E naquela altura Jorge, depois de tirar os vitra ad legendum, acendeu uma sarça
ardente com a lenha que Sara tinha trazido, Jefte tinha apanhado, Isaac tinha
descarregado, José tinha cortado, e, enquanto Jacob abria o poço e Daniel se sentava
junto ao lago, os servos traziam água. Noé vinho, Agar um odre, Abraão um vitelo que
Raab atou a um poste enquanto Jesus estendia a corda e Elias lhe atava os pés: depois
Absalão prendeu-o pelos cabelos, Pedro estendeu a espada, Caim matou-o, Herodes
derramou o seu sangue, Sem deitou-lhe fora as entranhas e o esterco, Jacob pôs o
azeite, Molessadão o sal, Antíoco pô-lo ao fume, Rebeca cozinhou-o e Eva foi a primeira
a prová-lo e caiu-lhe mal, mas Adão dizia que não pensasse nisso e batia nas costas de
Severino, que aconselhava que lhe juntassem ervas aromáticas. Em seguida, Jesus partiu
o pão, distribuiu peixes, Jacob gritava porque Esaú lhe tinha comido as lentilhas todas,
Isaac devorava sozinho um cabrito no forno e Jonas uma baleia fervida, e Jesus ficou em
jejum durante quarenta dias e quarenta noites.
Entretanto, todos entravam e saíam trazendo caça escolhida de todas as formas e
cores, de que Benjamim ficava sempre com a parte maior e Maria com a parte melhor,
enquanto Marta se queixava de ter sempre que lavar a louça toda. Depois dividiram o
vitelo, que entretanto se tinha tornado enorme, e João ficou com a cabeça, Absalão a
cerviz, Aarão a língua, Sansão a mandíbula, Pedro a orelha, Holofernes a cabeça, Lia o
cú. Saul o colo, Jonas o ventre, Tobias o fel, Eva a costela, Maria o seio, Isabel a vulva,
Moisés a cauda, Lot as pernas e Ezequiel os ossos. Entretanto, Jesus devorava um burro,
São Francisco um lobo, Abel uma ovelha, Eva uma moréia, o Baptista um gafanhoto,
Faraó um polvo (naturalmente, disse pare comigo, mas porquê?), e David comia
cantáride atirando-se sobre a rapariga nigra sed formosa enquanto Sansão ferrava os
dentes no lombo de um leão e Tecla fugia bradando perseguida por uma aranha grande e
peluda.
Já estavam evidentemente todos ébrios, e havia uns que escorregavam no vinho, que
caíam nas panelas ficando só com as pernas de fora cruzadas como dois paus, e Jesus
tinha os dedos todos negros e estendia folhas de livro dizendo tomai e comei, estes são
os enigmas de Sinfósio, entre os quais o do peixe que é filho de Deus e vosso salvador. E
todos a beber, Jesus vinho de passes, Jonas ultramarino, Faraó sorrentino (porquê?),
Moisés gaditano, Isaac cretense, Aarão adriano, Zaqueu arbustino, Tecla queimado, João
albano, Abel campano, Maria signing, Raquel florentino.
Adão gorgulhava voltado pare trás e o vinho saía-lhe da costela, Noé maldizia no sono
Cam, Holofernes ressonava sem suspeita, Jonas dormia como uma pedra, Pedro vigiava
até ao canto do galo, e Jesus acordou de repente ouvindo Bernardo Gui e Bertrando do
Poggerto que resolviam queimar a rapariga; e gritou, pai, se é possível, que passe de
mim este cálice! E havia quem deitava mal, quem bebia bem, quem morria a rir e quem
ria ao morrer, quem trazia frascos e bebia pelo copo dos outros. Susana gritava que
jamais cederia o seu belo corpo branco ao despenseiro e a Salvador por um mísero
coração de boi, Pilatos girava pelo refeitório como uma alma penada pedindo água para
as mãos, e frei Dolcino, de pluma no chapéu, levava-lha, depois abria a veste
chacoteando e mostrava as pudenta vermelhas de sangue, enquanto Caim fazia pouco
dele abraçando a bela Margarida de Trento: e Dolcino punha-se a chorar e ia pousar a
cabeça no ombro de Bernardo Gui chamando-lhe papa angélico, Ubertino consolava-o
com uma árvore da vida, Miguel de Cesena com uma bolsa de ouro, as Marias aspergiamno
de ungüentos e Adão convencia-o a fincar o dente numa maçã acabada de colher.
E então abriram-se as abóbadas do Edifício e desceu do céu Roger Bacon sobre uma
máquina voadora, unico homine regente. Depois, David tocou a cítara e Salomé dançou
com os seus sete véus, e a cada véu que caía soava uma das sete trombetas e mostrava
um dos sete selos até que ficou unicamente amicta sole. Todos diziam que nunca se
tinha visto uma abadia tão alegre, e Berengário levantava a cada um a veste, homens e
mulheres, beijando-os no traseiro. E teve início uma dança, Jesus vestido de maestro,
João de guarda, Pedro de reciário, Nemrod de caçador, Judas de delator, Adão de
jardineiro, Eva de tecedeira, Caim de ladrão, Abel de pastor, Jacob de bedel, Zacarias
de sacerdote, David de red, Jubal de citarista, Tiago de pescador, Antíoco de cozinheiro,
Rebeca de aguadeiro, Molessadão de estúpido, Marta de serve, Herodes de doido furioso,
Tobias de médico, José de carpinteiro, Noé de bêbado, Isaac de camponês, Job de
homem triste, Daniel de juiz, Tamar de prostituta, Maria de patroa, e ordenava aos
servos que trouxessem mais vinho porque o insensato do seu filho não queria transformar
a água.
Foi então que o Abade perdeu as estribeiras porque, dizia, ele tinha organizado uma
festa tão bonita e ninguém lhe doava nada: e todos competiram então para lhe levarem
presentes e tesouros, um touro, uma ovelha, um leão, um camelo, um veado, um vitelo,
uma jumenta, um carro solar, o queixo de Santo Eobano, a cauda de Santa Morimonda, o
útero de Santa Arundalina, a nuca de Santa Burgosina, cinzelada como uma taça com a
idade de doze anos, e uma cópia do Pentagonum Salomonis. Mas o Abade pôs-se a gritar
que assim fazendo procuravam distrair a sua atenção, e de fato saqueavam-lhe a cripta
do tesouro, onde agora nos encontrávamos todos, e que lhe tinham tirado um livro
preciosíssimo que falava dos escorpiões e das sete trombetas, e chamava os archeiros do
rei de França para que revistassem todos os suspeitos. E foram encontrados, para
vergonha de todos, um tecido multicolor sobre Agar, um selo de ouro sobre Raquel, um
espelho de prata no seio de Tecla, um sifão para beber debaixo do braço de Benjamim,
uma coberta de seda entre as vestes de Judite, uma lança na mão de Longino e a mulher
de outro nos braços de Abimeleque. Mas o pior aconteceu quando encontraram um galo
negro à rapariga, negra e belíssima como um gato da mesma cor, e lhe chamaram bruxa
e pseudo-apóstolo, de modo que todos se lançaram sobre ela para a punirem. O Baptista
decapitou-a, Abel esganou-a, Adão expulsou-a, Nabucodonosor escreveu-lhe com uma
mão em brasa signos zodiacais no seio, Elias raptou-a num carro de fogo, Noé mergulhoua
na água, Lot transformou-a numa estátua de sal, Susana acusou-a de luxúria, José
traiu-a com outra, Ananias meteu-a numa fornalha, Sansão acorrentou-a, Paulo flageloua,
Pedro crucificou-a de cabeça para baixo, Estevão lapidou-a, Lourenço queimou-a na
grelha, Bartolomeu esfolou-a, Judas denunciou-a, o despenseiro queimou-a, e Pedro
negava tudo. Depois, todos se lançaram sobre aquele corpo cobrindo-o de excrementos,
pisando-lhe a cara, urinando-lhe na cabeça, vomitando-lhe no seio, arrancando-lhe os
cabelos, golpeando-lhe as nádegas com fachos ardentes. O corpo da rapariga, tão belo e
tão doce em tempos, estava agora a descarnar-se, subdividindo-se em fragmentos que se
dispersavam pelas custódias e pelos relicários de cristal e de ouro da cripta. Ou melhor,
não era o corpo da rapariga que ia povoar a cripta, eram os fragmentos da cripta que
redemoinhando pouco a pouco se compunham para formar o corpo da rapariga, agora
coisa mineral, e depois de novo se decompunham dispersando-se, poeira sagrada de
segmentos acumulados por uma insensata impiedade. Era agora como se um único corpo
imenso se tivesse ao longo dos milênios dissolvido nas suas partes e estas partes se
tivessem disposto para ocupar toda a cripta, mais resplandecente mas não
dessemelhante do ossário dos monges defuntos, e como se a forma substancial do próprio
corpo do homem, obra-prima da criação, se tivesse fragmentado em formas acidentais
múltiplas e separadas, tornando-se assim imagem do seu contrário, forma já não ideal
mas terrena, de pó e estilhaços nauseabundos, apenas capazes de significar morte e
destruição...
Já não encontrava agora os personagens do banquete, nem os presentes que tinham
trazido, era como se todos os hóspedes do simpósio estivessem agora na cripta, cada um
mumificado num detrito próprio, cada um diáfana sinédoque de si mesmo, Raquel como
um osso, Daniel como um dente, Sansão como um maxilar, Jesus como um farrapo de
veste purpurina. Como se no fim do banquete, tendo-se a festa transformado no
massacre da rapariga, este se tivesse tornado o massacre universal e aqui visse o seu
resultado final, os corpos (que digo?, a totalidade do corpo terrestre e sublunar daqueles
comensais famélicos e sequiosos) transformados num único corpo morto, dilacerado e
atormentado como o corpo de Dolcino depois do suplício, transformado num imundo e
resplandecente tesouro, estendido em toda a sua superfície como a pele de um animal
esfolado e dependurado que porém contivesse ainda petrificados, com o couro, as
vísceras e os órgãos todos, e os próprios traços do rosto. A pele com cada uma das suas
pregas, rugas e cicatrizes, com os seus planos aveludados, com a floresta dos pêlos, da
cútis, do peito, e das pudenta, convertidas num suntuoso damasco, e os seios, as unhas,
as formações córneas sob o calcanhar, os filamentos das pestanas, a matéria aquosa dos
olhos, a polpa dos lábios, a frágil espinha dorsal, a arquitetura dos ossos, tudo reduzido a
farinha arenosa, sem que nada porém tivesse perdido a própria figura e disposição
recíproca, as pernas esvaziadas e frouxas como um escarpim, a sua carne disposta ao
lado como um casulo com todos os arabescos vermelhos das veias, o amontoado
cinzelado das vísceras, o intenso e mucoso rubi do coração, a teoria nacarada dos dentes
todos iguais dispostos em colar, com a língua como um brinco rosa e azul, os dedos
alinhados como círios, o selo do umbigo a reatar os fios deslocados do tapete do
ventre... De toda a parte, na cripta, agora escarnecia de mim, sussurrava-me,
convidava-me à morte este macrocorpo subdividido em custódias e relicários e todavia
reconstruído na sua vasta e irracional totalidade, e era o mesmo corpo que na ceia comia
e cabriolava obsceno e que me aparecia no entanto já fixado na intangibilidade da sua
ruína surda e cega. E Ubertino, agarrando-me pelo braço até me enterrar as unhas na
carne, sussurrava-me: «Vês, é a mesma coisa, aquele que antes triunfava na sua loucura
e que se deleitava no seu jogo agora está aqui, punido e premiado, liberto da sedução
das paixões, imobilizado pela eternidade, entregue ao gelo eterno que o conserve e que
o purifique, subtraído à corrupção através do triunfo da corrupção, porque já nada
poderá reduzir a pó aquilo que já é pó e substancia mineral, mors est quies viatoris, finis
est omnis laboris...»
Mas de repente entrou na cripta Salvador, flamejante como um feio diabo, e gritou:
«Estúpido! Não vês que esta é a grande besta liotarda do livro de Job? De que tens medo,
meu patrãozinho? Aqui tens o pastelzinho de queijo!» E repentinamente a cripta
iluminou-se de clarões avermelhados e era de novo a cozinha, mas, mais que uma
cozinha, era o interior de um grande ventre, mucoso e viscoso, e ao centro estava um
animal negro como um corvo e com mil mãos, acorrentado a uma grande grelha, que
alongava os seus membros para prender todos aqueles que se encontravam em seu redor,
e como o vilão que quando tem sede espreme o cacho de uvas assim aquele animal
enorme apertava aqueles que tinha capturado, de tal modo que os quebrava todos com
as mãos, a uns as pernas, a outros a cabeça, fazendo depois com eles uma grande
barrigada, arrotando um fogo que parecia mais fedorento que o enxofre. Mas, mistério
altamente admirável, aquela cena já não me incutia pavor, e surpreendia-me a olhar
com familiaridade para aquele «bom diabo» (assim pensei) que ao fim e ao cabo não era
outro senão Salvador, porque, agora, do corpo humano mortal, dos seus padecimentos e
da sua corrupção sabia tudo e não temia mais nada. De fato, à luz daquela chama, que
agora parecia gentil e acolhedora, revi todos os hóspedes da ceia, agora restituídos à sua
figura, que cantavam afirmando que de novo tudo recomeçava, e entre eles a rapariga,
íntegra e belíssima, que me dizia: «Não é nada, não é nada, verás que depois volto mais
bela que antes, deixa que vá só um momento arder na fogueira, depois voltaremos a vernos
aqui dentro!» E mostrava-me, Deus me perdoe, a sua vulva, na qual entrei, e
encontrei-me numa caverna belíssima, que parecia o vale ameno da idade de ouro,
orvalhado de águas e frutos e árvores sobre as quais cresciam os pasteizinhos de queijo.
E todos estavam agradecendo ao Abade pela bela festa, e manifestavam-lhe o seu afeto
e bom humor dando-lhe empurrões, pontapés, arrancando-lhe a veste, atirando-o por
terra, dando-lhe vergastadas na verga, enquanto ele ria e pedia que não lhe fizessem
mais cócegas. E a cavalo em cavalos que lançavam nuvens de enxofre pelas narinas
entraram os frades de vida pobre, que traziam à cinta bolsas cheias de ouro com as quais
convertiam os lobos em cordeiros e os cordeiros em lobos, e coroavam-nos imperadores
com o beneplácito da assembléia do povo, que cantava hinos à infinita onipotência de
Deus. « Ut cachinnis dissolvatur, torquea-tur rictibus!», Gritava Jesus agitando a coroa
de espinhos. Entrou o papa João imprecando contra a confusão e dizendo: «Por este
andar não sei onde iremos parar!» Mas todos se riam dele e, com o Abade à cabeça,
saíram com os porcos à procura de trufas na floresta. Eu estava para os seguir quando vi
num canto Guilherme, que saia do labirinto e tinha na mão o magnete, que o arrastava
velozmente para setentrião. «Não me deixeis, mestre!», gritei. «Também eu quero ver o
que há no finis Africae!»
«Já viste!», respondeu-me Guilherme já longe. E acordei quando terminavam na igreja
as últimas palavras do canto fúnebre:
Lacrimosa dies illa qua resurge! ex favilla iudicandus homo reus: huic ergo parce deus!
Pie lesu domine dona eis réquiem.
Sinal que a minha visão, se não tinha durado, fulminante como todas as visões, mais
do que dura um amém, tinha durado pouco menos que um Dies irae.
SEXTO DIA
DEPOIS DE TERÇA
Onde Guilherme explica a Adso o seu sonho.
Saí estonteado pelo portal principal e encontrei-me diante de um a pequena multidão.
Eram os franciscanos que partiam, e Guilherme tinha descido para os saudar.
Juntei-me ao adeus, aos abraços fraternos. Depois perguntei a Guilherme quando
partiriam os outros, com os prisioneiros. Disse-me que já tinham partido meia hora
antes, enquanto nós estávamos no tesouro, talvez, pensei, enquanto eu já estava
sonhando.
Por um momento fiquei consternado, depois refiz-me. Antes assim. Não teria podido
suportar a visão dos condenados (digo o pobre desgraçado despenseiro, Salvador... e
decerto digo também a rapariga), arrastados para longe e para sempre. E, depois, estava
ainda tão perturbado pelo meu sonho que os meus próprios sentimentos se tinham como
que enregelado.
Enquanto a caravana dos menoritas se encaminhava para a porta de saída da cerca,
Guilherme e eu ficamos diante da igreja, ambos melancólicos, embora por razões
diversas. Depois decidi contar o sonho ao meu mestre. Por mais que a visão tivesse sido
multiforme e ilógica, recordava-a com extraordinária lucidez, imagem por imagem, gesto
por gesto, palavra por palavra. E assim a contei, sem transcurar nada, porque sabia que
os sonhos são muitas vezes mensagens misteriosas em que as pessoas doutas podem ler
claríssimas profecias.
Guilherme escutou-me em silêncio, depois perguntou-me:
- Tu sabes o que sonhaste?
- Aquilo que vos disse... - respondi desconcertado.
- Decerto, eu compreendi. Mas sabes que, em grande parte, aquilo que tu me contaste
já foi escrito? Tu inseriste pessoas e acontecimentos destes dias num quadro que já
conhecias, porque a trama do
sonho já a leste em qualquer parte, ou contaram-ta em criança, na escola, no
convento. E a Coena Cypriani.
Fiquei perplexo por um instante. Depois recordei-me. Era verdade! Talvez me tivesse
esquecido do título, mas que monge adulto ou jovem monge irrequieto não sorriu ou riu
sobre as várias visões, em prosa ou em rima, desta história que pertence à tradição do
rito pascal e dos ioca monachorum? Proibida ou vituperada pelos mais austeros de entre
os mestres dos noviços, não há todavia convento em que os monges não a tenham
sussurrado em voz baixa, diversamente resumida e arranjada, enquanto alguns piamente
a transcreviam, afirmando que sob o véu da jocosidade ela escondia secretos
ensinamentos morais; e outros encorajavam a sua difusão, porque, diziam, através do
jogo os jovens podiam mais facilmente aprender de cor os episódios da história sagrada.
Uma versão em verso tinha sido escrita para o pontífice João VIII, com a dedicatória: «
Ludere me libuit, ludentem, Papa Johannes, accipe. Ridere, si placel, ipse potes.» E
dizia-se que o próprio Carlos, o Calvo, tinha posto em cena, a modo de jocosíssimo
mistério sagrado, uma versão rimada para divertir a cela os seus dignitários:
Ridens cadit Gaudericus Zacharias admiratur, supinus in lectulum docet Anastasius...
E quantas repreensões tinha apanhado da parte dos mestres, quando eu e os meus
companheiros recitávamos passagens dela. Recordava-me de um velho monge de Melk
que dizia que um homem virtuoso como Cipriano não tinha podido escrever uma coisa
tão indecente, uma semelhante e sacrílega paródia das escrituras, mais digna de um
infiel e de um bufão que de um santo mártir... Há anos que tinha esquecido aqueles
jogos infantis. Como é que naquele dia a Coena tinha voltado a aparecer tão viva no meu
sonho? Sempre tinha pensado que os sonhos eram mensagens divinas, ou que no máximo
eram absurdos balbuciamentos da memória adormecida à volta de coisas acontecidas
durante o dia. Apercebia-me agora que também se podem sonhar livros, e que, portanto,
se podem sonhar sonhos.
- Queria ser Artemidoro para interpretar retamente o teu sonho - disse Guilherme. -
Mas parece-me que mesmo sem a sapiência de Artemidoro é fácil compreender aquilo
que sucedeu. Tu viveste nestes dias, meu pobre rapaz, uma série de acontecimentos em
que qualquer reta regra parece ter-se dissipado. E esta manhã reaflorou à tua mente
adormecida a recordação de uma espécie de comédia em que, embora talvez com outros
intentos, o mundo se punha de cabeça para baixo. Aí inseriste as tuas recordações mais
recentes, as tuas ânsias, os teus temores. Partiste dos marginalia de Adelmo para reviver
um grande carnaval em que tudo parece andar às avessas, e todavia, como na Coena,
cada um faz aquilo que verdadeiramente faz na vida. E no fim perguntaste-te, no sonho,
qual é o mundo errado, e que quer dizer prosseguir de cabeça para baixo. O teu sonho já
não sabia onde era o alto e onde o baixo, onde a morte e onde a vida. O teu sonho
duvidou dos ensinamentos que recebeste.
- Eu não - disse virtuosamente -, mas sim o meu sonho. Mas então os sonhos não são
mensagens divinas, são divagações diabólicas e não contêm nenhuma verdade!
- Não sei, Adso - disse Guilherme. - Temos já tantas verdades nas mãos que no dia em
que chegasse também um a pretender extrair uma verdade dos nossos sonhos então
estariam deveras próximos os tempos do Anticristo. E, todavia, quanto mais penso no teu
sonho mais o acho revelador. Talvez não para ti, mas para mim. Desculpa-me se me
apodero dos teus sonhos para desenvolver as minhas hipóteses, eu sei, é uma coisa vil,
