QUINTO DIA

PRIMA

Onde tem lugar uma fraterna discussão sobre a pobreza de Jesus.
Com o coração agitado por mil angústias, depois da cena da noite, levantei-me na
manhã do quinto dia: já soava a hora prima, quando Guilherme me sacudiu rudemente
avisando-me que dentro em pouco se iam reunir as duas delegações. Olhei para fora da
janela da cela e não vi nada. O nevoeiro do dia anterior tinha-se tornado um manto
leitoso que dominava manifestamente o planalto.

Mal saí, vi a abadia como ainda a não vira até então; apenas algumas construções
maiores, a igreja, o Edifício, a sala capitular se destacavam mesmo à distância, embora
de forma imprecisa, sombras entre as sombras, mas o resto do casario só era visível a
poucos passos. Parecia que as formas, das coisas e dos animais, surgiam, de improviso do
nada; as pessoas pareciam emergir da bruma primeiro cinzentas como fantasmas, depois
pouco a pouco e dificilmente reconhecíveis.
Nascido nos países nórdicos não era novo para mim aquele elemento, que noutros
momentos me teria recordado com alguma doçura a planície e o castelo do meu
nascimento. Mas naquela manhã as condições do ar pareceram-me dolorosamente afins
às condições da minha alma, e a impressão de tristeza com que tinha acordado cresceu à
medida que me aproximava da sala capitular.
A poucos passos da construção vi Bernardo Gui, que se despedia de outra pessoa que à
primeira não reconheci. Como depois passou a meu lado, apercebi-me que era
Malaquias. Olhava em seu redor como quem não quer ser avistado enquanto comete um
delito: mas já disse que a expressão deste homem era por natureza de quem esconde, ou
tenta esconder, um inconfessável segredo.
Não me reconheceu, e afastou-se. Eu, movido pela curiosidade, segui Bernardo e vi
que estava percorrendo com o olhar uns papéis, que talvez Malaquias lhe tivesse
entregado. No limiar do capítulo chamou com um gesto o chefe dos archeiros, que estava
ali perto, e murmurou-lhe algumas palavras. Depois entrou. Eu fui atrás dele.
Era a primeira vez que punha os pés naquele lugar, que por fora era de modestas
dimensões e de formas sóbrias; apercebi-me que tinha sido reconstruído em tempos
recentes sobre os restos de uma primitiva igreja abacial, talvez destruída em parte por
um incêndio.
Entretanto de fora passava-se sob um portal à moda nova, de arco em ogiva, sem
decorações e encimado por uma rosácea. Mas, no interior, encontrávamo-nos num átrio,
refeito sobre os vestígios de um velho nártex. Defronte apresentava-se outro portal, com
o arco à moda antiga, o tímpano em meia-lua admiravelmente esculpido. Devia ser o
portal da igreja desaparecida.
As esculturas do tímpano eram igualmente belas mas menos inquietantes que as da
igreja atual. Também aqui o tímpano era dominado por um Cristo no trono; mas a seu
lado, em várias poses e com vários objetos nas mãos, estavam os doze apóstolos, que
dele tinham recebido o mandato de irem pelo mundo a evangelizar os gentios. Sobre a
cabeça de Cristo, num arco dividido em doze painéis, e aos pés de Cristo, numa procissão
ininterrupta de figuras, estavam representados os povos do mundo, destinados a receber
a boa nova. Reconheci pelos seus trajes os hebreus, os capadócios, os árabes, os
indianos, os frígios, os bizantinos, os armênios, os citas, os romanos. Mas, misturados
com eles, em trinta medalhões que se dispunham em arco sobre o arco dos doze painéis,
estavam os habitantes dos mundos desconhecidos, de que apenas nos falam o Fisiólogo e
os discursos incertos dos viajantes. Muitos deles ignorava-os, outros reconheci-os: por
exemplo, os brutos com seis dedos em cada mão, os faunos que nascem dos vermes que
se formam entre a casca e o tronco das árvores, as sereias com a cauda escamosa, que
seduzem os marinheiros, os etíopes de corpo todo negro, que se defendem do ardor do
Sol escavando cavernas subterrâneas, os onocentauros, homens até ao umbigo e burros
para baixo, os ciclopes com um único olho do tamanho de um escudo, Escila com cabeça
e peito de rapariga, ventre de loba e cauda de golfinho, os homens peludos da Índia que
vivem nos pauis e no rio Epigmáride, os cinocéfalos, que não podem dizer palavra sem se
interromperem e ladrar, os chápodos, que correm velozmente com a sua única perna e,
quando se querem abrigar do Sol , estendem-se e erguem o grande pé como um
sombreiro,
os astómatos da Grécia, privados de boca, que respiram pelas narinas e vivem só de
ar, as mulheres barbudas da Armênia, os pigmeus, os epistigios, a que alguns também
chamam blêmios, que nascem sem cabeça, têm a boca no ventre e os olhos nos ombros,
as mulheres monstruosas do mar Vermelho, de doze pés de altura, com cabelos que lhes
chegam aos calcanhares, uma cauda bovine no fundo das costas e cascos de camelo, e
aqueles que têm a planta dos pés voltada pare trás, de modo que quem os seguir olhando
pare as suas pegadas chega sempre a donde eles vêm e nunca a onde vão, e ainda os
homens com três cabeças, os olhos cintilantes como lâmpadas e os monstros da ilha de
Circe, corpos humanos e cerviz dos animais mais variados...
Estes e outros prodígios estavam esculpidos naquele portal. Mas nenhum deles
provocava inquietação, porque eles não queriam significar os males desta terra ou os
tormentos do inferno, mas eram, pelo contrário, testemunhos do fato de que a boa nova
tinha chegado a toda a terra conhecida e se estava estendendo à desconhecida, pelo que
o portal era jubilosa promessa de concórdia, de conseguida unidade na palavra de Cristo,
de esplêndida ecumene.
Bom auspicio, disse comigo, pare o encontro que se desenrolará para lá deste umbral,
em que homens tornados inimigos uns dos outros por opostas interpretações do
evangelho talvez hoje se reencontrem pare conciliarem as suas querelas. E disse para
comigo que era um pobre pecador a padecer pelo meu cave pessoal quando iam
verificar-se eventos de tanta importância para a história da cristandade. Confrontei a
pequenez das minhas penas com a grandiosa promessa de paz e de serenidade encerrada
na pedra do tímpano. Pedi perdão a Deus pela minha fragilidade e, mais sereno, transpus
o umbral.
Mal entrei vi os membros das duas delegações completas, que estavam frente a frente
numa série de cadeirões dispostos em semicírculo, divididas as duas frentes por uma
mesa a que estavam sentados o Abade e o cardeal Bertrando.
Guilherme, que eu segui para tomar notas, pôs-me do lado dos menoritas, onde
estavam Miguel com os seus e outros franciscanos da corte de Avinhão: porque o
encontro não devia parecer um duelo entre os italianos e franceses, mas um dispute
entre defensores da regra franciscana e os seus críticos, todos unidos por uma sã e
católica fidelidade à corte pontifícia.
Com Miguel de Cesena estavam frade Arnaldo da Aquitania, frade Hugo de Newcastle e
frade Guilherme Alnwick, que tinham tomado parte no capítulo de Perugia, e depois o
bispo de Caffa e Berengário Talloni, Bonagrazia de Bérgamo e outros menoritas da corte
avinhonense. Do lado oposto estavam sentados Lourenço Decoalcone, bacharel de
Avinhão, o bispo de Pádua e Jean d’Anneaux, doutor de teologia em Paris. Ao lado de
Bernardo Gui, silencioso e absorto, estava o dominicano Jean de Baune, a quem na Itália
chamavam Giovanni Dalbena. Este, disse-me Guilherme, tinha sido anos antes inquisidor
em Narbona, onde tinha processado muitos beguinos e santanários; mas como tinha
imputado de heresia precisamente uma proposição respeitante à pobreza de Cristo,
tinha-se levantado contra ele Berengário Talloni, leitor no convento daquela cidade,
apelando ao papa. Então, João estava ainda inseguro sobre esta matéria, e tinha
convocado ambos à corte para discutirem, sem se chegar a uma conclusão. Tanto que,
pouco depois, os franciscanos tinham tomado a posição, de que já falei, no capítulo de
Perugia. Enfim, do lado dos avinhonenses, estavam outros ainda, entre os quais o bispo
de Alborea.
