sabe.
Claro que é o costume. Um bom saco para algodão dura a época inteira. E, quando
estiver estragado, gasto, pode virar-se e utilizar-se do lado da boca. Faz-se uma costura na
parte aberta e abre-se a parte fechada. E, quando as duas extremidades estiverem gastas,
ainda dá um bom tecido. Serve para fazer um belo par de calças para o verão. Ou então
para camisas de dormir. E, com os diabos! - um saco de algodão é coisa muito boa.
Segure-o à cinta. Estique-o bem e arraste-o entre as duas pernas. Ao princípio, puxase
com facilidade. E as pontas dos dedos colhem a penugem e as mãos empurram-na para
dentro do saco, que está entre as pernas. As crianças andam atrás. Não há sacos para
crianças... elas que se sirvam de um saco velho de serapilheira ou que ponham a coisa no
saco dos pais. Agora já está um tanto pesado. Incline-se para diante e puxe-o para a frente.
Eu tenho boa mão para o algodão. É pegar e colher. rode-se falar e até cantar, durante o
trabalho, até o saco se tornar pesado. Os dedos trabalham com habilidade. Os dedos
sabem. Os olhos vêem o trabalho e, ao mesmo tempo, não o vêem.
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E eles conversam, na marcha através das filas de algodoeiros. Lá na minha terra,
havia uma mulher, não quero dizer o nome dela... bom, ela, um dia, sem mais nem mais,
teve um filho preto. Ninguém, antes disso, dera pela coisa. Nunca apanharam o negro. E
ela nunca mais teve coragem de aparecer. Mas, que é que eu estava a dizer? Ah, sim, ela era
um alho para colher algodão.
Agora o saco está pesado. Arraste-o para diante com toda a força. Faça força com as
ancas e puxe-o para a frente como um cavalo. E as crianças colhem também para o saco do
velhote. O algodão, aqui, é bom. É fino nos terrenos baixos, fino e fibroso. Nunca vi um
algodão como este da Califórnia. De fibra comprida, o melhor algodão que tenho visto na
minha. vida. Mas esgota a terra. muito depressa. Quando um tipo pretende comprar terra
para algodão, digo-lhe sempre: “Não a compres, arrenda-a! , quando ela estiver esgotada
pelo algodão, vai para outro sítio.”
Filas de trabalhadores, movimentando-se através dos campos, de dedos hábeis.
Dedos investigadores vão e vêm, e dão com os flocos. Quase nem é preciso olhar.
Aposto que era capaz de colher algodão mesmo cego! Nas pontas dos dedos tenho
um palpite para apanhar os flocos. Onde eu colho, nada fica para respigar.
O saco, agora, está cheio. Leve-o até à balança. Discuta. O homem da balança diz
que você pôs pedras lá dentro, para aumentar o peso. E ele? A balança dele está viciada. Às
vezes ele tem razão; você meteu pedras no saco. Outras vezes é você que tem razão: a
balança está viciada. E, por vezes, acertam ambos: há falcatrua com pedras e falcatrua na
balança. De qualquer maneira, argumente sempre; lute de qualquer forma. Isso fá-lo teso. E
a ele também. Olha que coisa! Lá por causa de uma pedrita... Se calhar até é uma só. Um
quarto de libra? Discuta sempre.
Volte com o saco vazio. Você tem de fazer a sua escrituração. Tome nota do peso.
Tem de ser. Se eles perceberem que você toma nota do peso, não o roubam. Mas Deus o
livre de não verificar o peso!
Este trabalho é bom. As crianças correm em volta. já ouviu falar da máquina de
colher algodão?
Já, sim.
Acha que por aqui arranjarão uma dessas máquinas?
- Bem, é muito possível que se acabe o trabalho à mão.
A noite chega. Todos se acham cansados. Mas isto de colher algodão é bom. A gente
ganhou três dólares; eu, a mulher e as crianças.
Os carros chegam aos campos do algodão. Armam-se os acampamentos do algodão.
Os altos caminhões cobertos e os reboques- estão cheios de penugem branca. O algodão
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agarra-se aos arames das cercas e bolinhas de algodão rolam pelos caminhos quando o
vento sopra. O algodão, limpo e alvo, vai à máquina de descaroçar. E os fardos, grandes e
grumosos, vão caminho da prensa. E o algodão pega-se à roupa e à barba. Assoe o nariz;
tem algodão no nariz.
Agora, arraste-se para a frente; encha o saco antes que surja a noite. Dedos hábeis
pesquisam as cápsulas. As ancas esforçam-se no arrastar dos sacos. As crianças, agora que
vem a noite, sentem-se cansadas. No solo cultivado, tropeçam de encontro aos próprios
pés. E o Sol vai descaindo rio horizonte.
Quem me dera que a coisa durasse mais algum tempo! Deus sabe que não se
consegue juntar grande coisa, mas, ainda assim, quem me dera que isto durasse mais algum
tempo!
Na estrada, atraídos pelos impressos, aglomeram-se os calhambeques.
Tem saco para o algodão?
Não.
Então tem de pagar um dólar.
Se fôssemos apenas cinquenta, a gente podia instalar-se por algum tempo, mas
somos quinhentos... Assim, a coisa não pode durar muito. Conheço um tipo que nunca
conseguiu pagar o saco que lhe deram. Cada vez que se empregava, recebia um saco novo,
mas todos os campos ficavam prontos antes que ele completasse o dinheiro necessário.
Pelo amor de Deus, faça por economizar algum dinheiro. O Inverno vem aí, não
tarda nada. E, no Inverno, não há trabalho nenhum na Califórnia. Encha o saco antes da
noite. Vi um tipo meter duas pedras no saco dele.
Porque não, que diabo? É para compensar a balança viciada.
Está aqui o meu livro: trezentas e doze libras.
Está bem.
Jesus, ele nem discute! A balança dele deve estar viciada. Bem, de qualquer maneira, o
dia foi bom.
Dizem que vêm aí uns mil homens para esta fazenda. Amanhã, a gente vai brigar por
causa de uma fileira. Vão começar a roubar o algodão uns aos outros.
“Procuram-se trabalhadores para a colheita do algodão. Quanto mais homens
trabalharem, tanto mais depressa a colheita vai para a máquina.”
E agora, a gente volta para o acampamento.
Santo Deus! Há carne para o jantar! A gente tem dinheiro para comprar carne! Pega
na mão do menino, que está a cair de cansaço. Dá um pulo ao talho e compra umas quatro
libras de carne. A velha vai fazer-nos umas boas empadas, se não estiver muito cansada.
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Capítulo XXVIII
Os vagões de mercadorias, em número de doze, estavam alinhados uns atrás dos
outros, num terrenozito plano, à margem do regato. Eram duas fileiras de seis vagões cada
uma, cujas rodas haviam sido desmontadas. Havia pranchas a servir de acesso às largas
portas de correr dos vagões, que tinham sido transformados em boas moradias,
impermeáveis, sem fendas, capazes de abrigar vinte e quatro famílias ao todo - uma família
de cada lado de todos os vagões. Não tinham janelas, mas as largas portas permaneciam
sempre abertas. Em alguns vagões, ;ia-se, lona estirada ao centro, a servir de linha divisória
entre as duas famílias, enquanto noutros só a posição da porta servia de limite.
Os Joads habitavam a metade de um dos vagões ao fim da fileira. Os moradores
precedentes haviam transformado uma lata de petróleo em fogão, enxertando-lhe um tubo
de chaminé e perfurando a parede, de madeira, para o encaixar. Mesmo com as largas
portas completamente escancaradas, os cantos dos vagões permaneciam em eterna
penumbra. A mãe esticara a lona da tenda ao centro do vagão.
- Isto aqui é bem bom - dizia ela. - Melhor que tudo o que temos arranjado, não
falando no acampamento do governo, é claro.
Todas as noites ela desenrolava os colchões no soalho e todas as manhãs voltava a
enrolá-los. E todos os dias iam para o campo colher algodão e todas as noites tinham carne
para o jantar. Um sábado, foram a Tulare e compraram um fogãozito de estanho e novos
fatos-macacos para Al, para o pai, para o Winfield e para o tio John, e também compraram
um vestido para a mãe, e esta presenteou Rosa de Sharon com o seu melhor vestido.
- Ela, agora, está muito gorda - disse a mãe. - Seria deitar dinheiro à rua comprar-lhe
um vestido novo.
Os Joads tinham tido sorte. Chegaram a tempo de encontrar lugar nos vagões.
As tendas das famílias chegadas mais tarde enchiam agora a área do pequeno trato de
terra plana e os que habitavam os vagões eram considerados veteranos e, num certo
sentido, aristocratas.
O riacho deslizava por ali, surgindo de um salgueiral e sumindo-se noutro. De cada
vagão partia uma veredazinha formada à força de tanto se trilhar o solo, a qual conduzia,
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invariavelmente ao riacho. Haviam estendido cordas entre os vagões, as quais diariamente
se cobriam de roupas a secar.
À noite, a família regressava dos campos, levando o saco dobrado debaixo do braço.
Ia ao armazém da encruzilhada, onde havia sempre trabalhadores da colheita do algodão, a
comprar provisões.
- Então quanto fizeram hoje?
- Hoje a coisa foi de estalo! A gente fez três e meio. Só queria que continuasse assim.
Essas crianças estão a fazer-se uns trabalhadores de alto lá com eles! A mãe fez um
saquinho mais pequeno para cada uma delas, pois não podiam puxar por um saco tão
grande. Dantes, elas metiam no saco da gente o algodão que colhiam. Mas, agora, fizeramse-
lhes sacos de camisas velhas. Trabalham que é uma beleza!
A mãe achegou-se ao balcão em que se vendia a carne e, pondo o indicador nos
lábios, parecia mergulhada em profundos pensamentos.
- Eu queria umas costeletas de porco – disse. - Quanto é que custam?
- Trinta cents a libra, senhora.
- Bem, então dê-me três libras. E um pedaço bom para cozido. A minha filha pode
cozinhar isso amanhã. E dê-me também uma garrafa de leite para a minha filha. É doida
por leite. Vai ter um bebé, e a enfermeira disse para ela tomar muito leite. Bem... deixe ver...
batatas, a gente tem.
O pai acercou-se dela com uma lata de xarope na mão.
- A gente podia levar isto também - disse ele. - E bom para fazer sonhos.
A mãe franziu a testa.
- Bem... Pode ser. Levamos também esta. Deixa ver... Toucinho, temos bastante.
Ruthie aproximou-se. Segurava em cada mão uma caixa de bolachas e nos seus olhos
lia-se uma interrogação ansiosa, que tanto podia transformar-se em tragédia como em
júbilo, conforme o aceno negativo ou afirmativo da mãe.
- Mãe! - Ela estendia as caixas, abanando-as para lhes aumentar a força atractiva.
- Vai já pô-las de onde as tiraste...
A tragédia começou a tomar forma nos olhos de Ruthie. O pai insinuou:
- Custa só um níquel cada uma. E as crianças, hoje, trabalharam bastante...
- Bem! - exclamou a mãe. E a excitação brilhou nos olhos de Ruthie. - Então vá lá...
Ruthie rodou nos calcanhares, disposta a desaparecer. A meio caminho da porta,
agarrou Winfield e saiu a correr, com ele, para a escuridão da noite.
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O tio John apalpava um par de luvas de tela com palmas de couro amarelo;
experimentou-as, tirou-as e tornou a poisá-las. Insensivelmente, ia-se aproximando das
prateleiras das bebidas, a examinar os rótulos das garrafas. A mãe observava-o.
- Pai - disse ela, acenando com a cabeça em direcção do tio John.
O pai, vagarosamente aproximou-se dele.
- Estás com sede, John?
- Não, não estou.
- Espera que a gente acabe com este algodão. Então poderás apanhar uma boa
carraspana.
- Agora não acho graça nenhuma - disse o tio John. - O trabalho é duro, e eu durmo
bem. Não sonho nem nada.
- Bom... é que tu estava a olhar para as garrafas com uns olhos que eu pensei...
- Qual! Nem nelas reparei. É engraçado. Estou é com vontade de comprar alguma
coisa. Uma coisa que me não faça falta. Queria comprar uma dessas giletes. Ou então, um
par de luvas como aquelas. São baratas.
- Mas tu, com ]uvas, não podes apanhar o algodão... - lembrou o pai.
- Bem sei. Mas também não preciso de uma gilete. É que a gente, vendo as coisas aí,
tem vontade de comprar, precise ou não.
- Vai-nos! - gritou a mãe. - A gente já tem tudo o que precisava.
Trazia um saco. O tio John e o pai encarregaram-se cada um deles de um pacote. Do
lado de fora, Ruthie e Winfield esperavam-nos com olhos cansados e a boca cheia de
bolachas.
- Já sei que vocês hoje não jantam - disse a mãe.
Havia gente e gente a deslocar-se em direcção ao acampamento dos vagões, que se
encontravam iluminados. O fumo escapa-se dos fogões. Os Joads subiram pela prancha e
penetraram na sua metade do vagão. Rosa de Sharon estava sentada em cima de um
caixote, ao lado do fogão. Acendera o lume e, com o calor, o fogão de estanho adquirira
uma tonalidade cor de vinho.
- A senhora trouxe leite para mim, mãe? - perguntou.
- Trouxe, sim.
- Então dê-mo. Desde o meio-dia que não tomo leite.
- Ela pensa que o leite é um remédio.
- Aquela senhora lá da enfermaria disse-me que fizesse assim.
- As batatas estão prontas?
- Estão sim. Estão todas descascadas.
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- Bom, vamos fritá-las - disse a mãe. - Comprei costeletas de porco. Corta as batatas
e põe-nas na frigideira nova. E deita-lhes também uma cebola. E vocês, homens, vão lavarse
e, à volta, tragam um balde de água. Onde estão a Ruthie e o Winfield? Eles têm de se
lavar também. Ganharam uma caixinha de bolachas cada um - explicou a mãe a Rosa de
Sharon. - Uma caixinha inteira para cada um.
Os homens saíram para se lavarem no regato. Rosa de Sharon cortou as batatas e
despejou-as na frigideira, mexendo-as com a ponta da faca.
Subitamente, alguém afastou a lona para um lado. Um rosto de feições acentuadas,
todo salpicado de gotas de suor, apareceu do outro lado do vagão.
- Então quanto fizeram hoje, senhora Joad?
A mãe virou-se com rapidez.
- Como? Ali, boa noite, senhora Wainwright. A coisa hoje rendeu. Três e meio. Ao
certo, três e cinquenta e sete.
- A gente fez quatro dólares.
- Bom - disse a mãe. - A sua família é maior.
- É sim, e o Jonas está a crescer. Então, pelo que vejo, hoje vão ter costeletas de
porco.
Winfield acabava de entrar.
- Mãe! - Cala-te um bocadinho. Sim, os meus homens gostam muito de costeletas de
porco.
- Pois eu estou a fritar presunto - disse a senhora Wainwright. - A senhora não sente
o cheiro?
- Eu não posso sentir nada com este cheiro a cebola e a batatas.
- Está qualquer coisa a queimar-se! - gritou a senhora Wainwright, e a sua cabeça
sumiu-se rapidamente.
- Mãe! - tornou Winfield.
- Que é? As bolachas já te estão a fazer mal?
- Mãe... a Ruthie falou...
- Falou de quê?
- Do Tom?
A mãe encarou-o pasmada.
- Falou? - Pôs-se de joelhos diante do pequeno. - Winfield, com quem falou ela?
Winfield mostrou-se embaraçado. Tentou retratar-se.
- Ela só disse...
- Winfield, conta-me como foi. Conta já, anda!
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- Ela... ela não comeu as bolachas todas. Guardou algumas, e depois pôs-se a comer
uma de cada vez, mastigando devagar, como ele costuma fazer. E, então, disse assim: “Tu
também gostavas de não teres comido tudo, não gostavas?”
- Winfield - suplicou a mãe - conta-me tudo de uma vez. Lançou um olhar nervoso à
lona que servia de cortina. - Rosasharn, vai para o pé da senhora Wainwright e distrai-a
para ela não ouvir.
- E as batatas?
- Deixa as batatas, que eu olho por elas. Não quero é que ela oiça através da cortina.
A rapariga arrastou-se penosamente pelo vagão fora, em direcção à outra metade do
fogão.
- Bem, agora, Winfield, conta-me tudo - mandou a mãe.