não se deveria fazer... Mas creio que a tua alma adormecida compreendeu mais coisas
do que compreendi eu em seis dias, e acordado...
- Deveras?
- Deveras. Ou talvez não. Acho o teu sonho revelador porque coincide com uma das
minhas hipóteses. Mas deste-me uma grande ajuda. Obrigado.
- Mas que havia no meu sonho que vos interessa tanto? Era sem sentido, como todos os
sonhos!
- Tinha outro sentido, como todos os sonhos, e as visões. Deve ler-se alegoricamente
ou anagogicamente...
- Como nas escrituras?
- Um sonho é uma escritura, e muitas escrituras não são mais que sonhos.
SEXTO DIA
SEXTA
Onde se reconstrói a história dos bibliotecários e se tem algumas notícias mais sobre o
livro misterioso.
Guilherme quis voltar a subir ao scriptorium, de onde tinha acabado de descer. Pediu
a Bêncio para consultar o catálogo, e folheou-o rapidamente.
- Deve estar por estes lados - dizia -, tinha-o visto precisamente há uma hora... -
Deteve-se sobre uma página. - Cá está – disse -, lê este título.
Sob uma única referência (finis Africae!) estava uma série de quatro títulos, sinal que
se tratava de um único volume que continha vários textos. Li:
I. ar. de dictis cujusdam stulti
II. syr. libellus alchemicus aegypt
III. Expositio Magistri Alcofribae de cena beati Cypriani Cartaginensis Episcopi.
IV. Liber acephalus de stupris virginum et meretricum amoribus
- De que coisa se trata? - perguntei.
- E o nosso livro - sussurrou-me Guilherme. - Eis porque o teu sonho me sugeriu alguma
coisa. Agora tenho a certeza que é este. E de fato... - folheava rapidamente as páginas
imediatamente precedentes e as seguintes - eis de fato os livros em que pensava, todos
juntos. Mas não é isto o que
queria verificar. Escuta. Tens a tua tabuinha? Bem, devemos fazer um cálculo, e
procura recordar-te bem quer do que nos disse Alinardo no outro dia quer do que
ouvimos esta manhã a Nicolau. Ora, Nicolau disse-nos que ele chegou aqui há cerca de
trinta anos e Abbone já tinha sido nomeado abade. Antes era abade Paulo de Rimini.
Certo? Digamos que esta sucessão tem lugar à volta de mil duzentos e noventa, mais ano,
menos ano, não importa. Depois Nicolau disse-nos que, quando ele chegou, Roberto de
Bobbio já era bibliotecário. Está bem? Morre depois, e o lugar é dado a Malaquias,
digamos no início deste século. Escreve. Há porém um período que precede a vinda de
Nicolau em que Paulo de Rimini é bibliotecário. Desde quando o era? Não no-lo disseram,
poderíamos examinar os registros da abadia, mas imagino que estão na posse do Abade,
e de momento não queria pedir-lho. Ponhamos a hipótese que Paulo foi eleito
bibliotecário há sessenta anos, escreve. Porque é que Alinardo se queixa do fato que, há
cerca de cinqüenta anos, lhe devia tocar a ele o lugar de bibliotecário e, ao contrário,
foi dado a outro? Aludia a Paulo de Rimini?
- Ou a Roberto de Bobbio! - disse eu.
- Pareceria. Mas observa agora este catálogo. Sabes que os títulos são registrados,
disse-no-lo Malaquias no primeiro dia. pela ordem das aquisições. E quem os escreve
neste catálogo? O bibliotecário. Portanto seguindo a mudança de caligrafia nestas
páginas, podemos estabelecer a sucessão dos bibliotecários. Agora observemos o
catálogo pelo fim, a última caligrafia é a de Malaquias, muito gótica, como vês. E enche
poucas páginas. A abadia não adquiriu muitos livros nestes últimos trinta anos. Depois
começa uma série de páginas escritas com uma caligrafia trêmula, leio aí claramente a
assinatura de Roberto de Bobbio, doente. Também aqui são poucas páginas, Roberto
permanece no cargo provavelmente não muito. E eis o que encontramos agora: páginas e
páginas de outra caligrafia, direita e segura, uma série de aquisições (entre as quais o
grupo de livros que examinava há pouco) verdadeiramente impressionante. Quanto deve
ter trabalhado Paulo de Rimini! Demasiado, se pensares que Nicolau nos disse que se
tornou abade em idade muito jovem. Mas suponhamos que em poucos anos este leitor
voraz enriqueceu a abadia com tantos livros... Não nos foi dito que lhe chamavam Abbas
agraphicus por causa daquele estranho defeito, ou doença, devido ao qual não conseguia
escrever? E então quem escrevia aqui? Eu diria o seu ajudante-bibliotecário. Mas se, por
acaso, este ajudante-bibliotecário tivesse sido depois nomeado bibliotecário, eis que
teria continuado a escrever ele, e compreenderíamos porque há aqui tantas páginas
redigidas com a mesma caligrafia. Então teríamos, entre Paulo e Roberto, outro
bibliotecário, eleito há cerca de cinqüenta anos, que é o misterioso concorrente de
Alinardo, o qual esperava suceder ele, mais velho, a Paulo. Depois este desaparece e de
qualquer modo, contra as expectativas de Alinardo e de outros, para o seu lugar é eleito
Malaquias.
- Mas porque estais tão seguro que esta é a seqüência exata? Mesmo admitindo que
esta seja a caligrafia do bibliotecário sem nome, porque é que, ao contrário, não
poderiam ser de Paulo os títulos das páginas ainda precedentes?
- Porque entre essas aquisições estão registradas todas as bulas e as decretais, que
têm uma data precisa. Quero dizer, se tu encontras aqui, como encontras, a Firma
cautela de Bonifácio sétimo, datada de mil duzentos e noventa e seis, sabes que este
texto não entrou antes desse ano, e podes pensar que não terá chegado muito depois.
Com isto, eu tenho como que marcos miliários dispostos ao longo dos anos, pelo que, se
concedo que Paulo de Rimini se torna bibliotecário em mil duzentos e sessenta e cinco e
abade em mil duzentos e setenta e cinco, e encontro depois que a sua caligrafia, ou a de
qualquer outro que não é Roberto de Bobbio, dura de mil duzentos e sessenta e cinco a
mil duzentos e oitenta e cinco, descubro uma diferença de dez anos.
O meu mestre era verdadeiramente muito perspicaz.
- Mas que conclusões tirais dessa descoberta? - perguntei então.
- Nenhuma - respondeu-me -, apenas premissas.
Depois levantou-se e foi falar com Bêncio. Este estava corajosamente no seu posto,
mas com um ar muito pouco seguro. Estava ainda à sua velha mesa e não tinha ousado
ocupar a de Malaquias junto do catálogo. Guilherme abordou-o com uma certa distância.
Não esquecíamos a desagradável cena da noite anterior.
- Embora te tenhas tornado tão potente, senhor bibliotecário, quererás dizer-me uma
coisa, espero. Naquela manhã em que Adelmo e os outros discutiram aqui sobre os
enigmas argutos, e Berengário fez a primeira referência ao finis Africae, alguém nomeou
a Coena Cypriani?
- Sim - disse Bêncio -, não to tinha dito? Antes de se falar dos enigmas de Sinfósio, foi
precisamente Venancio que se referiu à Coena, e Malaquias irritou-se, dizendo que era
uma obra ignóbil e recordando que o Abade tinha proibido a todos a sua leitura...
- O Abade, hem? - disse Guilherme. - Muito interessante. Obrigado, Bêncio.
- Esperai - disse Bêncio -, quero falar-vos.
Fez-nos sinal para o seguirmos para fora do scriptorium, para a escada que descia às
cozinhas, de modo que os outros não o ouvissem. Tremiam-lhe os lábios.
- Tenho medo, Guilherme - disse. - Também mataram Malaquias. Agora eu sei
demasiadas coisas. E depois sou malvisto pelo grupo dos italianos... Não querem mais um
bibliotecário estrangeiro... Eu penso que os outros foram eliminados precisamente por
isso... Eu nunca vos falei do ódio de Alinardo por Malaquias, dos seus rancores...
- Quem é que lhe tirou o lugar, há anos?
- Isso não sei, ele fala sempre disso de modo vago, e depois é uma história remota.
Devem estar todos mortos. Mas o grupo dos italianos à roda de Alinardo faIa muitas
vezes... falava muitas vezes de Malaquias como de um homem de palha, posto aqui por
qualquer outro com a cumplicidade do Abade... Eu, sem dar conta disso... entrei no jogo
oposto de duas facções... Só o compreendi esta manhã... A Itália é uma terra de
conjuras, envenenam os papas, imaginemos um pobre rapaz como eu... Ontem não o
tinha compreendido, julgava que tudo dizia respeito àquele livro, mas agora já não
tenho a certeza, aquele foi o pretexto: vistes que o livro foi encontrado e Malaquias
morreu na mesma... Eu devo... quero... queria fugir. Que me aconselhais?
- Que estejas calmo. Agora queres conselhos, não é verdade? Mas ontem à noite
parecias o dono do mundo. Tolo, se me tivesses ajudado ontem teríamos impedido este
último delito. Foste tu que deste a Malaquias o livro que o levou à morte. Mas diz-me ao
menos uma coisa. Tu aquele livro tiveste-o nas mãos, tocaste-lhe, leste-o? E porque é
que então não estás morto?
- Não sei. Juro, não lhe toquei, ou melhor, toquei-lhe para pegar nele no laboratório,
sem o abrir, escondi-o sob a túnica e fui metê-lo na cela debaixo do enxergão. Sabia que
Malaquias me vigiava e voltei imediatamente para o scriptorium. E depois, quando
Malaquias me ofereceu que me tornasse seu ajudante, conduzi-o à minha cela e
entreguei-lhe o livro. É tudo.
- Não me digas que nem sequer o abriste.
- Sim, abri-o, antes de o esconder, para ter a certeza de que era verdadeiramente
aquele que também vós procuráveis. Começava com um manuscrito árabe, depois um
que creio em sírio, depois havia um texto latino e por fim um em grego...
Recordei-me das siglas que tínhamos visto no catálogo. Os primeiros dois títulos eram
indicados como ar. e syr. Era o livro! Mas Guilherme insistia:
- Portanto tocaste-lhe e não morreste. Então não se morre ao tocá-lo. E do texto
grego que me sabes dizer? Olhaste para ele?
- Muito pouco, o bastante para compreender que era sem título, começava como se
lhe faltasse uma parte...
- Liber acephalus... - murmurou Guilherme.
- ...procurei ler a primeira página, mas na verdade eu conheço o grego muito mal,
teria tido necessidade de empregar mais tempo. E por fim intrigou-me um outro
pormenor, precisamente a propósito das folhas em grego. Não as folheei de todo porque
não consegui. As folhas estavam, como dizer, impregnadas de umidade, não se
separavam bem umas das outras. E isto porque o pergaminho era estranho... mais macio
que os outros pergaminhos, o modo como a primeira página estava corroída, e quase se
desfazia, era... em suma, estranho.
- Estranho: a expressão também usada por Severino – disse Guilherme.
- O pergaminho não parecia pergaminho... Parecia tecido, mas fino... - continuava
Bêncio.
- Charta lintea, ou pergaminho de pano - disse Guilherme. - Nunca o tinhas visto?
- Ouvi falar, mas não creio tê-lo visto. Diz-se que é muito cara, e frágil. Por isso se usa
pouco. Fazem-na os árabes, não é verdade?
- Foram os primeiros. Mas também a fazem aqui em Itália, em Fabriano. E também...
Mas com certeza, claro, com certeza! – Os olhos de Guilherme cintilavam. - Que bela e
interessante revelação, muito bem, Bêncio, agradeço-te! Sim, imagino que aqui na
biblioteca a charta lintea seja rara, porque não vos chegaram manuscritos muito
recentes. E depois muitos temem que não sobreviva à passagem dos séculos como o
pergaminho, e talvez seja verdade. Podemos imaginar se aqui queriam algo que não
fosse mais perene que o bronze... Pergaminho de pano, hem? Bem, adeus. E está
tranqüilo. Tu não corres perigo.
- Verdade, Guilherme, assegurais-mo?
- Asseguro-to. Se estiveres no teu lugar. Já arranjaste bastantes sarilhos.
Afastamo-nos do scriptorium deixando Bêncio, se não completamente sereno, mais
calmo.
- Estúpido! - disse Guilherme entre dentes enquanto vínhamos para fora. - Podíamos já
ter resolvido tudo se não se tivesse metido pelo meio...
Encontramos o Abade no refeitório. Guilherme encarou-o e pediu-lhe um colóquio.
Abbone não pôde tergiversar e marcou-nos encontro, dentro em pouco, na sua casa.
SEXTO DIA
NONA
Onde o Abade se recusa a escutar Guilherme, fala da linguagem das gemas e manifesta
o desejo de que não se indague mais sobre aqueles tristes acontecimentos.
A casa do Abade ficava por cima do capítulo, e pela janela da sala, grande e suntuosa,
em que ele nos recebeu, podiam ver-se, no dia sereno e ventoso, para lá do teto da
igreja abacial, as formas do Edifício.
O Abade, em pé diante de uma janela, estava precisamente a admirá-lo, e indicou-nolo
com um gesto solene.
- Admirável fortaleza - disse -, que resume nas suas proporções a regra áurea que
presidiu à construção da arca. Estabelecida sobre três andares, porque três é o número
da trindade, três foram os anjos que visitaram Abraão, os dias que Jonas passou no
ventre do grande peixe, os que Jesus e Lázaro passaram no sepulcro; as vezes que Cristo
pediu ao Pai que o cálice amargo se afastasse dele, aquelas que se afastou a rezar com
os apóstolos. Três vezes o renegou Pedro, e três vezes se manifestou aos seus depois da
ressurreição. Três são as virtudes teologais, três as línguas sagradas, três as partes da
alma, três as classes de criaturas intelectuais, anjos, homens e demônios, três as
espécies do som, vox, flatus e pulsus, três as épocas da história humana, antes, durante
e depois da lei.
- Maravilhoso concerto de correspondências místicas - conveio Guilherme.
- Mas também a forma quadrada - continuou o Abade - é rica de ensinamentos
espirituais. Quatro são os pontos cardeais, as estações, os elementos, e o calor, o frio, o
úmido e o seco, o nascimento, o crescimento, a maturidade e a velhice, e as espécies
celestes, terrestres, aéreas e aquáticas dos animais, as cores constitutivas do arco-íris e
o número dos anos que é necessário para fazer um bissexto.
- Oh, decerto - disse Guilherme -, e três mais quatro são sete, número místico como
nenhum outro, enquanto três multiplicado por quatro são doze, como os apóstolos, e
doze vezes são cento e quarenta e quatro, que é o número dos eleitos.
E, a esta última manifestação de místico conhecimento do mundo hiperuranio dos
números, o Abade não teve mais nada a acrescentar. O que permitiu a Guilherme entrar
no assunto.
- Deveríamos falar dos últimos fatos, sobre os quais refleti longamente - disse.
O Abade voltou as costas para a janela e encarou Guilherme com rosto severo:
- Demasiado longamente, talvez. Confesso-vos, frade Guilherme, que esperava mais
de vós. Desde que aqui chegastes que se passaram quase seis dias, quatro monges
morreram, além de Adelmo, dois foram presos pela inquisição... foi justiça, decerto, mas
poderíamos ter evitado esta vergonha se o inquisidor não tivesse sido obrigado a ocuparse
dos delitos precedentes... e por fim o encontro de que eu era medianeiro, e
precisamente por causa de todos estes crimes, deu penosos resultados... Convireis que
podia esperar um desfecho diverso de todos estes acontecimentos quando vos pedi para
investigardes sobre a morte de Adelmo...
Guilherme calou-se embaraçado. Decerto que o Abade tinha razão. Disse no início
deste relato que o meu mestre gostava de espantar os outros com a prontidão das suas
deduções, e era lógico que o seu orgulho ficasse ferido quando o acusavam, e nem
sequer injustamente, de lentidão.
- É verdade – admitiu -, não satisfiz as vossas expectativas, mas dir-vos-ei porquê,
Vossa Sublimidade. Estes delitos não derivam de uma rixa ou de qualquer vingança entre
os monges, mas dependem de fatos que têm por sua vez origem na história remota da
abadia...
O Abade olhou-o com inquietação:
- Que pretendeis dizer? Também eu compreendo que a chave não está na
desventurada história do despenseiro, que se cruzou com outra. Mas essa outra, essa
outra que talvez eu conheça mas da qual não posso falar... esperava que ela se vos
tivesse tornado clara, e que dela me falaríeis vós...
- Vossa Sublimidade pensa em algum acontecimento de que veio a saber em
confissão... - O Abade dirigiu o olhar para o outro lado, e Guilherme continuou: - Se
Vossa Magnificência quer saber se eu sei, sem o saber de Vossa Magnificência, se houve
relações desonestas entre Berengário e Adelmo, e entre Berengário e Malaquias, pois
bem, isto todos o sabem na abadia...
O Abade corou violentamente:
- Não creio que seja útil falar de coisas semelhantes na presença deste noviço. E não
creio, uma vez terminado o encontro, que vós ainda tenhais necessidade dele como
escrivão. Sai, rapaz - disse-me em tom imperioso.
Humilhado, saí. Mas, curioso como era, agachei-me atrás da porta da sala, que deixei
entreaberta, de modo a poder seguir o diálogo.
Guilherme recomeçou a falar:
- Então, essas relações desonestas, se acaso tiveram lugar, tiveram um escasso papel
nestes dolorosos acontecimentos. A chave é outra, e pensava que vós o imaginásseis.
Tudo se desenrola em torno do furto e da posse de um livro, que estava escondido no
finis Africae, e que agora voltou para lá por obra de Malaquias, sem que, porém, bem o
vistes, a seqüência dos crimes se tenha interrompido.
Houve um longo silêncio, depois o Abade recomeçou a falar com voz entrecortada e
insegura, como de pessoa surpreendida por inesperadas revelações.
- Não é possível... Vós... Vós como conseguis saber do finis Africae? Violastes o meu
interdito e entrastes na biblioteca?
Guilherme deveria ter dito a verdade, e o Abade ter-se-ia irado desmesuradamente.
Não queria evidentemente mentir. Escolheu responder à pergunta com outra pergunta:
- Não me disse Vossa Magnificência, durante o nosso primeiro encontro, que um
homem como eu, que tinha descrito tão bem Brunello sem nunca o ter visto, não teria
dificuldade em raciocinar sobre lugares a que não podia aceder?
- É assim então - disse o Abade. - Mas porque pensais aquilo que pensais!
- Como lá cheguei, é longo de contar. Mas foi cometida uma série de delitos para
impedir a muitos de descobrirem algo que não se queria que fosse descoberto. Ora todos
aqueles que sabiam alguma coisa dos segredos da biblioteca, ou por direito ou por
fraude, estão mortos. Resta apenas uma pessoa, vós.
- Quereis insinuar... quereis insinuar...
O Abade falava como alguém a quem estivessem inchando as veias do pescoço.
- Não me interpretais mal - disse Guilherme, que provavelmente tinha também
tentado insinuar -, digo que há alguém que sabe e que quer que mais ninguém saiba. Vós
sois o último a saber, vós poderíeis ser a próxima vítima. A menos que não me digais o
que sabeis sobre aquele livro interdito e, sobretudo, quem é que na abadia poderia saber
tanto como vós sabeis, e talvez mais, sobre a biblioteca.
- Está frio aqui - disse o Abade. - Saiamos.
Eu afastei-me rapidamente da porta e esperei-os ao cimo da escada que vinha de
baixo. O Abade viu-me e sorriu-me.
- Quantas coisas inquietantes deve ter ouvido este jovem monge nestes dias! Vamos,
rapaz, não te deixes perturbar demasiado. Parece-me que se imaginaram mais tramas
que aquelas que existem...
Levantou uma mão e deixou que a luz do dia iluminasse um esplêndido anel que usava
no anular, insígnia do seu poder. O anel cintilou em todo o fulgor das suas pedras.
- Reconhece-lo, não é verdade? - disse-me. - Símbolo da minha autoridade mas
também do meu fardo. Não é um ornamento, é uma esplêndida síntese da palavra divina
de que sou guarda. – Tocou com os dedos a pedra, ou melhor, o triunfo das pedras
variegadas que compunham aquela admirável obra-prima da arte humana e da natureza.
- Eis a ametista – disse -, que é espelho de humildade e nos recorda a ingenuidade e a
doçura de São Mateus; eis a calcedônia, insígnia de caridade, símbolo da piedade de José
e de São Tiago Maior; eis o jaspe, que augura a fé, associado a São Pedro; e a sardônica,
sinal de martírio, que nos recorda São Bartolomeu; eis a safira, esperança e
contemplação, pedra de Santo André e de São Paulo; e o berilo, são doutrina, ciência e
longanimidade, virtudes próprias de São Tomás... Como é esplêndida a linguagem das