A sessão foi aberta por Abbone, que considerou oportuno resumir os fatos mais
recentes. Recordou que no ano do Senhor de 1322 o capítulo geral dos frades menores,
reunido em Perugia sob a direção de Miguel de Cesena, tinha estabelecido com madura e
diligente deliberação que Cristo, para dar exemplo de vida perfeita, e os apóstolos, para
se adequarem ao seu ensinamento, nunca tinham tido em comum coisa alguma, tanto
por razões de propriedade como de senhorio, e que esta verdade era matéria de fé sã e
católica, como se deduzia de várias citações dos livros canônicos. Por isso era meritória e
santa a renúncia à propriedade de todas as coisas, e que a esta regra de santidade se
tinham conformado os primeiros fundadores da igreja militante. Que a esta verdade se
tinha conformado em 1312 o concílio de Vienne, e que o próprio papa João, em 1317, na
constituição sobre o estado dos frades menores que se inicia com Quorundam exigit,
tinha comentado as deliberações daquele concilio como santamente compostas, lúcidas,
sólidas e maduras. E dai o capítulo de Perugia, considerando que aquilo que por sã
doutrina a sede apostólica tinha sempre aprovado sempre se devia ter por aceite, e que
de modo nenhum se devia apartar dele, não tinha feito mais que selar de novo tal
decisão conciliar, pelo nome de mestres em sagrada teologia, como frade Guilherme de
Inglaterra, frade Henrique da Alemanha, frade Arnaldo de Aquitania, provinciais e
ministros; assim como com o selo de frade Nicolau, ministro de França, frade Guilherme
Bloc, bacharel, do ministro geral e de quatro ministros provinciais, frade Tomás de
Bolonha, frade Pedro da província de São Francisco, frade Fernando de Castello e frade
Simão de Turónia. Porém, acrescentou Abbone, no ano seguinte o papa emitia a decretal
Ad conditorem canonum, contra a qual apelava frade Bonagrazia de Bérgamo,
considerando-a contrária aos interesses da sua ordem. O papa tinha então arrancado
aquela decretal das portas da igreja maior de Avinhão, onde tinha sido pregada, e tinhaa
emendado em vários pontos. Mas, na realidade, tinha-a tornado ainda mais áspera, e
prova disso era que, como conseqüência imediata, frade Bonagrazia tinha sido mantido
um ano na prisão. E não se podia ter dúvidas sobre a severidade do pontífice, porque no
mesmo ano emitia a já conhecidíssima Cum ínter nonnullos, em que definitivamente se
condenavam as teses do capítulo de Perugia.
Falou neste ponto, interrompendo cortesmente Abbone, o cardeal Bertrando, e disse
que era necessário recordar como, a complicar as coisas e a irritar o pontífice, tinha
intervindo em 1324 Luís, o Bávaro, com a declaração de Sachsenhausen, onde se
assumiam sem qualquer razão válida as teses de Perugia (e não se compreendia, notou
Bertrando com um fino sorriso, porque é que o imperador aclamava tão
entusiasticamente uma pobreza que ele estava longe de praticar), pondo-se contra o
senhor papa, chamando-lhe inimicus pacis e dizendo que ele pretendia suscitar
escândalos e discórdias, tratando-o por fim de herege, melhor, de heresiarca.
- Não exatamente - tentou mediar Abbone.
- Em substancia, sim - disse secamente Bertrando.
E acrescentava que tinha sido precisamente para rebater a importuna intervenção do
imperador que o senhor papa tinha sido obrigado a emitir a decretal Quia quorundam, e
que tinha enfim severamente convidado Miguel de Cesena a apresentar-se perante ele.
Miguel tinha mandado cartas de desculpa dizendo-se doente, coisa de que ninguém
duvidava, enviando em seu lugar frade João Fidanza e frade Modesto Custódio de
Perugia. Mas dava-se o caso, disse o cardeal, que os guelfos de Perugia tinham informado
o papa que, longe de estar doente, frei Miguel estava mantendo contatos com Luís da
Baviera. E em todo o caso, tendo sido aquilo que tinha sido, agora frei Miguel parecia de
belo e sereno aspecto, e esperavam-no portanto em Avinhão. Era, aliás, melhor, admitia
o cardeal, ponderar antes, como se estava fazendo agora, na presença de homens
prudentes de ambas as partes, o que Miguel diria depois ao papa, dado que o fim de
todos sempre era, afinal, o de não agravar as coisas e compor fraternalmente uma
diatribe que não tinha razão de ser entre um pai amorável e os seus filhos dedicados e
que até então se tinha reacendido apenas pelas intervenções de homens do século,
fossem imperadores ou vigários, os quais nada tinham a ver com as questões da Santa
Madre Igreja.
Interveio então Abbone e disse que, embora sendo homem da Igreja e abade de uma
ordem a que a Igreja tanto devia (um murmúrio de respeito e deferência correu de
ambos os lados do semicírculo), não considerava todavia que o imperador devesse
permanecer estranho a tais questões, pelas inúmeras razões que frade Guilherme de
Baskerville depois diria. Mas, continuava a dizer Abbone, era todavia justo que a
primeira parte do debate se desenrolasse entre os enviados pontifícios e os
representantes daqueles filhos de São Francisco que, pelo próprio fato de terem
intervindo neste encontro, se demonstravam filhos dedicadíssimos do pontífice. E, assim,
convidava frade Miguel, ou alguém por ele, a dizer o que entendia defender em Avinhão.
Miguel disse que, com sua grande alegria e comoção, se encontrava entre eles naquela
manhã Ubertino de Casale, a quem o mesmo pontífice, em 1322, tinha pedido uma
fundada relação sobre a questão da pobreza. E precisamente Ubertino poderia resumir,
com a lucidez, a erudição e a fé apaixonada que todos lhe reconhecíamos, os pontos
capitais daquelas que já eram, e indefectivelmente, as idéias da ordem franciscana.
Levantou-se Ubertino, e mal começou a falar compreendi porque é que tinha
suscitado tanto entusiasmo como pregador e como homem de corte. Apaixonado no
gesto, persuasivo na voz, fascinante no sorriso, claro e conseqüente no raciocínio, ele
prendeu a si os ouvintes durante todo o tempo em que teve a palavra. Ele iniciou uma
disquisição muito douta sobre as razões que confortavam as teses de Perugia. Disse que,
antes de mais, se devia reconhecer que Cristo e os seus apóstolos tiveram um duplo
estado, porque foram prelados da Igreja do novo testamento e deste modo possuíram,
quanto a autoridade de dispensa e de distribuição, para darem aos pobres e aos ministros
da Igreja, como está escrito no quarto capítulo dos Atos dos apóstolos, e sobre isto
ninguém discute. Mas, secundariamente, Cristo e os apóstolos devem ser considerados
como pessoas singulares, fundamento de toda a perfeição religiosa, e perfeitos
desprezadores do mundo. E a este propósito propõem-se dois modos de ter, um dos quais
é civil e mundano, que as leis imperiais definem com as palavras in bonis nostris, porque
nossos são chamados os bens que estão à nossa guarda e que, sendo-nos tirados, temos o
direito de reclamar. Por isso, uma coisa é defender civil e mundanamente o bem próprio
daquele que no-lo quer tirar, apelando ao juiz imperial (e dizer que Cristo e os apóstolos
tiveram coisas desta maneira é afirmação herética, porque, como diz Mateus no V
capítulo, àquele que quer contender contido em juízo e tirar-te a túnica deixa também o
manto, e Lucas não diz diversamente no VI capitulo, com cujas palavras Cristo remove de
si todo o domínio e senhorio e isto mesmo impõe aos seus apóstolos, veja-se ainda
Mateus, capítulo XXIV, onde Pedro diz ao Senhor que para o seguir deixaram todas as
coisas); mas de outro modo podem todavia ter-se as coisas temporais, em razão da
caridade fraterna comum, e deste modo Cristo e os seus tiveram bens por razão natural,
a qual razão é por alguns chamada jus poli, isto é, razão do céu, para sustentar a
natureza que sem ordenação humana é consoante à reta razão; enquanto o jus fori é
poder que depende de humana estipulação. Anteriormente à primeira divisão das coisas,
estas, quanto ao domínio, foram como agora são as coisas que não resultam entre os
bens de alguém e se concedem a quem as ocupa e foram, num certo sentido, comuns a
todos os homens, enquanto só depois do pecado os nossos progenitores começaram a
dividir entre si a propriedade das coisas, e desde então começaram os domínios
mundanos como são conhecidos hoje. Mas Cristo e os apóstolos tiveram as coisas do
primeiro modo, e assim tiveram o vestuário e os pães e os peixes, e, como diz Paulo na
primeira a Timóteo, temos os alimentos, e com que nos cobrirmos, e estamos contentes.