- Já disse. A Ruthie só comia uma bolacha de cada vez e partia-a em duas, para
durarem mais tempo.
- Sim, sim, conta depressa.
- Nessa altura, chegaram outros miúdos. Também queriam bolachas, está visto, mas a
Ruthie continuava a tasquinhar, a tasquinhar e não quis dar-lhes nem um pedacinho. Eles
ficaram furiosos e um garoto tirou a caixa das mãos da Ruthie.
- Anda, Winfield, conta já o que interessa.
- Mas é o que eu estou a fazer, mãe - disse ele. - Então, a Ruthie ficou danada e
correu com eles; brigou com um, brigou com outro, até que uma menina mais crescida deu
uma bofetada na Ruthie, uma bofetada muito grande, e a Ruthie começou a chorar e disse
que ia chamar o irmão mais velho para a matar. E a outra menina disse: “Ai, vais? Eu
também tenho um irmão mais velho, calha bem!” - Winfield quase perdia o fôlego com a
velocidade da narrativa. - Então, elas começaram a brigar e a outra menina bateu na Ruthie
que se fartou, e a Ruthie não fazia outra coisa senão dizer que o seu irmão havia de matar o
irmão dela. Então, a outra disse que o irmão dela é que ia matar o nosso irmão. E, então... a
Ruthie disse que o irmão já tinha morto dois homens. E... e a menina grande disse assim:
“Ah, sim? Sempre és uma grande mentirosa!” E a Ruthie disse: “Ai, sim? Pois fica sabendo
que o meu irmão está escondido porque matou um homem.” E disse que ele ia matar
também o irmão da outra. Depois, disseram nomes feios uma à outra, e a Ruthie atirou-lhe
uma pedra. A outra menina correu com ela e eu vim para casa.
- Meu Deus! - gemeu a mãe abatida. - Ó meu querido Menino Jesus deitado nas
palhinhas! Que é que a gente há-de fazer agora? - Apoiou a cabeça nas mãos e esfregou os
olhos. - Que é que a gente há-de fazer agora?
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Vinha do fogão um cheiro a batatas queimadas. Mecanicamente, a mãe ergueu-se e
foi mexer as batatas.
- Rosasharn! - gritou a mãe. A rapariga apareceu, afastando a cortina de lona. - Chega
aqui, cuida tu do jantar. Ó Winfield, vai procurar a Ruthie e trá-la para, casa.
- Ela vai apanhar? - perguntou Winfield, cheio de esperança.
- Não, isso agora não adianta nada. Meu Deus! Porque foi ela dizer essas coisas? Não,
bater-lhe não adianta nada. Vai depressa, Winfield e trá-la cá.
Winfield dirigiu-se a correr para a porta, encontrando os três homens que,
justamente, vinham subindo a prancha. Afastou-se para o lado, deixando-os passar.
A mãe disse baixinho:
- Pai, tenho que falar contigo. A Ruthie foi dizer a umas crianças que o Tom anda
escondido.
- O quê?!
- Pois disse. Meteu-se aí numa zaragata e contou tudo.
- Ai, a desavergonhada!
- Não, ela não sabia o que estava a fazer. Agora, escuta, pai. Eu quero que tu fiques
aqui. Vou procurar o Tom e dizer-lhe que tenha muito cuidado. Tu ficas aqui, a olhar por
tudo, não vá acontecer qualquer coisa. Vou levar de comer ao Tom.
- Está bem - concordou o pai.
- E não digas nada à Ruthie a respeito do que ela fez. Eu, depois, falo com ela.
Nesse instante, entrava Ruthie, seguida de Winfield. A pequena estava toda suja.
Tinha a boca lambuzada e do nariz pingava-lhe ainda o sangue, que se soltara durante a
luta. Tinha uma expressão, que era um misto de vergonha e de medo. Winfield seguia
triunfante atrás dela. Ruthie olhou em volta de si com olhares raivosos e foi-se encostar a
um canto do vagão. Lutava contra a cólera e a vergonha.
- Eu já contei o que ela fez - disse Winfield.
A mãe dispôs duas costeletas num prato de estanho e juntou-lhe uma porção de
batatas fritas.
- Chiu! Winfield, está calado - disse. - Não é preciso dar-lhe mais desgosto do que ela
já tem.
Ruthie saltou do canto do vagão, e, correndo, abraçou as pernas da mãe, enterrou a
cabeça no seu colo, e soluços abafados sacudiram-lhe o corpo todo. A mãe acariciou-lhe
suavemente os cabelos e afagou-lhe os ombros.
- Chiu! - fez ela. - Tu não sabias o que estavas a fazer. Ruthie ergueu o rosto sujo,
ensanguentado e manchado de lágrimas.
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- Eles roubaram-me as bolachas - disse, chorando - e aquela mais crescida, a filha da
mãe, bateu-me. - Desatou novamente num choro desesperado.
- Chiu! - fez a mãe - não fales assim, que é feio. Vá. Acalma-te, Ruthie. Eu tenho de
sair.
- Porque é que lhe não bate, mãe? Se ela não fosse uma ranhosa, agarrada às
bolachas, aquilo não tinha acontecido. Chegue-lhe, ande.
- Ora mete-te na tua vida - gritou a mãe, irritada. - Senão, quem apanha és tu. Não
chores mais, Ruthie.
Winfield encostou-se a um dos colchões enrolados, observando a cena cinicamente e
de mau humor. Colocara-se numa boa posição defensiva, pois sabia que Ruthie o iria atacar
na primeira oportunidade. Lentamente, Ruthie dirigiu-se para o lado oposto do vagão, com
o coração despedaçado.
A mãe cobriu o prato de folha com um papel de jornal.
- Bem, deixa-me ir - disse.
- Então tu não comes nada? - perguntou o tio John.
- À volta. Agora não posso. Era incapaz de engolir fosse o que fosse.
A mãe dirigiu-se para a porta que se encontrava escancarada e desceu, firmando-se
bem na prancha íngreme.
Ao lado da fileira de vagões que dava para o riacho havia grande número de tendas,
armadas tão perto umas das outras que se cruzavam entre si as cordas com que as haviam
amarrado e os paus de umas tocavam nas paredes de lona das outras. As luzes filtravam-se
através das lonas e o fumo golfava de todas as chaminés. Homens e mulheres entretinhamse
a falar à boca das tendas. Para cá e para lá, corriam as crianças, numa excitação febril. A
mãe passou majestosamente pelo aglomerado de tendas. De vez em quando, alguém a
cumprimentava pelo caminho.
- Boa noite, senhora Joad.
- Boa noite.
- Vai levar coisas a alguém, hein?
- Sim, vou levar um pedaço de pão a uma amiga.
Alcançou finalmente os limites do acampamento. Parou a olhar para trás. Sobre as
tendas, pairava um brilho de luzes e o mesmo acontecia com os ruídos abalados de mil e
uma conversações. De quando em quando, uma voz mais aguda dominava as restantes. O
cheiro do fumo enchia o ar. Alguém tocava baixinho uma gaita de beiços, repetindo
incansavelmente a mesma melodia, à procura de um efeito.
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A mãe penetrou no salgueiral que orlava o riacho. Deixou a vereda, e esperou,
silenciosamente, a ver se? seria seguida. Um homem vinha pelo caminho que conduzia ao
acampamento, e, mesmo a andar, ia ajeitando os suspensórios e abotoando as calças. A mãe
sentou-se, mantendo-se completamente imóvel, e ele passou sem a ver. Ela esperou uns
cinco minutos, depois levantou-se e foi trepando silenciosamente pelo atalho que conduzia
ao riacho. Movia-se com cautela, de maneira que ouvia o murmúrio da água, no intervalo
do ruído que os seus pés faziam, ao pisar as folhas secas dos salgueiros. O riacho e o atalho
descreviam uma curva para a esquerda, depois outra para a direita, até se aproximarem da
estrada. À luz acinzentada das estrelas, a mãe distinguia a ribanceira e a cavidade redonda e
negra do cano, onde costumava deixar a comida para Tom. Avançou com mil cuidados,
colocou o embrulho no cano e tirou o prato vazio que lá estava. Saiu gatinhando pelo mato
fora, forçando a passagem entre os arbustos. Depois, sentou-se à espera. Por entre o
emaranhado da vegetação, avistava a boca negra do cano. Passou os braços em torno dos
joelhos e deixou-se ficar sentada e imóvel. Um momento depois, a vida recomeçava no
matagal. Os ratos do campo moviam-se cautelosamente entre a folhagem. Um zorrilho
correu pesada e descuidadamente arrastando um leve cheiro; o vento pôs-se a agitar
brandamente os salgueiros, como que querendo pô-los à prova, e uma chuva de folhas
doiradas inundou o chão. Subitamente, uma rajada irrompeu, sacudindo fortemente as
árvores e provocando uma queda rápida de folhas. A mãe sentiu-as nos cabelos e nos
ombros. Uma nuvem, bojuda e negra, atravessou o céu, ocultando as estrelas. Grossas
gotas de chuva caíram do alto, batendo ruidosamente nas folhas caídas. E a nuvem bojuda
afastou-se, descobrindo novamente as estrelas. A mãe estremeceu.
O vento amainou, e, de novo, reinou a paz na mata, mas, rio abaixo, o movimento
das árvores continuava. De longe, do acampamento, vinha o som penetrante de um
violino, ensaiando uma melodia qualquer.
À sua esquerda, a mãe ouviu passos cautelosos sobre a folhagem. Endireitou o busto.
Soltou os joelhos e estendeu a cabeça, no intuito de ouvir melhor. Os passos suspenderamse,
recomeçando daí a um bom bocado. Ouviu-se um ranger áspero de folhas secas. A mãe
distinguiu então um vulto, a esgueirar-se para a clareira e a aproximar-se do cano. Por um
instante, o grande buraco negro obscureceu-se, e, depois, o vulto deu um passo atrás. A
mãe chamou em voz baixa:
- Tom!
O vulto parou, imobilizou-se de tal maneira e inclinou-se tanto para o chão que
poderia passar por um tronco cortado. Ela tornou a chamar:
- Tom! Ó Tom!
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Então o vulto agitou-se:
- Mãe, é a senhora que está aí?
- Sou eu, sim. Aqui mesmo. - Ergueu-se e foi ao encontro dele.
- Não devia ter vindo aqui - censurou ele.
- Tinha que te ver, Tom. Preciso de falar contigo.
- É muito perto do caminho - disse Tom. - Pode passar alguém.
- Mas o teu esconderijo não é aqui, Tom?
- É sim... mas... mas imagine que alguém a via comigo... toda a família podia passar
por um mau bocado.
- Foi preciso que eu viesse, Tom.
- Então venha comigo. Mas sem fazer barulho!
Cruzou o riacho, patinhando cuidadosamente na água, com a mãe atrás. Atravessou a
mata e desembocou num campo, do outro lado do matagal, ao longo das terras aradas. As
hastes enegrecidas do algodão projectavam-se duramente no solo. Nalgumas havia ainda
flocos de algodão. Andaram cerca de um quarto de milha ao longo da orla do campo e
depois tornaram a penetrar no mato. Tom aproximou-se de um grande emaranhado de
amoras silvestres, debruçou-se sobre ele e descerrou uma cortina de ervas selvagens.
- A senhora só poderá entrar aqui de rastos - disse.
A mãe pôs-se de rastos. Deixou de tocar com o corpo no interior escuro do matagal;
depois, sentiu o cobertor de Tom. Ele ajeitou novamente a cortina de mato. A cova estava
completamente às escuras.
- Onde está, mãe?
- Estou aqui mesmo. Fala baixo, Tom.
- Não se preocupe. já tenho prática de viver como um coelho bravo.
Ela ouviu-o desembrulhar o prato de estanho.
- Costeletas de porco - disse a mãe - e batatas fritas.
- Meu Deus! E ainda vêm quentes!
Era-lhe impossível distingui-lo no escuro, mas ouvia o mastigar, o cortar da carne
com os dentes e os ruídos que ele fazia a engolir.
- Muito bom, este esconderijo - disse ele.
A mãe começou a custo:
- Tom... a Ruthie falou de ti. Ouviu-o engolir precipitadamente.
- A Ruthie? Porquê?
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- Bem, a culpa não foi dela. Armou uma zaragata e disse que tinha um irmão que ia
dar uma sova no irmão da outra pequena. Tu sabes como elas falam... E acabou por dizer
que o irmão tinha matado um homem e que andava escondido.
Tom riu por entre dentes.
- Quando eu estava com os miúdos, costumava meter-lhes medo com o tio John,
embora ele nunca lhes fizesse nada. Isso é conversa de crianças, mãe. Não tem importância.
- Tem, sim. Os tais miúdos podem começar a falar no caso e, se os adultos ouvirem,
vão também começar a dar à língua, e, daí a pouco, são muito capazes de desatarem à tua
procura, só por curiosidade. Tom, tu tens de te ir embora.
- Isso era o que eu dizia. Sempre tive medo de que alguém a visse trazer-me a
comida e que a começassem a espreitar.
- Eu sei, mas queria que tu te conservasses perto de nós. Tinha medo que te
acontecesse alguma coisa. Nunca mais te vi. E agora, também não consigo ver-te. Como
vai a tua cara?
- Está quase boa.
- Chega-te mais para aqui, Tom. Deixa-me apalpar a tua cara.- Ele aproximou-se,
rastejando, para o lado da mãe. A mão estendida apalpou-lhe a cabeça no escuro e os seus
dedos afloraram-lhe o nariz e a face esquerda.- Vais ficar com uma cicatriz feia, Tom. E o
nariz ficou todo torto.
- Talvez isso seja um bem para mim. Talvez que assim ninguém me reconheça. Era
bem bom que eles me não tivessem tirado as impressões digitais...
Recomeçou a comer.
- Chiu! - fez a mãe. - Ora ouve!
- É o vento, mãe. É só o vento e mais nada.
Uma rajada arrepiou o riacho, fazendo gemer as árvores. Às apalpadelas, a mãe
aproximou-se do sítio de onde a voz provinha.
- Queria tocar-te mais uma vez, Tom. Está tão escuro que até tenho a impressão de
que sou cega. Quero lembrar-me de ti, ainda que seja só com os dedos. Mas tu tens de
fugir, Tom.
- Pois claro. Não foi coisa que eu não achasse necessária desde o princípio.
- A gente ganhou bastante dinheiro. Pus alguns cobres de lado. Abre a mão, Tom.
Tenho aqui sete dólares.
- Não quero aceitar dinheiro seu - disse Tom. - Cá me hei-de arranjar, seja como for.
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- Abre a mão, Tom. Seria incapaz de dormir se te soubesse sem dinheiro. Talvez
tenhas de tomar uma caminheta ou qualquer coisa semelhante. O que eu queria era que te
afastasses para bem longe, aí umas trezentas ou quatrocentas milhas.
- Mas eu não quero esse dinheiro.
- Tom - insistiu ela com severidade. - Tu tens de ficar com este dinheiro. Estás a
ouvir? Tu não tens o direito de me arreliar.
- Mas não está certo - argumentou ele.
- Era bom que tu fosses para uma grande cidade. Para Los Angeles, por exemplo.
Com certeza que lá ninguém se lembraria de te procurar.
- Hum... Olhe cá, ó mãe. Tenho passado os dias e as noites sozinho, aqui escondido.
E sabe em quem me tenho entretido a pensar? No Casy! Ele falava muito. Às vezes
aborrecia-me. Mas, agora, tenho pensado e repensado no que ele dizia, e lembro-me,
lembro-me bem de tudo. Ele disse uma vez que tinha ido para o mato, à procura da própria
alma, e que, por fim, descobrira que não tinha uma alma que fosse só dele. Disse que tinha
unicamente uma pequena parte de uma alma enorme. E ele achava que não servia de nada
andar em sítios desertos, porque aí, a tal pequena alma que ele tinha não servia para nada.
Só tinha utilidade quando estava junto das outras com que formava um todo. É engraçado
como eu me lembro de tudo isso! E, no entanto, tinha, nessa altura, a impressão de que mal
o ouvia... Mas, agora, sei que um indivíduo solitário não tem préstimo nenhum.
- Era um bom homem, ele - comentou a mãe.
Tom continuou:
- Um dia ele citou-me um trecho das Escrituras, mas que nem parecia de lá. Disseme,
duas vezes e eu aprendi-o de cor.
Dizia que era do livro de pregador.