gemas - continuou, absorto na sua visão mística -, que os lapidários da tradição
traduziram do racional de Aarão e da descrição da Jerusalém celeste no livro do
apóstolo. Por outro lado, as muralhas de Sião estavam cheias das mesmas jóias, que
ornavam o peitoral do irmão de Moisés, salvo o carbúnculo, a ágata e o ônix, que,
citados no Êxodo, são substituídos no Apocalipse pela calcedônia, pela sardônica, pelo
crisoprázio e pelo jacinto. - Guilherme fez menção de abrir a boca, mas o Abade fê-lo
calar levantando uma mão e continuou o seu discurso: - Recordo um livro de litanias em
que cada pedra era descrita e rimada em honra da Virgem. Aí se falava do seu anel de
noivado como de um poema simbólico resplandecente de verdades superiores
manifestadas na linguagem lapidar das pedras que o embelezavam. Jaspe para a fé,
calcedônia para a caridade, esmeralda para a pureza, sardônica para a placidez da vida
virginal, rubi para o coração a sangrar no calvário, crisólito cuja cintilação multiforme
recorda a maravilhosa variedade dos milagres de Maria, jacinto para a caridade,
ametista, com a sua mistura de rosa e azul, para o amor de Deus... Mas no engaste
estavam incrustadas outras substancias não menos eloqüentes, como o cristal que
remete para a castidade da alma e do corpo, o ligúrio, que se assemelha ao âmbar,
símbolo de temperança, e a pedra magnética, que atrai o ferro, tal como a Virgem toca
as cordas dos corações penitentes com o arco da sua bondade. Tudo substancias que,
como vedes, também ornam, embora em mínima e humilíssima medida, a minha jóia. -
Movia o anel e deslumbrava os meus olhos com o seu fulgor, como se quisesse aturdirme.
- Maravilhosa linguagem, não é verdade? Para outros padres, as pedras significam
outras coisas ainda, para o papa Inocêncio terceiro o rubi anuncia a calma e a paciência
e a granada a caridade. Para São Bruno a água-marinha concentra a ciência teológica na
virtude dos seus puríssimos reflexos. A turquesa significa alegria, a sardônica evoca os
serafins, o topázio os querubins, o jaspe os tronos, o crisólito as dominações, a safira as
virtudes, o ônix as potestades o berilo os principados, o rubi os arcanjos e a esmeralda os
anjos. A linguagem das gemas é multiforme, cada uma exprime mais verdade, segundo o
contexto em que aparecem. E quem decide qual é o nível de interpretação e qual o justo
contexto? Tu bem o sabes, rapaz, ensinaram-to: é a autoridade, o comentador entre
todos mais seguro e mais investido de prestígio, e portanto de santidade. Senão, como
interpretar os sinais multiformes que o mundo põe sob os nossos olhos de pecadores,
como não tropeçar nos equívocos com que nos atrai o demônio? Repara, é singular como
a linguagem das gemas repugna ao diabo, como testemunha Santa Hildegarda. A besta
imunda vê nisso uma mensagem que se ilumina por sentidos ou níveis de sapiência
diversos, e ele quereria desvirtuá-la, porque ele, o inimigo, descobre no esplendor das
pedras o eco das maravilhas que tinha em seu poder antes da queda e compreende que
estes fulgores são produzidos pelo fogo, que é o seu tormento. - Deu-me o anel a beijar,
e eu ajoelhei-me. Acariciou-me a cabeça. - E portanto tu, rapaz, esquece as coisas sem
dúvida errôneas que ouviste nestes dias. Tu entraste na ordem maior e mais nobre entre
todas, desta ordem eu sou um Abade, tu estás sob minha jurisdição. E, portanto, ouve a
minha ordem: esquece, e que os teus lábios se selem para sempre. Jura.
Comovido, subjugado, teria decerto jurado. E tu, meu bom leitor, não poderias agora
ler esta minha crônica fiel. Mas naquela altura interveio Guilherme, e não talvez para
impedir de jurar mas por reação instintiva, por enfado, para interromper o Abade, para
quebrar aquele encanto que ele tinha certamente criado.
- Que tem a ver o rapaz? Eu fiz-vos uma pergunta, eu adverti-vos de um perigo, eu
pedi-vos que me dissésseis um nome... Querereis agora que também eu beije o anel e
que jure esquecer quanto soube ou quanto suspeito?
- Oh, vós... - disse melancolicamente o Abade. - Não espero de um frade mendicante
que compreenda a beleza das nossas tradições, ou que respeite a discrição, os segredos,
os mistérios de caridade... sim, de caridade, e o sentido da honra, e o voto do silêncio
que rege a nossa grandeza... Vós falaste-me de uma estranha história, de uma história
incrível. Um livro interdito, pelo qual se mata em cadeia, alguém que sabe aquilo que só
eu deveria saber... Patranhas, inferência que carecem de todo sentido. Falai, se
quiserdes, ninguém acreditará em vós. E se acaso algum elemento da vossa fantasiosa
reconstrução fosse verdadeira, pois bem, agora tudo recai sob o meu controle e a minha
responsabilidade. Controlarei, tenho os meios, tenho autoridade para isso. Fiz mal desde
o início em pedir a um estranho, por mais sábio, por mais digno de confiança que fosse,
que indagasse sobre coisas que são somente da minha competência. Mas vós
compreendeste-lo, haveis-mo dito, eu considerava no inicio que se tratava de uma
violação do voto de castidade, e queria (imprudente que eu fui) que mais alguém me
dissesse aquilo que tinha ouvido dizer em confissão. Bem, agora haveis-mo dito. Estouvos
muito grato por aquilo que fizestes ou tentastes fazer. O encontro das delegações
teve lugar, a vossa missão aqui está terminada. Imagino que vos esperam com ansiedade
na corte imperial, as pessoas não se privam por muito tempo de um homem como vós.
Dou-vos licença para deixardes a abadia. Hoje talvez seja tarde, não quero que viajeis
depois do sol-posto, as estradas são inseguras. Partireis amanhã de manhã, cedo. Oh, não
me agradeçais, foi uma alegria ter-vos como irmão entre os irmãos e honrar-vos com a
nossa hospitalidade. Podereis retirar-vos com o vosso noviço de modo a preparardes a
bagagem. Saudar-vos-ei ainda amanhã ao romper da alba. Obrigado, de todo o coração.
Naturalmente, não é necessário que continueis a conduzir as vossas investigações. Não
perturbeis mais os monges. Ide, pois.
Era mais que uma despedida, estava a pôr-nos fora. Guilherme saudou e descemos as
escadas.
- Que significa? - perguntei.
Não compreendia mais nada.
- Tenta formular uma hipótese. Deverias ter aprendido como se faz.
- Se é assim, aprendi que devo formular ao menos duas, uma em oposição à outra, e
ambas inacreditáveis. Bem, então... - Degluti: pôr hipóteses deixava-me pouco à
vontade. - Primeira hipótese, o Abade já sabia tudo e imaginava que vós não teríeis
descoberto nada. Tinha-vos encarregado do inquérito antes, quando morreu Adelmo, mas
pouco a pouco compreendeu que a história, era muito mais complexa, em volve-ode
certo modo a ele, e não quer que vós ponhais a nu esta trama. Segunda hipótese, o
Abade nunca suspeitou de nada (de quê, afinal, não sei, porque não sei em que vós estais
agora pensando). Mas em todo o caso continuava a pensar que tudo fosse devido a um
litígio entre... entre monges sodomitas... Agora porém vós abriste-lhe os olhos, ele
compreendeu de repente algo de terrível, pensou num nome, tem uma idéia precisa
sobre o responsável dos delitos. Mas, sendo assim, quer resolver a questão sozinho e quer
afastar-vos, para salvar a honra da abadia.
- Bom trabalho. Começas a raciocinar bem. Mas já vês que em ambos os casos o nosso
Abade está preocupado com a boa reputação do seu mosteiro. Assassino ou vítima
designada que seja, não quer que transpirem para além destas montanhas notícias
difamatórias sobre esta santa comunidade. Mata-lhe os monges, mas não lhe toques na
honra desta abadia. Ah, por... - Guilherme estava agora a ficar furioso. - Aquele
bastardo de feudatário, aquele pavão que ficou célebre por ter feito de coveiro ao
Aquinate, aquele odre inchado que existe só porque usa um anel grande como o cú de
um copo! Raça de soberbo, raça de soberbos sois vós todos, os clunicenses, piores que
príncipes, mais barões que os barões!
- Mestre... - ousei, picado, em tom de censura.
- Cala-te, tu, que és da mesma massa. Vós não sois simples, nem filhos de simples. Se
vos calha um camponês acolhei-lo, talvez, mas, como vi ontem, não hesitais em entregálo
ao braço secular. Mas um dos vossos não, é preciso cobrir, Abbone é capaz de
encontrar o desgraçado e de o apunhalar na cripta do tesouro, e de lhe distribuir os
rojões pelos seus relicários, contanto que a honra da abadia seja salva... Um franciscano,
um plebeu menorita que descobre o ninho de vermes desta santa casa? Isso não, este
Abbone não pode permiti-lo a nenhum preço. Obrigado, frade Guilherme, o imperador
precisa de vós, vistes que belo anel que eu tenho, até mais ver. Mas agora o desafio não
é apenas entre mim e Abbone, é entre mim e toda esta história, eu não saio desta cerca
antes de ter sabido. Quer que eu parta amanhã de manhã? Bem, ele é o dono da casa,
mas até amanhã de manhã eu devo saber. Devo.
- Deveis? Quem vo-lo impõe, agora?
- Ninguém nos impõe que saibamos, Adso. Deve-se, eis tudo, mesmo a custo de
compreender mal.
Ainda estava confuso e humilhado pelas palavras de Guilherme contra a minha ordem
e os seus abades. E tentei justificar em parte Abbone formulando uma terceira hipótese,
arte em que me tinha tornado, parecia-me, habilíssimo:
- Não considerastes uma terceira possibilidade, mestre - disse. - Notamos nestes dias,
e esta manhã pareceu-nos claro, depois das confidências de Nicolau e das murmurações
que captamos na igreja, que há um grupo de monges italianos que suportavam mal a
seqüência dos bibliotecários estrangeiros, que acusam o Abade de não respeitar a
tradição e que, pelo que compreendi, se escondem atrás do velho Alinardo, empurrandoo
à sua frente como um estandarte, para pedir um diverso governo da abadia. Estas
coisas compreendi-as bem, porque mesmo um noviço ouviu no seu mosteiro muitas
discussões, e alusões, e conluios desta natureza. E então talvez o Abade tema que as
vossas revelações possam oferecer uma arma aos seus inimigos, e quer resolver toda a
questão com grande prudência...
- É possível. Mas permanece um odre inchado, e far-se-á assassinar.
- Mas vós que pensais das minhas conjecturas?
- Dir-te-ei mais tarde.
Estávamos no claustro. O vento era cada vez mais furioso, a luz menos clara, mesmo
se pouco passava de nona. O dia aproximava-se do ocaso e restava-nos bem pouco
tempo. A vésperas certamente o Abade avisaria os monges que Guilherme já não tinha
nenhum direito de fazer perguntas e de entrar em toda a parte.
- É tarde - disse Guilherme -, e quando se tem pouco tempo o pior é perder a calma.
Devemos agir como se tivéssemos a eternidade diante de nós. Tenho um problema a
resolver, como penetrar no finis Africae, porque lá deveria estar a resposta final. Depois
devemos salvar uma pessoa, ainda não decidi qual. Por fim devemos esperar qualquer
coisa do lado das cavalariças, que tu terás debaixo de olho... Olha quanto movimento...
De fato, o espaço entre o Edifício e o claustro tinha-se singularmente animado. Um
noviço, pouco antes, proveniente da casa do Abade, tinha corrido para o Edifício. Agora
saia de lá Nicolau, que se dirigia aos dormitórios. Num canto, o grupo da manhã,
Pacífico, Aymaro e Pedro, estavam falando insistentemente com Alinardo, como para o
convencerem de qualquer coisa.
Depois pareceram tomar uma decisão. Aymaro segurou Alinardo, ainda relutante, e
encaminhou-se com ele para a residência abacial. Iam a entrar ali, quando do dormitório
saiu Nicolau, que conduzia Jorge na mesma direção. Viu os dois que entravam, sussurrou
qualquer coisa ao ouvido de Jorge, o velho sacudiu a cabeça, e prosseguiram mesmo
assim para o capítulo.
- O Abade toma conta da situação... - murmurou Guilherme com cepticismo.
Do Edifício estavam saindo outros monges que deveriam estar no scriptorium, seguidos
logo depois por Bêncio, que veio ao nosso encontro cada vez mais preocupado.
- Há efervescência no scriptorium - disse-nos -, ninguém trabalha, todos falam
animadamente entre si... Que acontece?
- Acontece que as pessoas que até esta manhã pareciam as mais suspeitas estão todas
mortas. Até ontem todos se guardavam de Berengário, tolo e infiel e lascivo, depois do
despenseiro, herege suspeito, por fim de Malaquias, tão antipático a todos... Agora já
não sabem de quem se guardar, e têm necessidade urgente de encontrar um inimigo, ou
um bode expiatório. E cada um suspeita do outro, alguns têm medo, como tu, outros
decidiram meter medo a qualquer outro. Estais todos demasiado agitados. Adso, dá de
vez em quando uma olhadela às cavalariças. Eu vou descansar.
Deveria ter-me espantado: ir descansar, quando tinha poucas horas ainda à disposição,
não parecia a resolução mais sábia. Mas agora conhecia o meu mestre. Quanto mais o seu
corpo estava descontraído mais a sua mente estava em efervescência.
SEXTO DIA
ENTRE VÉSPERAS E COMPLETAS
Onde em breves palavras se contam longas horas de desvario.
Torna-se-me difícil contar aquilo que aconteceu nas horas que se seguiram, entre
vésperas e completas.
Guilherme estava ausente. Eu vagueava à volta das cavalariças, mas sem notar nada
de anormal. Os estribeiros estavam fazendo entrar os animais, inquietos por causa do
vento, mas quanto ao resto tudo estava tranqüilo.
Entrei na igreja. Já todos estavam nos seus lugares nas estalas, mas o Abade notou a
ausência de Jorge. Com um gesto atrasou o início do ofício. Chamou Bêncio para que
fosse procurá-lo. Bêncio não estava. Alguém fez observar que estava provavelmente
dispondo o scriptorium para fechar. O Abade disse, irritado, que se tinha estabelecido
que Bêncio não fechasse nada, porque não conhecia as regras. Aymaro de Alexandria
levantou-se do seu lugar:
- Se Vossa Paternidade consente, vou eu chamá-lo...
- Ninguém te pediu nada - disse o Abade bruscamente.
E Aymaro voltou para o seu lugar, não sem ter lançado um olhar indefinível a Pacifico
de Tivoli. O Abade chamou Nicolau, que não estava. Recordaram-lhe que estava dando as
ordens para a ceia, e ele teve um gesto de contrariedade, como se lhe desagradasse
mostrar a todos que se encontrava num estado de excitação.
- Quero Jorge aqui - gritou -, procurai-o! Vai tu - ordenou ao mestre dos noviços.
Um outro fez-lhe notar que faltava também Alinardo.
- Eu sei - disse o Abade -, está enfermo.
Encontrava-me perto de Pedro de Sant’Albano e ouvi-o dizer ao seu vizinho, Gunzo de
Nola, numa língua vulgar da Itália Central que em parte eu compreendia:
- Imagino. Hoje quando saiu depois do colóquio o pobre velho estava transtornado.
Abbone comporta-se como a puta de Avinhão!
Os noviços estavam desorientados, com a sua sensibilidade de crianças ignaras
pressentiam todavia a tensão que estava reinando no coro, como a pressentia eu.
Passaram-se alguns longos momentos de silêncio e de embaraço. O Abade ordenou que se
recitassem alguns salmos, e indicou ao acaso três, que não eram prescritos pela regra
para vésperas. Olharam todos uns para os outros, depois recomeçaram a rezar em voz
baixa. Voltou o mestre dos noviços seguido de Bêncio, que ocupou o seu lugar de cabeça
baixa. Jorge não estava no scriptorium e não estava na sua cela. O Abade ordenou que o
ofício tivesse início.
No fim, antes de descerem todos para a ceia, fui chamar Guilherme. Estava estendido
no seu catre, vestido, imóvel. Disse que não pensava que fosse tão tarde. Contei-lhe
brevemente quanto tinha sucedido. Sacudiu a cabeça.
À porta do refeitório vimos Nicolau, que poucas horas antes tinha acompanhado Jorge.
Guilherme perguntou-lhe se o velho tinha entrado logo nos aposentos do Abade. Nicolau
disse que tivera de esperar longamente à porta, porque na sala estavam Alinardo e
Aymaro de Alexandria. Depois, Jorge tinha entrado, tinha ficado algum tempo dentro, e
ele tinha-o esperado. Em seguida tinha saído e tinha-se feito acompanhar à igreja, uma
hora antes de vésperas, ainda deserta.
O Abade avistou-nos quando falávamos com o despenseiro.
- Frade Guilherme – censurou -, estais ainda inquirindo?
Fez-lhe sinal para se sentar à sua mesa, como habitualmente. A hospitalidade
beneditina é sagrada.
A ceia foi mais silenciosa que de costume, e triste. O Abade comia sem vontade,
oprimido por sombrios pensamentos. No fim disse aos monges que se apressassem para
completas.
Alinardo e Jorge estavam ainda ausentes. Os monges apontavam para o lugar vazio do
cego, sussurrando. No fim do rito, o Abade convidou todos a recitarem uma especial
oração pela saúde de Jorge de Burgos. Não ficou claro se falava da saúde corporal ou da
saúde eterna. Todos compreenderam que uma nova desgraça estava prestes a abater-se
sobre aquela comunidade. Depois, o Abade ordenou a cada um que se apressasse, com
maior diligência que de costume, para o seu catre. Ordenou que ninguém, e carregou
sobre a palavra ninguém, ficasse a circular fora do dormitório. Os noviços, assustados,
foram os primeiros a sair, com o capucho sobre o rosto, a cabeça inclinada, sem
trocarem as piadas, as cotoveladas, os sorrisinhos, as maliciosas e ocultas rasteiras com
que costumavam provocar-se (porque o noviço, embora jovem monge, não deixa de ser
uma criança, e de pouco valem as repreensões do seu mestre, que não pode impedir que
eles muitas vezes se comportem como crianças, como quer a sua tenra idade).
Quando saíram os adultos segui, sem me fazer notar, atrás do grupo que já se
caracterizava aos meus olhos como o dos «italianos». Pacifico estava murmurando a
Aymaro:
- Achas que Abbone não sabe verdadeiramente onde está Jorge?
E Aymaro respondia:
- Podia muito bem saber, e saber que de onde está não voltará mais. O velho quis
talvez demasiado, e Abbone não o queria mais a ele...
Enquanto eu e Guilherme fingíamos retirar-nos para o albergue dos peregrinos,
avistamos o Abade, que entrava de novo no Edifício pela porta do refeitório ainda
aberta. Guilherme aconselhou que esperássemos um pouco, depois, quando a esplanada
ficou livre de qualquer presença, convidou-me a segui-lo. Atravessamos rapidamente os
espaços vazios e entramos na igreja.
SEXTO DIA
DEPOIS DE COMPLETAS
Onde, quase por acaso, Guilherme descobre o segredo para entrar no finis Africae.
Postamo-nos, como dois sicários, perto da entrada, atrás de uma coluna, de onde se
podia observar a capela das caveiras.
- Abbone foi fechar o Edifício - disse Guilherme. - Quando tiver trancado as portas por
dentro não poderá sair senão pelo ossário.
- E depois?
- E depois veremos o que faz.
Não pudemos saber o que fazia. Uma hora depois ainda não tinha saído. Foi ao finis
Africae, disse eu. É possível, respondeu Guilherme. Preparado para formular muitas
hipóteses, acrescentei: talvez tenha saído de novo pelo refeitório e tenha ido procurar
Jorge. E Guilherme: também isso é possível. Talvez Jorge já esteja morto, imaginei
ainda. Talvez esteja no Edifício e está a matar o Abade. Talvez estejam ambos noutro
sítio e alguém mais os espere numa emboscada. Que queriam os «italianos»?, e porque é
que Bêncio estava tão assustado? Não seria acaso uma máscara que tinha posto no rosto
para nos enganar? Porque é que se tinha demorado no scriptorium durante vésperas, se
não sabia nem como fechar nem como sair? Queria tentar a via do labirinto?
- Tudo é possível - disse Guilherme. - Mas uma única coisa se dá, se deu, ou se está
dando. E enfim a misericórdia divina nos está locupletando com uma luminosa certeza.
- Qual? - perguntei cheio de esperança.
- Que frade Guilherme de Baskerville, o qual tem agora a impressão de ter
compreendido tudo, não sabe como entrar no finis Africae. Às cavalariças, Adso, às