Por isso, Cristo e os seus tiveram estas coisas não em posse, mas em uso, permanecendo
salva a sua absoluta pobreza. O que já tinha sido reconhecido pelo Papa Nicolau II pelo
decretal Exiit qui seminat.
Mas levantou-se do lado oposto Jean d’Anneaux e disse que as posições de Ubertino
lhe pareciam contrárias não só à reta razão mas à reta interpretação das escrituras. Pois
que, nos bens perecíveis com o uso, como o pão e os peixes, não se pode falar de simples
direito de uso, nem se pode haver uso, sem abuso. Todos os que acreditam em comum na
Igreja primitiva, como se deduz dos Atos segundo e terceiro, tinham-no como base no
mesmo tipo de domínio que detinham antes da conversação; os apóstolos, depois da
descida do Espírito Santo, possuíram propriedades na Judéia; o voto de viver sem
propriedade não se estende àquilo de que o homem precisa necessariamente para viver,
e quando Pedro disse que tinha deixado todas as coisas não queria dizer que tivesse
renunciado à propriedade; Adão teve domínio e propriedade das coisas; o servo que
recebe dinheiro do seu patrão decerto não faz dele nem uso nem abuso; as palavras da
Exüt qui seminal a que os menoritas se referem sempre e que estabelecem que os frades
menores têm só o uso daquilo de que se servem, sem dele terem o domínio e a
propriedade, devem referir-se somente aos bens que não se esgotam com o uso, e, de
fato, se a Exüt compreendesse os bens perecíveis, defenderia uma coisa impossível; o
uso de fato não se pode distinguir do domínio jurídico; todo o direito humano, em cuja
base se possuem bens materiais, está contido nas leis dos reis; Cristo, como homem
mortal, desde o instante da sua concepção, foi proprietário de todos os bens terrenos e,
como Deus, teve do pai o domínio universal de tudo; foi proprietário de vestes,
alimentos, dinheiro por contributos e ofertas dos fiéis, e, se foi pobre não foi porque não
teve propriedade, mas porque não lhe recebia os frutos, pois que o simples domínio
jurídico, separado da cobrança dos interesses. não torna rico quem o detém; e
finalmente, se acaso a Exüt tivesse dito coisas diversas, o pontífice romano, pelo que se
refere à fé e às questões morais, pode revogar as determinações dos seus predecessores
e fazer mesmo asserções contrárias.
Foi naquele ponto que se levantou com veemência frade Jerônimo, bispo de Caffa,
com a barba que lhe tremia de ira, embora as suas palavras procurassem parecer
conciliadoras. E iniciou uma argumentação que me pareceu um tanto confusa.
- Aquilo que quero dizer ao santo padre, e eu mesmo lho direi, ponho desde já sob a
sua correção, porque creio verdadeiramente que João é vigário de Cristo, e por esta
confissão fui preso pelos sarracenos. E começarei citando um fato referido por um
grande doutor, sobre a disputa que surgiu um dia entre monges sobre quem era o pai de
Melquisedeque. E então o abade Copes, interrogado sobre isto, sacudiu a cabeça e disse:
cuidado, Copes, porque procuras apenas as coisas que Deus não te manda procurar e és
negligente naquelas que ele te manda. Pronto, como limpidamente se deduz do meu
exemplo, é tão claro que Cristo e a bem-aventurada Virgem e os apóstolos não tiveram
nada nem em especial nem em comum, que menos claro seria reconhecer que Jesus foi
homem e Deus ao mesmo tempo, e, porém, parece-me claro que quem negasse a
primeira evidência deveria depois negar a segunda!
Disse triunfante, e vi Guilherme que levantava os olhos ao céu. Suspeito que reputava
o silogismo de Jerônimo um tanto defeituoso, e não posso dizer que não tinha razão, mas
mais defeituosa ainda me pareceu a irritadíssima e contrária argumentação de João
Dalbena, o qual disse que quem afirma alguma coisa sobre a pobreza de Cristo afirma
aquilo que se vê (ou não se vê) com os olhos, enquanto para definir a sua humanidade e
divindade intervém a fé, pelo que as duas proposições não podem ser igualadas. Na
resposta, Jerônimo foi mais sutil que o adversário:
- Oh, não, meu caro irmão - disse -, parece-me verdade precisamente o contrário,
porque todos os evangelhos declaram que Cristo era homem e comia e bebia e, por força
dos seus evidentíssimos milagres, era também Deus, e tudo isto salta mesmo aos olhos!
- Também os magos e os adivinhos fizeram milagres – disse Dalbena com insuficiência.
- Sim - rebateu Jerônimo -, mas por operação de arte mágica. E tu queres igualar os
milagres de Cristo à arte mágica? - A assembléia murmurou indignada que não queria tal.
- E, enfim - continuou Jerônimo, que já se sentia próximo da vitória -, o senhor cardeal
do Poggetto quereria considerar herética a crença na pobreza de Cristo quando sobre
esta proposição assenta a regra de uma ordem como a franciscana, de modo que não há
reino onde os seus filhos não tenham andado pregando e espalhando o seu sangue desde
Marrocos até à Índia?
- Santa alma de Pedro Hispano - murmurou Guilherme -, protege-nos tu.
- Irmão diletíssimo - vociferou então Dalbena, dando um passo em frente -, fala
embora do sangue dos teus frades, mas não te esqueças que esse tributo foi pago
também por religiosos de outras ordens...
- Salva a devida reverência ao senhor cardeal - gritou Jerônimo -, nunca dominicano
algum morreu entre os infiéis, enquanto, só no meu tempo nove menoritas foram
martirizados!
De rosto vermelho, levantou-se então o dominicano, bispo de Alborea:
- Então, eu posso demonstrar que, antes de os frades menores irem para a Tartária, o
papa Inocêncio mandou para lá três dominicanos!
- Ah, sim? - troçou Jerônimo. - Pois bem, eu sei que há oitenta anos que os menoritas
estão na Tartária e têm quarenta igrejas por todo o país, enquanto os dominicanos têm
apenas cinco postos na costa e ao todo serão quinze frades! E isto resolve a questão!
- Não resolve questão nenhuma - gritou Alborea -, porque esses menoritas, que parem
santanários como as cadelas parem cachorrinhos, atribuem tudo a si, gabam-se de
mártires e depois têm belas igrejas, paramentos sumptuosos e compram e vendem como
todos os outros religiosos!
- Não, meu senhor, não – interveio Jerônimo -, eles não compram e vendem eles
próprios, mas através dos procuradores da sede apostólica, e os procuradores detêm a
posse, enquanto os menoritas têm apenas o uso!
- Deveras? - escarneceu Alborea -, quantas vezes então tu vendeste sem procuradores?
Sei a história de algumas propriedades que...
- Se o fiz, errei - interrompeu precipitadamente Jerônimo -, não atires para cima da
ordem aquilo que pode ter sido uma fraqueza minha!
- Mas, veneráveis irmãos - interveio então Abbone -, o nosso problema não é se são
pobres os menoritas mas se era pobre o Nosso Senhor...
- Pois bem - fez-se neste ponto ouvir ainda Jerônimo -, tenho sobre tal questão um
argumento que corta como a espada...
- São Francisco, protege os teus filhos... – disse desanimadamente Guilherme.
- O argumento é - continuou Jerônimo - que os orientais e os gregos, bem mais
familiarizados que nós com a doutrina dos santos padres, têm por certa a pobreza de
Cristo. E se aqueles heréticos e cismáticos defendem tão limpidamente uma tão límpida
verdade, quereremos nós ser mais heréticos e cismáticos que eles e negá-la? Esses
orientais, se ouvissem alguns de nós pregar contra esta verdade lapidá-los-iam!
- Que me estas dizendo? - zombou Alborea -, e porque é que então não lapidam os
dominicanos que pregam precisamente contra isso?
- Os dominicanos? Mas se nunca os vi por lá!
Alborea, de rosto violáceo, observou que este frade Jerônimo tinha estado na Grécia
talvez quinze anos, enquanto ele lá tinha estado desde a infância. Jerônimo rebateu que
ele, o dominicano Alborea talvez também tivesse estado na Grécia, mas a fazer vida de
sociedade em belos palácios episcopais, enquanto ele, franciscano, lá tinha estado não
quinze mas vinte e dois anos e tinha pregado diante do imperado: em Constantinopla.
Então Alborea, à falta de argumentos, tentou atravessar o espaço que o separava dos
menoritas, manifestando em voz alta, e com palavras que não ouso referir, a sua firme
intenção de arrancar a barba ao bispo de Caffa, cuja virilidade punha em dúvida, e que
precisamente segundo a lógica de talião queria punir, usando aquela barba como flagelo.