- E como é, Tom?
- “Dois vale mais do que um, porque ambos terão melhor recompensa do seu
trabalho. E, se um cair, o outro erguerá o companheiro, mas ai do que estiver só, pois,
quando cair, não encontrará ninguém junto de si que se prontifique a levantá-lo”. E isto é
só um bocado.
- Continua - pediu a mãe. - Continua, Tom.
- É só mais um bocadinho. “E, se dois se deitarem juntos, aquecerão, mas como se
aquecerá o homem solitário? E, se um qualquer o pretender dominar, serão dois a resistir e
uma corda reforçada não se quebra facilmente.”
- E isso é das Escrituras?
- O Casy assim disse. Chamava-lhe o Livro do Pregador.
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- Chiu!... Escuta...
- É o vento, mãe. É o vento, que eu bem sei. E deu-me cá para pensar, mãe.. Uma
grande parte dos sermões é a respeito dos pobres e da pobreza. Se a gente nada possuir,
que junte as mãos e não pense em mais coisa nenhuma, que no céu nos darão sorvetes em
pratos de oiro. E o tal Livro do Pregador diz que dois recebem melhor paga pelo seu
trabalho.
- Tom - perguntou a mãe - que tencionas tu fazer?
A resposta dele demorou um bom bocado.
- Estive a pensar em como eram as coisas naquele acampamento do governo, em
como as pessoas sabiam resolver os seus assuntos. Se havia uma desordem, eles lá
apaziguavam tudo. E não havia polícias a ameaçar a gente de revólver na mão, e, apesar
disso, via-se por lá mais ordem e sossego do que se por lá andasse a polícia. E tenho estado
a pensar por que razão é que se não dá o mesmo noutros sítios. Corram com os polícias,
que não são gente da nossa. Devíamos trabalhar todos para o bem comum devíamos
cultivar a nossa própria terra.
- Tom - repetiu a mãe - que tencionas tu fazer?
- O que fez o Casy - foi a resposta.
- Mas eles deram cabo dele...
- Pois deram - concordou Tom - porque ele não soube safar-se a tempo. Ele não
estava a fazer nada que fosse contra a lei. Mãe, tenho pensado um bom pedaço a respeito
da nossa gente, que vive como os porcos, enquanto se deixa por aí inculta uma terra
excelente, enquanto há tipos que têm um milhão de acres, quando perto de cem mil
fazendeiros dos bons andam a estalar de fome... E pus-me cá a matutar que se nós nos
uníssemos todos e nos puséssemos a gritar como aqueles fulanos do rancho Hooper...
- Tom, eles vão perseguir-te e encurralar-te como fizeram àquele rapazinho, ao
Floyd... - disse a mãe.
- Eles hão-de perseguir-me de qualquer maneira. Perseguem todas as criaturas como
nós.
- Mas tu não estás com ideias de matar ninguém, pois não, Tom?
- Não. Estive simplesmente a pensar que, uma vez que já estou fora da lei, poderia...
que diabo, mãe, ainda não sinto as ideias bem claras dentro de mim! Agora, não me
atormente, mãe, não me atormente.
Permaneceram sentados, sem falar, na cavidade negra formada pelas vides. Depois, a
mãe continuou:
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- Mas como é que eu hei-de ter notícias tuas? Podem-te matar, que eu nem sequer o
virei a saber! Podem maltratar-te. E eu sem saber de nada!
Tom riu com certo embaraço.
- Bem, talvez o Casy tivesse acertado quando disse que uma pessoa não tinha alma
própria, mas apenas uma pequena parte de uma grande alma... e então...
- Então o quê, Tom?
- Nesse caso, todas essas coisas deixam de ter importância. Eu estarei em qualquer
sítio, na escuridão. Estarei em toda a parte, em qualquer sítio para onde a senhora se puser
a olhar. Onde quer que se lute para que a gente com fome possa comer... eu estarei
presente. Onde quer que a polícia esteja a bater num tipo, eu estarei presente. Imagine se o
Casy soubesse disto! Estarei onde quer que se vejam criaturas a gritar de raiva... e estarei
onde as crianças sorriam porque têm fome mas saibam que a ceia não tarda. E quando a
nossa gente comer aquilo que plantar e morar nas casas que construir... então também eu
estarei presente. Está a ver? Olhe que já vou falando como o Casy. Isto é de pensar nele
tantas vezes. Há ocasiões em que até me parece que o estou a ver.
- Não te compreendo - disse a mãe. - Com franqueza, não compreendo.
- Nem eu - respondeu Tom. - São coisas que eu tenho pensado. A gente pensa em
muita coisa quando se não pode mexer. A senhora, agora, tem de voltar, mãe.
- Mas então tu ficas com este dinheiro.
Ele ficou calado uns instantes.
- Está bem - disse por fim.
- E olha, Tom, mais tarde... quando as coisas se acalmarem, tu voltas, ouviste? Serás
capaz de nos encontrar?
- Pois claro que sou - respondeu ele. - Mas, agora, é melhor a senhora ir andando.
Por aqui, dê-me a sua mão. - Conduziu-a até à entrada da cavidade. Os dedos dela
agarravam o pulso de Tom. Ele correu a cortina de videiras e seguiu-a até ao lado de fora.-
Vá sempre em frente, à beira dos campos, até chegar ao pé de um sicómoro, e aí atravesse
o riacho. Bom, adeus, mãe.
- Adeus, meu filho - respondeu ela, afastando-se rapidamente.
Os seus olhos estavam húmidos e ardiam, mas não chorava. Foi andando com passos
ruidosos e descuidados sobre a folhagem seca que cobria o chão. Entretanto, a chuva
começara a cair do céu turvo em gotas grossas e escassas que batiam pesadamente no
tapete de folhas secas. A mãe parou e permaneceu imóvel na espessura gotejante. Virou-se,
deu três passos rápidos em direcção à muralha de videiras, tornou a voltar-se e foi
caminhando em direcção aos vagões. Passou ao lado do cano e galgou o caminho. A chuva
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parara, mas o céu conservava-se ainda nublado. Atrás de si, no caminho, ouviu passos.
Voltou-se, toda nervosa. O débil pestanejar de uma lanterna eléctrica bailou no caminho.
Um momento depois, um homem aproximava-se, apagando a luz cortesmente, para não
ferir o rosto da mãe.
- Boa noite - disse ele.
- Boa noite - respondeu a mãe.
- Parece que vamos ter chuva...
- Oxalá que não. Paravam os trabalhos da colheita e lá ficávamos sem trabalho.
- Para mim também era um prejuízo. A senhora mora neste acampamento?
- Moro, sim, senhor.
Os passos de ambos ressoavam em uníssono.
- Eu tenho uns vinte acres de algodão. Costuma amadurecer um pouco mais tarde,
mas agora está bom para colher. Resolvi dar um pulo até aqui e contratar alguns homens
para a colheita.
- Pois gente é coisa que não falta por aí. Esta safra está quase no fim.
- Oxalá que assim seja. A minha fazenda fica a uma milha daqui por este caminho.
- Nós somos seis - disse a mãe. - Três homens, eu, e duas crianças.
- Vou pôr um cartaz na estrada. Pela estrada, são duas milhas.
- Amanhã de manhã mesmo, já a gente pode ir para a sua fazenda.
- Oxalá que não chova.
- Oxalá - repetiu a mãe. - Vinte acres depressa se colhem.
- Quanto mais depressa, melhor. O meu algodão está atrasado. Não pude colhê-lo
mais cedo,
- Quanto é que o senhor paga?
- Noventa cents.
- A gente vai, sem falta. Ouvi dizer que, para o ano, só vão pagar setenta e cinco ou
mesmo sessenta, só.
- Também ouvi dizer isso.
- Então vai haver sarilho - disse a mãe.
- Eu sei, mas um pequeno proprietário como eu nada pode fazer. O sindicato fixa os
salários, e a gente tem de se submeter. Senão, acabam por nos tirar a fazenda. Andam
constantemente em cima de nós...
Chegaram ao acampamento.
- Lá estaremos sem falta - disse a mãe.- Aqui já não há grande coisa para colher. - Foi
até à extremidade da fila de vagões e subiu pela prancha. A luz frouxa da lanterna
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projectava sombras melancólicas por todo o vagão. O pai, o tio John e um outro sujeito de
idade estavam acocorados de encontro à parede do vagão.
- Olá! - disse a mãe?
- Boa noite, senhor Wainwright.
O homem ergueu um rosto finamente cinzelado. Sob as sobrancelhas guedelhudas,
brilhavam olhos fundos nas órbitas.
O cabelo era de um belo branco azulado. A face e o queixo revestiam-se de uma
barba prateada.
- Boa noite, minha senhora! - exclamou ele.
- Amanhã, vamos para outra colheita - informou a mãe. - Uma milha, para os lados
do norte. São vinte acres.
- Acho que é melhor irmos no camião - disse o pai. - É a maneira de começarmos
mais cedo.
Wainwright ergueu a cabeça com vivacidade:
- E se nós fôssemos também?
- Acho que podem muito bem ir. Encontrei o sujeito e viemos os dois a andar por aí.
Ele veio à procura de gente para a colheita.
- O algodão aqui está a acabar. Já é difícil apanhar algum na segunda passagem.
Dificilmente ganharemos algum dinheiro nela. O algodão já foi tão esquadrinhado da
primeira vez!
- Vocês podiam vir connosco no camião - disse a mãe. - Pagávamos a gasolina a
meias.
- Isso é uma gentileza da sua parte, minha senhora.
- Assim poupamos todos.
O pai disse então:
- Aqui o senhor Wainwright está muito preocupado com uma coisa. Estávamos
justamente a falar nisso.
- E de que se trata?
Wainwright pôs os olhos no chão.
- É que a nossa Aggie – disse - está uma mulher... quase com dezasseis anos e bem
desenvolvida.
- A Aggie é uma bonita rapariga - disse a mãe.
- Ouve o que ele tem para dizer - interrompeu o pai.
- Bem, o caso é que ela e o vosso filho Al passeiam por aí toda a noite. E a Aggie é
uma rapariga cheia de saúde, que está a pedir um marido: não vá ela dar-nos ainda algum
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desgosto. Nunca tivemos desgostos desses na nossa família. Mas, o que nos arrelia, a mim e
à senhora Wainwright, é sermos assim tão pobres. Imagine que lhe acontece alguma coisa?
A mãe enrolou um colchão e sentou-se em cima dele.
- E agora, também andam a passear? - perguntou ela.
- Andam sempre aí por fora - repetiu o senhor Wainwright. - Saem todas as noites.
- Hum.... Bem, o Al é um excelente rapaz. Ele supõe-se o galo da capoeira, mas, no
fundo, é uma jóia rara. Como filho, não pode ser melhor.
- Oh, a gente não se queixa do Al! Até gostamos dele. Temos é medo, minha mulher
e eu. É que a pequena já é uma mulher feita. E se vocês ou a gente se for embora, e depois
se descobre que a Aggie está numa situação difícil... Na nossa família nunca houve nada
que nos pudesse envergonhar.
A mãe respondeu com brandura:
- Vamos fazer o possível para evitar a vergonha.
Ele levantou-se rapidamente:
- Muito obrigado. A Aggie já é uma mulher feita. E não só é bonita como boazinha.
Agradecer-lhe-emos de todo o coração, se a senhora conseguir evitar uma vergonha. A
culpa não é da Aggie. Ela já está bastante crescida.
- O pai vai falar com o Al - disse a mãe. - E se ele não quiser, falo eu.
Wainwright disse:
- Bom, então, boa noite e mais uma vez obrigado.
Sumiu-se atrás da cortina de lona. Ouviram-no falar baixinho do outro lado do
vagão, contando à mulher os resultados daquela embaixada.
A mãe ficou à escuta por uns instantes e depois disse:
- Venham cá todos vocês. Sentem-se aqui.
O pai e o tio John ergueram-se com dificuldade da posição em que estavam e
assentaram-se no colchão, ao lado da mãe.
- Onde estão os miúdos?
O pai apontou para um colchão, ao canto do vagão.
- A Ruthie bateu no Winfield e mordeu-lhe. Obriguei os dois a deitarem-se. Suponho
que estão a dormir. E a Rosasharn foi fazer companhia a uma senhora conhecida dela.
A mãe suspirou.
- Encontrei o Tom - disse baixinho. - Disse-lhe que se fosse embora. Que fosse para
longe.
O pai acenou vagarosamente com a cabeça. O tio John deixou pender a dele para o
peito.
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- Era a única coisa que havia a fazer - disse o pai. - Parece-te que havia outro
remédio, John?
John ergueu o olhar.
- Não me sinto capaz de pensar - respondeu. - Até me parece que nem estou
acordado.
- O Tom é bom rapaz - continuou a mãe. E depois, procurou desculpar-se. - Não
levaste a mal que eu tivesse dito que ia falar com o Al, pois não?
- Eu não - disse o pai tranquilamente. - Já não sirvo para nada. Estou sempre a
pensar no que lá vai. A pensar na nossa casa, e a dizer cá para mim que nunca mais a
tornarei a ver.
- Isto aqui é mais bonito e as terras são melhores - disse a mãe.
- Eu sei, mas nem reparo nas terras. Só vejo os salgueiros lá da nossa casa, com as
folhas a caírem. Às vezes, dá-me para pensar que tenho de consertar aquele velho buraco
da cerca, do lado sul. E engraçado! A mulher a dar ordens à família! A mulher a dizer que
se vai fazer isto, que é preciso ir para acolá... E eu nem sequer me ralo com isso.
- As mulheres acostumam-se mais depressa que os homens - disse a mãe, para o
consolar. Uma mulher tem a vida toda nos braços; o homem tem-na na cabeça. Não te
preocupes. Quem sabe?... talvez para o ano já a gente possa ter a nossa casinha.
- Mas, por enquanto, não temos nada - replicou o pai. - E daqui até lá, nem trabalho
nem colheitas... O que é que a gente há-de fazer? E como é que vamos arranjar que comer?
E não se esqueçam de que a Rosasharn vai ter o menino não tarda muito. Estou tão
desgostoso que me sinto incapaz de pensar. Refugio-me nos tempos antigos para não
pensar no futuro. Acho que a nossa vida já deu o que tinha a dar; é coisa liquidada.
- Nada disso - argumentou a mãe, sorrindo.- Não é não, pai. E isto é mais uma das
coisas de que uma mulher tem a certeza. já reparei nisso. O homem vive como se desse
saltos... nasce uma criança e morre um homem, e é como se fosse um salto; arranja uma
territa; perde a territa, e é outro salto. Para a mulher tudo corre sem parar, como um rio
cheio de remoinhos e de cascatas, mas correndo sem parar. É assim que a mulher encara a
vida. A gente não morre, a gente continua... muda, talvez, um pouco, mas continua sempre
firme.
- Como é que sabes isso? - perguntou o tio John. - Como é que se pode evitar que as
coisas parem e que as pessoas se cansem e queiram fechar os olhos?
A mãe pôs-se a meditar. Esfregou o dorso luzidio de uma das mãos com a palma da
outra, e encaixou os dedos da mão direita nos da esquerda.
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- Isso é difícil de explicar - continuou. - Parece-me que tudo que a gente faz deve ter
continuação. Eu penso assim. Mesmo a fome... mesmo a doença. Alguns morrem, mas os
que ficam tornam-se mais fortes. O que vocês têm de fazer é viver somente o dia de hoje, o
dia a dia.
- Se, ao menos, ela não tivesse morrido naquela altura... - murmurou o tio John.
- Vive só o dia de hoje - aconselhou a mãe. - Não te preocupes.
- Quem sabe? O ano que vem talvez seja um ano bom lá na nossa terra - disse o pai.
- Chiu! Ouçam! - pediu a mãe. Ouviram-se os passos de alguém que subia a prancha
e Al, afastando a cortina, surgiu à entrada.
- Olá! - disse - pensei que já estivessem a dormir.
- Al - começou a mãe - senta-te aqui. A gente está a conversar.
- Fixe! Eu também tenho de contar uma coisa. Preciso de me ir embora daqui, e
depressa.
- Isso é que não pode ser. A gente precisa de ti. Porque é que tu tens de te ir embora?
- Bem, eu e a Aggie Wainwright queremos casar, e eu vou-me empregar numa
garagem. Alugamos uma casa durante uns tempos e... - Ergueu o olhar em brasa. - É o que
vamos fazer e ninguém nos pode impedir disso.