cavalariças.
- E se nos encontra o Abade?
- Fingiremos ser dois espectros.
Não me pareceu uma solução praticável, mas calei-me. Guilherme estava a ficar
nervoso. Saímos pelo portal setentrional e passámos através do cemitério, enquanto o
vento sibilava com força, e pedi ao Senhor que não nos fizesse encontrar dois espectros a
nós, que de almas penadas, naquela noite, na abadia não havia penúria. Chegamos às
cavalariças e sentimos os cavalos cada vez mais inquietos por causa da fúria dos
elementos. O portão principal da construção tinha, à altura do peito de um homem, um
amplo gradeamento de metal, de onde se podia ver o interior. Entrevimos na
obscuridade as silhuetas dos cavalos, reconheci Brunello porque era o primeiro à
esquerda. À sua direita, o terceiro animal da fila levantou a cabeça sentindo a nossa
presença e relinchou. Sorri:
- Tertius equi - disse eu.
- O quê? - perguntou Guilherme.
- Nada, recordava-me do pobre Salvador. Queria fazer sabe-se lá que magia com
aquele cavalo, e no seu latim designava-o como tertius equi. Que seria o u.
- O u? - perguntou Guilherme, que tinha seguido o meu devaneio sem lhe prestar
muita atenção.
- Sim, porque tertius equi quereria dizer não o terceiro cavalo mas o terceiro do
cavalo, e a terceira letra da palavra cavalo é o u. Mas é uma tolice...
Guilherme olhou para mim, e no escuro pareceu-me distinguir-lhe o rosto alterado:
- Deus te abençoe, Adso! - disse. - Mas decerto, suppositio materialis, o discurso
assume-se de dicto e não de re... Que estúpido que eu sou! - Deu uma grande palmada
na testa, com a mão aberta, de tal modo que se ouviu um estalo, e creio que se tenha
magoado. - Meu rapaz, é a segunda vez hoje que pela tua boca fala a sabedoria, primeiro
em sonhos e agora durante a vigília! Corre, corre à tua cela e traz a candeia, aliás,
aquelas duas que temos escondidas. Não te deixes ver, e vem ter comigo depressa à
igreja! Não faças perguntas, vai!
Fui sem fazer perguntas. As lâmpadas estavam debaixo do meu enxergão, cheias de
azeite, porque já tinha provido a alimentá-las. Tinha o fuzil no saio. Com os dois
preciosos instrumentos no peito corri para a igreja.
Guilherme estava sob o trípode e estava relendo o pergaminho com os apontamentos
de Venancio.
- Adso! - disse-me -, primum et septimum de quatuor não significa o primeiro e o
sétimo dos quatro, mas do quatro, da palavra quatro!
Ainda não compreendia, depois tive uma iluminação:
- Super thronos viginti quatuor! A inscrição! O versículo! As palavras que estão
gravadas sobre o espelho!
- Vamos! - disse Guilherme -, talvez possamos ainda salvar uma vida.
- De quem? - perguntei, enquanto ele estava já manobrando à volta das caveiras e
abrindo a passagem para o ossário.
- De um que não merece - disse.
E estávamos já no túnel subterrâneo, com as candeias acesas, em direção à porta que
conduzia à cozinha.
Já disse que naquele ponto se empurrava uma porta de madeira e nos achávamos na
cozinha por trás da chaminé, aos pés da escada de caracol que introduzia no scriptorium.
E, precisamente quando empurrávamos a porta, ouvimos à nossa esquerda rumores
surdos no muro. Vinham da parede ao lado da porta, sobre a qual terminava a fila dos
nichos com as caveiras e os ossos. Naquele ponto, no lugar do último nicho, havia um
pedaço de parede plena, de grandes blocos de pedra quadrados, com uma velha lápide
ao centro, que tinha gravados monogramas quase apagados. As pancadas vinham,
parecia, de trás da lápide, ou então de cima da lápide, em parte atrás da parede, em
parte quase sobre a nossa cabeça.
Se um acontecimento semelhante se tivesse produzido na primeira noite teria pensado
imediatamente nos monges mortos. Mas agora estava pronto a esperar pior da parte dos
monges vivos.
- Quem será? - perguntei.
Guilherme abriu a porta e saiu por trás da chaminé. As pancadas ouviam-se também
ao longo da parede que costeava a escada de caracol, como se alguém estivesse
prisioneiro no muro, ou melhor, na espessura daquela parede (verdadeiramente vasta)
que se podia presumir que compreendia o muro interno da cozinha e o exterior do
torreão meridional.
- Está alguém fechado aqui dentro - disse Guilherme. - Sempre me tinha perguntado se
não existia outro acesso ao finis Africae, neste Edifício tão cheio de passagens.
Evidentemente que há; do ossário, antes de subir à cozinha, abre-se um troço de parede
e sobe-se por uma escada paralela a esta, escondida no muro, desembocando
diretamente na sala murada.
- Mas quem está agora lá dentro?
- A segunda pessoa. Uma está no finis Africae, outra procurou alcançá-la, mas a de
cima deve ter bloqueado o mecanismo que regula ambas as entradas. Assim, o visitante
foi apanhado na ratoeira. E deve agitar-se muito porque, imagino, para aquele tubo não
passará muito ar.
- E quem é? Salvemo-lo!
- Quem é vê-lo-emos dentro em pouco. E, quanto a salvá-lo, poder-se-á fazê-lo apenas
desbloqueando o mecanismo do alto, porque deste lado não conhecemos o segredo.
Portanto subamos depressa.
Assim fizemos, subimos ao scriptorium, e dali ao labirinto, e alcançamos em breve o
torreão meridional. Tive de, por duas vezes, refrear o meu ímpeto, porque o vento que
naquela noite penetrava pelas seteiras criava correntes que, insinuando-se por aquelas
aberturas, percorriam as salas gemendo, soprando sobre as folhas espalhadas sobre as
mesas, e tinha de proteger a chama com a mão.
Em breve chegamos à sala do espelho, já preparados para o jogo deformante que nos
esperava. Levantamos as lâmpadas e iluminamos os versículos que encimavam a moldura,
Super thronos viginti quatuor... Agora o segredo estava esclarecido: a palavra quatuor
tem sete letras, era preciso acionar sobre o q e o r. Pensei, excitado, fazê-lo eu: pousei
rapidamente a lâmpada sobre a mesa no centro da sala, executei o gesto nervosamente,
a chama foi lamber a encadernação de um livro que ali estava pousado.
- Atenção, tolo! - gritou Guilherme, e com um sopro apagou a chama. - Queres pegar
fogo à biblioteca?
Desculpei-me e fiz por reacender a candeia.
- Não importa - disse Guilherme -, basta a minha. Toma-a e dá-me luz, porque a
inscrição é demasiado alta e tu não chegarias lá. Façamos depressa.
- E se estivesse lá dentro alguém armado? - perguntei, enquanto Guilherme, quase às
apalpadelas, procurava as letras fatais, erguendo-se na ponta dos pés, alto como era,
para tocar o versículo apocalíptico.
- Dá-me luz, pelo demônio, e não temas, Deus está conosco! - respondeu-me bastante
incoerentemente.
Os seus dedos estavam tocando no q de quatuor, e eu, que estava uns passos atrás, via
melhor que ele aquilo que estava fazendo. Já disse que as letras dos versículos pareciam
entalhadas ou gravadas no muro: evidentemente as da palavra quatuor eram constituídas
por silhuetas de metal, por trás das quais estava encaixado e murado um prodigioso
mecanismo. Porque, quando foi empurrado para a frente, o q fez ouvir como que um
golpe seco, e o mesmo aconteceu quando Guilherme acionou o r. A moldura inteira do
espelho teve como que um sobressalto, e a superfície vítrea saltou para trás. O espelho
era uma porta, articulada do lado esquerdo. Guilherme inseriu a mão na abertura que se
tinha criado entre o bordo direito e o muro e puxou para si. Chiando, a porta abriu-se
para nós. Guilherme insinuou-se na abertura e eu deslizei atrás dele, elevando a candeia
sobre a cabeça.
Duas horas depois de completas, no fim do sexto dia, no coração da noite que dava
início ao sétimo dia, tínhamos penetrado no finis Africae.
SÉTIMO DIA
NOITE
Onde, para resumir as revelações prodigiosas de que aqui se fala, o título deveria ser
tão longo como o capítulo, o que é contrário aos costumes.
Encontramo-nos no umbral de uma sala semelhante na forma às outras três salas cegas
heptagonais, em que dominava um forte odor a fechado e a livros macerados pela
umidade. A candeia que mantinha alta iluminou primeiro a abóbada, depois movi o braço
para baixo, para a direita e para a esquerda, e a chama despediu vagos clarões sobre as
estantes afastadas, ao longo das paredes. Por fim vimos no centro uma mesa, coberta de
papéis, e por trás da mesa uma figura sentada, que parecia esperar-nos imóvel no
escuro, se acaso ainda estava viva. Ainda antes que a luz iluminasse o seu rosto,
Guilherme falou.
- Boa noite, venerável Jorge - disse. - Esperavas-nos?
A lâmpada agora, avançando nós alguns passos, iluminava o rosto do velho, que nos
olhava como se visse.
- És tu, Guilherme de Baskerville? - perguntou. - Esperava-te desde hoje à tarde antes
de vésperas, quando vim fechar-me aqui. Sabia que chegarias.
- E o Abade? - perguntou Guilherme. - É ele que se agita na escada secreta?
Jorge teve um momento de hesitação:
- Ainda está vivo? - perguntou. - Julgava que já lhe tivesse faltado o ar.
- Antes de começarmos a falar - disse Guilherme - queria salvá-lo. Tu podes abrir
deste lado.
- Não - disse Jorge com cansaço -, já não posso. O mecanismo manobra-se de baixo
carregando sobre a lápide, e aqui em cima salta uma alavanca que abre uma porta lá ao
fundo, por trás daquele armário - e apontou para trás de si. - Poderias ver ao lado do
armário uma roda com uns contrapesos, que governa o mecanismo aqui de cima. Mas
quando daqui ouvi a roda girar, sinal de que Abbone tinha entrado por baixo, dei um
esticão à corda que sustém os pesos, e a corda quebrou-se. Agora a passagem está
fechada de ambos os lados, e não poderias reatar os fios daquele engenho. O Abade está
morto.
- Porque o mataste?
- Hoje, quando me mandou chamar, disse-me que, graças a ti, tinha descoberto tudo.
Não sabia ainda o que é que eu tinha procurado proteger, nunca compreendeu
exatamente quais eram os tesouros, e os fins da biblioteca. Pediu-me que lhe explicasse
aquilo que não sabia. Queria que o finis Africae fosse aberto. O grupo dos italianos tinhalhe
pedido que pusesse fim àquilo que eles chamam o mistério alimentado por mim e
pelos meus predecessores. São agitados pela cupidez de coisas novas...
- E tu deves ter-lhe prometido que virias aqui e porias fim à tua vida como tinhas
posto fim às dos outros, de modo que a honra da abadia fosse salva e ninguém soubesse
de nada. Depois indicaste-lhe o caminho para vir, mais tarde, verificar. Afinal, esperavalo
para o matares a ele. Não pensavas que pudesse entrar pelo espelho?
- Não, Abbone é pequeno de estatura, não seria capaz de chegar sozinho ao versículo.
Indiquei-lhe esta passagem, que só eu ainda conhecia. É aquela que usei eu por tantos
anos, porque era mais simples, no escuro. Bastava chegar à capela e depois seguir os
ossos dos mortos, até ao fim da passagem.
- Assim fizeste-o vir aqui sabendo que o matarias...
- Não podia confiar sequer nele. Estava assustado. Tinha-se tornado célebre porque
em Fossanova tinha conseguido fazer descer um corpo ao longo de uma escada de
caracol. Injusta glória. Agora está morto porque já não conseguiu fazer subir o seu.
- Usaste-o durante quarenta anos. Quando te apercebeste que estavas a ficar cego e
não poderias continuar a controlar a biblioteca, trabalhaste cautamente. Fizeste eleger
abade um homem em quem podias confiar, e fizeste nomear bibliotecário primeiro
Roberto de Bobbio, que podias instruir a teu bel-prazer, depois Malaquias, que tinha
necessidade da tua ajuda e não dava um passo sem te consultar. Durante quarenta anos
foste o senhor desta abadia. É isto o que o grupo dos italianos tinha compreendido, é isto
o que Alinardo repetia, mas ninguém lhe dava ouvidos porque o consideravam há largo
tempo um demente, não é verdade? Porém, tu ainda me esperavas a mim, e não
poderias bloquear a entrada do espelho, porque o mecanismo está murado. Porque me
esperavas, como tinhas a certeza que eu chegaria?
Guilherme perguntava, mas pelo seu tom compreendia-se que ele adivinhava já a
resposta, e que a esperava como um prêmio à sua habilidade.
- Desde o primeiro dia compreendi que tu compreenderias. Pela tua voz, pelo modo
como me conduziste a debater sobre aquilo de que eu não queria que se falasse. Eras
melhor que os outros, chegarias lá de qualquer maneira. Sabes, basta pensar e
reconstruir na própria mente os pensamentos do outro. E depois ouvi que fazias
perguntas aos outros monges, todas justas. Mas nunca fazias perguntas sobre a
biblioteca, como se já conhecesses todos os seus segredos. Uma noite fui bater à tua
cela, e tu não estavas. Estavas certamente aqui. Tinham desaparecido duas lâmpadas da
cozinha, ouvi dizer a um servo. E enfim, quando Severino veio falar-te de um livro, no
outro dia no nártex, tive a certeza que estavas na mesma pista que eu.
- Mas conseguiste tirar-me o livro. Foste ter com Malaquias, que até então não tinha
compreendido nada. Agitado pelo seu ciúme, o estulto continuava a ser obcecado pela
idéia que Adelmo lhe tinha arrebatado o seu adorado Berengário, que então queria carne
mais jovem que a sua. Não compreendia que tinha a ver Venancio com esta história, e tu
confundiste-lhe ainda mais as idéias. Disseste-lhe que Berengário tinha tido uma relação
com Severino, e que para o compensar lhe tinha dado um livro do finis Africae. Não sei
exatamente que coisa lhe disseste. Malaquias foi ter com Severino, louco de ciúme, e
matou-o. Depois não teve tempo de procurar o livro que tu lhe tinhas descrito, porque
chegou o despenseiro. Foi assim?
- Mais ou menos.
- Mas tu não querias que Malaquias morresse. Ele provavelmente nunca tinha olhado
para os livros do finis Africae, confiava em ti, obedecia aos teus interditos. Ele limitavase
a dispor à noite as ervas para assustar os eventuais curiosos. Fornecia-lhas Severino.
Por isso naquele dia Severino deixou entrar Malaquias no hospital, era a sua visita diária
para levar as ervas frescas, que ele preparava todos os dias por ordem do Abade.
Adivinhei?
- Adivinhaste. Não queria que Malaquias morresse. Disse-lhe que encontrasse o livro,
de qualquer modo, e que o voltasse a pôr aqui, sem o abrir. Disse-lhe que tinha o poder
de mil escorpiões. Mas pela primeira vez o insensato quis agir segundo a sua própria
iniciativa. Não o queria morto, era um executor fiel. Mas não me repitas o que sabes, eu
sei que sabes. Não quero alimentar o teu orgulho, disso já te encarregas tu mesmo. Ouvite
esta manhã no scriptorium interrogar Bêncio sobre a Coena Cypriani. Estavas
pertíssimo da verdade. Não sei como descobriste o segredo do espelho, mas quando
soube pelo Abade que lhe tinhas referido o finis Africae tinha a certeza que em breve
chegarias. Por isso te esperava. E agora que queres?
- Quero ver - disse Guilherme - o último manuscrito do volume encadernado que reúne
um texto árabe, um sírio e uma interpretação ou transcrição da Coena Cypriani. Quero
ver aquela cópia em grego, feita provavelmente por um árabe, ou por um espanhol, que
tu encontraste quando, ajudante de Paulo de Rimini, obtiveste que te mandassem ao teu
país para recolher os mais belos manuscritos do Apocalipse de Leão e Castela, um espólio
que te tornou famoso e estimado aqui na abadia e te fez obter o posto de bibliotecário,
quando respeitava a Alinardo, dez anos mais velho que tu. Quero ver aquela cópia grega
escrita em papel de pano, que então era muito rara, e que se fabricava precisamente em
Silos, perto de Burgos, tua pátria. Quero ver o livro que tu tiraste de lá, depois de o
teres lido, porque não querias que outros o lessem, e que escondeste aqui, protegendo-o
de modo avisado, e que não destruíste, porque um homem como tu não destrói um livro,
mas guarda-o somente e provê a que ninguém lhe toque. Quero ver o segundo livro da
Poética de Aristóteles, aquele que todos consideravam perdido ou jamais escrito, e do
qual tu guardas talvez a única cópia.
- Que magnífico bibliotecário terias sido, Guilherme - disse Jorge, com um tom
simultaneamente de admiração e de mágoa. - Então sabes mesmo tudo. Vem, creio que
há um escabelo desse lado da mesa. Senta-te, eis o teu prêmio.
Guilherme sentou-se e pousou a candeia, que eu lhe tinha passado, iluminando de
baixo o rosto de Jorge. O velho pegou num volume que tinha diante de si e passou-lho.
Eu reconheci a encadernação, era aquele que tinha aberto no hospital, julgando-o um
manuscrito árabe.
- Lê, então, desfolha, Guilherme - disse Jorge. - Ganhaste.
Guilherme olhou para o volume, mas não lhe tocou. Tirou do saio um par de luvas, não
as suas, com as pontas dos dedos descobertas, mas as que usava Severino quando o
tínhamos encontrado morto. Abriu lentamente a encadernação gasta e frágil. Eu
aproximei-me e inclinei-me sobre o seu ombro. Jorge, com o seu ouvido finíssimo, ouviu
o rumor que eu fazia. Disse:
- Também estás aí, rapaz? Far-to-ei ver também a ti... depois.
Guilherme percorreu rapidamente as primeiras páginas.
- É um manuscrito árabe sobre os ditos de algum louco, segundo o catálogo - disse. -
De que se trata?
- Oh, néscias lendas dos infiéis, onde se julga que os estultos têm ditos espirituosos
que espantam mesmo os seus sacerdotes e entusiasmam os seus califas...
- O segundo é um manuscrito siríaco, mas segundo o catálogo traduz um libelo egípcio
de alquimia. Como é que se encontra reunido aqui?
- É uma obra egípcia do terceiro século da nossa era. Coerente com a obra que se
segue, mas menos perigosa. Ninguém daria ouvidos às divagações de um alquimista
africano. Atribui a criação do mundo ao riso divino... - Levantou o rosto e recitou, com a
sua prodigiosa memória de leitor que desde há quarenta anos repetia a si mesmo coisas
lidas quando tinha ainda o bem da vista: - Apenas Deus riu nasceram sete deuses que
governaram o mundo, apenas desatou a rir apareceu a luz, à segunda risada apareceu a
água, e no sétimo dia que ele ria apareceu a alma... Loucuras. E também o escrito que
vem depois, de um dos inúmeros estúpidos que se puseram a glosar a Coena... Mas não
são estes os que te interessam.
Guilherme, de fato, tinha feito passar rapidamente as páginas e tinha chegado ao
texto grego. Vi logo que as folhas eram de matéria diversa e mais mole, quase arrancada
a primeira, com uma parte da margem comida, salpicada de manchas pálidas, como de
costume o tempo e a umidade produzem em outros livros. Guilherme leu as primeiras
linhas, primeiro em grego, depois traduzindo em latim e continuando nesta língua, de
modo que também eu pude apreender como começava o livro fatal.
No primeiro livro tratamos da tragédia e de como ela, suscitando piedade e medo,
produz a purificação de tais sentimentos. Como tínhamos prometido, tratamos agora da
comédia (mas também da sátira e do mimo) e de como, suscitando o prazer do ridículo,
ela chega à purificação de tal paixão. De como tal paixão é digna de consideração já
dissemos no livro sobre a alma, na medida em que - único entre todos os animais - o
homem é capaz de rir. Definiremos portanto de que tipo de ações a comédia é imitação,
em seguida examinaremos os modos como a comédia suscita o riso, e estes modos são os
fatos e o elóquio. Mostraremos como o ridículo dos fatos nasce da assimilação do melhor
ao pior e vice-versa, do surpreender enganando, do impossível e da violação das leis da
natureza, do irrelevante e do inconseqüente, do abaixamento dos personagens, do uso
das pantomimas grotescas e vulgares, da desarmonia, da escolha das coisas menos
dignas. Mostraremos em seguida como o ridículo do elóquio nasce dos equívocos entre
palavras semelhantes para coisas diversas e diversas para coisas semelhantes da
loquacidade e da repetição, dos jogos de palavras, dos diminutivos, dos erros de