Os outros menoritas correram a fazer barreira em defesa do seu irmão, os
avinhonenses consideraram útil dar mão forte ao dominicano, e seguiu-se (Senhor, tem
misericórdia dos melhores entre os teus filhos!) uma rixa que o Abade e o cardeal
tentaram em vão aplacar. No tumulto que se seguiu, menoritas e dominicanos disseramse
reciprocamente coisas muito graves, como se cada um fosse um cristão em luta com
os sarracenos. Os únicos que permaneceram nos seus lugares foram de um lado
Guilherme, do outro Bernardo Gui. Guilherme parecia triste e Bernardo alegre, se de
alegria se podia falar pelo pálido sorriso que enrugava o lábio do inquisidor.
- Não há argumentos melhores - perguntei ao meu mestre, enquanto Alborea se
encarniçava sobre a barba do bispo de Caffa - para demonstrar ou negar a pobreza de
Cristo?
- Mas tu podes afirmar ambas as coisas, meu bom Adso - disse Guilherme -, e jamais
poderás estabelecer com base nos evangelhos se Cristo considerava de sua propriedade,
e até que ponto, a túnica que usava e que depois provavelmente deitava fora quando
estava gasta. E, se queres, a doutrina de Tomás de Aquino sobre a propriedade é mais
ousada que a defendida por nós, menoritas. Nós dizemos: não possuímos nada e tudo
temos em uso. Ele dizia: considerai-vos também possuidores, contanto que, se a alguém
falta aquilo que vós possuís, lhe concedais o uso, e por obrigação, não por caridade. Mas
a questão não é se Cristo era pobre, é se deve ser pobre a Igreja. E pobre não significa
tanto possuir ou não um palácio, mas ter ou abandonar o direito de legislar sobre as
coisas terrenas.
- Eis então - disse - porque o imperador se interessa tanto pelos discursos dos
menoritas sobre a pobreza.
- De fato. Os menoritas fazem o jogo imperial contra o papa. Mas, para Marsílio ou
para mim, o jogo é duplo, e quereríamos que o jogo do império fizesse o nosso jogo e
servisse a nossa idéia do humano governo.
- E isso di-lo-eis quando tiverdes de falar?
- Se o disser, cumpro a minha missão, que era manifestar a opinião dos teólogos
imperiais. Mas, se o disser, a minha missão falha, porque eu deveria facilitar um segundo
encontro em Avinhão, e não creio que João aceite que eu vá ali dizer estas coisas.
- E então?
- E então estou preso entre duas forças contrárias, como um burro que não sabe de
qual de dois sacos de feno comer. É que os tempos não estão maduros. Marsílio fantasia
uma transformação impossível, agora, e Luis não é melhor que os seus predecessores,
ainda que por agora permaneça o único baluarte contra um miserável como João. Talvez
deva falar, a menos que estes não acabem antes por se matarem uns aos outros. Em todo
o caso escreve, Adso, que ao menos fiquem vestígios do que está hoje acontecendo.
- E Miguel?
- Temo que perca o seu tempo. O cardeal sabe que o papa não procura uma mediação,
Bernardo Gui sabe que deve fazer falhar o encontro; e Miguel sabe que irá a Avinhão em
qualquer caso, porque não quer que a ordem quebre todos os vínculos com o papa. E
arriscará a vida.
Enquanto assim falávamos - e na verdade não sei como podíamos ouvir-nos um ao
outro -, a disputa tinha atingido o auge. Tinham intervindo os archeiros, a um sinal de
Bernardo Gui, para impedir que as duas fileiras se encontrassem de vez. Mas, como
assediantes e assediados de ambos os lados das muralhas de uma fortaleza, eles
lançavam-se contestações e impropérios, que aqui refiro ao acaso, já sem conseguir
atribuir-lhes a paternidade e ficando assente que as frases não foram pronunciadas cada
uma por sua vez como sucederia numa disputa na minha terra, mas à moda
mediterrânica, umas cavalgando as outras, como as ondas de um mar raivoso.
- O evangelho diz que Cristo tinha uma bolsa!
- Cala-te com essa bolsa que pintais até nos crucifixos! Que dizes então do fato de
Nosso Senhor, quando estava em Jerusalém, voltar todas as noites a Betania?
- E, se Nosso Senhor queria ir dormir a Betania, quem és tu para criticar a sua decisão?
- Não, velho, cabrão, Nosso Senhor voltava a Betania porque não tinha dinheiro para
pagar um albergue em Jerusalém!
- Bonagrazia, cabrão és tu! E que comia Nosso Senhor em Jerusalém?
- E tu dirias que o cavalo que recebe aveia do dono para sobreviver tem a propriedade
da aveia?
- Olha que comparas Cristo a um cavalo...
- Não, és tu que comparas Cristo a um prelado simoníaco da tua corte, reservatório de
esterco!
- Sim? E quantas vezes a Santa Sé teve de se meter em processos para defender os
vossos bens?
- Os bens da Igreja, não os nossos! Nós tínhamos o seu uso!
- O seu uso para comer, para fazer belas igrejas com estátuas de ouro, hipócritas,
baixéis de iniqüidade, sepulcros caiados, sentinas de vício! Sabeis bem que é a caridade,
e não a pobreza, o princípio da vida perfeita!
- Isso disse-o aquele glutão do vosso Tomás?
- Tem cuidado ímpio! Aquele a quem chamas glutão é um santo da Santa Igreja
romana!
- Santo das minhas sandálias, canonizado por João para fazer arreliar os franciscanos!
O vosso papa não pode fazer santos, porque é um herege! Melhor, é um heresiarca.
- Essa bela proposição já a conhecemos! É a declaração do fantoche da Baviera em
Sachsenhausen, preparada pelo vosso Ubertino!
- Vê lá como falas, porco, filho da prostituta de Babilônia e de outras galdérias ainda!
Tu sabes que nesse ano Ubertino não estava com o imperador mas estava precisamente
em Avinhão, ao serviço do cardeal Orsini, e o papa ia enviá-lo como mensageiro a
Aragão!
- Eu sei, eu sei que fazia voto de pobreza à mesa do cardeal, como o faz agora na
abadia mais rica da península! Ubertino, se não estavas lá tu, quem sugeriu a Luís o uso
dos teus escritos?
- Que culpa tenho eu se Luís lê os meus escritos? Decerto não pode ler os teus, que és
um iletrado!
- Eu um iletrado? Era letrado o vosso Francisco, que falava com os patos?
- Blasfemaste! - És tu que blasfemas, fraticello de barrica!
- Eu nunca fiz de barrica, e tu bem sabes!!!
- Fazias sim, com os teus fraticelli, quando te enfiavas na cama com Clara de
Montefalco!
- Que Deus te fulmine! Eu era inquisidor nesse tempo, e Clara já tinha expirado em
odor de santidade!
- Clara expirava odor de santidade, mas tu aspiravas outro odor quando cantavas
matinas às monjas!
- Continua, continua, a ira de Deus atingir-te-á, como atingirá o teu senhor, que deu
abrigo a dois hereges como aquele ostrogodo do Eckhart e aquele necromante inglês que
chamais Branucerton!
- Veneráveis irmãos, veneráveis irmãos! - gritavam o cardeal Bertrando e o Abade.
QUINTO DIA
TERÇA
Onde Severino fala a Guilherme de um estranho livro e Guilherme fala aos legados de
uma estranha concepção do governo temporal.
A querela continuava ainda furiosa, quando um dos noviços de guarda à porta entrou,
passando por aquela confusão como quem atravessa um campo batido pelo granizo, e
veio sussurrar a Guilherme que Severino lhe queria falar com urgência. Saímos para o
nártex, apinhado de monges curiosos que procuravam apanhar através dos gritos e dos
rumores algo do que se passava no interior. Na primeira fila vimos Aymaro de Alexandria,
que nos acolheu com o seu habitual esgar de comiseração pela estultícia do mundo
universal:
- É certo que, desde que surgiram as ordens mendicantes, a cristandade se tornou
mais virtuosa - disse.
Guilherme afastou-o, não sem alguma rudeza, e dirigiu-se para Severino, que nos
esperava num canto. Estava ansioso, queria falar-nos de parte, mas não se conseguia
encontrar um lugar tranqüilo naquela confusão. Queríamos sair para o ar livre, mas da
soleira da sala capitular aparecia Miguel de Cesena, que incitava Guilherme a entrar de
novo, porque, dizia, a querela estava a recompor-se, e devia continuar-se a série das
intervenções.