Os olhos de todos fixaram-se nele.
- Al - falou a mãe, finalmente - estamos muito contentes por ouvir o que disseste.
Contentíssimos.
- Sim?
- Sim. É claro que estamos. Tu estás um homem feito. Precisas de mulher. Mas não
te vais já embora, Al!
- Prometi à Aggie - disse ele.- A gente tem de se ir embora daqui. já não podemos
suportar mais isto.
- Fiquem só até à Primavera – suplicou a mãe. - Só até à Primavera. Não podem ficar
até lá? E quem é que há-de guiar o camião?
- Bem...
A senhora Wainwright meteu a cabeça no vão da cortina.
- Já ouviram a novidade? - perguntou.
- Já. Agora mesmo.
- Santo Deus! Eu só queria era que a gente tivesse um bolo, ou qualquer coisa
semelhante.
- Vou fazer café e uns sonhos também - disse a mãe. - Nós temos xarope.
- Meu Deus! Assim, sim. Olhe, eu dou o açúcar. Vamos pôr açúcar nos sonhos.
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A mãe rachou lenha e enfiou-a no fogão. A brasa que sobrara do jantar pegou fogo
imediatamente. Ruthie e Winfield deixaram o colchão, como se fossem caranguejosermitões
a sair da casca, a princípio devagar, não fossem eles ser novamente recriminados.
Como ninguém reparasse neles, tornaram-se audazes. Ruthie foi até à porta ao pé-coxinho,
voltando do mesmo modo, sem se encostar à parede.
A mãe lançava farinha numa tigela quando Rosa de Sharon subiu a prancha. Firmavase
bem, avançando cautelosamente.
- Que é isto? - perguntou.
- Grande novidade! - exclamou a mãe. - Temos uma festarola. O Al e a Aggie
Wainwright vão casar.
Rosa de Sharon estacou, imobilizando-se por completo. Olhou longamente para Al,
que se mostrava embaraçado e confundido.
A senhora Wainwright disse, do outro lado do vagão:
- Estou a pôr um vestido limpo à Aggie. Vamos já.
Rosa de Sharon voltou-se lentamente. Dirigiu-se, de novo, para a porta escancarada
do vagão e arrastou-se, descendo a prancha. Ao chegar à terra firme, foi caminhando
devagar em direcção à vereda que corria paralela ao riacho. Tomou pelo caminho por onde
antes a mãe viera de visita a Tom, no salgueiral. O vento, agora, soprava com mais
constância e os arbustos agitavam-se continuamente. Rosa de Sharon pôs-se de joelhos e
penetrou de rastos no matagal. Os espinhos arranharam-lhe as faces e desgrenharam-lhe os
cabelos mas ela não se importou com isso. Só parou quando se sentiu inteiramente
envolvida pela moita. Então, deitou-se de costas, sentindo no ventre o peso do filho.
A mãe remexeu-se no interior do vagão escuro, arremessou para trás o cobertor e
levantou-se. A luz acinzentada das estrelas insinuava-se ligeiramente pela porta aberta do
veículo. A mãe foi até à porta e pôs-se a olhar para fora. Para as bandas de leste, as estrelas
iam perdendo a cor. O vento soprava brandamente nos salgueiros, e do riacho desprendiase
o brando murmúrio da água corrente. A maior parte do pessoal do acampamento
dormia ainda, mas, diante de uma tenda ardia uma fogueirita, a que se aqueciam de pé
várias criaturas. A mãe distinguia-as à luz vacilante das chamas, viu como tinham o rosto
voltado para o lume e como esfregavam as mãos e se voltavam de costas cruzando as mãos
atrás. Ficou-se a.. olhá-las durante um bom bocado, com as mãos unidas à frente. O vento
desigual passou, aos repelões, e o ar fez-se frio e penetrante. A mãe esfregou as mãos a
tremer. Voltou para dentro e pôs-se a procurar os fósforos, ao lado da lanterna. O tubo de
vidro rangeu. Acendeu a torcida, viu a luz tornar-se azul por uns momentos, para se tornar
depois amarela, num delicado anel de luz. Colocou a lanterna em cima do fogão, e pôs-se a
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quebrar uns ramos secos que meteu no fogão. Daí a pouco, o lume crepitava, subindo pela
chaminé. Rosa de Sharon rolou pesadamente no colchão, acabando por se sentar.
- Vou-me levantar - disse ela.
- Porque não esperas um bocado até que o dia aqueça mais? - perguntou a mãe.
- Não. Quero levantar-me já. A mãe encheu a cafeteira com água do balde, colocou-a
no fogão, bem como à frigideira, cheia de banha, para as fritadas de milho.
- Que bicho te mordeu? - perguntou baixinho.
- Vou sair - disse Rosa de Sharon.
- Para onde?
- Vou apanhar algodão.
- Tu não podes - atalhou a mãe. - Já estás muito pesada.
- Não estou, não. E quero ir.
A mãe mediu o café e deitou-o na água.
- Rosasharn, tu ontem não quiseste estar aqui connosco a comer os sonhos. - A
rapariga não respondeu. - Foi por causa do Al e da Aggie? - Desta vez, a mãe lançou-lhe
um olhar interrogador.- Ora, tu não tens necessidade de ir trabalhar.
- Mas eu quero ir.
- Pois seja, mas vê lá, não abuses das tuas forças. Pai, levanta-te, que já são horas.
O pai piscou os olhos e abriu a boca.
- Não dormi como deve ser - resmungou ele. - Já deviam ser quase onze horas
quando a gente se deitou.
- Vamos, levantem-se todos e vão-se lavar.
Os habitantes do vagão regressavam lentamente à vida, desembaraçavam-se dos
cobertores e iam-se vestindo. A mãe ia cortando fatias de carne de porco salgada para
dentro de outra frigideira.
- Levantem-se e vão lavar-se - ordenou.
Uma luz surgiu na outra extremidade do vagão. E, a seguir, ouviu-se o ruído de partir
lenha, que vinha do canto dos Wainwright.
- Senhora Joad! - gritaram de lá. - Estamo-nos a arranjar. Daqui a pouco estamos
prontos.
Al pôs-se a refilar:
- Para que diabo é que a gente há-de levantar-se tão cedo?!
- São só vinte acres de algodão - explicou a mãe. - A gente tem de chegar cedo,
porque o algodão é pouco e apanham-no todo antes de nós chegarmos.
A mãe fez com que eles se vestissem e comessem depressa a refeição.
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- Vá; bebam o café - disse. - Temos de abalar.
- Mas a gente, às escuras, não pode colher algodão, mãe.
- É preciso chegarmos lá ao amanhecer.
- É capaz de estar tudo húmido ainda...
- Não choveu para isso. Vá, toca a beber o café. Al, assim que estiveres pronto, põe o
motor a trabalhar.
- Já estão a aprontar-se, senhora Wainwright? - gritou a mãe.
- Estamos a comer. É um instantinho.
Cá fora, o acampamento enchia-se de vida. Havia fogueiras a arder em frente das
tendas. O fumo espirrava das chaminés.
Al virou a caneca, e ficou com a borra de café na boca. Desceu a prancha, cuspindo.
- Nós já estamos prontos, senhora Wainwright - gritou a mãe. Virou-se para Rosa de
Sharon, e disse-lhe: - Tu ficas.
A rapariga contraiu os maxilares:
- Eu também quero ir - disse. - Mãe, eu tenho de ir.
- Mas tu não tens saco, nem podes acarretar o algodão.
- Deito o que apanhar para o seu saco.
- Acho melhor tu ficares aqui.
- Mas eu quero ir.
A mãe suspirou.
- Vou ter-te debaixo de olho. Quem me dera que houvesse aqui um médico!
Rosa de Sharon pôs-se a caminhar nervosamente para o camião. Envergou um
casaco ligeiro, mas logo o tirou de novo.
- Leva um cobertor - alvitrou a mãe. - Assim, se quiseres descansar, ficas quentinha.
Ouviram o caminhão roncar atrás do vagão.
- Vamos ser os primeiros a chegar, com certeza - declarou a mãe triunfantemente. -
Bem, peguem nos sacos. Ruthie, não te esqueças dos saquinhos que eu fiz para vocês,
ouviste?
Os Joads e os Wainwright subiram para o camião envolto em sombra. Começava a
romper o dia, um dia baço, que tardava em chegar.
- Vira à esquerda! - disse a mãe a Al. - Deve haver um sinal na estrada, a indicar o
caminho.
Foram rodando pelo caminho mergulhado em trevas. Outros veículos seguiam-nos e,
atrás deles, no acampamento, mais outros, apinhados de gente começavam a movimentarse.
E todos os veículos tomavam o mesmo caminho e dobravam à esquerda.
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Havia um pedaço de cartão atado a uma caixa de correio do lado direito da estrada.
Nele se via, escrito a lápis azul: “Precisa-se de gente para a colheita do algodão”. Al
manobrou de, forma a entrar no pátio do quinteiro, que já estava cheio de carros. Uma
lâmpada eléctrica, a um canto de um barracão pintado de branco, iluminava o grupo de
homens e de mulheres à espera, junto da balança, com os sacos enrolados debaixo dos
braços. Algumas mulheres levavam os sacos pelos ombros e cruzados à frente.
- Não chegámos tão cedo como pensávamos - comentou Al.
Fez o camião rodar até uma cerca e aí estacionou. As famílias desceram e foram
juntar-se ao grupo. Iam surgindo mais carros na estrada e mais famílias, que se iam reunir
ao grupo. Debaixo da lâmpada, ao canto do barracão, o dono da fazenda ia-as inscrevendo
numa lista:
- Hawley - dizia - H-a-w-l-e-y? Quantos são?
- Quatro. Will...
- Will.
- Benton.
- Benton.
- Amélia.
- Amélia.
- Claire.
- Claire. Quem está a seguir? Carpenter? Quantos?
- Seis.
Escreveu os nomes de todos na lista, deixando ao lado um espaço em branco para os
pesos.
- Vocês têm sacos, todos? Eu tenho aqui alguns. Custa um dólar cada um.
E os veículos iam chegando à fazenda. O proprietário aconchegou ao pescoço a
jaqueta de couro, forrada de pele de carneiro. Lançou um olhar apreensivo às filas de
veículos.
- Os vinte acres, com esta gente toda, vão num instante - disse.
As crianças treparam para o grande reboque, destinado ao transporte do algodão e
enfiaram os dedos dos pés na rede de arame dos bordos laterais.
- Saiam daí! - gritou o proprietário - desçam daí, andem! Vocês dão-me cabo do
arame. - E as crianças desceram, silenciosas e embaraçadas. A alvorada surgia, cinzenta. -
Vou fazer um desconto no peso, por causa do orvalho. Vamos a ver se acabamos com isto
ao nascer do Sol - disse o dono. - Bem, podem começar, querendo. Já há claridade
suficiente.
479
Os trabalhadores correram ao algodoal e escolheram as respectivas fileiras. Ataram
os sacos à cintura e bateram com as mãos umas nas outras para as aquecer, pois que os
dedos, inteiriçados, tinham de se tornar ágeis. A alvorada tingia as montanhas a leste e as
colunas dos trabalhadores puseram-se em movimento. E chegavam mais veículos, paravam
no terreiro da fazenda; quando este se encheu, os carros começaram a parar à beira do
caminho fronteiro de ambos os lados. O vento varria a plantação.
- Não sei como vocês todos souberam disto - disse o proprietário. - Espalhou-se que
nem um raio. Até ao meio-dia os vinte acres estão Prontos. Qual é o seu nome? Hume?
Quantos são?
As colunas dos trabalhadores moviam-se através do campo, e o vento do oeste,
agudo e permanente, fustigava-lhes as vestes. Os dedos voavam para as cápsulas bojudas e
para a boca dos grandes sacos que os trabalhadores iam arrastando atrás de si, e que, a
pouco e pouco, se iam tornando pesados.
O pai conversava com o homem que percorria a fileira dos algodoeiros à sua direita.
- Lá na minha terra, um vento assim era capaz de dar chuva. Mas parece que, para
chuva, é um bocado frio. Há quanto tempo está o senhor aqui?
Enquanto falava, não tirava os olhos do trabalho. O outro também não erguia os
olhos.
- Estou aqui há quase um ano.
- Acha que vai chover?
- Não sei e não é para admirar. Esta gente, que tem vivido aqui toda a sua vida,
também, às vezes, não sabe. Se eles tiverem medo que a chuva lhes caia em cima das
colheitas, então chove com certeza. É o que diz o povo daqui.
O pai lançou um rápido olhar às montanhas do oeste. Grandes nuvens cor de cinza
singravam pelo céu, acima dos cumes, impelidas por um vento veloz.
- Parece-me que trazem chuva - tornou o pai.
O outro também arriscou uma olhadela.
- Sei lá! - murmurou. E os trabalhadores de todas as fileiras olhavam para trás, a fim
de verem as nuvens. E depois, tornavam a debruçar-se sobre a tarefa, e as mãos voavam
para os flocos de algodão. A colheita transformou-se numa corrida, uma corrida contra a
chuva e contra os outros trabalhadores, contra o tempo e o peso do algodão... era só aquele
algodão que havia para colher, era só aquele dinheiro que havia a ganhar. Chegavam aos
limites do algodoal e corriam à cata de novas fileiras. Agora, trabalhavam contra o vento e
podiam ver as nuvens altas, cor de cinza, nadando rápidas no céu, em direcção ao sol
nascente. E mais veículos chegavam ainda, estacionando à beira do caminho e novos
480
trabalhadores se registavam. As colunas de gente moviam-se frenéticas na plantação,
fazendo entrega do que haviam colhido ao chegar ao fim de cada fileira, tomando nota do
peso entregue e correndo para uma nova fileira.
Às onze horas, a colheita estava pronta. Terminara o trabalho. Os reboques de
bordos de arame foram engatados aos caminhões, igualmente munidos de paredes de rede
de arame, os quais rodavam, velozes, caminho fora, rumo à máquina de descaroçar.
O algodão fazia saliências na rede de arame. Nuvenzinhas de algodão voavam pelo
ar; flocos de algodão prendiam-se à verdura que orlava o caminho. Os trabalhadores, -
desconsolados, regressavam ao barracão e formaram bicha para receber o dinheiro.
- Hume, James, vinte e dois cents; Ralph, trinta cents, Joad, Thomas, noventa cents;
Winfield, quinze cents. - O dinheiro via-se na mesa, em rolos de prata, níquel e cobre. E
cada um dos trabalhadores consultava os seus apontamentos, antes de receber o dinheiro. -
Wainwright, Agnes, trinta e quatro cents; Tobin, sessenta e três cents.
A bicha ia-se desenrolando ao lado da mesa, lentamente. As famílias voltavam
silenciosas aos respectivos veículos. E, vagarosamente, iam dispersando.
Os Joads e os Wainwrights aguardaram, dentro do camião, que o movimento
abrandasse um pouco mais. E, enquanto esperavam, começaram a cair as primeiras gotas
de chuva. Al estendeu a mão, a fim de a sentir. Rosa de Sharon estava sentada ao centro e a
mãe do lado de fora. Os olhos da rapariga estavam de novo sem brilho.
- Tu não devias ter vindo - disse a mãe.- O máximo que colheste foram umas dez ou
quinze libras.
Rosa de Sharon baixou os olhos para o ventre bojudo e entumecido sem responder.
De repente, estremeceu, erguendo a cabeça. A mãe observara o gesto. Desenrolou o seu
saco e cobriu com ele as espáduas de Rosa de Sharon, puxando-a para si.
Finalmente o caminho ficou desimpedido. Al pôs o motor a funcionar, e foi rodando
pela estrada. Grandes mas raros pingos de chuvas caíam com força, esmagando-se no solo,
e, à medida que o camião avançava, os pingos tornavam-se menores e menos espaçados. A
chuva martelava a cabina tão ruidosamente que se sobrepunha aos roncos do velho motor.
Na carrosserie, os Joads e os Wainwrights cobriam a cabeça e os ombros com os sacos de
colher o algodão.
Rosa de Sharon, aconchegada à mãe, tremia violentamente.
- Mais depressa, Al - pediu a mãe. - A Rosasharn apanhou um resfriado. Tem de dar
um escaldão aos pés.