pronúncia e dos barbarismos...
Guilherme traduzia com dificuldade, procurando as palavras justas, detendo-se a
espaços. Traduzindo, sorria, como se reconhecesse coisas que esperava encontrar. Leu
em voz alta a primeira página, depois parou, como se não lhe interessasse saber mais
nada, e folheou à pressa as páginas seguintes: mas depois de algumas folhas encontrou
uma resistência, porque sobre a margem lateral superior, e ao longo do corte, as folhas
estavam unidas umas às outras, como acontece quando - umedecidas e deterioradas - a
matéria do papel forma uma espécie de glute colante. Jorge percebeu que o roçar das
folhas viradas tinha cessado e incitou Guilherme.
- Vamos, lê, desfolha. É teu, bem o mereceste.
Guilherme riu, e parecia bastante divertido:
- Então não é verdade que me consideras tão sutil como isso, Jorge! Tu não vês, mas
tenho as luvas. Com os dedos assim embaraçados não consigo separar as folhas umas das
outras. Deveria proceder de mãos nuas, umedecer os dedos com a língua, como me
aconteceu fazer esta manhã lendo no scriptorium, de modo que de repente também este
mistério se me tornou claro, e deveria continuar a desfolhar assim enquanto uma boa
dose de veneno não me tivesse passado para a boca. Digo o veneno que tu um dia, há
muito tempo, tiraste do laboratório de Severino, talvez já então preocupado, porque
tinhas ouvido alguém no scriptorium manifestar uma certa curiosidade ou sobre o finis
Africae ou sobre o livro perdido de Aristóteles, ou sobre ambos. Creio que tu conservaste
a ampola durante longo tempo, reservando-te de fazer uso dela quando percebesses um
perigo. E percebeste-o há dias, quando por um lado Venancio chegou demasiado perto do
tema desce livro, e Berengário, por leviandade, por vanglória, para impressionar Adelmo,
se revelou menos secreto do que tu esperavas. Então vieste e preparaste a tua ratoeira.
Mesmo a tempo, porque algumas noites depois Venancio penetrou aqui, levou o livro,
desfolhou-o com ansiedade, com voracidade quase física. Em breve se sentiu mal, e
correu a procurar auxilio na cozinha. Onde morreu. Engano-me?
- Não, continua.
- O resto é simples. Berengário encontra o corpo de Venancio na cozinha, teme que
daí nasça um inquérito, porque no fundo Venancio estava de noite no Edifício como
conseqüência da sua primeira revelação a Adelmo. Não sabe o que fazer, carrega o corpo
às costas e lança-o na calha do sangue, pensando que todos se convenceriam que se
tinha afogado.
- E tu como sabes que aconteceu assim?
- Também tu o sabes, vi como reagiste quando encontraram um pano sujo de sangue
na cela de Berengário. Com o pano aquele irrefletido tinha limpo as mãos depois de ter
metido Venancio no sangue. Mas, uma vez que tinha desaparecido, Berengário não podia
senão ter desaparecido com o livro, que agora o tinha intrigado também a ele. E tu
esperavas que o encontrassem em qualquer parte, não ensangüentado, mas sim
envenenado. O resto é claro. Severino encontra o livro, porque Berengário tinha ido
primeiro ao hospital para o ler ao abrigo de olhos indiscretos. Malaquias mata Severino
instigado por ti, e morre quando volta aqui para saber o que havia de tão proibido no
objeto que o tinha feito tornar-se um assassino. Eis que temos uma explicação para todos
os cadáveres... Que estúpido...
- Quem?
- Eu. Por causa de uma frase de Alinardo tinha-me convencido que a série dos delitos
seguia o ritmo das sete trombetas do Apocalipse. O granizo para Adelmo, e era um
suicídio; o sangue para Venancio, e tinha sido uma idéia bizarra de Berengário; a água
para o próprio Berengário, e tinha sido um fato casual; a terça parte do céu para
Severino, e Malaquias tinha ferido com a esfera armilar porque era a única coisa que
tinha encontrado à mão. Por fim, os escorpiões para Malaquias... Porque lhe disseste que
o livro tinha a força de mil escorpiões?
- Por tua causa. Alinardo tinha-me comunicado a sua idéia, depois tinha ouvido a
alguém que tu também a tinhas achado persuasiva... Então convenci-me que um plano
divino regulava estes desaparecimentos de que eu não era responsável. E anunciei a
Malaquias que se fosse curioso pereceria segundo o mesmo plano divino, como de fato
aconteceu.
- É assim então... Fabriquei um esquema falso para interpretar as manobras do
culpado, e o culpado adequou-se a ele. E foi precisamente este esquema falso que me
pôs na tua pista. Nos nossos dias, todos estão obcecados pelo livro de João, mas tu
parecias-me aquele que mais meditava nele, e não tanto por causa das tuas especulações
sobre o Anticristo mas porque vinhas do país que produziu os Apocalipses mais
esplêndidos. Um dia alguém me disse que os códices mais belos deste livro, na
biblioteca, tinham sido trazidos por ti. Depois, um dia, Alinardo divagou sobre um
misterioso inimigo que tinha ido procurar livros a Silos (intrigou-me o fato de dizer que
tinha voltado antes do tempo para o reino das trevas: de momento podia pensar-se que
queria dizer que tinha morrido jovem, afinal aludia à tua cegueira). Silos fica perto de
Burgos, e esta manhã encontrei no catálogo uma série de aquisições que diziam respeito
a todos os Apocalipses hispânicos no período em que tu tinhas sucedido ou ias suceder a
Paulo de Rimini. E naquele grupo de aquisições estava também este livro. Mas não podia
ter a certeza de quanto tinha reconstruído enquanto não soube que o livro era em papel
de pano. Então recordei-me de Silos e tive a certeza. Naturalmente, à medida que
tomava forma a idéia deste livro e do seu poder venenoso malograva-se a idéia do
esquema apocalíptico, e no entanto não conseguia compreender como o livro e a
seqüência das trombetas levassem ambos a ti, e compreendi melhor a história do livro
precisamente na medida em que, orientado pela seqüência apocalíptica, era obrigado a
pensar em ti e nas tuas discussões sobre o riso. De modo que, esta noite, quando já não
acreditava no esquema apocalíptico, insisti em controlar as cavalariças, de onde
esperava o toque da sexta trombeta, e precisamente nas cavalariças, por outro acaso,
Adso forneceu-me a chave para entrar no finis Africae.
- Não te sigo - disse Jorge. - Tens orgulho em me mostrar como, seguindo a tua razão,
chegaste até mim, e no entanto demonstras-me que chegaste lá seguindo uma razão
errada. Que me queres dizer?
- Nada, a ti. Estou desconcertado, eis tudo. Mas não importa. Estou aqui.
- O Senhor tocava as sete trombetas. E tu, embora no teu erro, ouviste um eco
confuso daquele som.
- Isso já o disseste na tua prédica de ontem à noite. Procuras convencer-te que toda
esta história procedeu segundo um desígnio divino para ocultares a ti mesmo o fato que
és um assassino.
- Eu não matei ninguém. Cada um caiu seguindo o seu destino, por causa dos seus
pecados. Eu fui apenas um instrumento.
- Ontem disseste que também Judas foi um instrumento. Isto não impede que tenha
sido condenado.
- Aceito o risco da condenação. O Senhor me absolverá, porque sabe que agi para a
sua glória. O meu dever era proteger a biblioteca.
- Ainda há poucos momentos estavas pronto a matar-me também a mim, e mesmo este
rapaz...
- És mais sutil, mas não melhor que os outros.
- E agora que acontecerá, agora que fiz gorar a insídia?
- Veremos - respondeu Jorge. - Não quero necessariamente a tua morte. Talvez
consiga convencer-te. Mas diz-me primeiro, como adivinhaste que se tratava do segundo
livro de Aristóteles?
- Não me teriam bastado decerto os teus anátemas contra o riso, nem o pouco que
soube da discussão que tiveste com os outros. Fui ajudado por alguns apontamentos
deixados por Venancio. Não compreendia à primeira vista que coisa queriam dizer. Mas
havia algumas referências a uma pedra desavergonhada que rola pela planura, às cigarras
que cantarão de baixo da terra, aos venerandos figos. Já tinha lido qualquer coisa do
gênero: verifiquei nestes dias. São exemplos que Aristóteles já dava no primeiro livro da
Poética, e na Retórica. Depois recordei-me que Isidoro de Sevilha define a comédia como
qualquer coisa que conta stupra virginum et amores meretricum... Pouco a pouco
desenhou-se-me na mente este segundo livro como deveria ter sido. Poderia contar-to
quase todo sem ler as páginas que deveriam infetar-me. A comédia nasce nas komai, ou
seja, nas aldeias dos camponeses, como celebração jocosa depois de uma refeição ou de
uma festa. Não fala dos homens famosos e potentes, mas de seres vis e ridículos, não
malvados, e não termina com a morte dos protagonistas. Atinge o efeito de ridículo
mostrando, dos homens comuns, os defeitos e os vícios. Aqui, Aristóteles vê a disposição
para o riso como uma força boa, que pode ter também um valor cognitivo, quando
através de enigmas argutos e metáforas inesperadas, embora dizendo-nos as coisas
diferentes daquilo que são, como se mentisse, de fato obriga-nos a observá-las melhor, e
faz-nos dizer: aí está, as coisas eram mesmo assim, e eu não sabia. A verdade atingida
através da representação dos homens, e do mundo, piores do que são ou do que os
julgamos, piores em todo o caso de como os poemas heróicos, as tragédias, as vidas dos
santos no-los mostraram. É assim?
- Quase. Reconstruíste-o lendo outros livros?
- Sobre muitos dos quais estava trabalhando Venancio. Creio que Venancio andava há
muito à procura deste livro. Deve ter lido no catálogo as indicações que eu também li e
deve ter-se convencido que aquele era o livro que ele procurava. Mas não sabia como
entrar no finis Africae. Quando ouviu Berengário falar dele a Adelmo, então lançou-se
como o cão na pista de uma lebre.
- Foi assim, dei-me conta imediatamente. Compreendi que tinha chegado o momento
em que deveria defender a biblioteca com unhas e dentes...
- E aplicaste o ungüento. Deve ter sido difícil... no escuro.
- Hoje em dia vêem melhor as minhas mãos que os teus olhos. A Severino também
tinha tirado um pincel. E também eu usei as luvas. Foi uma bela idéia, não foi? Levaste
muito tempo a chegar lá...
- Sim. Eu pensava num engenho mais complexo, num dente envenenado ou algo de
semelhante. Devo dizer que a tua solução era exemplar, a vítima envenenava-se sozinha,
e precisamente na medida em que queria ler...
Dei-me conta, com um arrepio, que naquele momento aqueles dois homens,
enfrentando-se numa luta mortal, se admiravam mutuamente, como se cada um tivesse
agido apenas para obter o aplauso do outro. A minha mente foi atravessada pelo
pensamento que as artes desenvolvidas por Berengário para seduzir Adelmo e os gestos
simples e naturais com que a rapariga tinha suscitado a minha paixão e o meu desejo não
eram nada, quanto a astúcia e frenética habilidade em conquistar o outro, em face da
aventura de sedução que se desenrolava sob os meus olhos, naquele momento, e que se
tinha estendido ao longo de sete dias, cada um dos interlocutores dando, por assim
dizer, misteriosos encontros ao outro, cada um aspirando secretamente à aprovação do
outro, que temia e odiava.
- Mas agora diz-me - estava dizendo Guilherme - porquê? Porque quiseste proteger
este livro mais que tantos outros? Porque escondias, mas não a preço do delito, tratados
de necromancia, páginas em que se blasfemava, talvez, o nome de Deus, mas por estas
páginas condenaste os teus irmãos e te condenaste a ti próprio? Há tantos outros livros
que falam da comédia, tantos outros ainda que contêm o elogio do riso. Porque é que
este te incutia tanto pavor?
- Porque era do Filósofo. Cada um dos livros daquele homem destruiu uma parte da
sapiência que a cristandade tinha acumulado ao longo dos séculos. Os padres tinham dito
aquilo que era necessário saber sobre a potência do Verbo, e bastou que Boécio
comentasse o Filósofo para que o mistério divino do Verbo se transformasse na paródia
humana das categorias e do silogismo. O livro do Gênesis diz aquilo que é preciso saber
sobre a composição do cosmo, e bastou que se redescobrissem os livros físicos do Filósofo
para que o universo fosse repensado em termos de matéria surda e viscosa e para que o
árabe Averroes quase convencesse todos da eternidade do mundo. Sabíamos tudo sobre
os nomes divinos, e o dominicano sepultado por Abbone... seduzido pelo Filósofo...
voltou a nomeá-los seguindo os caminhos orgulhosos da razão natural. Assim, o cosmo,
que para o Aeropagita se manifestava a quem soubesse olhar para o alto da cascata
luminosa da causa primeira exemplar, tornou-se uma reserva de indícios terrestres dos
quais se remonta para nomear uma abstrata eficiência. Primeiro olhávamos para o céu,
dignando-nos lançar um olhar carregado à lama da matéria, agora olhamos para a terra e
cremos no céu sobre o testemunho da terra. Cada palavra do Filósofo, sobre quem hoje
em dia juram mesmo os santos e os pontífices, subverteu a imagem do mundo. Mas ele
não tinha conseguido subverter a imagem de Deus. Se este livro se tornasse... se tivesse
tornado matéria de aberta interpretação, teríamos franqueado o último limite.
- Mas que coisa te assustou neste discurso sobre o riso? Não eliminas o riso eliminando
este livro.
- Não, decerto. O riso é a fraqueza, a corrupção, a sensaboria da nossa carne. É o
folguedo para o camponês, a licença para o avinhado, mesmo a Igreja na sua sabedoria
concedeu o momento da festa, do carnaval, da feira, desta poluição diurna que
descarrega os humores e entrava outros desejos e outras ambições... Mas assim o riso
permanece coisa vil, defesa para os simples, mistérios desconsagrados para a plebe.
Também o dizia o apóstolo: em vez de arder, casai-vos. Em vez de vos rebelardes à
ordem querida por Deus, ride e deleitai-vos com as vossas imundas paródias da ordem,
no fim da refeição, depois de terdes esvaziado as canecas e os garrafões. Elegei o rei dos
imbecis, perdei-vos na liturgia do asno e do porco, jogai a representar as vossas saturnais
de cabeça para baixo... Mas aqui, aqui... - agora Jorge batia com o dedo na mesa, perto
do livro que Guilherme tinha à sua frente – aqui inverte-se a função do riso, eleva-se a
uma arte, abrem-se-lhe as portas do mundo dos doutos, faz-se dele objeto de filosofia e
de pérfida teologia... Tu viste ontem como os simples podem conceber, e pôr em
prática, as mais obscuras heresias, desconhecendo quer as leis de Deus quer as leis da
natureza. Mas a Igreja pode suportar a heresia dos simples, os quais se condenam por si
mesmos, arruinados pela sua ignorância. A inculta insensatez de Dolcino e dos seus pares
jamais porá em crise a ordem divina. Pregará violência e morrerá de violência, não
deixará marcas, consumir-se-á como se consome o carnaval, e não importa se durante a
festa se produziu na terra, e por breve tempo, a epifania do mundo às avessas. Basta que
o gesto não se transforme em desígnio, que este vulgar não encontre um latim que o
traduza. O riso liberta o vilão do medo do diabo, porque na festa dos tolos o próprio
diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que
libertar-se do medo do diabo é sapiência. Quando ri, enquanto o vinho lhe borbulha na
garganta, o vilão sente-se senhor, porque subverteu as relações de senhoria: mas este
livro poderia ensinar aos doutos os enigmas argutos, e a partir daquele momento ilustres,
com que legitimar a subversão. Então transformar-se-ia em operação do intelecto aquilo
que no gesto irrefletido do vilão é ainda e felizmente operação do ventre.
Que o riso seja próprio do homem é sinal dos nossos limites de pecadores. Mas deste
livro quantas mentes corruptas como a tua extrairiam o extremo silogismo, pelo qual o
riso é a finalidade do homem! O riso desvia, por alguns instantes, o vilão do medo. Mas a
lei impõe-se através do medo, cujo nome verdadeiro é temor de Deus. E deste livro
poderia partir a centelha luciferina que transmitiria ao mundo inteiro um novo incêndio:
e o riso designar-se-ia como a arte nova, ignorada até de Prometeu, para anular o medo.
Ao vilão que ri, naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua
licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E
deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da
libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais
provido e afetuoso dos dons divinos? Durante séculos, os doutores e os padres segregaram
perfumadas essências de santo saber para redimir, através do pensamento daquilo que é
alto, a miséria e a tentação daquilo que é baixo. E este livro, justificando como
miraculoso remédio a comédia, a sátira e o mimo, que produziriam a purificação das
paixões através da representação do defeito, do vício, da fraqueza, induziria os falsos
sábios a tentar redimir (com diabólica reviravolta) o alto através da aceitação do baixo.
Deste livro derivaria o pensamento que o homem pode querer sobre a terra (como
sugeria o teu Bacon a propósito da magia natural) a própria abundância do país de
Cocanha. Mas é isto que não devemos nem poderemos ter. Olha para os jovens monges
que perdem a vergonha na paródia burlesca da Coena Cyprians. Que diabólica
transfiguração da sagrada escritura! E no entanto, ao fazê-lo, sabem que isso é mal! Mas
no dia em que a palavra do Filósofo justificasse os jogos marginais da imaginação
desregrada, oh, então, verdadeiramente, aquilo que estava à margem saltaria para o
centro, e do dentro perder-se-ia qualquer rasto. O povo de Deus transformar-se-ia numa
assembléia de monstros expelidos dos abismos da terra incógnita, e naquele momento a
periferia da terra conhecida tornar-se-ia o coração do império cristão, os arimaspos no
trono de Pedro, os blemos nos mosteiros, os anões de ventre grande e de cabeça enorme
de guarda à biblioteca! Os servos a ditarem as leis, nós (mas então tu também) a
obedecermos à ausência de qualquer lei. Disse um filósofo grego (que o réu Aristóteles
aqui cita, cúmplice e imunda auctoritas) que se deve desmantelar a seriedade dos
adversários com o riso, e o riso adversário com a seriedade. A prudência dos nossos
padres fez a sua escolha: se o riso é o deleite da plebe, que a licença da plebe seja
refreada e humilhada, e atemorizada com a severidade. E a plebe não tem armas pare
afinar o seu riso até o fazer tornar instrumento contra a seriedade dos pastores que
devem conduzi-la à vida eterna e subtraí-la às seduções do ventre, das pudenta, da
comida, dos seus sórdidos desejos. Mas se alguém, um dia, agitando as palavras do
Filósofo, e portanto falando como filósofo, levasse a arte do riso à condição de arma
sutil, se à retórica da convicção se substituísse a retórica da irrisão, se à tópica da
paciente e salvadora construção das imagens da redenção se substituísse a tópica da
impaciente demo lição e do desvirtuamento de todas as imagens mais santas e
veneráveis... oh, nesse dia também tu e toda a tua sapiência, Guilherme, seríeis
arrasados!
- Porquê? Bater-me-ia, a minha argúcia contra a argúcia alheia. Seria um mundo
melhor que aquele em que o fogo e o ferro em brasa de Bernardo Gui humilham o fogo e
o ferro em brasa de Dolcino.
- Então estarias preso tu também na trama do demônio. Combaterias do outro lado do
campo do Armagedão, onde terá lugar o reencontro final. Mas para esse dia a Igreja deve
saber impor uma vez mais a regra do conflito. Não nos fez medo a blasfêmia, porque
mesmo na maldição de Deus reconhecemos a imagem extraviada da ira de Jeová, que
maldiz os anjos rebeldes. Não nos fez medo a violência de quem mata os pastores em
nome de qualquer fantasia de renovação, porque é a mesma violência dos princípios que