Guilherme, dividido entre estes dois sacos de feno, incitou Severino a falar, e o
ervanário procurou não se fazer ouvir pelos circunstantes.
- Berengário esteve certamente no hospital antes de ir para os balnea - disse.
- Como sabes?
Alguns monges aproximaram-se, intrigados pela nossa conversa. Severino falou em voz
ainda mais baixa, olhando à sua volta.
- Tu tinhas-me dito que aquele homem... devia ter alguma coisa consigo... Bem,
encontrei alguma coisa no meu laboratório, confundido com os outros livros... um livro
que não é meu, um estranho livro...
- Deve ser esse - disse Guilherme triunfante -, traz-mo imediatamente.
- Não posso - disse Severino -, depois explico-te, descobri... creio que descobri algo de
interessante... Tens de vir tu, tenho de te mostrar o livro... com cautela...
Não continuou. Apercebemo-nos que, silencioso como era seu costume, Jorge tinha
surgido quase de improviso a nosso lado. Estendia as mãos para a frente como se, não
habituado a mover-se naquele lugar, procurasse compreender para onde ia. Uma pessoa
normal não teria podido entender os sussurros de Severino, mas tínhamos aprendido há
muito tempo que o ouvido de Jorge, como o de todos os cegos, era particularmente
agudo.
O velho pareceu, todavia, não ter ouvido nada. Moveu-se antes numa direção oposta à
nossa, tocou num dos monges e perguntou qualquer coisa. Aquele pegou-lhe com
delicadeza no braço e conduziu-o para fora. Naquele momento reapareceu Miguel, que
de novo solicitou Guilherme, e o meu mestre tomou uma resolução:
- Peco-te - disse a Severino -, volta depressa para de onde vens. Fecha-te por dentro e espera por mim. Tu - disse-me a mim -, segue Jorge. Mesmo que tenha entendido alguma
coisa, não creio que se faça conduzir ao hospital. Em todo o caso, vê se me dizes onde
vai.
Fez por entrar de novo na sala, e distinguiu (como distingui também eu Aymaro, que
abria caminho entre a multidão dos presentes para seguir Jorge, que saía. Aqui,
Guilherme cometeu uma imprudência, porque, desta vez em voz alta, de um lado ao
outro do nártex, disse a Severino, já na soleira externa:
- Toma cuidado. Não consintas a ninguém que... aqueles papéis... voltem para de
onde saíram!
Eu, que me estava preparando para seguir Jorge, vi naquele instante, encostado à
grade da porta exterior, o despenseiro, que tinha ouvido as palavras de Guilherme e
olhava alternadamente para o meu mestre e para o ervanário, com o rosto contraído de
medo. Distingui Severino, que saía para o ar livre, e seguiu-o. Eu, na soleira, temia
perder de vista Jorge, que já ia a ser engolido pelo nevoeiro: mas também os outros dois,
na direção oposta, iam a desaparecer na caligem. Calculei rapidamente o que devia
fazer. Tinham-me ordenado que seguisse o cego, mas porque se temia que fosse para o
hospital. Porém, a direção que estava tomando, com o seu acompanhante, era outra,
porque estava a atravessar o claustro, direito à igreja, ou ao Edifício. Ao contrário, o
despenseiro estava certamente seguindo o ervanário, e Guilherme estava preocupado
com o que poderia acontecer no laboratório. Por isso, foi aqueles dois que me pus a
seguir, perguntando-me entre outras coisas onde teria ido Aymaro, se acaso não tinha
saído por razões bastante diversas das nossas.
Mantendo-me a uma distância razoável, não perdia de vista o despenseiro, o qual
estava a abrandar o passo, porque se tinha apercebido que eu o estava seguindo. Não
podia compreender se a sombra que lhe ia no encalço era eu, como eu não podia
compreender se a sombra cujo encalço ia era ele, mas, como eu não tinha dúvidas sobre
ele, ele não tinha dúvidas sobre mim.
Obrigando-o a controlar-me, impedi-o de apertar de perto Severino. Assim, quando a
porta do hospital apareceu no nevoeiro, ela já estava fechada. Severino já tinha
entrado, fossem dadas graças ao céu. O despenseiro voltou-se mais uma vez para olhar
para mim, que estava agora quedo como uma árvore do horto, depois pareceu tomar
uma decisão e meteu para a cozinha. Pareceu-me ter cumprido a minha missão, Severino
era um homem de bom senso, proteger-se-ia sozinho sem abrir a ninguém. Não tinha
mais nada a fazer e sobretudo ardia de curiosidade para ver aquilo que acontecia na sala
capitular. Por isso, decidi voltar para apresentar o meu relatório. Talvez tenha feito mal,
devia ter continuado de guarda, e teríamos poupado muitas outras desventuras. Mas isso
sei-o agora, não o sabia então.
Quando voltava a entrar, quase esbarrei com Bêncio, que sorria com ar cúmplice:
- Severino encontrou qualquer coisa deixada por Berengário, não foi?
- Que sabes tu disso? - respondi-lhe rudemente, tratando-o como a um coetâneo, em
parte pela ira e em parte por causa do seu rosto jovem agora com uma atitude de
malícia quase infantil.
- Não sou tolo - respondeu Bêncio. - Severino corre a dizer qualquer coisa a
Guilherme, tu controlas que ninguém o siga...
- E tu observas-nos demasiado a nós, e a Severino – disse irritado.
- Eu? Decerto que vos observo. Desde anteontem que não perco de vista nem os balnea
nem o hospital. Se pudesse, já lá teria entrado. Daria os olhos da cara para saber que
coisa encontrou Berengário na biblioteca.
- Tu queres saber coisas de mais sem ter esse direito!
- Eu sou um estudante e tenho o direito de saber, eu vim dos confins do mundo para
conhecer a biblioteca e a biblioteca permanece fechada como se contivesse coisas más e
eu...
- Deixa-me ir - disse em tom brusco.
- Deixo-te ir, de qualquer maneira disseste-me aquilo que eu queria.
- Eu?
- Também calando se fala.
- Aconselho-te a não entrares no hospital - disse-lhe.
- Não entro, não entro, está tranqüilo. Mas ninguém me proíbe de olhar de fora.
Não o ouvi mais e voltei a entrar. Aquele curioso, pareceu-me Que não representava
um grande perigo. Voltei a encostar-me a Guilherme pu-lo brevemente ao corrente dos
fatos. Ele anulou em sinal de aprovação, depois fez-me sinal para me calar. A confusão
já estava diminuindo. Os legados de ambas as partes já estavam trocando o beijo da paz.
Alborea louvava a fé dos menoritas, Jerônimo exaltava a caridade dos pregadores todos
cantavam hinos à esperança de uma Igreja não mais agitada por lutas intestinas. Uns
celebrando a fortaleza dos outros, e estes a temperança daqueles, todos invocavam a
justiça e apelavam à prudência. Nunca vi tantos homens tão sinceramente empenhados
no triunfo das virtudes teologais e cardinais.
Mas já Bertrando do Poggetto estava convidando Guilherme a exprimir as teses dos
teólogos imperiais. Guilherme levantou-se, de má vontade: por um lado estava a ver que
o encontro não tinha utilidade nenhuma, por outro tinha pressa de se ir embora, e o livro
misterioso importava-lhe mais, naquela altura, que a sorte do encontro. Mas era claro
que não podia subtrair-se ao seu dever.
Começou, pois, a falar entre muitos «eh» e «oh», talvez mais que de costume e mais
do que devia, como para fazer compreender que estava absolutamente inseguro sobre as
coisas que ia dizer, e exordiou afirmando que compreendia muito bem o ponto de vista
daqueles que tinham falado antes dele, e que, por outro lado, aquela a que outros
chamavam a «doutrina» dos teólogos imperiais não passava de um certo número de
observações dispersas que não pretendiam impor-se como verdade de fé.
Disse então que, dada a imensa bondade que Deus tinha manifestado em criar o povo
dos seus filhos, amando-os todos sem distinções, desde aquelas páginas do Gênesis em
que não se fazia ainda menção de sacerdotes e de reis, considerando ainda que o Senhor
tinha dado a Adão e aos seus descendentes o poder sobre as coisas desta terra, contando
que obedecessem às leis divinas, era de suspeitar que ao próprio Senhor não era estranha
a idéia que nas coisas terrenas o povo seja legislador e primeira causa efetiva da lei. Por
povo, disse, seria bom entender a universalidade dos cidadãos, mas, visto que entre os
cidadãos se devem considerar também as crianças, os obtusos, os malfeitores e as
mulheres, talvez se pudesse aceder de modo razoável a uma definição de povo como a
parte melhor dos cidadãos embora ele, de momento, não considerasse oportuno
pronunciar-se sobre quem efetivamente pertencia a essa parte.