481
Al acelerou a marcha do camião e não tardaram a chegar ao acampamento, parando
próximo dos vagões pintados de ,vermelho. A mãe, mesmo antes de terem chegado, dava
as suas ordens:
- Al - proferiu ela - tu, o John e o pai vão aos salgueiros e apanhem toda a lenha que
puderem. A gente precisa de aquecer bem o fogão.
- O pior é se o tecto tem goteiras.
- Parece que não. Está-se bem lá dentro, mas precisamos de bastante lenha para
aquecer o ambiente. Podem levar também a Ruthie e o Winfield. Eles que apanhem os
galhos pequenos. Esta rapariga não está nada bem.
A mãe desceu do camião. Rosa de Sharon fez um esforço para seguir, mas os joelhos
vergaram-se-lhe e teve de se sentar pesadamente no estribo.
A gorda senhora Wainwright notou esse gesto.
- O que é que tem? Chegou a sua hora?
- Não me parece - respondeu a mãe. - Apanhou um resfriado. Pode ser uma
constipação. Se me quisesse ajudar, era favor.
As duas mulheres sustiveram Rosa de Sharon. Depois de ter dado alguns passos,
voltaram-lhe as forças e as pernas aguentaram-lhe outra vez o peso do corpo.
- Já estou boa, mãe - disse. - Foi uma coisa passageira.
As duas mulheres seguravam-na pelos cotovelos.
- Tens de dar um escaldão aos pés - sentenciou a mãe, com ar de entendida.
Ajudaram-na a subir pela prancha e a entrar no vagão.
- A senhora deve dar-lhe uma massagem - disse a senhora Wainwright. - Enquanto a
senhora lhe dá a massagem, eu acendo o, lume.
Pegou nas últimas achas de lenha; pô-las no fogão e acendeu o lume. Chovia a
cântaros nessa altura e a chuva caía com estrondo no tecto do vagão.
A mãe ergueu os olhos.
- Graças a Deus que o tecto veda bem! Numa tenda, a água entra sempre, por melhor
que ela seja. Faça-me o favor, senhora Wainwright, ponha água ao lume.
Rosa de Sharon deitara-se no colchão e ali jazia imóvel. Deixou que lhe tirassem os
sapatos e lhe esfregassem os pés. A senhora Wainwright debruçou-se sobre ela.
- Sente dores?
- Não, mas sinto-me muito mal.
- Tenho aqui uns comprimidos e uns sais - disse a senhora Wainwright. - Se
quiserem, estão às suas ordens. Tenho muito prazer em oferecer-lhos.
Um novo calafrio sacudiu violentamente o corpo da rapariga.
482
- Tape-me, mãe, que estou com muito frio.
A mãe foi buscar todos os cobertores e estendeu-os em cima dela. A chuva troava de
encontro ao vagão.
Os que tinham ido buscar a lenha voltavam naquele momento. Traziam nos braços
grandes pilhas de galhos secos e de ramos. Vinham de chapéus e de calças a escorrer.
- Livra! Ainda nos molhámos bem - disse o pai. - Foi só um instante, e ficámos
molhados até aos ossos.
- É melhor vocês saírem outra vez e trazerem mais lenha - disse a mãe. - Esta gastase
num minuto. E daqui a pouco é noite.
Ruthie e Winfield chegaram pingando e juntaram o produto do seu trabalho à pilha
arrumada pelos outros. Quiseram tornar a sair, mas a mãe proibiu-os disso.
- Vocês ficam. Vão ali para o pé do lume, para secarem a roupa, andem!
Lá fora, a chuva prateava a tarde e o caminho cintilava sob a água. A cada hora que
passava, os pés de algodão parecia enegrecerem e enrugarem-se cada vez mais. O pai, o Al
e o tio John andaram para trás e para diante no matagal. Acabaram por trazer boa
quantidade de lenha, Empilharam-na perto da larga porta do vagão, e só quando a pilha
quase alcançava o tecto é que pararam com a tarefa e se foram secar ao fogão. Fios de água
escorriam-lhes, à maneira de regato, da cabeça para os ombros, A bainha dos casacos
gotejava incessantemente e a água dentro do calçado fazia um chape-chape ruidoso.
- Chega, agora chega - disse a mãe. - Vão mudar de roupa. Fiz-vos um café muito
quentinho. Vistam uns fatos-macacos secos. Não fiquem para aí parados.
A noite chegou cedo. Nos vagões, as famílias estavam sentadas, muito unidas,
escutando o tamborilar da chuva no tecto.
483
Capítulo XXIX
Sobre as altas montanhas da costa e sobre os vales, as nuvens cinzentas avançavam,
vindas do oceano. O vento soprava violenta e silenciosamente, vindo das altas camadas
atmosféricas, fustigando os arbustos e uivando nas florestas. As nuvens chegavam,
esfarrapadas, em forma de novelos, faixas ou rochedos cor de cinza. Amontoavam-se umas
sobre as outras, fixando-se sobre o oeste, a pouca altura... Em dado momento, o vento
parou, e as nuvens, profundas e sólidas, ficaram. A chuva começou com aguaceiros
tempestuosos; teve intervalos de bátegas e, gradualmente, foi-se transformando numa
cortina monótona de pequenas gotas, que caíam regularmente, uma chuva que tornava
tudo cinzento. E a luz do dia tomava um aspecto crepuscular. A princípio, a terra, seca,
absorvia a água, tornando-se negra. Durante dois dias, a, terra bebeu a chuva; bebeu até
estar satisfeita. Depois, formaram-se lamaçais, e as depressões cobriram-se de pequenos
lagos. Os lagos lodosos cresciam, e a chuva constante chicoteava a água reluzente. Por fim,
também as montanhas se saciaram, e, nas encostas, corriam regatos, caindo em cachoeiras e
deslizando ruidosamente pelos vales, através dos desfiladeiros. A chuva continuava sem
cessar. Os riachos e os pequenos rios galgavam as margens dos leitos e roíam os salgueiros
e as raízes das árvores. Faziam os salgueiros debruçarem-se profundamente sobre a
corrente; arrancavam as raízes dos pés de algodão e derrubavam as árvores. A água lodosa
remoinhava entre as margens e galgava-as, trepando por elas, até transbordar por fim,
enchendo os campos, os pomares e os algodoais onde se erguiam ainda as hastes
enegrecidas. Os campos baixos metamorfoseavam-se em lagos amplos e cinzentos, cuja
superfície a chuva açoitava. Então, a água inundou as estradas e os carros avançavam
devagar, cortando a água e nela deixando esteiras lodosas e borbulhantes. A terra
murmurava sob o chicote da chuva e os riachos bramiam com as suas cachoeiras agitadas.
Quando começaram as primeiras chuvas, os emigrantes comprimiam-se nas tendas,
dizendo: “Isto passa depressa” e perguntando: “Quanto tempo irá isto durar?”
E, quando os lamaçais se formaram, os homens saíram à chuva, armados de pás e
construíram pequenos diques em volta das tendas. As vergastadas da chuva açoitavam a
lona até a repassarem e formarem pequenos regatos no chão. Então, os pequenos diques
vinham abaixo e a chuva entrava; as enxurradas molhavam os colchões e os cobertores. As
484
famílias tinham de se conservar com as roupas molhadas. Punham caixotes no chão e
colocavam tábuas em cima deles. E, dia e noite, mantinham-se sentadas nas tábuas.
Ao lado das tendas estacionavam os calhambeques, e a água corroía os fios da
ignição e os radiadores. As pequenas tendas cinzentas elevavam-se no meio de lagos. E,
finalmente, todos tiveram de sair de onde estavam.
Mas os veículos não pegavam porque havia curtos-circuitos nos fios, e, se
porventura, os motores quisessem andar, um lodo profundo lhes envolvia as rodas. As
pessoas chapinhavam, levando nos braços os cobertores molhados. Andavam, e a água
espadanava sob os seus passos. Transportavam as crianças nos braços e o mesmo faziam
aos velhos carregados de anos. Se, em qualquer ponto elevado, se erguia um barracão, era
um instante enquanto se enchia de gente desesperada, a tremer de frio.
Algumas famílias dirigiam-se às comissões de socorro, e voltavam tristemente para
junto dos seus.
Há um regulamento, sabem... a gente tem de morar aqui um ano, pelo menos, se
quisermos receber o auxílio. Mas disseram que o governo vai auxiliar. Não se sabe quando,
mas vai...
E, gradualmente, surgia um terror mais profundo.
Não vai haver trabalho nenhum durante três meses.
As pessoas aglomeravam-se nos barracões. O terror caía sobre elas; os rostos
tornavam-se cinzentos de pavor. As crianças choravam com fome, e não havia que comer.
Então vieram as doenças - a pneumonia, o sarampo, que atacava os olhos e os
mastóides.
E a chuva caía sem cessar e a água espraiava-se pelas estradas, pois os esgotos não
conseguiam absorvê-la toda.
Então, grupos de homens molhados saíam das tendas e dos barracões, homens, cujas
roupas eram farrapos encharcados e cujos sapatos se haviam transformado numa papa
lodosa. Caminhavam na água, que saltava sob os seus passos e iam às cidades, às vendas
das redondezas, às comissões de socorro, a implorar comida, a mendigar, humilhando-se a
solicitar auxílio, mentindo e tentando roubar. E, entre os mendigos e os humilhados, uma
raiva desesperada começou a tomar forma. Nas pequenas cidades, a compaixão pelos
homens encharcados transformou-se em indignação, e a indignação, despertada pela gente
faminta, transformou-se em medo. Então, os sheriffs reuniam turmas de polícias, emitiam
pedidos urgentes de rifles, de gases lacrimogéneos e de munições. %s homens famintos
enchiam as ruazitas para onde davam as traseiras dos estabelecimentos, mendigando pão,
mendigando verduras podres e roubando o que podiam.
485
Homens desvairados batiam às portas dos médicos, mas os médicos estavam
demasiado ocupados para os atender. Os homens, abatidos, deixavam nas vendas das
aldeias recados para o médico-legista, para que ele mandas 1se a carreta. O médico-legista,
esse, não estava demasiado ocupado para os atender. A carreta atravessava o lodo e retirava
os cadáveres.
E a chuva martelava constantemente, e os rios galgavam os leitos, inundando a
região.
Comprimidos nos barracões, deitados no feno húmido, o medo e a fome
provocavam-lhe s a ira, Os rapazes saíam, não para mendigar, mas para roubar, e os
homens saíam raivosos com a ideia de roubar.
Os sheriffs reuniam novos polícias e pediam mais rifles;? e as gentes abastadas, dentro
de casas sólidas, sentiam compaixão, a princípio, depois desgosto e finalmente ódio por
aquele povo em êxodo...
No feno molhado, dentro de barracões desmantelados nasciam bebés, bebés de mães
4ue ofegavam com pneumonias. E os velhos contorciam-se aos cantos e assim morriam,
sem que o médico-legista conseguisse endireitar-lhes depois os corpos. noite, os homens,
furiosos, visitavam audaciosamente os galinheiros e arrebatavam os frangos cacarejantes.
Quando alguém disparava, não apressavam o passo; afastavam-se sem pressas;
continuavam chapinhando no lodo, e, se eram feridos, deixavam-se cair, exaustos, no
lodaçal.
A chuva parou. Mas a água demorava-se nos tampos, reflectindo o céu cinzento, e a
terra toda cochichava com a água que se ia escoando. E os hortiçãs deixaram as granjas,
saíram das tendas. Acocoravam-se, ficando a olhar a paisagem inundada, sem uma palavra.
Mas, às vezes falavam, em voz muito baixa.
Não há trabalho até à Primavera. Não há trabalho.
E, sem trabalho, não há dinheiro, nem comida.
Um tipo tem uma parelha de cavalos, com eles lavra, cultiva a terra e faz a ceifa.
Nunca lhe passaria pela cabeça deixá-los morrer à fome durante h tempo, em que nada têm
que fazer.
É que eles são cavalos e nós somos homens.
As mulheres observavam os homens, perscrutavam-nos, para ver se, agora,
finalmente, eles desanimariam. As mulheres mantinham-se caladas, observando, e, onde se
formava um grupo de homens, o medo desaparecia das suas faces, e a raiva tomava o lugar
do medo. E as mulheres suspiravam de alívio, pois sabiam que assim tudo caminharia bem.
486
Eles não estavam alquebrados, e não se renderiam, enquant6. o medo ainda fosse capaz de
se transformar em ira.
Minúsculos rebentos de erva brotavam à superfície da terra, e as colinas cobriram-se,
em poucos dias, de um tapete verde pálido. Ia começar um novo ano.
487
Capítulo XXX
No acampamento dos vagões havia grandes lodaçais e a chuva espadanava na lama.
Gradualmente, o riacho galgava as margens e espraiava-se no terreno baixo e plano em que
se erguiam os vagões.
No segundo dia de chuva, Al retirou a lona que servia de cortina a separar as duas
metades dos vagões e tapou com ela a frente do camião. Depois, voltou e sentou-se no seu
colchão. Agora, sem a cortina de lona, as duas famílias que habitavam o vagão, formavam
uma só. Os homens sentavam-se uns ao pé dos outros. Sentiam-se deprimidos. A mãe
mantinha permanentemente um lume débil no fogão, adicionando-lhe só, de quando em
quando, alguns ramos, a fim de poupar a lenha. A chuva martelava o tecto quase plano do
vagão.
Ao terceiro dia, os Wainwrights tornaram-se nervosos.
- Quem sabe? Talvez seja melhor a gente ir-se embora daqui – propõs a senhora
Wainwright.
E a mãe procurou retê-los:
- Para onde é que vocês querem ir? Aqui, pelo menos, estamos debaixo de um tecto
firme.
- Não sei, mas tenho um palpite de que seria melhor a gente ir-se embora daqui.
Discutiam uns com os outros, e a mãe observava Al.
Ruthie e Winfield distraíam-se a brincar, mas em breve caíram numa inactividade
desanimada, e a chuva continuava a martelar no tecto.
No terceiro dia, o tumultuar do riacho sobrepunha-se ao tamborilar da chuva. O pai
e o tio John postaram-se à porta, a olhar o riacho, que engrossava. A água aproximava-se
dos dois extremos do acampamento, mas dava uma volta, de maneira que o barranco da
estrada formava os limites do acampamento atrás, e o riacho estabelecia-os à frente.
- Que é que tu achas, John? - perguntou o pai. - A mim parece-me que, se o riacho
continuar a subir, acaba por inundar tudo.
O tio John abriu a boca, esfregando a barbicha eriçada.
- É muito capaz disso - concordou.
488
Rosa de Sharon estava deitada num colchão com uma forte gripe; as faces ardiam-lhe
e tinha os olhos brilhantes de febre. A mãe sentou-se ao lado dela e segurava nas mãos uma
caneca de leite quente.
- Toma - disse - bebe isto. - Deitei-lhe um pouco de gordura de presunto, para te dar
forças. Bebe, anda.
Rosa de Sharon. abanou a cabeça ao de leve.
- Não tenho fome.
O pai descreveu um arco com o dedo.
- Se todos nós agarrássemos nas pás e construíssemos um pequeno dique, aposto que
poderíamos afastar a água daqui. Bastava elevar deste lado e baixar daquele.
- Sim - concordou o tio John - pode ser. Mas não sei se o pessoal quererá. Acho que
preferem ir-se embora daqui.
- Mas estes vagões estão secos - insistiu o pai. - E lugar seco como este é que a gente
não encontra. Espera um instante. - Apanhou, da pilha de lenha que estava ao pé do fogão,
uma vara e desceu, correndo, pela prancha. Chapinhou no lodaçal até ao riacho e cravou a
estaca na margem das águas turbulentas. Um momento depois, estava de volta ao vagão. -
Santo Deus! - exclamou. - Esta chuva até molha os ossos.
Os dois homens fixaram os olhos na varita encravada à beira do riacho. Viram como
a água ondulava, subindo lentamente ao redor dela pela margem acima. O pai acocorou-se
no vão da porta.
- Está a subir depressa - disse. - É bom ir falar com os outros, a ver se eles querem
ajudar a construir um dique. Se não quiserem, que se vão embora.
O pai lançou um olhar para o lado dos Wainwrights. Al estava com eles, ao lado de
Aggie. O pai dirigiu-se ao recinto deles.
- A. água está a subir - disse. - E se a gente construísse um dique? E muito fácil, se
todos ajudarem.
Wainwright respondeu:
- A gente estava agora mesmo a falar nisso. Eu acho que nos devemos ir embora
daqui.