procuraram destruir o povo de Israel. Não nos faz medo o rigor do donatista, a loucura
suicida do circuncelião, a luxúria do bogomilo, a orgulhosa pureza do albigense, a
necessidade de sangue do flagelante, a vertigem do mal do irmão de espírito livre:
conhecemo-los a todos, e conhecemos a raiz dos seus pecados, que é a mesma raiz da
nossa santidade. Não nos fazem medo e sobretudo sabemos como destruí-los, melhor,
como deixar que se destruam por si levando orgulhosamente ao zênite a vontade de
morte que nasce dos próprios abismos do seu nadir. Aliás, queria dizer, a sua presença énos
preciosa, inscreve-se no desígnio de Deus, porque o seu pecado incita a nossa
virtude, a sua blasfêmia encoraja o nosso canto de louvor, a sua desregrada penitência
regula o nosso gosto do sacrifício, a sua impiedade faz resplandecer a nossa piedade, tal
como o príncipe das trevas foi necessário, com a sua rebelião e a sua desesperação, para
melhor fazer refulgir a glória de Deus, princípio e fim de toda a esperança. Ma se um
dia... e já não como exceção plebéia mas como ascese do douto, confiada ao
testemunho indestrutível da escritura... se fizesse aceitável, e aparecesse como nobre, e
liberal, e já não mecânica, a arte da irrisão, se um dia alguém pudesse dizer (e não ser
escutado): eu rio da Encarnação... então não teríamos armas para deter essa blasfêmia,
porque ela apelaria às forças obscuras da matéria corporal, aquelas que se afirmam no
peido e no arroto, e no arroto e o peido arrogariam para si o direito que é só do espírito,
de soprar onde quer!
- Licurgo tinha mandado erigir uma estátua ao riso.
- Leste isso no libelo de Clorício, que tentou absolver os mimos da acusação de
impiedade, que diz como um doente foi curado por um médico que o tinha ajudado a rir.
Porque era preciso curá-lo, se Deus tinha estabelecido que a sua jornada terrena tinha
chegado ao fim?
- Não creio que o tenha curado do mal. Ensinou-o a rir do mal.
- O mal não se exorciza. Destrói-se.
- Com o corpo do doente.
- Se for necessário.
- Tu és o diabo - disse então Guilherme.
Jorge pareceu não compreender. Se ele pudesse ver, eu diria que teria fixado o seu
interlocutor com olhar atônito.
- Eu? - disse.
- Sim, mentiram-te. O diabo não é o príncipe da matéria, o diabo é a arrogância do
espírito, a fé sem sorriso, a verdade que nunca é aflorada pela dúvida. O diabo é sombrio
porque sabe para onde vai, e, andando, vai sempre para o lugar de onde veio. Tu és o
diabo, e como o diabo vives nas trevas. Se querias convencer-me, não o conseguiste. Eu
odeio-te, Jorge, e se pudesse conduzir-te-ia lá para baixo, pelo planalto, nu, com penas
de voláteis enfiadas no olho do cú e a cara pintada como um malabarista e um bufão,
para que todo o mosteiro se risse de ti e não mais tivesse medo. Gostaria de te barrar de
mel e depois enrolar-te nas plumas, levar-te à trela pelas feiras, para dizer a todos: este
anunciava-vos a verdade e dizia-vos que a verdade tem o sabor da morte, e vós não
acreditáveis na sua palavra, mas sim na sua triste figura. E agora eu digo-vos que, na
infinita vertigem dos possíveis, Deus também vos consente que imagineis um mundo em
que o presumível intérprete da verdade não seja mais que um melro desajeitado, que
repete palavras aprendidas há muito tempo.
- Tu és pior que o diabo, menorita - disse então Jorge. - És um jogral, como o santo
que vos pariu. És como o teu Francisco, que de toto corpore fecerat linguam, que fazia
sermões dando espetáculos como os saltimbancos, que confundia o avaro metendo-lhe na
mão moedas de ouro, que humilhava a devoção das freiras recitando o Miserere em vez
da prédica, que mendigava em francês, e imitava com um pedaço de madeira os
movimentos de quem toca violino, que se vestia de vagabundo para confundir os frades
glutões, que se lançava nu sobre a neve, falava com os animais e as ervas, transformava
o próprio mistério da natividade em espetáculo de aldeia, invocava o cordeiro de Belém
imitando o balido da ovelha... Foi uma boa escola... Não era menorita aquele frade
Deustesalve de Florença?
- Sim - sorriu Guilherme. - Aquele que foi ao convento dos pregadores e disse que não
aceitaria comida se primeiro não lhe dessem um pedaço da túnica de frei João, para
conservar como relíquia, e quando lha deram limpou a ela o traseiro e depois lançou-a na
estrumeira, e com uma vara enrolava-a no esterco gritando: ai de mim, ajudai-me
irmãos, porque perdi na latrina as relíquias do santo!
- Diverte-te esta história, parece-me. Talvez queiras contar-me também aquela do
outro menorita, frade Paulo Milmoscas, que um dia caiu ao comprido sobre o gelo, e os
seus cidadãos troçaram dele, e um perguntou-lhe se não queria ter algo de melhor
debaixo de si, e ele respondeu-lhe: sim, a tua mulher... Assim vós procurais a verdade.
- Assim Francisco ensinava a gente a olhar para as coisas de outra maneira.
- Mas disciplinamo-vos. Viste-os ontem, os teus irmãos. Reentraram nas nossas fileiras,
já não falam como os simples. Os simples não devem falar. Este livro justificaria a idéia
que a língua dos simples é portadora de uma certa sabedoria. Era necessário impedir
isso, foi o que eu fiz. Tu dizes que eu sou o diabo: não é verdade. Eu fui a mão de Deus.
- Há limites para além dos quais não é permitido ir. Deus quis que sobre certos papéis
fosse escrito: hic sunt leones.
- Deus também criou os monstros. Mesmo a ti. E de tudo quer que se fale.
Jorge alongou as mãos trêmulas e puxou para si o livro. Tinha-o aberto, mas ao
contrário, de modo que Guilherme continuasse a vê-lo pelo lado justo.
- Então porque é que - disse - deixou que este texto andasse perdido ao longo do curso
dos séculos, e se salvasse só uma cópia, que a cópia daquela cópia, que foi parar sabe-se
lá onde, permanecesse sepultada durante anos nas mãos de um infiel que não conhecia o
grego e depois jazesse abandonada no reduto de uma velha biblioteca onde eu, não tu,
eu fui chamado pela providência a encontrá-la, e a trazê-la comigo, e a escondê-la
durante mais anos ainda? Eu sei, sei como se o visse escrito em letras de diamante, com
os meus olhos que vêem coisas que tu não vês, eu sei que esta era a vontade do Senhor,
segundo a qual eu agi. Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo.
SÉTIMO DIA
NOITE
Onde sobrevêm a ectirose e por causa da demasiada virtude prevalecem as forças do
inferno.
O velho calou-se. Conservava ambas as mãos abertas sobre o livro, como se lhe
acariciasse as páginas, como se estivesse estendendo as folhas para o ler melhor, ou
quisesse protegê-lo de uma presa rapace.
- Tudo isto não serviu afinal de nada - disse-lhe Guilherme. - Agora acabou-se,
encontrei-te, encontrei o livro, e os outros morreram em vão.
- Não em vão - disse Jorge. - Talvez em excesso. E, se acaso te servia uma prova de
que este livro é maldito, tiveste-a. Mas não devem ter morrido em vão. E, a fim de que
não tenham morrido em vão, uma morte não será de mais.
Disse, e começou com as suas mãos descarnadas e diáfanas a rasgar lentamente, aos
pedaços e às tiras, as páginas moles do manuscrito, metendo-os à boca aos bocados e
mastigando-os lentamente como se consumisse a hóstia e quisesse fazê-la carne da sua
própria carne.
Guilherme olhava-o fascinado e parecia não se dar conta do que se passava. Depois
sacudiu-se e debruçou-se para a frente, gritando:
- Que fazes?
Jorge sorriu, descobrindo as gengivas exangues, enquanto uma baba amarela lhe
corria dos lábios pálidos sobre a penugem branca e rala do queixo.
- És tu que esperavas o som da sétima trombeta, não é verdade? Escuta agora o que
diz a voz: sela aquilo que disseram os sete trovões e não o escrevas, toma-o e devora-o,
isso amargará ao teu ventre mas à tua boca será doce como o mel. Vês? Agora selo aquilo
que não devia ser dito, na trombeta em que me torno.
Riu, precisamente ele, Jorge. Pela primeira vez o ouvi rir... Riu com a garganta, sem
que os lábios adquirissem uma expressão de alegria, e quase parecia que chorava:
- Não esperavas, Guilherme, esta conclusão, verdade? Este velho pela graça do
Senhor, ainda vence, não é verdade?
E, como Guilherme procurava tirar-lhe o livro, Jorge, que pressentiu o gesto
percebendo a vibração do ar, retrocedeu, apertando o volume ao peito com a mão
esquerda enquanto com a direita continuava a rasgar-lhe as páginas e a metê-las à boca.
Estava do outro lado da mesa, e Guilherme, que não conseguia tocar-lhe, tentou
bruscamente contornar o obstáculo. Mas fez cair o seu banco, enredando nele a veste,
de modo que Jorge teve ocasião de perceber o alvoroço. O velho riu ainda, desta vez
mais alto, e com insuspeitada rapidez estendeu a mão direita, localizando às apalpadelas
a candeia, guiado pelo calor atingiu a chama e carregou-lhe em cima com a mão, sem
temer a dor, e a chama apagou-se. A sala mergulhou na obscuridade, e ouvimos pela
última vez a risada de Jorge, que gritava:
- Encontrai-me agora, porque agora sou eu que vejo melhor!
Depois calou-se e não se fez ouvir mais, movendo-se com aqueles passos silenciosos
que tornavam sempre tão inesperadas as suas aparições, e só ouvíamos por momentos,
em pontos diversos da sala, o rumor do papel que se rasgava.
- Adso! - gritou Guilherme -, fica à porta, não o deixes sair!
Mas tinha falado demasiado tarde, porque eu, que já há alguns segundos fremia com o
desejo de me lançar sobre o velho, ao cair da treva tinha-me atirado para a frente,
procurando contornar a mesa do lado oposto àquele em que se tinha movido o meu
mestre. Demasiado tarde compreendi que tinha dado espaço a Jorge de alcançar a porta,
porque o velho sabia dirigir-se no escuro com extraordinária segurança. E de fato
ouvimos um rumor de papel rasgado atrás de nós, e bastante atenuado, porque já
provinha da sala contígua. E ao mesmo tempo ouvimos outro rumor, um rangido forçado
e progressivo, um gemer de gonzos.
- O espelho! - gritou Guilherme. - Está a fechar-nos cá dentro!
Guiados pelo rumor, ambos nos atiramos para a entrada, eu tropecei num escabelo e
contundi uma perna, mas não fiz caso, porque num relâmpago compreendi que, se Jorge
nos tivesse encerrado, nunca mais sairíamos: no escuro não encontraríamos o modo de
abrir, não sabendo daquele lado o que se devia manobrar e como.
Creio que Guilherme se movia com a mesma desesperação que eu, porque o senti a
meu lado enquanto ambos, alcançada a soleira, nos empurrávamos contra a parte de trás
do espelho que se estava fechando sobre nós. Chegamos a tempo, porque a porta
deteve-se e pouco depois cedeu, reabrindo-se. Evidentemente, Jorge, advertindo que o
jogo era desigual, tinha-se afastado. Saímos da sala maldita, mas agora não sabíamos
para onde se tinha dirigido o velho, e a escuridão continuava a ser total. De repente
lembrei-me:
- Mestre, mas eu tenho comigo o fuzil!
- Então que esperas? - gritou Guilherme -, procura a lâmpada e acende-a!
Eu lancei-me no escuro, voltando ao finis Africae, procurando a candeia, às
apalpadelas. Consegui logo, por milagre divino, rebusquei no escapulário, encontrei o
fuzil, as mãos tremiam-me e falhei duas ou três vezes antes de o acender, enquanto
Guilherme ofegava da porta.
- Depressa, depressa! - e finalmente fiz luz. - Depressa - incitou-me ainda Guilherme -
, senão aquele come o Aristóteles todo!
- E morre! - gritei eu angustiado, alcançando-o e pondo-me com ele à procura.
- Não me importa que morra, o maldito! - gritava Guilherme, cravando os olhos em
redor e movendo-se de modo desordenado. - De qualquer maneira com aquilo que comeu
o seu destino já está marcado. Mas eu queria o livro! - Depois parou, e acrescentou com
mais calma: - Pára. Se fizermos assim, nunca mais o encontramos. Calados e quietos um
instante.
Imobilizamo-nos em silêncio. E no silêncio ouvimos não muito longe o rumor de um
corpo que chocava com um armário e o estrépido de alguns livros que caíam.
- Por ali! - gritamos ao mesmo tempo.
Corremos na direção dos rumores, mas logo nos demos conta que devíamos abrandar o
passo. De fato fora do finis Africae, a biblioteca era atravessada naquela noite por
rajadas de ar que sibilavam e gemiam na proporção do vento forte do exterior.
Multiplicadas pelo nosso ímpeto, elas ameaçavam apagar a candeia, tão duramente
reconquistada. Não podendo nós acelerar, seria mister abrandar Jorge. Mas Guilherme
teve a intuição oposta e gritou:
- Apanhamos-te, velho, agora temos a luz!
E foi sábia resolução, porque a revelação pôs provavelmente em agitação Jorge, que
deve ter acelerado o passo, comprometendo o equilíbrio daquela sua mágica
sensibilidade de vidente das trevas. De fato, pouco depois ouvimos um outro rumor e,
quando, segundo o som, entramos na sala Y de YSPANA, vimo-lo, caído por terra, o livro
ainda nas mãos, enquanto procurava levantar-se no meio dos volumes que se tinham
precipitado da mesa em que ele tinha chocado e que havia virado. Procurava levantar-se
mas continuava a rasgar as páginas, como para devorar o mais depressa possível a sua
presa.
Alcançamo-lo quando já se tinha levantado, e sentindo a nossa presença enfrentavanos
recuando. O seu rosto, à claridade vermelha da candeia, pareceu-nos agora
horrendo: as feições alteradas, um suor maligno estriava-lhe a fronte e as faces, os olhos
habitualmente brancos de morte tinham-se injetado de sangue, da boca saíam-lhe
farrapos de pergaminho como a uma fera famélica que se tivesse empanturrado de mais
e já não conseguisse tragar a sua comida. Desfigurado pela ansiedade, pelo ataque do
veneno que agora já lhe serpenteava abundantemente nas veias, pela sua desesperada e
diabólica determinação, aquela que tinha sido a figura venerável do velho parecia agora
repugnante e grotesca: noutros momentos poderia mover ao riso, mas também nós
estávamos reduzidos ao estado de animais, a cães que perseguem a caça.
Poderíamos tê-lo agarrado com calma, em vez disso precipitamo-nos sobre ele com
ênfase, ele debateu-se, apertou as mãos sobre o peito defendendo o volume, eu
segurava-o com a mão esquerda enquanto com a direita procurava manter alta a
candeia, mas rocei-lhe o rosto com a chama, ele pressentiu o calor, emitiu um som
sufocado, um rugido, quase, deixando cair da boca pedaços de papel, abandonou a mão
direita com que agarrava o livro, moveu a mão para a candeia e arrebatou-ma de
repente, lançando-a para a frente...
A candeia foi cair precisamente no monte de livros caídos da mesa, amontoados uns
sobre os outros com as páginas abertas. O azeite entornou-se, o fogo pegou-se logo a um
pergaminho fragilíssimo que ardeu como um feixe de galhos secos. Tudo aconteceu em
poucos instantes, uma grande labareda elevou-se dos volumes, como se aquelas páginas
milenares anelassem há séculos pelo ardor e se alegrassem em satisfazer de repente uma
imemorial sede de ecpirose. Guilherme apercebeu-se de quanto estava acontecendo e
abandonou a presa sobre o velho - o qual, sentindo-se livre, recuou alguns passos -,
hesitou um tanto, decerto de mais, sem saber se havia de voltar a agarrar Jorge ou
lançar-se a apagar a pequena fogueira. Um livro mais velho que os outros ardeu quase de
repente, lançando para o alto uma língua de fogo.
As finas lamelas do vento, que podiam apagar uma débil chamazinha, encorajavam
pelo contrário uma mais forte e vivaz, e faziam mesmo brotar dela línguas de fogo
errantes.
- Apaga aquele fogo, depressa! - gritou Guilherme. - Aqui arde tudo!
Eu lancei-me em direção à fogueira, depois parei, porque não sabia o que fazer.
Guilherme moveu-se ainda em direção a mim, para vir em meu auxílio. Estendemos as
mãos para o incêndio, procuramos com os olhos qualquer coisa com que o sufocar, eu
tive como uma inspiração, tirei a veste despindo-a pela cabeça e procurei lança-la sobre
o braseiro. Mas as labaredas eram agora demasiado altas, morderam a minha veste e
dela se alimentaram. Retirei as mãos, que se tinham queimado, voltei-me para
Guilherme e vi, mesmo por trás dele, Jorge, que se tinha aproximado de novo. O calor
era agora tão forte que ele sentiu-o perfeitamente, soube com absoluta certeza onde
estava o fogo, e para aí atirou o Aristóteles.
Guilherme teve um gesto de ira e deu um empurrão violento ao velho, que chocou
com um armário, batendo com a cabeça contra uma esquina e caindo por terra... Mas
Guilherme, a quem creio ter ouvido pronunciar uma horrível blasfêmia, não se
preocupou com ele. Voltou aos livros. Demasiado tarde. O Aristóteles, ou melhor, quanto
dele tinha restado da refeição do velho, já estava a arder.
Entretanto algumas chamas tinham subido pelas paredes e já os volumes de um outro
armário se encontravam encarquilhando sob o ímpeto do fogo. A partir de então, não um
mas dois incêndios abrasavam a sala.
Guilherme compreendeu que não poderíamos apaga-los com as mãos, e resolveu salvar
os livros com os livros. Agarrou num volume que lhe pareceu melhor encadernado que os
outros, e mais compacto, e procurou usá-lo como uma arma para sufocar o elemento
inimigo. Mas, batendo com a encadernação guarnecida de tachas sobre a pira dos livros a
arder, não fazia mais que suscitar novas centelhas. Procurou dispersá-las com os pés,
mas obteve o efeito oposto, porque se levantaram no ar pedaços de pergaminho quase
reduzido a cinzas que esvoaçavam como morcegos pelo ar aliado ao seu aéreo
companheiro os enviava a incendiar a matéria terrestre de outras folhas.
A desventura quisera que aquela fosse uma das salas mais desordenadas do labirinto.
Das prateleiras dos armários pendiam manuscritos enrolados, outros livros já desligados
deixavam despontar das suas capas, como de lábios hiantes, línguas de velo ressequido
pelos anos, e a mesa devia ter contido uma quantidade grande de escritos que Malaquias
(então sozinho há alguns dias) tinha descurado arrumar. De maneira que a sala, depois
da ruína provocada por Jorge, estava invadida de pergaminhos que não esperavam mais
que transformar-se noutro elemento.
Em muito pouco tempo a sala ficou um braseiro, uma carca ardente. Também os
armários participavam naquele sacrifício e começaram a crepitar. Dei-me conta que todo
o labirinto não era mais que uma imensa pira sacrificial, preparada à espera da primeira
fagulha...
- Água, é preciso água! - dizia Guilherme, mas depois acrescentava. - E onde se
encontra água neste inferno?
- Na cozinha, em baixo, na cozinha! - gritei.
Guilherme olhou-me perplexo, com o rosto avermelhado por aquele furioso clarão.
- Sim, mas antes que desçamos e voltemos a subir... Ao diabo! - gritou depois -, em
qualquer caso esta sala está perdida, e talvez também a seguinte. Descíamos
imediatamente, eu procuro água, e tu vai dar o alarme, é preciso muita gente!
Encontramos o caminho da escada, porque a conflagração iluminava também as salas
sucessivas, embora cada vez mais debilmente, de modo que percorremos as últimas duas
salas quase às apalpadelas. Em baixo, a luz da noite iluminava palidamente o
scriptorium, e dali descemos ao refeitório. Guilherme correu à cozinha, eu à porta do
refeitório, manobrando para a abrir do interior, o que consegui depois de não pouco
trabalho, porque a agitação me tornava desajeitado e inábil. Sai para o planalto, corri
para o dormitório, depois compreendi que não poderia acordar os monges um a um, tive
uma inspiração, fui à igreja, procurando o caminho para a torre do campanário. Logo que
ai cheguei, agarrei-me a todas as cordas, tocando a rebate. Puxava com força, e a corda
do sino maior, subindo de novo, arrastava-me consigo. As mãos na biblioteca tinham-seme