Tossicou, desculpou-se perante os presentes sugerindo que naquele dia a atmosfera
estava indubitavelmente muito úmida, e pôs a hipótese de que a maneira como o povo
poderia exprimir a sua vontade podia coincidir com uma assembléia geral eletiva. Disse
que lhe parecia sensato que uma tal assembléia pudesse interpretar, mudar ou suspender
a lei, porque, se é só um que faz a lei, ele poderia agir mal por ignorância ou por
malícia, e acrescentou que não era necessário recordar aos presentes quantos desses
casos se tinham dado recentemente. Apercebi-me que os presentes, bastante perplexos
perante as suas palavras precedentes, não podiam senão concordar com estas últimas.
Pois que cada um estava evidentemente a pensar numa pessoa diversa, e cada um
considerava péssima a pessoa em que pensava.
Bem, continuou Guilherme, se um só pode fazer mal as leis, não será melhor a
maioria? Naturalmente, sublinhou, estava a falar-se de leis terrenas, respeitantes ao bom
andamento das coisas civis. Deus tinha dito a Adão que não comesse da árvore do bem e
do mal, e essa era a lei divina; mas depois tinha-o autorizado, que digo?, encorajado a
dar nomes às coisas, e sobre isso tinha deixado livre o seu súdito terrestre. De fato, se
bem que alguns, nos nossos dias, digam que nomina sunt consequentia rerum, o livro do
Gênesis é, aliás, bastante claro sobre este ponto: Deus conduziu ao homem todos os
animais para ver como lhes chamaria, e, fosse qual fosse a maneira como o homem
tivesse chamado cada ser vivo, esse devia ser o seu nome. E, se bem que o primeiro
homem tenha sido certamente tão avisado que chamou, na sua língua edênica, cada
coisa e cada animal segundo a sua natureza, isso não impede que ele não exercesse uma
espécie de direito soberano ao imaginar o nome que, segundo ele, melhor correspondia
àquela natureza. Porque, de fato, sabe-se hoje em dia como são diversos os nomes, que
os homens impõem para designar os conceitos, e iguais para todos são só os conceitos,
sinais das coisas. De modo que certamente a palavra nomen vem de nomos, ou melhor,
lei, dado que precisamente os nomina são dados pelos homens ad placitum, isto é, por
livre e coletiva convenção.
Os presentes não ousaram contestar esta douta demonstração. Por isso, dai concluiu
Guilherme, vê-se bem como a legislação sobre as coisas desta terra, e portanto sobre as
coisas das cidades e dos reinos, nada tem a ver com a guarda e a administração da
palavra divina, privilégio inalienável da hierarquia eclesiástica. Infelizes, pois, disse
Guilherme, os infiéis, que não têm semelhante autoridade que interprete para eles a
palavra Divina (e todos tiveram dó dos infiéis). Maspodemos por isto dizer, talvez, que os
infiéis não têm tendência para fazer leis e para administrar as suas coisas mediante
governos sejam eles, reis, imperadores ou sultões e califas? E podia negar-se que muitos
imperadores romanos tinham exercido o poder temporal com sabedoria, que se pensasse
em Trajano? E quem deu, a pagãos e a infiéis, essa capacidade natural de legislar e de
viver em comunidades políticas? Talvez as suas divindades mentirosas que
necessariamente não existem (ou não existem necessariamente, seja como for que se
queira entender a negação desta modalidade)? Decerto que não. Não podia senão ter-lhe
conferido o Deus dos exércitos, o Deus de Israel, pai de Nosso Senhor Jesus Cristo...
Admirável prova da bondade divina, que conferiu a capacidade de julgar sobre as coisas
políticas mesmo a quem desconhece a autoridade do pontífice romano e não professa os
mesmos sagrados, doces e terríveis mistérios do povo cristão! Mas que mais bela
demonstração, se não esta, do fato que o domínio temporal e a jurisdição secular nada
têm a ver com a Igreja e com a lei de Jesus Cristo, e foram ordenados por Deus fora de
qualquer confirmação eclesiástica e até antes que surgisse a nossa santa religião?
Tossiu de novo, mas não sozinho desta vez. Muitos dos circunstantes agitavam-se nos
seus cadeirões e pigarreavam. Vi o cardeal passar a língua pelos lábios e fazer um gesto
ansioso mas cortês, para convidar Guilherme a ir ao âmago da questão. E Guilherme
afrontou aquelas que então pareciam a todos, mesmo a quem não as partilhava, as
conclusões talvez desagradáveis daquele irrefutável discurso. Disse então Guilherme que
as suas deduções lhe pareciam sustentadas pelo próprio exemplo de Cristo, o qual não
veio a este mundo para mandar mas para se submeter segundo as condições que no
mundo encontrava, pelo menos naquilo que se referia às leis de César. Ele não quis que
os apóstolos tivessem mando e domínio, e por isso parecia coisa sábia que os sucessores
dos apóstolos devessem ser aliviados de qualquer poder mundano e coativo.
Se o pontífice, os bispos e os padres não estivessem submetidos ao poder mundano e
coativo do príncipe, a autoridade do príncipe ver-se-ia invalidada, e invalidar-se-ia com
isto uma ordem que, como se tinha demonstrado antes, tinha sido disposta por Deus.
Devem decerto considerar-se alguns casos muito delicados, disse Guilherme, como o dos
hereges, sobre cuja heresia só a Igreja, guardiã da verdade, pode pronunciar-se, e
todavia só o braço secular pode agir. Quando a Igreja detecta hereges deverá decerto
assinalá-los ao príncipe, que é bom que seja informado das condições dos seus cidadãos.
Mas que deverá fazer o príncipe com um herege? Condená-lo em nome da verdade divina
de que não é o guarda? O príncipe pode e deve condenar o herege se a sua ação
prejudica a convivência de todos, isto é, se o herege afirma a sua heresia matando ou
impedindo aqueles que não a partilham. Mas nesse ponto se detém o poder do príncipe,
porque ninguém sobre esta terra pode ser obrigado com suplícios a seguir os preceitos do
evangelho, senão onde iria parar aquela livre vontade por cujo exercício cada um será
depois julgado no outro mundo? A Igreja pode e deve avisar o herege que ele está saindo
da comunidade dos fiéis, mas não pode julgá-lo na terra e obrigá-lo contra a sua
vontade. Se Cristo quisesse que os seus sacerdotes obtivessem poder coativo, teria
estabelecido preceitos precisos, como fez Moisés com a lei antiga. Não o fez. Portanto
não o quis. Ou pretende-se sugerir a idéia que ele o queria mas que lhe faltara o tempo
ou a capacidade de o dizer, em três anos de pregação? Mas era justo que não o quisesse,
porque, se o tivesse querido, então o papa poderia impor a sua vontade ao rei, e o
cristianismo já não seria lei de liberdade, mas intolerável escravidão.
Tudo isto, acrescentou Guilherme de rosto risonho, não é uma limitação aos poderes
do sumo pontífice mas sim uma exaltação da sua missão: porque o servo dos servos de
Deus está sobre esta terra para servir e não para ser servido. E, enfim, seria pelo menos
bizarro se o papa tivesse jurisdição sobre as coisas do império e não sobre os outros
reinos da terra. Como é sabido, aquilo que o papa diz sobre as coisas divinas vale para os
súditos do rei de França como para os do rei de Inglaterra, mas deve valer também para
os súditos do Grande Cão ou do sultão dos infiéis, que infiéis são precisamente porque
não são fiéis a esta bela verdade. E portanto, se o papa se atribuísse a jurisdição
temporal - enquanto papa - apenas sobre as coisas do império, poderia deixar suspeitar
que, identificada a jurisdição temporal com a espiritual, por isso mesmo ele não só não
teria jurisdição espiritual sobre os sarracenos ou sobre os tártaros mas nem sequer sobre
os franceses ou os ingleses - o que seria uma delituosa blasfêmia. Eis a razão, concluía o
meu mestre, por que lhe parecia justo sugerir que a Igreja de Avinhão fazia injúria à
humanidade inteira afirmando que lhe competia aprovar ou suspender aquele que tinha
sido eleito imperador dos romanos. O papa não tem sobre o império maiores direitos que
sobre os outros reinos, e, como não estão sujeitos à aprovação do papa nem o rei de
França nem o sultão, não se vê uma boa razão para que deva estar-lhe sujeito o
imperador dos alemães e dos italianos. Tal sujeição não é de direito divino, porque as
escrituras não falam dela. Não é sancionada pelo direito dos gentios, em virtude das
razões acima aduzidas. Quanto às relações com a disputa da pobreza, disse por fim
Guilherme, as suas modestas opiniões, elaboradas em forma de afáveis sugestões por ele
e por alguns como Marsílio de Pádua e João de Gianduno, levavam às seguintes
conclusões: se os franciscanos Queriam permanecer pobres, o imperador não podia nem
devia opor-se a um desejo tão virtuoso. Decerto que, se a hipótese da pobreza de Cristo
tivesse sido provada, isso não só teria ajudado os menoritas mas teria reforçado a idéia
de que Jesus não teria querido para si nenhuma jurisdição terrena. Mas tinha ouvido
naquela manhã pessoas bastante sábias afirmar que não se podia provar que Jesus tinha
sido pobre. E, daí, parecia-lhe mais conveniente inverter a demonstração. Visto que
ninguém tinha afirmado, e teria podido afirmar, que Jesus tinha requerido para si e para
os seus alguma jurisdição terrena, este afastamento de Jesus das coisas temporais
parecia-lhe um indício suficiente para convidar a pensar sem pecar que Jesus tinha
igualmente preferido a pobreza.