- Mas você conhece esta região, não conhece? Sabe que por aqui se não encontra um
pedacinho de terra enxuta - disse o pai.
- Eu sei. Mas, de qualquer maneira...
- Pai, se eles forem, eu também vou - avisou Al.
O pai olhou-o assustado.
- Tu não podes ir, Al. O camião... nenhum de nós sabe guiar.
489
- Que me importa? Eu e a Aggie temos de ficar juntos.
- Esperem lá - disse o pai. - Cheguem aqui. - Wainwright e Al puseram-se de pé e
aproximaram-se da porta. - Vêem? - perguntou o pai, apontando com o dedo. - Basta a
gente construir um dique dali até ali.
Olhou para a varita que tinha espetado à beira do riacho. As águas remoinhavam à
volta dela, trepando pela margem.
- Vai ser um trabalhão e é capaz de não servir de nada - opôs Wainwright.
- O que é que tem? Não temos nada a perder. De qualquer maneira, é melhor que
estar sem fazer nada. Não conseguiremos achar um sítio bom como este por aqui. Vamos
falar com os outros também. Se todos trabalharem, a coisa faz-se num instante.
- Se a Aggie se for embora, eu também vou - repetiu Al.
- Ouve, Al - disse o pai - se o resto do pessoal não quiser ajudar a fazer o dique, a
gente tem de se ir embora daqui, de qualquer maneira. Vamos falar com eles.
Desceram pela prancha, de ombros encolhidos e dirigiram-se, debaixo de chuva, ao
vagão vizinho.
A mãe estava atarefada junto do fogão e, de vez em quando, lançava uma acha à
fogueira. Ruthie aproximou-se dela.
- Tenho fome - choramingou Ruthie.
- Não tens nada - respondeu a mãe.- Ainda agora comeste papas.
- Mãe, eu quero outra caixinha daquelas bolachas, Isto aqui é tão aborrecido! A gente
não pode brincar nem nada.
- Tu brincarás, descansa - disse a mãe. - Tem paciência. Depois, já poderás brincar à
vontade. Qualquer dia, a gente aluga uma casinha.
- E podemos ter um cão, não podemos?
- Sim, podemos ter um cão e um gato também.
- Um gato amarelo, sim?
- Escuta, por favor, não me maces. Está caladinha - suplicou a mãe. - A Rosasharn
está doente. Deixa-me em paz. Tem juízo, ao menos um bocadinho. Depois te divertirás.
Ruthie afastou-se, resmungando.
Do colchão em que Rosa de Sharon estava deitada, veio o som de um grito curto e
agudo, bruscamente interrompido. A mãe deu uma reviravolta e correu para o colchão.
Rosa de Sharon tinha a respiração suspensa; nos seus olhos pairava uma expressão de
terror.
- Que foi? - perguntou a mãe.
490
A rapariga expeliu o ar e tornou a aspirar profundamente. A mãe, num movimento
rápido, enfiou a mão sob o cobertor. Depois, ergueu-se.
- Senhora Wainwright! – chamou. - Ó senhora Wainwright!
A mulherzinha gorda veio a correr.
- Que há?
- Olhe!
A mãe apontou para o rosto de Rosa de Sharon. A rapariga tinha os dentes cravados
no lábios inferior e a fronte húmida de suor. O pavor renascia nos seus olhos.
- Parece-me que é agora - disse, a mãe. - Mas é muito cedo ainda. Como é isto?
A rapariga soltou um prolongado suspiro e pareceu aliviada. Desprendeu os dentes
do lábio. Cerrou os olhos. A senhora Wainwright voltou-se para a mãe:
- Sim – disse - é agora. A senhora acha que ainda é cedo para isso?
- É sim. Talvez a febre adiantasse a coisa.
- Bem, em todo o caso ela devia estar de pé: Devia andar por aí.
- Ela não pode - disse a mãe. - Não tem forças.
- Mas devia fazer por isso. - A senhora Wainwright mostrava-se calma e enérgica. - Já
assisti a uma porção de partos. - Vamos, vamos fechar a porta o mais possível, para evitar
as correntes de ar.
As duas mulheres fecharam a pesada porta corrediça do vagão, deixando apenas
aberta uma fresta de um pé de largura.
- Vou buscar a nossa lanterna também - disse a senhora Wainwright. Tinha o rosto
vermelho de excitação. - Aggie! - gritou - toma conta das crianças.
A mãe concordou:
- Sim, tem razão. Ruthie, Winfield! Vão para junto de Aggie. Vá, depressa!
- Porquê? - perguntaram.
- Porque tem de ser. A Rosasharn vai ter um bebé.
- Eu quero ver, mãe. Deixe-me ver, por favor.
- Ruthie! Vai, anda depressa!
Perante o tom daquela voz, qualquer argumento seria inútil. Ruthie e Winfield foram
de má vontade para o lado oposto do vagão. A mãe acendeu a lanterna. A senhora
Wainwright trouxera a sua lanterna Rochester, colocando-a no soalho, e a larga chama
circular iluminava perfeitamente o compartimento.
Ruthie e Winfield ficaram atrás da pilha da lenha, a espreitar.
491
- Ela vai ter um bebé, e a gente vai ver - disse Ruthie, em voz baixa. - Vê se não fazes
barulho, senão, a mãe corre connosco daqui. Se ela olhar para cá, baixa a cabeça atrás da
lenha, ouviste? Assim, a gente pode ver tudo.
- Parece-me que poucas crianças terão visto - disse Winfield.
- Nenhuma criança viu - assegurou Ruthie, cheia de orgulho.
- Só nós é que vamos ver.
Ao pé do colchão, à luz brilhante da lanterna, a mãe e a senhora Wainwright
conferenciavam. Falavam num tom que cobria o rumor cavo da chuva. A senhora
Wainwright tirou do bolso do avental uma faquita de cozinha e meteu-a debaixo do
colchão.
- Pode ser que não sirva de nada - disse, desculpando-se. - A nossa gente faz sempre
assim. De qualquer maneira, mal também não faz.
A mãe teve um gesto de aquiescência.
- Na minha terra põem uma lâmina de arado. Qualquer coisa afiada serve para cortar
as dores do parto. Oxalá não seja um parto difícil.
- Estás melhor, agora? Rosa de Sharon fez que sim, nervosa.
- Será agora?
- Com certeza - disse a mãe. - Tu vais ter um bebé que vai ser uma beleza. Precisas é
de ajudar um pouco a gente. Podes levantar-te e caminhar um bocadito?
- Vou experimentar.
- Bonita rapariga - disse a senhora Wainwright. - Bonita rapariga, isso é que ela é.
Vamos ajudá-la, queridinha. Vamos caminhar ao seu lado.
Auxiliaram-na a pôr-se de pé e cobriram-lhe os ombros com um cobertor. Depois, a
mãe segurou-a por um braço e a senhora Wainwright por outro. Conduziram-na até à pilha
de lenha, voltaram-se devagar e regressaram ao colchão, tornando a fazer o mesmo
percurso. E a chuva martelava com força o tecto do vagão.
Ruthie e Winfield olhavam ansiosos a cena.
- Quando é que ela vai ter o bebé? - perguntou o rapazito.
- Chiu! Está calado. Senão, não deixam a gente ver.
Aggie associou-se aos dois, ocultando-se atrás da pilha de lenha. O seu rosto delgado
e os seus cabelos dourados brilhavam à luz da lanterna. O nariz parecia muito comprido e
afilado na sombra que a cabeça projectava na parede.
Ruthie cochichou:
- Tu já viste nascer algum bebé?
- Ora, se vi! - disse Aggie.
492
- Então diz lá quando é que vai ser.
- Pode demorar muito ainda, muito mesmo.
- Quanto?
- Pode ser que seja só amanhã de manhã.
- Ora bolas! - exclamou Ruthie - então não vale a pena a gente estar já a espreitar.
Oh, olha para lá!
As mulheres tinham interrompido o seu passear. Rosa de Sharon estava toda
inteiriçada, gemendo com dores. Deitaram-na; enxugaram-lhe a fronte, enquanto ela gemia
e cerrava os punhos. A mãe falava-lhe com brandura:
- Então! - disse - vais ver que tudo há-de correr bem. Isso mesmo, aperta as mãos
uma na outra. E morde a boca. Assim. Isso mesmo, muito bem.
A dor passou. Deixaram-na descansar um pouco. Depois, tornaram a ajudá-la a
levantar-se e as três puseram-se a passear para cá e para lá, entre os acessos periódicos de
dor.
O pai enfiou a cabeça pela fresta da porta. Tinha o chapéu a pingar.
- Porque fecharam a porta? - perguntou. E então reparou nas mulheres, passeando de
um lado para outro.
- Chegou a hora dela - elucidou a mãe.
- Então... então, mesmo que quiséssemos, não nos podíamos ir embora daqui?
- Pois não.
- Então é preciso fazer o dique?
- É, sim.
O pai voltou ao riacho, chapinhando no lodaçal. A vara que ele espetara na margem
do rio já tinha mais três polegadas submersas. Uns vinte homens estavam parados à chuva.
O pai gritou:
- A gente tem de construir o dique. A minha filha está com as dores de parto.
Os homens rodearam-no.
- Um bebé?
- Sim. A gente, agora, não pode sair daqui.
Um homem alto disse:
- O bebé não é nosso. Não temos nada com isso. Se a gente quiser, vai-se embora
mesmo.
- Você, se quiser, pode ir - disse o Pai. - Quem é que lhe pega? Mesmo a gente só
tem oito pás.
493
Dirigiu-se a toda a pressa para a parte mais baixa da margem do rio e cravou a sua pá
no lodo. Ao retirá-la, produziu-se um som semelhante a um estalo de língua. O pai
continuou a escavar, amontoando o lodo na parte mais baixa da margem. A seu lado, mais
quatro homens começaram a trabalhar. Empilharam o lodo em formato de barranco, o
mais alto possível. Os que não tinham pá, cortavam ramos de salgueiro e entrançavam-nos,
fazendo com eles uma espécie de esteira que espetavam no lodo. Apoderou-se dos homens
uma fúria de batalha. Quando um parava para descansar, o outro apanhava a pá. Tinham
despido os casacos e tirado os chapéus. As camisas e as calças colavam-se-lhes ao corpo e
os sapatos haviam-se transformado numa massa informe de lodo. Um grito agudo veio do
vagão dos Joads. Os homens interromperam o trabalho, escutando, nervosos, para depois
tornarem a mergulhar no trabalho. E o barranco foi crescendo, até se ligar ao barranco da
estrada, que ficava na outra extremidade. Os homens estavam cansados, e as pás, agora,
moviam-se mais vagarosamente. O riacho ia subindo com lentidão e já inundava o lugar
onde tinham começado a amontoar a terra.
O pai deu uma risada triunfal.
- Se a gente não tivesse começado a trabalhar, a água já tinha subido até nós. - gritou.
O riacho foi galgando lenta, mas firmemente, as bordas do dique e atirou-se à esteira
de salgueiro.
- Mais alto! - gritou o pai. - A gente tem de fazer isto mais alto!
Chegou a noite e o trabalho ainda continuava. Os homens, agora, sentiam-se
exaustos. Os seus rostos, de traços petrificados, pareciam mortos. Vibravam golpes
automaticamente na terra, como máquinas. Ao escurecer, as mulheres puseram lanternas à
entrada dos vagões e prepararam café. Umas após outras foram ao vagão dos Joads,
entrando pela estreita fresta da porta.
Os acessos de dor eram 3 agora, mais frequentes; surgiam de vinte em vinte minutos.
E Rosa de Sharon perdera, por completo, o domínio sobre si. As dores fortes faziam-na
gritar ferozmente. As vizinhas olhavam-na; faziam-lhe festas e voltavam aos seus vagões.
A mãe ateou o lume. Todas as panelas, todo o vasilhame estavam cheios de água, a
aquecer. De vez em quando, o pai dava uma olhadela pela fresta do vagão.
- Vai tudo bem? - perguntava.
- Sim, acho que sim - dizia a mãe, tranquilizando-o.
Alguém trouxera uma lanterna eléctrica ao anoitecer. O tio John brandia a pá sem
cessar, atirando camadas de lodo para cima do barranco.
- Devagar, devagar. Assim, matas-te - disse o pai.
- Que me importa! Não aguento aqueles gritos. E como... como naquele dia...
494
- Eu sei - disse o pai - mas é melhor não te afligires.
O tio John falou precipitadamente.
- A minha vontade era fugir daqui. Santo Deus! Se não me distrair a trabalhar, tenho
de fugir, isso é que tenho!
O pai desviou o olhar.
- Vamos ver a altura da água - disse.
O homem da lanterna eléctrica projectou a luz sobre a varita marcadora de nível. A
chuva dividia a luz em fios prateados.
- Está a subir.
- Mas, agora, sobe mais devagar - disse o pai. - Vai custar a chegar até acima.
- Sim, mas que está a subir é uma verdade.
As mulheres encheram as canecas de café e puseram-nas às portas dos vagões. E
quanto mais a noite avançava, mais lentamente os homens trabalhavam, erguendo os pés
pesados como se fossem animais de carga. Mais e mais lodo para cima do barranco. E a
chuva caindo sem cessar. Quando a luz da lanterna incidia sobre os rostos dos homens,
viam-se-lhes os olhos fixos e os músculos salientes.
Por muito tempo, os gritos continuaram no vagão dos Joads. Por fim, deixaram de se
ouvir.
- Se o bebé tivesse nascido, a mãe chamava-me - disse o pai. - E continuou a
trabalhar sombriamente.
O riacho lançava-se contra o dique em turbilhão. Em dado momento, ouviu-se o
som de qualquer coisa a estalar. A luz da lanterna mostrou um choupo enorme, a cair. Os
homens interromperam o trabalho para olhar. Os ramos da árvore mergulharam na água e
foram arrastados, enquanto o riacho continuava a escavar-lhe as raízes menores. Pouco a
pouco, a corrente arrancou a árvore da terra e começou a levá-la rio abaixo. Os homens
olhavam a cena boquiabertos. Lentamente, a árvore ia-se deslocando vagarosamente.
Então, um dos seus ramos encontrou um obstáculo, a que se agarrou firmemente. E,
devagar, as raízes giraram e emaranharam-se no dique em construção. A água investia com
fúria por detrás. A árvore deslocou-se e rebentou o dique. Um fio de água insinuou-se pela
brecha dentro. O pai correu para lá, a fim de a tapar com lodo. A água fazia pressão contra
a árvore. E, de repente, o dique desabou. A água espraiou-se, lavando os tornozelos do
homens, subindo-lhes até aos joelhos, Os homens puseram-se em fuga, abandonando o
trabalho, e a corrente inundou sem custo o terreno plano por baixo dos vagões e dos
automóveis.
495
O tio John viu a água invadir tudo aquilo, apesar da escuridão. E, subitamente, cedeu
ao peso do corpo; os joelhos vergaram-se-lhe e as vagas da corrente vieram açoitar-lhe o
peito.
O pai viu-o cair.
- Que foi? – inquiriu, ajudando-o a pôr-se de pé. - Estás doente? Sobe para o vagão,
que está alto.
O tio John procurou reunir forças.
- Não sei – disse, com ar de quem se desculpa. – As pernas foram-se abaixo. Não
posso mais.
O pai susteve-o, conduzindo-o ao vagão.
Quando o dique rebentou, Al voltou-lhe as costas e afastou-se a correr. Erguia os pés
com dificuldade. A água chegava-lhe já às barrigas das pernas quando alcançou o camião.
Retirou a lona que cobria o radiador e saltou para a cabine. Puxou o botão de arranque. O
motor rodou, mas não pegou. Tornou a accionar o arranque. A bateria ia-se abaixo e o
motor, molhado, girava cada vez mais lentamente, sempre sem pegar. Cada vez esmorecia
mais. Al experimentou a pré-ignição. Depois, agarrou na manivela, que estava debaixo do
assento e saltou do camião. A água já ultrapassava a altura do estribo. Al correu, a ver a
frente do veículo. O carter já estava debaixo de água. Ajustou com fúria a manivela e
começou a manobrá-la. E a sua mão crispada fazia espadanar a água, a qual deslizava
vagarosamente a cada volta que dava. Por fim, Al desistiu. O motor estava cheio de água, a
bateria, encharcada. Num ponto um pouco mais alto do terreno, outros punham os
motores de dois carros a funcionar. Os faróis brilhavam. Os carros arrastavam-se pelo
lodaçal, e as rodas afundavam-se cada vez mais, até que, finalmente, os que guiavam
desligaram os motores e quedaram-se imóveis, a olhar as luzes dos faróis. E a chuva
chicoteava os veículos, transformando as faixas brancas de luz em fios prateados, quase
brancos. Al deu vagarosamente a volta ao camião, meteu a mão na cabine e desligou o
motor.