queimado nas costas, ainda tinha as palmas sãs, de modo que as queimei fazendo-as
deslizar ao longo das cordas, até que sangraram e tive de largar tudo.
Mas já tinha feito bastante barulho, precipitei-me para o exterior, a tempo de ver os
primeiros monges que saíam do dormitório, enquanto de longe se ouviam as vozes dos
servos que estavam assomando à soleira dos seus alojamentos. Não pude explicar-me
bem, porque estava incapaz de formular palavras, e as primeiras que me vieram aos
lábios foram na minha língua materna. Com a mão ensangüentada indicava as janelas da
ala meridional do Edifício das quais transparecia, através do alabastro, um clarão
anormal. Dei-me conta, pela intensidade da luz, que, enquanto descia e tocava os sinos,
o fogo se tinha propagado já a outras salas. Todas as janelas da África e toda a fachada
entre esta e o torreão oriental reluziam agora com clarões desiguais.
- Água, trazei água! - gritava eu.
A primeira ninguém compreendeu. Os monges estavam tão habituados a considerar a
biblioteca um lugar sagrado e inacessível que não conseguiam capacitar-se de que ela
fosse ameaçada por um acidente vulgar, como uma cabana de camponeses. Os primeiros
que elevaram o olhar para as janelas benzeram-se murmurando palavras de espanto, e
compreendi que acreditavam em novas aparições. Agarrei-me às suas vestes, imploreilhes
que compreendessem, até que alguém traduziu os meus soluços em palavras
humanas.
Era Nicolau de Morimondo, que disse:
- A biblioteca está a arder!
- Pois - murmurei, deixando-me cair desfalecido por terra.
Nicolau deu prova de grande energia, gritou ordens aos servos, deu conselhos aos
monges que o rodeavam, enviou alguém a abrir as outras portas do Edifício, impeliu
outros a procurarem baldes e recipientes de toda a espécie, orientou os presentes para
as nascentes e os depósitos de água da cerca. Ordenou aos vaqueiros que usassem os
mulos e os burros para transportarem cântaros... Se tivesse sido um homem dotado de
autoridade a dar estas disposições teria sido imediatamente obedecido. Mas os servos
estavam habituados a receber ordens de Remígio, os copistas de Malaquias, todos do
Abade. E nenhum dos três estava, infelizmente, presente. Os monges procuravam com os
olhos o Abade, à procura de indicações e de conforto, e não o encontravam, e só eu
sabia que ele estava morto, ou estava morrendo naquele momento, murado num túnel
asfixiante que agora se estava transformando num forno, num touro de Faláride.
Nicolau empurrava os vaqueiros para um lado, mas algum outro monge, animado de
boas intenções, empurrava-os para o outro. Alguns irmãos tinham evidentemente perdido
a calma, outros estavam ainda entorpecidos pelo sono. Eu procurava explicar, porque já
tinha recuperado o uso da palavra, mas é necessário recordar que estava quase nu,
tendo deitado a túnica às chamas, e a vista do rapaz que eu era, ensangüentado, de
rosto enegrecido pela fuligem de corpo indecentemente imberbe, atarantado agora pelo
frio, não devia decerto inspirar confiança.
Finalmente, Nicolau conseguiu arrastar alguns irmãos e outra gente para a cozinha,
que entretanto alguém tinha tornado acessível. Mais alguém teve o bom senso de trazer
tochas. Encontramos o local em grande desordem, e compreendi que Guilherme devia têlo
posto em desalinho para procurar água e recipientes adequados para a transportar.
Vi naquele entretanto o próprio Guilherme, que desembocava da porta do refeitório,
com o rosto chamuscado, o hábito fumegante, na mão tinha uma grande marmita, e
senti piedade dele, pobre alegoria da impotência. Compreendi que, se acaso tinha
conseguido transportar ao segundo andar uma panela de água sem a entornar, e se acaso
o tinha feito mais de uma vez, devia ter obtido bem pouco. Lembrei-me da história de
Santo Agostinho, quando vê uma criança que tenta transvasar a água do mar com uma
colher: a criança era um anjo, e fazia isso para brincar com o santo, que pretendia
penetrar os mistérios da natureza divina. E como o anjo me falou Guilherme, apoiandose
exausto ao pé direito da porta:
- É impossível, jamais conseguiremos, nem sequer com todos os monges da abadia. A
biblioteca está perdida.
Contrariamente ao anjo, Guilherme chorava.
Eu apertei-me a ele, enquanto ele arrancava de uma mesa um pano e tentava cobrirme.
Paramos a observar, já derrotados, aquilo que acontecia a nossa volta.
Era um acorrer desordenado de gente, alguns subiam de mãos vazias e cruzavam-se
pela escada de caracol com quem de mãos vazias, impelido por estúpida curiosidade, já
tinha subido e agora descia a procurar recipientes. Outros mais avisados procuravam logo
panelas e bacias, para perceberem que na cozinha não havia água bastante. De
improviso, a enorme sala foi invadida por alguns mulos que transportavam cântaros, e os
vaqueiros que os empurravam descarregaram-nos e fizeram menção de transportar a
água para cima. Mas não sabiam o caminho para subir ao scriptorium, e foi preciso tempo
antes que algum dos copistas os instruíssem, e quando subiam chocavam com os que
desciam aterrorizados. Alguns dos cântaros quebraram-se e espalharam a água pelo chão,
outros foram passados ao longo da escada de caracol por mãos diligentes. Segui o grupo e
achei-me no scriptorium: do acesso à biblioteca provinha um fumo denso, os últimos que
tinham tentado subir até ao torreão oriental já voltavam, tossindo, com os olhos
vermelhos, e declaravam que já não se podia penetrar naquele inferno.
Vi então Bêncio. De rosto alterado, com um enorme recipiente subia do andar inferior.
Ouviu aquilo que diziam os foragidos e apostrofou-os:
- O inferno engolir-vos-á a todos, covardes! - Voltou-se como para procurar auxílio e
viu-me:
- Adso - gritou -, a biblioteca... a biblioteca...
Não esperou pela minha resposta. Correu para os pés da escada e penetrou
ousadamente no fumo. Foi a última vez que o vi.
Ouvi um rangido que provinha de cima. Das abóbadas do scriptorium caíam pedaços de
pedra misturados com cal. Uma chave de abóbada esculpida em forma de flor soltou-se e
quase me caía na cabeça. O pavimento do labirinto estava cedendo.
Desci a correr ao rés-do-chão e saí para o ar livre. Alguns servos diligentes tinham
trazido escadas com as quais tentavam alcançar as janelas dos andares altos e fazer
passar a água por aquela via. Mas as escadas mais altas mal chegavam às janelas do
scriptorium, e quem ali tinha subido não podia abri-las do exterior. Mandaram dizer que
as abrissem do interior, mas já ninguém agora ousava subir.
Entretanto, eu observava as janelas do terceiro andar. A biblioteca toda devia ter-se
tornado já um único braseiro fumegante, e o fogo agora corria de sala em sala, abrindose
rápido nos milhares de páginas secas. Todas as janelas estavam agora iluminadas, um
fumo negro saía pelo teto: o fogo já se tinha comunicado às traves de cobertura. O
Edifício, que parecia tão sólido e tetrágono, revelava naquela circunstancia a sua
fraqueza, as suas fendas, os muros comidos a partir do interior, as pedras esboroadas que
permitiam à chama atingir as estruturas de madeira onde quer que elas estivessem.
De repente, algumas janelas despedaçaram-se como comprimidos por uma força
interna, as centelhas saíram para o ar livre salpicando de luzes errantes o escuro da
noite. O vento, primeiro forte, tinha-se tornado mais leve, e foi desventura porque,
forte, teria talvez apagado as centelhas, leve transportava-as, excitando-as, e com elas
fazia voltear no ar pedaços de pergaminho que um facho interno tornara mais finos.
Naquela altura ouviu-se um estrondo: o pavimento do labirinto tinha cedido nalguns
pontos, precipitando as suas traves chamejantes no andar inferior, porque então vi
línguas de chama levantarem-se do scriptorium, também ele povoado de livros e de
armários, e de papéis soltos, espalhados pelas mesas, prontas para a solicitação das
centelhas. Ouvi gritos de desespero provenientes de um grupo de copistas que se
arrancavam os cabelos e ainda se propunham subir heroicamente, para recuperarem os
seus tão amados pergaminhos. Em vão, que a cozinha e o refeitório eram agora uma
encruzilhada de almas perdidas que se agitavam em todas as direções, onde cada um
fazia obstáculo aos outros. A gente chocava, caía, quem tinha um recipiente entornavalhe
o salvítico conteúdo, os mulos que tinham penetrado na cozinha tinham percebido a
presença do fogo e pateando precipitavam-se para as saídas, chocando com os humanas
e os seus próprios assustadíssimos palafreneiros. Via-se bem que, de qualquer modo,
aquela turba de vilãos e de homens devotos e sábios, mas extremamente inábeis, não
dirigida por alguém estava estorvando mesmo os socorros que acaso tivessem podido
chegar.
Todo o planalto era dominado pela desordem. Mas estava-se apenas no início da
tragédia. Porque, saindo pelas janelas e pelo teto, a nuvem agora triunfante das
centelhas, encorajada pelo vento, estava caindo por todo o lado, tocando as coberturas
da igreja. Não há quem não saiba quantas esplêndidas catedrais foram vulneráveis à
mordedura do fogo: porque a casa de Deus aparece bela e bem defendida como a
Jerusalém celeste por causa da pedra de que faz gala, mas as muralhas e as abóbadas
são sustentadas por uma frágil, embora admirável, arquitetura de madeira, e se a igreja
de pedra recorda as florestas mais veneráveis pelas suas colunas que se ramificam no
alto das abóbadas, ousadas como carvalhos, do carvalho tem muitas vezes o corpo-como
tem igualmente de madeira todo o seu recheio, os altares, os coros, as tábuas pintadas,
os bancos, os cadeirões, os candelabros. Assim aconteceu à igreja abacial de portal
belíssimo que tanto me tinha fascinado no primeiro dia. Ela incendiou-se em brevíssimo
tempo. Os monges e toda a população do planalto compreenderam então que estava em
jogo a própria sobrevivência da abadia, e todos se puseram a correr ainda mais arrojada
e desordenadamente para fazer frente ao perigo.
Decerto que a igreja era mais acessível e portanto mais fácil de defender que a
biblioteca. A biblioteca tinha sido condenada pela sua própria impenetrabilidade, pelo
mistério que a protegia, pela avareza dos seus acessos. A igreja, aberta maternalmente a
todos na hora da oração, a todos estava aberta na hora do socorro. Mas não havia mais
água, ou pelo menos muito pouca se podia encontrar depositada em quantidade
suficiente, as nascentes forneciam-na com natural parcimônia e com lentidão não
proporcional à urgência da tarefa. Todos poderiam ter apagado o incêndio da igreja,
ninguém sabia agora como. Além disso, o fogo tinha-se comunicado por cima, onde era
difícil içar-se para combater as chamas ou sufocá-las com terra e trapos. E, quando as
chamas chegaram de baixo, era já inútil deitar-lhes terra ou areia que o teto ruía agora
sobre os que traziam socorro, derrubando não poucos.
Assim, aos gritos de lamento pelas muitas riquezas que ardiam estavam agora a unir-se
os gritos de dor pelos rostos queimados, os membros esmagados, os corpos desaparecidos
sob um repentino precipitar de abóbadas.
O vento tinha-se feito de novo impetuoso e mais impetuosamente alimentava o
contágio. Logo depois da igreja incendiaram-se os estábulos e as cavalariças. Os animais
aterrorizados, quebraram as suas cordas, derrubaram as portas, espalharam-se pelo
planalto relinchando, mugindo, balindo, grunhindo horrivelmente. Algumas centelhas
atingiram as crinas de muitos cavalos, e viu-se a esplanada percorrida por criaturas
infernais, por corcéis flamejantes que derrubavam tudo no seu caminho que não tinha
nem meta nem trégua. Vi o velho Alinardo, que errava perdido sem ter compreendido o
que acontecia, derrubado pelo magnífico Brunello, aureolado de fogo, transportado para
o pó e aí abandonado, pobre coisa informe. Mas não tive nem modo nem tempo de o
socorrer, nem de chorar o seu fim, porque cenas como aquela repetiam-se agora por
toda a parte.
Os cavalos em chamas tinham transportado o fogo para onde o vento não o tinha ainda
feito: agora ardiam também as oficinas e a casa dos noviços. Bandos de pessoas corriam
de um lado para o outro da esplanada, sem meta ou com metas ilusórias. Vi Nicolau, com
a cabeça ferida, o hábito em farrapos, que já vencido, de joelhos na alameda de acesso,
maldizia a maldição divina. Vi Pacífico de Tivoli, que, renunciando a qualquer idéia de
socorro, estava procurando agarrar à passagem um mulo à desfilada, e como conseguiu
gritou-me que também eu fizesse a mesma coisa e que fugisse, para escapar àquele
torvo simulacro de Armagedão.
Perguntei-me onde estava Guilherme e temi que tivesse sido derrubado por um
desabamento. Encontrei-o depois de longa busca nas proximidades do claustro. Tinha na
mão a sua saca de viagem: quando o fogo já se comunicava à casa dos peregrinos tinha
subido à sua cela para salvar ao menos as suas preciosíssimas coisas. Tinha trazido
também a minha saca, onde encontrei alguma coisa com que me vestir. Detivemo-nos
ofegantes a observar o que acontecia em redor.
Agora a abadia estava condenada. Quase todos os seus edifícios estavam, uns mais
outros menos, atingidos pelo fogo. Os que estavam ainda intactos não o seriam dentro
em pouco, porque tudo agora, desde os elementos naturais à obra confusa dos que
socorriam, colaborava para propagar o incêndio. Permaneciam salvas as partes não
edificadas, o horto, o jardim diante do claustro... Não se podia fazer mais nada para
salvar as construções, mas bastava abandonar a idéia de salvá-las para se poder observar
tudo sem perigo, estando em zona aberta.
Olhamos para a igreja, que agora ardia lentamente, porque é próprio destas grandes
construções arder logo nas partes lenhosas e depois agonizar durante horas, por vezes
durante dias. Diversamente ardia agora o Edifício. Aqui, o material combustível era
muito mais rico, o fogo já propagado de todo pelo scriptorium tinha agora invadido o
andar da cozinha. Quanto ao terceiro andar, onde outrora e durante centenas de anos
tinha sido o labirinto, estava agora praticamente destruído.
- Era a maior biblioteca da cristandade - disse Guilherme. - Agora - acrescentou - o
Anticristo está verdadeiramente próximo, porque nenhuma sapiência lhe fará mais de
barreira. Por outro lado vimos o seu vulto esta noite.
- O vulto de quem? - perguntei, aturdido.
- Jorge, quero eu dizer. Naquele rosto devastado pelo ódio contra a filosofia vi pela
primeira vez o retrato do Anticristo, que não vem da tribo de Judas, como pretendem os
seus anunciadores, nem de um país longínquo. O Anticristo pode nascer da própria
piedade, do excessivo amor de Deus ou da verdade, como o herege nasce do santo e o
endemoninhado do vidente. Teme, Adso, os profetas e aqueles que estão dispostos a
morrer pela verdade, que de costume fazem morrer muitíssimos com eles,
freqüentemente antes deles, por vezes em seu lugar. Jorge cumpriu uma obra diabólica
porque amava de modo tão lúbrico a sua verdade que ousava tudo com a condição de
destruir a mentira. Jorge temia o segundo livro de Aristóteles porque ele ensinava talvez
a deformar deveras o rosto de toda a verdade, a fim de que não nos tornássemos
escravos dos nossos fantasmas. Talvez a tarefa de quem ama os homens seja fazer rir da
verdade, fazer rir a verdade, porque a única verdade é aprender a libertar-nos da paixão
insana pela verdade.
- Mas, mestre - arrisquei dolente -, vós agora falais assim porque estais ferido no mais
profundo da vossa alma. Porém há uma verdade, aquela que descobristes esta noite,
aquela a que chegastes interpretando as pistas que lestes nos últimos dias. Jorge venceu,
mas vós vencestes Jorge, porque puseste a nu a sua trama...
- Não havia uma trama - disse Guilherme -, e eu descobri-a por engano.
A afirmação era autocontraditória, e não compreendi se verdadeiramente Guilherme
queria que o fosse.
- Mas era verdade que as pegadas sobre a neve remetiam para Brunello - disse eu -,
era verdade que Adelmo se tinha suicidado, era verdade que Venancio não se tinha
afogado no cântaro, era verdade que o labirinto era organizado tal como o havíeis
imaginado, era verdade que se entrava no finis Africae tocando a palavra quator, era
verdade que o livro misterioso era de Aristóteles... Poderia continuar a enumerar todas
as coisas verdadeiras que vós haveis descoberto valendo-vos da vossa ciência...
- Nunca duvidei da verdade dos signos, Adso, são a única coisa de que o homem dispõe
para se orientar no mundo. Aquilo que eu não compreendi foi a relação entre os signos.
Cheguei até Jorge através de um esquema apocalíptico que parecia reger todos os
delitos, e no entanto era casual. Cheguei a Jorge procurando um autor de todos os
crimes, e descobrimos que cada crime tinha no fundo um autor diferente, ou então
nenhum.
Cheguei a Jorge perseguindo o desígnio de uma mente perversa e raciocinante, e não
havia desígnio algum, ou melhor, mesmo Jorge tinha sido dominado pelo próprio desígnio
inicial, e depois tinha-se iniciado uma cadeia de causas e de causas concomitantes, e de
causas em contradição entre si, que tinham procedido por conta própria, criando
relações que não dependiam de desígnio algum. Onde está toda a minha sabedoria?
Comportei-me como um obstinado, perseguindo um simulacro de ordem, quando bem
devia saber que não há uma ordem no universo.
- Mas imaginando ordens erradas encontrastes mesmo assim alguma coisa...
- Disseste uma coisa bela, Adso, agradeço-te. A ordem que a nossa mente imagina é
como uma rede, ou uma escada, em que se constrói para alcançar qualquer coisa. Mas
depois deve-se deitar fora a escada, porque se descobre que, se acaso servia, era
privada de sentido. Er muoz gelíchesame die Leiter abewerfen, so Er an ir ufgestigen
ist... Diz-se assim?
- Soa assim na minha língua. Quem o disse?
- Um místico da tua terra. Escreveu-o em qualquer parte, não me recordo onde. E não
é necessário que alguém um dia encontre esse manuscrito. As únicas verdades que
servem são instrumentos para deitar fora.
- Vós não podeis censurar-vos nada, fizestes o melhor que podíeis.
- E o melhor dos homens que é pouco. É difícil aceitar a idéia que não pode haver uma
ordem no universo, porque ofenderia a livre vontade de Deus e a sua onipotência. Assim,
a liberdade de Deus é a nossa condenação, ou pelo menos a condenação da nossa
soberba.
Ousei, pela primeira e última vez na minha vida, uma conclusão teológica:
- Mas como pode existir um ser necessário totalmente tecido de possível? Que
diferença há então entre Deus e o caos primigênio? Afirmar a absoluta onipotência de
Deus e a sua absoluta disponibilidade a respeito das suas próprias escolhas não equivale a
demonstrar que Deus não existe.
Guilherme olhou para mim sem que qualquer sentimento transparecesse dos traços do
seu rosto, e disse:
- Como poderia um sábio continuar a comunicar o seu saber se respondesse sim à tua
pergunta?
Não compreendi o sentido das suas palavras:
- Quereis dizer - perguntei - que não haveria mais saber possível e comunicável se
faltasse o próprio critério da verdade, ou então que já não poderíeis comunicar aquilo
que sabeis porque os outros não vo-lo consentiriam?
Naquele momento, uma parte dos tetos do dormitório desabou com imenso fragor
soprando para o alto uma nuvem de centelhas. Uma parte das ovelhas e das cabras, que
erravam pelo pátio, passaram por nós lançando atrozes balidos. Uns servos passaram em
tropel a nosso lado, gritando, e quase nos pisaram.
- Há aqui demasiada confusão - disse Guilherme. - Non in commotione, non in
commotione Dominus.