Guilherme tinha falado num tom modesto, tinha exprimido as suas certezas de modo
tão dubitativo que nenhum dos presentes tinha podido levantar-se para o refutar. Isto
não quer dizer que todos estivessem convencidos daquilo que tinha dito. Não só os
avinhonenses se agitavam agora de rostos carregados e sussurrando comentários entre si,
mas o próprio Abade parecia muito desfavoravelmente impressionado por aquelas
palavras, como se pensasse que não era aquele o modo como tinha imaginado as relações
entre a sua ordem e o império. E, quanto aos menoritas, Miguel de Cesena estava
perplexo, Jerônimo aterrado, Ubertino pensativo.
O silêncio foi quebrado pelo cardeal do Poggetto, sempre sorridente e descontraído,
que perguntou com gentileza a Guilherme se iria a Avinhão para dizer aquelas mesmas
coisas ao senhor papa. Guilherme perguntou o parecer do cardeal, este disse que o
senhor papa tinha ouvido pronunciar muitas opiniões discutíveis ao longo da sua vida, e
era um homem amantíssimo para com todos os seus filhos, mas que, seguramente,
aquelas proposições o teriam atormentado muito.
Interveio Bernardo Gui, que até então não tinha aberto a boca:
- Eu ficaria muito contente se frade Guilherme, tão hábil e eloqüente a expor as suas
idéias, viesse a submetê-las ao juízo do pontífice...
- Acabais de me convencer, senhor Bernardo - disse Guilherme. - Não irei. - Depois,
dirigindo-se ao cardeal, em tom de desculpa: - Sabeis, esta fluxão que me está tomando
o peito desaconselha-me a empreender uma viagem tão longa nesta estação...
- Mas então porque falastes tão longamente? - perguntou o cardeal.
- Para testemunhar a verdade - disse Guilherme humildemente. – A verdade tornarnos-
á livres.
- Isso não! - explodiu nessa altura João Dalbena. - Aqui não se trata da verdade que
nos fará livres, mas da excessiva liberdade que quer tornar-se verdadeira!
- Também isso é possível - admitiu Guilherme com doçura.
Senti por uma súbita intuição que estava para rebentar uma tempestade de corações e
de línguas bem mais furiosas que a primeira. Mas nada aconteceu. Enquanto Dalbena
falava ainda, o capitão dos archeiros tinha entrado e tinha ido sussurrar qualquer coisa
ao ouvido de Bernardo, o qual se levantou de repente e com a mão pediu audiência.
- Irmãos - disse -, pode ser que esta proveitosa discussão possa ser retomada, mas
agora um acontecimento de enorme gravidade obriga-nos a suspender os nossos
trabalhos, com autorização do Abade. Talvez tenha superado, sem querer, as
expectativas do próprio Abade, que esperava descobrir o culpado dos vários delitos dos
últimos dias. Esse homem está agora nas minhas mãos. Mas, infelizmente, foi apanhado
demasiado tarde, mais uma vez... Alguma coisa sucedeu além... - e indicava vagamente
o exterior.
Atravessou rapidamente a sala e saiu, seguido por muitos, Guilherme entre os
primeiros e eu com ele.
O meu mestre olhou para mim e disse-me:
- Temo que tenha acontecido alguma coisa a Severino.
QUINTO DIA
SEXTA
Onde se encontra Severino assassinado e já não se encontra o livro que ele tinha
encontrado.
Atravessamos a esplanada a passo rápido e cheios de angústia. O capitão dos archeiros
conduzia-nos em direção ao hospital, e logo que ali chegamos entrevimos na densa
penumbra umas sombras que se agitavam: eram monges e servos que acorriam, eram
archeiros que estavam diante da porta e impediam o acesso.
- Aqueles homens armados foram enviados por mim para procurarem um homem que
podia fazer luz sobre tantos mistérios – disse Bernardo.
- O irmão ervanário? - perguntou o Abade estupefato.
- Não, agora vereis - disse Bernardo, abrindo caminho no interior.
Penetramos no laboratório de Severino, e aqui um penoso espetáculo se ofereceu aos
nossos olhos. O desventurado ervanário jazia morto num lago de sangue, com a cabeça
partida. Em torno, as estantes pareciam ter sido devastadas pela tempestade: ampolas,
garrafas, livros, documentos estavam espalhados por todo o lado em grande desordem e
ruína. Ao lado do corpo estava uma esfera armilar, pelo menos duas vezes maior que a
cabeça de um homem, de metal finamente trabalhado, encimada por uma cruz de ouro e
fixada sobre um pequeno tripé decorado. Já outras vezes a tinha notado sobre a mesa à
esquerda da entrada.
No outro extremo da sala, dois archeiros seguravam firmemente o despenseiro, que se
debatia protestando a sua inocência e que aumentou os seus clamores quando viu entrar
o Abade.
- Senhor - gritava -, as aparências são contra mim! Entrei quando Severino já estava
morto e encontraram-me quando estava observando sem palavras este massacre!
O chefe dos archeiros aproximou-se de Bernardo, e com sua licença fez-lhe um
relatório, diante de todos. Os archeiros tinham recebido ordem para encontrarem o
despenseiro e para o prenderem, e há mais de duas horas que o procuravam pela abadia.
Devia tratar-se, pensei, da disposição dada por Bernardo antes de entrar no capítulo, e
os soldados, estranhos ao lugar, tinham provavelmente conduzido as buscas nos lugares
errados, sem se aperceberem que o despenseiro, ignorando ainda o seu destino, estava
com outros no nártex; e por outro lado o nevoeiro tinha tornado mais árdua a sua caça.
Em todo o caso, pelas palavras do capitão, deduzia-se que, quando Remígio, depois de
eu o ter deixado, tinha ido em direção às cozinhas, alguém o tinha visto e tinha avisado
os archeiros, os quais tinham chegado ao Edífico quando Remígio se tinha afastado de
novo, e há muito pouco, porque estava na cozinha Jorge, que afirmava ter acabado de
lhe falar. Os archeiros tinham então explorado o planalto na direção do horto, e aqui,
emergindo do nevoeiro como um fantasma, tinham encontrado o velho Alinardo, que
quase se tinha perdido. Precisamente Alinardo tinha dito que tinha visto o despenseiro,
pouco antes, entrar no hospital. Os archeiros tinham ido até lá, encontrando a porta
aberta. Lá dentro, tinham encontrado Severino inanimado e o despenseiro, que,
freneticamente, estava revistando no meio das estantes, deitando tudo ao chão, como se
estivesse procurando qualquer coisa. Era fácil compreender o que tinha sucedido,
concluía o capitão. Remígio tinha entrado, tinha-se atirado ao ervanário, tinha-o morto,
e estava depois procurando aquilo por que tinha matado.
Um archeiro levantou do chão a esfera armilar e estendeu-a a Bernardo. A elegante
arquitetura de círculos de cobre e prata, sustentada por uma armação mais robusta de
anéis de bronze, empunhada pela haste do tripé, tinha sido vibrada com força sobre o
crânio da vítima, de forma que, no impacto, muitos dos círculos mais finos tinham-se
quebrado ou esmagado de um lado. E que aquele era o lado que se tinha abatido sobre a
cabeça de Severino revelavam-no as marcas de sangue e até os grumos de cabelo e as
imundas salpicaduras de matéria cerebral.