Quando o pai chegou à prancha do vagão dos Joads, uma parte deste já se
encontrava envolvida pelas águas. O pai cravou-a com mais força na terra enlameada.
- És capaz de subir sozinho, John?
- Sou, sim. Passa lá.
O pai subiu pela prancha, cautelosamente e meteu-se pela estreita fenda da porta. A
luz das lanternas enfraquecera. A mãe estava sentada no colchão, ao lado de Rosa de
Sharon, abanando o rosto calmo da rapariga com um pedaço de cartão. A senhora
Wainwright colocava galhos secos no fogão, e uma fumarada húmida desprendia-se das
496
tampas, enchendo o vagão de cheiro a pano queimado. A mãe ergueu os olhos quando o
pai entrou, mas logo tornou a baixá-los.
- Como... como vai ela? - perguntou o pai.
A mãe não tornou a levantar os olhos.
- Acho que vai bem. Está a dormir.
O ar era fétido e pesado, trescalando a parto. O tio John também entrou
cambaleando e foi encostar-se a um lado do vagão. A senhora Wainwright deixou a sua
tarefa e foi para junto do pai. Puxou-o pelo cotovelo para um canto. Pegou numa lanterna
e iluminou um caixote de maçãs, onde, sobre um papel de jornal, jazia uma múmiazinha,
toda enrugada e de cor azul.
- Nem chegou a respirar - disse a senhora Wainwright com brandura. - Nasceu
morto.
O tio John voltou-se e, cansado, arrastou-se para o canto obscurecido do vagão. A
chuva cantava suavemente no tecto, tão suavemente que deixava ouvir, na escuridão, o
arfar de fadiga do tio John.
O pai ergueu o olhar para a senhora Wainwright. Tirou-lhe a lanterna e pô-la no
chão. Ruthie e Winfield dormiam nos seus colchões, cobrindo os olhos com os braços,
para os proteger da luz.
O pai caminhou lentamente até ao colchão de Rosa de Sharon. Tentou acocorar-se,
mas as pernas, de cansadas, recusaram-se-lhe. Pôs-se de joelhos. A mãe continuava a
abanar o pedaço de cartão. Olhou o pai por um instante, com os olhos esgazeados e fixos
de um sonâmbulo.
- A gente fez o que pôde - disse o pai.
- Eu sei.
- Trabalhámos toda a noite. Mas caiu uma árvore e arrastou o dique.
- Eu sei.
- Ouves a água aqui por baixo, não ouves?
- Ouço, sim.
- Achas que ela vai ficar boa?
- Não sei.
- Mas... sim... o que é que a gente podia ter feito?
Os lábios da mãe estavam brancos, de tão comprimidos.
- Nada. Só se podia fazer uma coisa... e essa fez-se.
- Trabalhámos bastante, até que caiu aquela árvore... Parece que chove menos, agora.
497
A mãe olhou para o tecto e depois novamente para baixo. O pai continuou, sentindo
imperiosa necessidade de falar:
- Não sei até onde é que a água irá subir; é capaz de inundar o vagão.
- Eu sei.
- Tu sabes tudo.
Ela permaneceu em silêncio, e o pedaço de cartão continuava para cá e para lá .
- Não nos esquecemos de nada? Fizemos, com certeza, tudo o que era possível? -
inquiriu o pai.
A mãe lançou-lhe um olhar estranho. Os seus lábios exangues esboçaram um sorriso
de sonhadora compaixão.
- Não te atormentes. Sossega. Tudo se há-de compor. As coisas estão a modificarse...
em toda a parte.
- Mas se a água... se a gente tiver de sair daqui?
- Quando for a altura de partir, partiremos. Faremos o que for necessário. Mas agora
cala-te. Podes acordá-la.
A senhora Wainwright cortou lenha e pô-la no fogão húmido, e fumegante.
Do lado de fora, vinha uma voz furiosa:
- Abram a porta, que quero ter uma conversa com esse filho da mãe.
E, depois, soou a voz de Al, mesmo ao pé da porta, do lado de fora:
- Que é que quer?
- Quero entrar aí e dizer umas coisas a esse canalha do Joad.
- Não, senhor, você não entra coisa nenhuma. Que foi que houve?
- Se não fosse essa ideia parva de construir um dique, a gente, a esta hora, já podia
estar longe. Agora, o nosso carro está todo estragado.
- E o nosso? Você julga que nós já vamos pela estrada fora?
- Não quero conversas consigo. Quero entrar.
A voz de Al, soou, fria:
- Para entrar, tem primeiro de jogar à pancada comigo.
O pai ergueu-se lentamente, e foi à porta.
- Calma, Al! Já aí vou! Vamos, vamos... - Desceu pela prancha escorregadia. A mãe
ouviu-o dizer:- Há gente doente lá dentro. Vamos conversar mais para longe.
A chuva, agora, batia mais fracamente no tecto do vagão, e um pé de vento fê-la
correr em forma de rajada. A senhora Wainwright deixou o fogão, para ir ver Rosa de
Sharon.
498
- A madrugada não tarda aí, senhora Joad. Porque se não deita um bocadinho? Eu
fico aqui sentada, a tomar conta dela.
- Não - disse a mãe - não estou cansada.
- Está-se mesmo a meter pelos olhos dentro que é verdade - ironizou a senhora
Wainwright. - Vamos, deite-se um bocadinho.
A mãe cortava lentamente o ar com o pedaço de cartão.
- A senhora foi muito boa - disse. - Muito obrigada por tudo.
A mulherzinha obesa sorriu.
- Não tem de quê. Estamos todos no mesmo vagão. Se fosse alguém da minha
família que passasse mal, a senhora também nos ia ajudar.
- Sim - disse a mãe - era o que eu faria.
- A senhora ou outra qualquer.
- Ou outra qualquer, isso mesmo. Antigamente, a família estava em primeiro lugar.
Agora, não é assim. Quanto mais mal estamos, mais a gente tem que fazer.
- Foi impossível salvar a criança.
- Eu sei - confirmou a mãe.
Ruthie soltou um profundo suspiro e retirou o braço que lhe tapava os olhos. Por
um instante, mostrou-se ofuscada pela luz da lamparina. Depois, virou a cabeça e encarou a
mãe.
- Já nasceu? - perguntou. - O bebé já veio?
A senhora Wainwright pegou num saco e estendeu-o por cima do caixote de maçãs
encostado ao canto.
- Onde está o bebé? - tornou a perguntar Ruthie.
A mãe passou a língua pelos lábios.
- Não veio nenhum bebé. Nem estava para vir. A gente enganou-se.
- Ora bolas! - disse Ruthie, bocejando. - E eu, que tanto queria um bebé!
A senhora Wainwright sentou-se ao lado da mãe; tirou-lhe da mão o pedaço de
cartão e continuou a tarefa de abanar o rosto da parturiente. A mãe cruzou as mãos sobre o
colo e os seus olhos fatigados não largavam Rosa de Sharon, que dormia, esgotada.
- Vamos - disse a senhora Wainwright - deite-se um bocadinho. A senhora pode
deitar-se ao pé dela. Basta ela respirar, com um pouco de força, logo a senhora acorda.
- Está bem; vou-me deitar.
A mãe estendeu-se sobre o colchão, ao lado da filha, que continuava a dormir. E a
senhora Wainwright sentou-se no chão, vigilante.
499
O pai, Al e o tio John tinham-se sentado no vão da porta, e observavam a alvorada
cor de aço. A chuva parara, mas o céu estava completamente coalhado de pesadas nuvens.
A luz ia-se reflectindo na água, à medida que avançava. Os homens viam a corrente do
riacho, muito veloz, arrastando ramos negros de árvores, caixotes e tábuas. A água formava
remoinhos no terreno que os vagões ocupavam. Do dique, nada mais restava. No terreno
plano deixava de haver corrente. As margens do riacho estavam marcadas com tiras de
espuma amarela. O pai debruçou-se e colocou uma varita sobre a prancha, logo acima da
superfície da enchente. Os três homens viram a água subir, levantá-la suavemente e levá-la
consigo. O pai colocou outra vara uma polegada acima do nível da água, sobre a prancha e
ficou em observação.
- Acha que a água entrará no vagão? - perguntou Al.
- Não faço ideia. Ainda vem lá água como o diabo, das montanhas. Pode ser também
que venha mais chuva.
- Estive a pensar nisto tudo. Se a água entrar, não deixa nada enxuto - disse Al.
- Com certeza.
- A mim parece-me que, no vagão, não subirá acima de três ou quatro polegadas.
Primeiro, inundará a estrada, espalhando-se por lá.
- Como é que tu sabes isso? - perguntou o pai.
- Passei uma vista de olhos ali, atrás do vagão. - Fez um gesto com a mão, indicando
a altura a que achava que a água iria subir. - Só sobe até aqui, mais ou menos.
- Muito bem - disse o pai.- Mas que é que tem isso? Nessa altura, já aqui não
estaremos.
- Estaremos, sim. Não poderemos sair daqui. O camião está aqui. Só o poderei
arranjar depois da cheia diminuir e vou levar bem uma semana a arranjá-lo.
- Sim?... Mas, então, que é que tu achas que devemos fazer?
- Acho que a gente podia arrancar as tábuas de lado do camião e fazer um andaime,
uma plataforma, ou qualquer coisa assim, alta, para pormos as coisas ali e ficarmos também
lá quando a água subir.
- E, como é que se vai cozinhar e comer?
- Bem, pelo menos, as coisas não se molham.
A claridade aumentava a pouco e pouco. Uma claridade cinzenta, metálica. A
segunda varita colocada sobre a prancha já fora arrastada pela água. O pai colocou uma
terceira um pouco mais alta.
- Está a subir bem, não há dúvida - disse. - Acho melhor a gente começar já a fazer
essa tal plataforma ou coisa que o valha
500
A mãe revolvia-se incessantemente no sono. Arregalou os olhos e gritou, com voz
aguda, em tom de advertência:
- Tom, ó Tom... Tom!
A senhora Wainwright tentou acalmá-la brandamente. Os olhos da mãe tornaram a
cerrar-se, mas ela ainda se revolvia incessantemente. A senhora Wainwright ergueu-se e
caminhou para a porta.
- Eia! - disse baixinho - vai demorar muito tempo até a gente poder sair daqui. -
Apontou para o canto onde se encontrava o caixote de maçãs. - Isto não faz aqui nada, a
não ser tristeza e desgosto. Algum de vocês não poderia levá-lo e enterrá-lo lá fora?
Os homens permaneceram em silêncio. O pai disse, por fim:
- A senhora tem razão. Isso só dá desgosto. Mas enterrar é contra a lei.
- Ora, há uma porção de coisas contra a lei e que a gente tem de fazer quando não há
outro remédio!,
- Lá isso é verdade.
- A gente tem de arrancar as tábuas do camião antes que a água suba demasiado -
disse Al.
O pai voltou-se para o tio John:
- És capaz de o enterrar, enquanto eu e o Al vamos arranjar a madeira?
O tio John respondeu com ar sombrio:
- Porque hei-de ser justamente eu que tenho de fazer isso? Porque não há-de ser um
de vocês? Palavra que me custa muito isso. - E, depois de curta pausa: - Está bem, vou.
Claro que vou. Deixem cá ver isso. - Ergueu a voz: - Vá! Deixem cá ver isso!
- Cuidado, não as acorde! - pediu a senhora Wainwright. Tapou o caixote
pudidamente com o saco.
- Tens aí uma pá, mesmo atrás de ti - disse o pai.
O tio John agarrou a pá com uma das mãos. Saiu, metendo pela água, que corria
vagarosa e lhe chegou quase à cintura antes que ele tocasse com o pé no fundo. Virou-se e
segurou o caixote debaixo do braço.
A luz pálida do alvorecer, o tio John contornou, chapinhando, a parte traseira do
vagão e passou ao lado do carro dos Joads. Galgou? o barranco escorregadio da estrada e
caminhou ao longo do terreno do acampamento, até chegar a um sítio, onde a água,
agitada, corria junto da estrada bordada de salgueiros. Colocou a pá no chão, e, pondo o
caixote à sua frente, atravessou a moita de salgueiros e chegou à margem do riacho
caudaloso. Quedou-se algum tempo a olhar as águas redemoinhantes, que deixavam? após
si flocos de espuma amarela agarrados aos troncos dos salgueiros. Apertava o caixote
501
contra o peito. Debruçou-se e deixou-o cair no riacho, impelindo-o com a mão. E disse
com violência:
- Vai, vai, rio abaixo e conta ao mundo. Vai descendo, pára na estrada, apodrece e
conta ao inundo o que aconteceu. E a única maneira que tens de contar as coisas. Nem sei
se tu és menino ou menina, nem quero saber. Vai descendo até à estrada. Talvez então o
mundo fique sabendo.
Guiou o caixote com mão leve na corrente, acabando por largá-lo. Afundou-se um
pouco na água; atravessou-se de lado, redemoinhou e voltou-se lentamente. O pano que o
envolvia soltou-se; ficou a boiar um instante e depois desapareceu, por detrás das moitas e
não tardou a desaparecer, rapidamente, arrastado pela força da corrente.
O tio John apanhou a pá e regressou à pressa ao vagão. Chapinhando no lodaçal,
dirigiu-se ao camião, junto do qual o pai e Al estavam atarefados, arrancando-lhe as
compridas pranchas laterais. O pai lançou-lhe um olhar:
- Então, já fizeste tudo?
- Já, sim.
- Bom, então ouve - disse o pai. - Se tu quisesses ajudar o Al um bocadinho, eu ia ao
armazém comprar alguma coisa para a gente comer.
- Compre toucinho, pai - pediu Al. - Preciso de comer um bocado de carne.
- Vou ver - disse o pai.
Saltou do camião e o tio John tomou o seu lugar. Quando eles metiam as tábuas no
vagão, a mãe acordou e sentou-se no colchão.
- Que é que vocês estão a fazer?
- Estamos a fazer um estrado para proteger a gente da água.
- Para quê? - inquiriu a mãe. - Aqui dentro está tudo bem, está tudo seco.
- Está, mas não será por muito tempo. A água está a subir.
A mãe ergueu-se com dificuldade e foi até à porta.
- A gente tem de se ir embora daqui.
- Não se pode - disse Al. - Ternos aqui todas. as nossas coisas. O camião também.
Tudo o que nos pertence está aqui.
- Onde está o pai?
- Foi comprar de comer.
A mãe ficou a olhar a água. A distância que a separava da porta do vagão não passava
de umas seis polegadas. Voltou para o colchão e olhou para Rosa de Sharon. A rapariga
estava igualmente a fitá-la.
- Como te sentes? - perguntou a mãe.
502
- Cansada, muito cansada...
- Precisas de comer alguma coisa.
- Não tenho fome.
A senhora Wainwright aproximou-se da mãe.
- Parece que ela está bem. Aguentou-se que nem uma heroína. Os olhos de Rosa de
Sharon fixaram-se, interrogadores, no rosto da mãe. Esta procurou evitar a resposta. A
senhora Wainwright foi para junto do fogão.
- Mãe!
- Que é?
- Correu... correu tudo bem?
A mãe desistiu da tentativa. Ajoelhou-se junto do colchão.
- Tu terás outros filhos - disse. - Fez-se tudo o que se pôde. Rosa de Sharon fez um
esforço para sentar-se.
- Mãe.
- Não tivemos culpa...
A rapariga deitou-se de novo, cobrindo os olhos com os braços. Ruthie aproximouse
e pôs-se a olhar, cheia de espanto.
- Ela está doente, mãe? Vai morrer?
- Não, que ideia! Daqui a pouco está fina. Boa de todo.
O pai regressava com uns poucos de embrulhos.
- Como vai ela?
- Bem - disse a mãe. - Daqui a pouco está fina.
Ruthie foi contar a Winfield:
- Ela não morre. É o que diz a mãe.
E Winfield, palitando os dentes com uma lascazita de madeira, à maneira de um
homem, disse:
- Isso logo eu vi desde o princípio.