ULTIMO FÓLIO

A abadia ardeu durante três dias e durante três noites, e de nada valeram os últimos
esforços. Já na manhã do sétimo dia da nossa permanência naquele lugar, quando os
supérstites se tinham apercebido que mais nenhum edifício podia ser salvo, quando
desabaram os muros externos das construções mais belas, e a igreja, enrolando-se quase
sobre si mesma, engoliu a sua torre, naquela altura faltou a todos a vontade de combater
contra o castigo divino. Cada vez mais frouxas foram as corridas aos poucos baldes de
água que restavam, enquanto ainda ardia pacificamente a sala capitular com a soberba
casa do Abade. Quando o fogo atingiu o lado extremo das várias oficinas, os servos já há
muito tempo que tinham salvo a maior quantidade de utensílios que podiam, e
preferiram bater a colina para recuperarem ao menos parte dos animais, fugidos para
fora da cerca na confusão da noite.
Vi alguns dos servos que se aventuraram no interior daquilo que restava da Igreja:
imaginei que procurassem penetrar na cripta do tesouro para roubarem, antes da fuga,
algum objeto precioso. Não sei o que conseguiram, se a cripta não se tinha já afundado,
se os velhacos não se afundaram nas vísceras da terra na tentativa de a atingirem.
Subiam entretanto homens da aldeia, a prestar socorro, ou a procurarem também eles
reunir algum espólio. Os mortos ficaram na maioria entre as ruínas ainda ardentes. No
terceiro dia, tratados os feridos, sepultados os cadáveres que ficaram a descoberto, os
monges e todos os outros recolheram as suas coisas e abandonaram o planalto ainda
fumegante, como um lugar maldito. Não sei para onde se dispersaram.
Guilherme e eu deixamos aqueles lugares em duas cavalgaduras encontradas perdidas
no bosque e que então consideramos res nullius. Dirigimo-nos para oriente. Chegando de
novo a Bobbio, soubemos más notícias do imperador. Chegado a Roma, tinha sido
coroado pelo povo. Considerada então impossível qualquer conciliação com João, tinha
eleito um antipapa, Nicolau V. Marsílio tinha sido nomeado vigário espiritual de Roma,
mas por culpa sua, ou por sua fraqueza, aconteciam naquela cidade coisas bastante
tristes de referir. Torturavam-se sacerdotes fiéis ao papa que não queriam dizer missa,
um prior dos agostinianos tinha sido atirado à fossa dos leões no Capitólio. Marsílio e
João de Jandun tinham declarado João herege, e Luís tinha-o feito condenar à morte.
Mas o imperador governava mal, estava atraindo a si a hostilidade dos senhores locais,
subtraia dinheiro ao erário público. À medida que ouvíamos estas noticias, retardávamos
a nossa descida para Roma, compreendi que Guilherme não queria ver-se como
testemunha de eventos que humilhavam as suas esperanças.
Quando chegamos a Pomposa, soubemos que Roma se tinha rebelado contra Luís, o
qual tinha subido de novo para Pisa, enquanto na cidade papal voltavam a entrar
triunfalmente os legados de João.
Entretanto, Miguel de Cesena tinha dado conta que a sua presença em Avinhão não
levava a qualquer resultado, aliás, temia pela sua vida, e tinha fugido, juntando-se a
Luís em Pisa. O imperador tinha entretanto perdido também o apoio de Castruccio,
senhor de Luca e Pistóia, que tinha morrido.
Em resumo, prevendo os eventos, e sabendo que o Bávaro se dirigia para Munique
invertemos o caminho e decidimos precedê-lo ali, até porque Guilherme advertia que a
Itália se estava tornando insegura para ele. Nos meses e nos anos que se seguiram, Luís
viu desfazer-se a aliança dos senhores gibelinos, no ano seguinte Nicolau antipapa
entregar-se-ia a João, apresentando-se-lhe com uma corda ao pescoço.
Logo que chegamos a Munique da Baviera eu tive de me separar, no meio de muitas
lágrimas, do meu bom mestre. A sua sorte era incerta, os meus parentes preferiram que
eu voltasse a Melk. Desde a trágica noite em que Guilherme me tinha patenteado o seu
desanimo diante das ruínas da abadia, como por tácito acordo, não tínhamos falado mais
daquela história. E nem aludimos mais a ela no curso da nossa dolorosa despedida.
O meu mestre deu-me muitos e bons conselhos para os meus estudos futuros, e
ofereceu-me as lentes que lhe tinha fabricado Nicolau, tendo ele agora de novo as suas.
Eu era ainda jovem, disse-me, mas um dia ser-me-iam úteis (e, na verdade, tenho-as
sobre o nariz, agora que escrevo estas linhas). Depois abraçou-me fortemente, com a
ternura de um pai, e disse-me adeus.
Não o vi mais. Soube muito mais tarde que tinha morrido durante a grande epidemia
de peste que infligiu a Europa por volta da metade deste século. Rezo sempre para que
Deus tenha acolhido a sua alma e lhe tenha perdoado os muitos atos de orgulho que a sua
altivez intelectual lhe tinha feito cometer.
Anos depois, homem já bastante maduro, tive ocasião de fazer uma viagem à Itália
por mandado do meu Abade. Não resisti à tentação e no regresso fiz um longo desvio
para revisitar aquilo que tinha restado da abadia.
As duas aldeias nas faldas do monte tinham-se despovoado, as terras em volta estavam
incultas. Subi ao planalto, e um espetáculo de desolação e de morte se apresentou aos
meus olhos umedecidos de lágrimas.
Das grandes e magníficas construções que adornavam aquele lugar restavam ruínas
dispersas, como já tinha acontecido aos monumentos dos antigos pagãos na cidade de
Roma. A hera tinha revestido os pedaços dos muros, as colunas, as raras arquitraves que
ficaram intactas. Ervas selvagens invadiam o terreno por todo o lado, e nem sequer se
compreendia onde tinham sido outrora o horto e o jardim. Só o lugar do cemitério era
reconhecível, por alguns túmulos que ainda afloravam no terreno. Único sinal de vida,
grandes aves de rapina caçavam lagartos e serpentes que, como basiliscos, se escondiam
entre as pedras ou deslizavam pelos muros. Do portal da igreja tinham ficado poucos
vestígios corroídos de bolor. O tímpano sobrevivia pela metade, ai descobri ainda,
dilatado pelas intempéries o enlanguescido de sórdidos líquenes, o olho sinistro do Cristo
no trono, e qualquer coisa do vulto do leão.
O Edifício, à parte o muro meridional, derrocado, parecia ainda estar em pé e desafiar
o curso do tempo. Os dois torreões externos, que davam para o despenhadeiro, pareciam
quase intactos, mas por toda a parte as janelas eram olheiras vazias cujas lágrimas
viscosas eram trepadeiras pútridas. No interior, a obra da arte, destruída, confundia-se
com a da natureza, e por largos espaços da cozinha o olhar corria pelo céu aberto,
através do rasgão dos andares superiores e do teto, derrubados como anjos caídos. Tudo
aquilo que não era verde de musgo estava ainda negro do fumo de tantos decênios antes.
Revolvendo entre os escombros encontrava de vez em quando pedaços de pergaminho,
precipitados do scriptorium e da biblioteca e sobrevivendo como tesouros sepultos na
terra; e comecei a recolhê-los, como se devesse recompor as folhas de um livro. Depois
apercebi-me que de um dos torreões subia ainda, periclitante e quase intacta, uma
escada de caracol para o scriptorium, e dali trepando por um declive de escombros,
podia-se chegar à altura da biblioteca: a qual era, porém, apenas uma espécie de galeria
rente às muralhas externas que dava em todos os pontos para o vazio.
Ao longo de um pedaço de muro encontrei um armário milagrosamente de pé ao longo
da parede, não sei como escapado ao fogo, podre de água e de insetos. Dentro dele
havia ainda algumas folhas. Outras tiras encontrei-as vasculhando nas ruínas de baixo.
Pobre messe foi a minha, mas passei um dia inteiro a recolhê-la, como se daquelas
disiecta membra da biblioteca devesse chegar-me uma mensagem. Alguns pedaços de
pergaminho estavam descorados, outros deixavam entrever a sombra de uma imagem, às
vezes o fantasma de uma ou mais palavras. Algumas vezes encontrei folhas em que eram
legíveis frases inteiras, mais facilmente encadernações ainda intactas, defendidas por
aquilo que tinham sido brochas de metal... Larvas de livros, aparentemente ainda sãs de
fora mas devoradas por dentro: e no entanto algumas vezes tinha-se salvo uma meiafolha,
transparecia um incipit, um titulo...
Recolhi todas as relíquias que pude encontrar, e enchi com elas duas sacas de viagem,
abandonando coisas que me eram úteis para salvar aquele mísero tesouro.
Ao longo da viagem de regresso e depois em Melk passei muitas e muitas horas a
tentar decifrar aqueles vestígios. Muitas vezes reconheci por uma palavra ou por uma
imagem resídua de que obra se tratava. Quando, com o tempo, encontrei outros
exemplares daqueles livros, estudei-os com amor, como se o fado me tivesse deixado
aquele legado, como se o ter-lhe descoberto o exemplar destruído tivesse sido um claro
sinal do céu que dizia tolle et lege. No fim da minha paciente recomposição desenhouse-
me como uma biblioteca menor, sinal da maior, desaparecida, uma biblioteca feita de
trechos, citações, períodos incompletos cotos de livros.
Quando mais leio este elenco mais me convenço que ele é feito do acaso e não
contém qualquer mensagem. Mas estas páginas incompletas acompanharam-me por toda
a vida que desde então me restou viver, muitas vezes as consultei como oráculo, e quase
tenho a impressão de que quanto escrevi nestas folhas, que tu agora lerás, ignoto leitor,
mais não é que um centão, um carme figurado, um imenso acróstico que não diz nem
repete mais que aquilo que aqueles fragmentos me sugeriram, e já nem sei se eu falei
até agora deles ou se falaram eles pela minha boca. Mas, em qualquer dos casos, quanto
mais recito a mim mesmo a história que dai saiu menos consigo compreender se nela há
uma trama que vai para além da seqüência natural dos eventos e dos tempos que os
relacionam entre si.
E é coisa dura para este velho monge, às portas da morte, não saber se a letra que
escreveu contém algum sentido oculto, e se contém mais de um, muitos, ou nenhum.
Mas esta minha inabilidade para ver é talvez efeito da sombra que a grande treva que
se avizinha está lançando sobre o mundo encanecido.
Est ubi gloria nunc Babylonia? Onde estão as neves de outrora? A terra dança a dança
de macabré, parece-me por momentos que o Danúbio percorrido por batéis carregados
de loucos que vão para um lugar obscuro.
Não me resta senão calar-me. O quam salubre, quam iucundum et suave est sedere in
solitudine et tacere et loqui cum Deo! Dentro em pouco reunir-me-ei ao meu principio, e
já não creio que seja o Deus da glória de que me tinham falado os abades da minha
ordem, ou de alegria, como julgavam os menoritas de então, talvez nem sequer de
piedade. Gott ist ein lautes Nichts, ihn rührt kein Nun noch Hier... Em breve me
entranharei neste deserto amplíssimo, perfeitamente plano e incomensurável, em que o
coração verdadeiramente pio sucumbe bem-aventurado. Afundar-me-ei na treva divina,
num silêncio mudo e numa união inefável, e neste afundar-se se perderá toda a
igualdade e toda a desigualdade, e nesse abismo o meu espírito se perderá a si mesmo, e
não conhecerá nem o igual nem o desigual, nem mais nada: e serão esquecidas todas as
diferenças, estarei no fundamento simples, no deserto silencioso onde jamais se vê
diversidade, no íntimo onde ninguém se encontra no seu próprio lugar. Cairei na
divindade silenciosa e desabitada onde não há obra nem imagem.
Está frio no scriptorium, dói-me o polegar. Deixo esta escritura, não sei para quem, já
não sei a propósito de quê: stat rosa prístina nomine, nomina nuda tenemus.

ÍNDICE

NATURALMENTE, UM MANUSCRITO.

PRÓLOGO.

PRIMEIRO DIA

PRIMA. Onde se chega aos pés da abadia e Guilherme dá prova de grande agudeza.

TERÇA. Onde Guilherme tem uma instrutiva conversa com o Abade.

SEXTA. Onde Adso admira o portal da igreja e Guilherme reencontra Ubertino de
Casale.

CERCA DE NONA. Onde Guilherme tem um diálogo doutíssimo com Severino, o
ervanário.

DEPOIS DE NONA. Onde se visita o scriptorium e se conhecem muitos estudiosos,
copistas e rubricadores, assim como um velho cego que espera o Anticristo.

VÉSPERAS. Onde se visita o resto da abadia, Guilherme tira algumas conclusões sobre a
morte de Adelmo, se fala com o irmão vidreiro de vidros para ler e de fantasmas para
quem quer ler demasiado.

COMPLETAS. Onde Guilherme e Adso gozam da alegre hospitalidade do Abade e da
irritada conversação de Jorge.

SEGUNDO DIA

MATINAS. Onde poucas horas de mística felicidade são interrompidas por um
sanguinosíssimo evento.

PRIMA. Onde Bêncio de Upsala confia algumas coisas, outras confia-as Berengário de
Arundel, e Adso aprende o que é a verdadeira penitência.

TERÇA. Onde se assiste a uma rixa entre pessoas vulgares, Aymaro de Alexandria faz
algumas alusões e Adso medita sobre a santidade e sobre o esterco do demônio. Depois,
Guilherme e Adso voltam ao scriptorium, Guilherme vê qualquer coisa de interessante,
tem uma terceira conversa sobre a legitimidade do riso, mas, em definitivo, não pode
olhar para onde queria.

SEXTA. Onde Bêncio conta uma estranha história, por onde se ficam a saber coisas
pouco edificantes sobre a vida da abadia.

NONA. Onde o Abade se mostra orgulhoso das riquezas da sua abadia e temeroso dos
hereges, e no fim Adso receia ter feito mal em andar pelo mundo.

DEPOIS DE VÉSPERAS. Onde, apesar do capítulo ser breve, o velho Alinardo diz coisas
bastante interessantes sobre o labirinto e sobre o modo de ai entrar.

COMPLETAS. Onde se entra no Edifício, se descobre um visitante misterioso, se
encontra uma mensagem secreta com sinais de necromante, e desaparece, mal é
encontrado, um livro que depois será procurado por muitos outros capítulos e vicissitude
que não é a última é o furto das preciosas lentes de Guilherme.

NOITE. Onde se penetra finalmente no labirinto, se têm estranhas visões e, como
acontece nos labirintos, ali a gente se perde.

TERCEIRO DIA

DE LAUDAS E PRIMA. Onde se encontra um pano sujo de sangue na cela de Berengário
desaparecido, e é tudo.

TERÇA. Onde Adso reflete no scriptorium sobre a história da sua ordem e sobre o
destino dos livros.

SEXTA. Onde Adso recebe as confidências de Salvador, que não se podem resumir em
poucas palavras mas que lhe inspiram muitas e preocupantes meditações.

NONA. Onde Guilherme fala a Adso do grande rio herético, da função dos simples na
Igreja, das suas dúvidas sobre a cognoscibilidade das leis gerais, e quase por acaso conta
como decifrou os sinais necromanticos deixados por Venancio.

VÉSPERAS. Onde se fala ainda com o Abade, Guilherme tem algumas idéias
mirabolantes para decifrar o enigma do labirinto, e o consegue de modo mais razoável.
Depois come-se queijo em pasteizinhos.

DEPOIS DE COMPLETAS. Onde Ubertino conta a Adso a História de frei Dolcino, Adso
evoca ou lê outras histórias na biblioteca por sua conta e depois sucede que tem um
encontro com uma rapariga bela e terrível como um exército alinhado para a batalha.

NOITE. Onde Adso, transtornado, se confessa a Guilherme e medita sobre a função da
mulher no plano da criação, porém, descobre depois o cadáver de um homem.

QUARTO DIA

LAUDAS. Onde Guilherme e Severino examinam o cadáver de Berengário, descobrem
que tem a língua negra, coisa singular para um afogado. Depois discutem sobre venenos
dolorosíssimos e sobre um furto remoto.

PRIMA. Onde Guilherme induz primeiro Salvador e depois o despenseiro a confessar o
seu passado; Severino encontra as lentes roubadas, Nicolau traz as novas e Guilherme
com seis olhos vai decifrar o manuscrito de Venancio.

TERÇA. Onde Adso se debate nos padecimentos de amor, depois chega Guilherme com
o texto de Venancio, que continua a permanecer indecifrável, mesmo depois de ter sido
decifrado.

SEXTA. Onde Adso vai procurar trufas e encontra os menoritas a chegar, estes têm um
longo colóquio com Guilherme e Ubertino e se sabem coisas muito tristes sobre João XXII.

NONA. Onde chegam o cardeal do Poggetto, Bernardo Gui e os outros homens de
Avinhão, e depois cada um faz coisas diversas.

VÉSPERAS. Onde Alinardo parece dar informações preciosas e Guilherme revela o seu
método para chegar a uma verdade provável através de uma série de seguros erros.

COMPLETAS. Onde Salvador fala de uma magia portentosa.

DEPOIS DE COMPLETAS. Onde se visita de novo o labirinto, se chega ao limiar do finis
Africae mas não se pode ai entrar porque não se sabe o que são o primeiro e o sétimo dos
quatro, e por fim Adso tem uma recaída, aliás bastante douta no seu mal de amor.

NOiTE. Onde Salvador se deixa miseravelmente descobrir por Bernardo Gui, a rapariga
amada por Adso é presa como bruxa, e todos vão para a cama mais infelizes e
preocupados que antes.

QUINTO DIA

PRIMA. Onde tem lugar uma fraterna discussão sobre a pobreza De Jesus.

TERÇA. Onde Severino fala a Guilherme de um estranho livro e Guilherme fala aos
legados de uma estranha concepção do governo temporal.

ULTIMO FÓLIO

SEXTA. Onde se encontra Severino assassinado e já não se encontra o livro que ele
tinha encontrado.

NONA. Onde se administra a justice e se tem a embaraçosa impressão de que todos
estão errados.

VÉSPERAS. Onde Ubertino se põe em fuga, Bêncio começa o observar das leis e
Guilherme fez algumas reflexões sobre os vários tipos de luxúria encontrados naquele
dia.

COMPLETAS. Onde se escuta um sermão sobre a vinda do Anticristo e Adso descobre o
poder dos nomes próprios.

SEXTO DIA

MATINAL. Onde os príncipes sederunt, e Malaquias desaba por terra.

LAUDAS. Onde é eleito um novo despenseiro, mas não um novo bibliotecário.

PRIMA. Onde Nicolau conta muitas coisas enquanto se visita a cripta do tesouro.
TERÇA. Onde Adso, escutando O Dies irae, tem um sonho ou visão, como se lhe queira
chamar.

DEPOIS DE TERÇA. Onde Guilherme explica a Adso o seu sonho.

SEXTA. Onde se reconstrói a historia dos bibliotecários e se tem algumas noticias mais
sobre o livro misterioso.

NONA. Onde o Abade se recusa a escutar Guilherme, fala da linguagem das gemas e
manifesta o desejo de que não se indague mais sobre aqueles tristes acontecimentos.

ENTRE VÉSPERAS E COMPLETAS. Onde em breves palavras se contam longas horas de
desvario.

DEPOIS DE COMPLETAS. Onde, quase por acaso, Guilherme descobre o segredo pare
entrar no finis Africae.

SÉTIMO DIA

NOITE. Onde, pare resumir as revelações prodigiosas de que aqui se fala, o titulo
deveria ser tão longo como o capitulo, o que é contrário aos costumes. Noite. Onde
sobrevêm a ecpirose e por cause da demasiada virtude prevalecem as forças do inferno.