- Como é que tu sabias?
- Espera lá que já te vou dizer... - retrucou Winfield, cuspindo um pedacito de
madeira.
A mãe avivou o lume com os restos da lenha, fritou o toucinho e preparou um
molho. O pai comprara um pão no armazém. A mãe franziu a testa quando viu o pão.
- Temos dinheiro para estas despesas?
- Não - disse o pai - mas estamos todos com fome.
- E, por isso, compraste pão? - continuou a mãe, em tom de censura.
503
- Temos uma fome dos diabos! Trabalhámos toda a santa noite.
A mãe suspirou.
- Bem, o que é que se há-de fazer?
Enquanto comiam, a água subia cada vez mais. Al engoliu a comida e depois, o pai e
ele puseram-se a construir o estrado. Cinco pés de largura, seis pés de comprimento e
quatro de altura, acima do piso do vagão. A água já chegava ao limiar da porta. Pareceu
hesitar um pouco, mas, depois, foi entrando e inundou lentamente o soalho. A chuva lá
fora recomeçara. Agora chovia como anteriormente, martelando em sons cavos rio tecto.
- Vamos levantar depressa os colchões. E os cobertores também, para se não
molharem - alvitrou Al.
Empilharam tudo no estrado e a água espraiava-se no piso do vagão. O pai, a mãe, Al
e o tio John, cada um na sua extremidade, levantaram o colchão em que jazia Rosa de
Sharon e colocaram-no no cimo da pilha.
Ela protestava:
- Mas eu posso andar. já estou boa.
A água continuava a subir no piso do vagão, constituindo, uma fina camada. Rosa de
Sharon cochichou qualquer coisa ao ouvido da mãe e esta meteu a mão debaixo do
cobertor. Apalpou os seios da rapariga e fez um gesto de assentimento.
- Na outra extremidade do vagão, os Wainwright também martelavam, construindo
um estrado. A chuva aumentou de intensidade e depois cessou.
A mãe baixou o olhar. Uma camada de cerca de meia polegada de altura cobria já o
pavimento
- Ruthie, Winfield, subam para aqui depressa! - gritou a mãe com força. - Vocês ainda
apanham um resfriamento. - Auxiliou-os a subir para o estrado. Sentaram-se acanhados, ao
lado de Rosa de Sharon. A mãe exclamou subitamente:
- A gente tem de se ir embora daqui!?
- Agora não pode ser - declarou o pai.- O Al já disse. Tudo o que possuímos está
aqui. Vamos desmontar a porta do vagão e fazer outro estrado para a gente se sentar.
A família comprimia-se no estrado, silenciosa e aborrecida. A água atingira seis
polegadas no chão do veículo, quando a cheia se espalhou pelo talude e se espraiou do
outro lado, por todo o campo de algodão. Durante aquele dia e aquela noite, os homens
dormiram ensopados, ao lado uns dos outros, no vagão. E a mãe mantinha-se junto de
Rosa de Sharon. De vez em quando, segredava-lhe qualquer coisa; outras vezes, quedava-se
504
imóvel, de rosto pensativo. Guardou preciosamente o resto do pão debaixo do cobertor. A
chuva, agora, caía com intermitências - pequenos aguaceiros, seguidos de períodos mais
calmos. Na manhã do segundo dia, o pai foi a patinhar pelo acampamento fora e voltou
com dez batatas na algibeira. A mãe observava-o sombriamente, enquanto ele rachava uma
parte do interior do carro, fazia lume e deitava água numa panela. A família comeu as
batatas cozidas e fumegantes com os dedos. E, quando a comida se acabou de todo,
puseram-se a olhar para a água acinzentada, e só noite alta conseguiram adormecer.
Ao chegar a madrugada, acordaram nervosos. Rosa de Sharon falava baixinho com a
mãe.
A mãe sacudiu a cabeça.
- Sim – disse - é a altura. - E dirigiu-se à porta do vagão, onde estavam os homens. -
A gente tem de se ir embora daqui! - disse com violência. - Temos de procurar um sítio
mais alto. Quer vocês venham, quer não, eu levo daqui a Rosasharn e as crianças.
- Mas é impossível - contrapôs o pai com voz débil.
- Está bem. Faz-me então o favor de levar a Rosasharn ao colo até à estrada e depois,
se quiseres, voltas. Agora não chove. Vamo-nos embora.
- Bem, vamos então - disse o pai.
- Mãe, eu não vou - contrariou Al.
- Porque não?
- Porque... porque a Aggie e eu...
A mãe sorriu.
- É natural - disse ela - é natural, filho. Tu ficas então. Toma conta das nossas coisas.
Quando a água baixar, a gente volta. Bom, vamos depressa, antes que comece de novo a
chover - disse, dirigindo-se ao pai. - Vamos, Rosasharn. Vamos para um lugar seco.
- Eu já posso andar.
- Na estrada, talvez já possas andar um bocadinho. Abaixa-te, pai.
O pai entrou na água e ficou à espera. A mãe ajudou Rosasharn a descer do estrado e
auxiliou-a a caminhar pelo vagão. O pai levantou-a nos braços, erguendo-a o mais alto
possível, e foi andando cuidadosamente na água funda, rodeando o vagão, até à estrada.
Ali, pô-la de pé e ficou a segurá-la. O tio John fez o mesmo, levando Ruthie. A mãe entrou
na água e, por um instante, o vestido flutuou-lhe em torno do corpo.
- Winfield, senta-te no meu ombro. Al... quando a água baixar, a gente volta. Al... -
fez uma pausa. - Se o Tom vier, diz-lhe que a gente volta, ouviste? Diz-lhe também que
tome cuidado. Winfield! Senta-te no meu ombro, anda! Assim. E não mexas com os pés.
505
Foi-se arrastando pela água fora; esta subia-lhe até ao peito. No barranco da estrada,
os que a aguardavam, ajudaram-na a subir e apearam Winfield do ombro materno.
Quedaram-se na estrada, de olhos pregados na cheia, no grupo de vagões pintados de
vermelho e nos camiões e carros envoltos pelas águas, que ondulavam suavemente. A
chuva recomeçara a cair.
- Bom, temos de andar para a frente - disse a mãe. - Rosasharn, achas que poderás
caminhar?
- Sinto-me meio tonta - respondeu a rapariga. - É como se me tivessem dado uma
sova.
O pai pôs-se a resmungar:
- Bom, agora que estamos aqui, quero ver para onde vamos.
- Não sei. Vamos, dá a mão a Rosasharn. - A mãe deu o braço direito à filha, a fim
de lhe servir de apoio e o pai segurou-lhe o outro braço. - Vamos para qualquer sítio que
esteja seco. Não há outro remédio. Há dois dias que vocês andam com essa roupa molhada.
Caminhavam vagarosamente pela estrada. Ouviam o murmúrio das águas no riacho,
à beira da estrada. Ruthie e Winfield andavam lado a lado, chapinhando na água da estrada.
O avanço fazia-se lentamente. O céu tornou-se mais negro e a chuva mais compacta. Não
havia tráfego algum na estrada.
- A gente tem de andar depressa - disse a mãe. - Se a Rosasharn continuar assim
molhada, não sei o que poderá acontecer.
- Mas tu ainda não disseste para onde vamos com tanta pressa - lembrou o pai
sarcástico.
A estrada serpeava junto ao riacho. Os olhos da mãe perscrutavam a paisagem
inundada. Ao longe, à esquerda, no flanco de uma colina de suave declive, erguia-se um
celeiro enegrecido pela humidade.
- Olhem! - disse a mãe. - Aposto que aquele celeiro está seco. Vamos para lá, até a
chuva passar.
O pai suspirou.
- Garanto que o dono do celeiro nos vai enxotar.
à margem da estrada, um pouco adiante, Ruthie descobriu uma mancha vermelha.
Correu a ver o que era. Era um gerânio selvagem, com uma flor vermelha fustigada pela
chuva. Ruthie colheu a flor. Arrancou-lhe cuidadosamente uma pétala e colocou-a no nariz.
Winfield veio a correr ver o que era.
- Dá-me uma também - pediu.
- Não, senhor. É minha. Fui eu quem a achou.
506
Colocou outra pétala na testa, um coraçãozinho, de um vermelho brilhante.
- Anda, Ruthie, dá-me uma! Dá-me! Dá-me!
Tentou agarrar a flor que ela segurava, mas não o conseguiu, e Ruthie deu-lhe uma
bofetada. Winfield ficou uns momentos surpreendido; depois, os lábios começaram a
tremer-lhe e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.
Os adultos alcançaram-nos.
- Que foi? - perguntou a mãe. - Diz já, o que é que tu fizeste?
- Ele quis tirar-me a minha flor.
Winfield soluçava.
- Eu... eu queria só uma... para colar uma folha no nariz.
- Dá-lhe uma também, Ruthie.
- Ele que procure outra. Esta é minha.
- Ruthie, dá-lhe uma imediatamente.
Ruthie percebeu a ameaça no tom da voz da mãe e mudou de táctica.
- Pois não - disse, com perfeita amabilidade. - Espera aí, que eu vou colar-te uma no
nariz.
Os adultos prosseguiram na marcha. Winfield ergueu o nariz para receber a pétala.
Ela molhou-a primeiro com a língua e pespegou-lha com brutalidade no nariz.
- Toma, filho da mãe - disse, baixinho.
Winfield apalpou a pétala com os dedos e premiu-a com força contra o nariz. Foram
correndo atrás dos mais velhos. Ruthie sentia que aquilo já não tinha graça.
- Pronto - disse - toma lá mais. Podes colar algumas na testa.
Um sibilar agudo soou do lado esquerdo da estrada.
- Depressa! - gritou a mãe.- Vem aí chuva grossa! Vamos pela cerca; é mais rápido.
Tem coragem, Rosasharn!
Quase arrastaram a rapariga pela vala da estrada e, depois, ajudaram-na a passar a
cerca. E então a tempestade caiu sobre eles. Chapinhavam na lama, galgando a pequena
elevação. O celeiro, enegrecido quase desaparecia sob a chuva, que caía, assobiando e
espadanando impelida pelas rajadas cada vez mais fortes. Os pés de Rosa de Sharon
escorregavam; agora, deixava-se arrastar pelos que a amparavam.
- Pai, se tu pudesses levá-la ao colo...
O pai debruçou-se sobre a filha e ergueu-a nos braços.
- De qualquer maneira, já estamos todos ensopados. Vamos! - disse. - Ruthie,
Winfield, corram à frente.
507
Chegaram, ofegantes, ao celeiro repassados de chuva e entraram pela parte
descoberta. Não havia porta desse lado. Algumas ferramentas agrícolas, enferrujadas,
jaziam aqui e ali: um disco, de arado, uma gadanha quebrada e uma roda de ferro. A chuva
martelava o tecto e formava uma compacta cortina à entrada.
O pai sentou Rosa de Sharon, com todas as precauções, em cima de um caixote
gorduroso.
- Santo Deus! - exclamou.
- Pode ser que haja feno aí dentro - disse a mãe. - Olha, está ali uma porta. - Deu. um
empurrão â porta, que girou nos gonzos enferrujados. - Há, sim! - gritou. - Há feno!
Entrem, vá!
Lá dentro, reinava a escuridão. Apenas uma luz fraca penetrava pelas paredes de
tábuas.
- Deita-te, Rosasharn - mandou a mãe. - Deita-te aí e descansa, ouviste? Vou ver se
consigo secar a tua roupa.
Winfield exclamou:
- Mãe! – E a chuva que fustigava o tecto do celeiro abafou a sua voz. - Mãe!
- Que é? O que é que tu queres?
- Olhe, ali naquele canto!
A mãe olhou. Havia dois vultos, que se recortavam na penumbra: um homem,
deitado de costas e um rapazito, sentado ao seu lado, de olhos arregalados, fixos nos
recém-chegados. Enquanto a mãe o fixava, o pequeno pôs-se lentamente, de pé e acercouse
dela. Tinha uma voz rouca:
- Este barracão é seu?
- Não - respondeu a mãe. - A gente entrou aqui por causa da chuva. Temos uma
pessoa doente. Vocês têm algum cobertor seco que nos emprestem? Ela tem de tirar o
vestido molhado.
O pequeno regressou ao seu canto; trouxe um cobertor sujo e estendeu-o à mãe.
- Muito obrigada - disse ela. - O que é que aquele senhor tem?
O pequeno respondeu na mesma voz rouca e monótona:
- Primeiro, esteve doente; agora, está a morrer de fome.
- O quê?!
- Está a morrer de fome. Adoeceu na colheita do algodão e há seis dias que não come
nada.
508
A mãe foi até ao canto e debruçou-se sobre o homem, a olhá-lo. Devia ter uns
cinquenta anos. Possuía um rosto barbudo e descarnado, e os olhos, muito abertos,
fixavam o nada. O rapaz veio postar-se ao lado da mãe.
- Ele é teu pai? - perguntou ela.
- É, sim. Ele dizia que não tinha fome, ou que já tinha comido. Dava-me a comida
toda. Agora, está tão fraco que nem se pode mexer.
A chuva amainara outra vez e tamborilava brandamente no tecto do celeiro. O
homem escanzelado moveu os lábios. A mãe ajoelhou-se ao lado dele e encostou o ouvido
à boca do homem, cujos lábios se tornaram a mover.
- Bem - disse a mãe. - Esteja sossegado. Tudo se arranja. É só esperar que eu tire a
roupa molhada à minha filha.
A mãe voltou para junto de Rosa de Sharon.
- Trata de te despir, anda!
Estendeu, o cobertor, fazendo dele uma cortina, para a esconder dos olhos dos
outros. E, quando Rosasharn ficou nua, a mãe enrolou-a no cobertor.
O pequeno estava agora de novo ao lado da mãe, explicando:
- Eu não sabia de nada. Ele dizia sempre que já tinha comido, ou então que não tinha
fome. A noite passada, quebrei a vidraça de uma janela e roubei um pão. Obriguei-o a
comer, mas vomitou tudo e ficou ainda mais fraco. Devia comer sopa ou tomar leite. A
senhora tem algum dinheiro para comprar leite?
A mãe respondeu suavemente:
- Chiu! Não te apoquentes. Tudo se há-de arranjar.
De repente, o pequeno deu um grito:
- Está a morrer! Está a morrer, sério! Ele vai morrer de fome. Vai, vai!
- Chiu! - fez a mãe.
Lançou um olhar ao pai e ao tio John, que estavam parados, diante do doente, sem
saber o que haviam de fazer. Olhou para Rosa de Sharon, bem enrolada no cobertor. Os
seus olhos fugiram dos da filha e tornaram a encontrá-los. E as duas mulheres liam tudo
nas respectivas almas. A respiração da rapariga tornara curta e agitada.
- Sim - disse.
A mãe sorriu.
- Eu sabia. Eu sabia que tu eras capaz de o fazer. - Olhou para as mãos apertadas
uma na outra, descansando no regaço.
Rosa de Sharon disse baixinho:
- Vocês são capazes de sair todos?
509
A chuva batia ao de leve no telhado.
A mãe inclinou-se para a filha e, com a palma da mão, afastou as madeixas revoltas
que lhe caíam para a testa e deu-lhe um beijo na fronte. A mãe ergueu-se rapidamente:
- Vamos, minha gente, vão para o alpendre das ferramentas - gritou ela. Vão-se
embora, andem!
Pô-los fora da porta. Por fim, levando o rapazito pela mão, saiu também, fechando a
porta, que chiou atrás de si.
Por um momento, Rosa de Sharon permaneceu imóvel no celeiro ressoante de
murmúrios. Depois, ergueu-se pesadamente, enrolando-se mais no cobertor. Lentamente,
dirigiu-se ao canto escuro e quedou-se a olhar o rosto devastado do desconhecido, de olhos
arregalados e cheios de temor. Então, vagarosamente, deitou-se ao lado dele. O homem
abanou debilmente a cabeça dê um lado para o outro. Rosa de Sharon afastou um dos
lados do cobertor, deixando o seio a descoberto.
- Tem de ser - disse, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça para si.- Ora
vá! Então!
Apoiou-lhe a cabeça com a mão, e os seus dedos afagaram-lhe suavemente os
cabelos. Ergueu os olhos e, deixou-os errar pelo barracão, enquanto os lábios se lhe
arqueavam num misterioso sorriso.

Fim