Guilherme inclinou-se sobre Severino para verificar a sua morte. Os olhos do infeliz,
velados pelo sangue que tinha corrido a jorros da cabeça, estavam arregalados, e
perguntei-me se era acaso possível ler na pupila imobilizada, como se consta que
aconteceu em outros casos, a imagem do assassino, último vestígio das percepções da
vítima. Vi que Guilherme procurava as mãos do morto, para verificar se tinha manchas
negras nos dedos, embora naquele caso a causa da morte fosse mais que evidente: mas
Severino usava as mesmas luvas de pele com que algumas vezes o tinha visto manipular
ervas perigosas, lagartos, insetos desconhecidos.
Entretanto, Bernardo Gui dirigia-se ao despenseiro:
- Remígio de Varagine, é este o teu nome, não é verdade?
Tinha-te mandado procurar pelos meus homens com base noutras acusações e para
confirmar outras suspeitas. Agora vejo que tinha agido retamente, se bem que, e por isso
me censuro, demasiado tarde. Senhor - disse ao Abade -, considero-me quase
responsável por este último crime, porque desde esta manhã sabia que era necessário
entregar este homem à justiça, depois de ter escutado as revelações do outro miserável
preso esta noite. Mas, como também vós vistes, durante a manhã estive ocupado com
outros deveres, e os meus homens fizeram o melhor que puderam...
Enquanto falava, em voz alta para que todos os circunstantes ouvissem (e a sala tinhase
entretanto apinhado, com gente que se enfiava em todos os cantos, olhando para as
coisas espalhadas e destruídas, apontando para o cadáver e comentando a meia-voz o
grande crime), descobri no meio da pequena multidão Malaquias, que observava
sombriamente a cena. Também o descobriu o despenseiro, que precisamente naquele
momento ia ser arrastado para fora. Arrancou-se das mãos dos archeiros que o prendiam
e atirou-se ao irmão, agarrando-o pelo hábito e falando-lhe breve e desesperadamente
cara a cara, enquanto os archeiros não voltaram a prendê-lo. Mas, quando já o levavam
com brutalidade, voltou-se ainda para Malaquias gritando-lhe:
- Jura, e eu juro!
Malaquias não respondeu logo, como se procurasse as palavras adequadas. Depois,
quando o despenseiro já estava ultrapassando à força o umbral, disse-lhe:
- Não farei nada contra ti.
Guilherme e eu olhamo-nos, perguntando-nos o que significava esta cena. Bernardo
também a tinha observado, mas não pareceu perturbado, antes sorriu a Malaquias como
para aprovar as suas palavras e selar com ele uma sinistra cumplicidade. Depois anunciou
que logo depois da refeição se reuniria no capítulo um primeiro tribunal para instruir
publicamente aquele inquérito. E saiu ordenando que conduzissem o despenseiro às
forjas, sem o deixar falar com Salvador.
Naquele momento sentimos que Bêncio nos chamava atrás de nós:
- Eu entrei logo depois de vós - disse num sussurro -, quando a sala estava ainda meio
vazia, e Malaquias não estava.
- Terá entrado depois - disse Guilherme.
- Não - assegurou Bêncio -, eu estava ao pé da porta, vi quem entrava. Digo-vos,
Malaquias já estava dentro... antes.
- Antes de quê?
- Antes de entrar o despenseiro. Não posso jurá-lo, mas creio que saiu daquela
cortina, quando já aqui estávamos muitos – e apontou para um amplo cortinado que
protegia um leito onde habitualmente Severino punha a repousar quem tinha acabado de
sofrer um tratamento.
- Queres insinuar que foi ele quem matou Severino e que se retirou ali atrás quando o
despenseiro entrou? - perguntou Guilherme.
- Ou então que ali de trás tenha assistido a quanto aconteceu aqui. Senão, porque é
que o despenseiro lhe teria implorado que não o prejudicasse prometendo em troca não
o prejudicar a ele?
- É possível - disse Guilherme. - Em todo o caso estava aqui um livro, e deveria ainda
estar, porque tanto o despenseiro como Malaquias saíram de mãos vazias.
Guilherme sabia pelo meu relatório que Bêncio sabia: e naquele momento tinha
necessidade de ajuda. Aproximou-se do Abade, que observava tristemente o cadáver de
Severino, e pediu-lhe que os mandasse sair a todos, porque queria examinar melhor o
lugar. O Abade consentiu e saiu ele também não sem lançar a Guilherme um olhar de
cepticismo, como se o censurasse por chegar sempre tarde. Malaquias procurou ficar
aduzindo várias razões, de todo vagas: Guilherme fez-lhe observar que ali não era a
biblioteca e que naquele lugar não podia alegar direitos. Foi cortês mas inflexível, e
vingou-se de quando Malaquias não lhe tinha consentido examinar a mesa de Venancio.
Quando ficamos os três, Guilherme libertou uma das mesas dos cacos e dos papéis que
a ocupavam e disse-me que lhe passasse, uns a seguir aos outros, os livros da coleção de
Severino. Pequena coleção, comparada à imensa do labirinto, mas tratava-se mesmo
assim de dezenas e dezenas de volumes, de vários tamanhos, que primeiro estavam em
boa ordem nas estantes e agora jaziam por terra em desordem, entre vários outros
objetos, e já baralhados pelas mãos febris do despenseiro, alguns até rasgados, como se
ele não procurasse um livro mas algo que devia estar entre as páginas de um livro. Alguns
tinham sido despedaçados com violência, separados da sua encadernação. Apanhá-los,
examinar rapidamente a sua natureza e repô-los numa pilha sobre a mesa não foi
empresa fácil, e feita à pressa, porque o Abade tinha-nos concedido pouco tempo, dado
que, depois, deviam entrar os monges para recomporem o corpo martirizado de Severino
e para o prepararem para a sepultura. E tratava-se ainda de andar à procura por todo o
lado debaixo das mesas, atrás das estantes e dos armários, se alguma coisa tivesse
escapado a uma primeira inspeção. Guilherme não quis que Bêncio me ajudasse e
consentiu-lhe apenas que ficasse de guarda à porta. Malgrado as ordens do Abade,
muitos insistiam em entrar, servos aterrados pela notícia, monges chorando o seu irmão,
noviços que chegavam com lençóis brancos e bacias de água para lavar e envolver o
cadáver...
Devia, pois, proceder-se depressa. Eu agarrava nos livros, estendia-os a Guilherme,
que os examinava e os punha sobre a mesa. Depois demo-nos conta que o trabalho era
longo e procedemos em conjunto, isto é, eu apanhava um livro, recompunha-o se estava
descomposto, lia-lhe o título, pousava-o. E em muitos casos tratava-se de folhas
dispersas.
- De plantis libri tres, maldição, não é este - dizia Guilherme, e atirava o livro para a
mesa.
- Thesaurus herbarum - dizia eu.
E Guilherme:
- Deixa lá esse, procuramos um livro grego!
- Este? - perguntava eu, mostrando-lhe uma obra de páginas cobertas de caracteres
abstrusos.
E Guilherme:
- Não, este é árabe, tolo! Tinha razão Bacon quando dizia que o primeiro dever do
sábio é estudar as línguas!
- Mas árabe, nem sequer vós sabeis1 - rebatia eu, picado.
Ao que Guilherme respondia:
- Mas ao menos compreendo quando é árabe!
E eu corava, porque ouvia Bêncio a rir atrás de mim.
Os livros eram muitos, e muitos mais os apontamentos, os rolos com desenhos da
esfera celeste, os catálogos de plantas estranhas, manuscritos provavelmente pelo
defunto em folhas soltas. Trabalhamos muito tempo, exploramos o laboratório por todo o
lado, Guilherme chegou até, com grande frieza, a desviar o cadáver, para ver se não
havia qualquer coisa debaixo, e revistou-lhe o hábito. Nada.
- É indispensável - disse Guilherme. - Severino fechou-se aqui dentro com um livro. O
despenseiro não o tinha...
- Não o terá acaso escondido no hábito? - perguntei.
- Não, o livro que vi na manhã passada debaixo da mesa de Venancio era grande,
teríamos dado conta.
- Como estava encadernado? - perguntei.
- Não sei. Estava aberto e vi-o só por poucos segundos, o suficiente para me dar conta
que era em grego, mas não me recordo de mais nada. Continuemos: o despenseiro não o
levou, e Malaquias também não, creio.
- Evidentemente que não - confirmou Bêncio -, quando o despenseiro o agarrou pelo
peito viu-se que não podia tê-lo debaixo do escapulário.
- Bem. Isto é, mal. Se o livro não está nesta sala, é evidente que mais alguém, além
de Malaquias e do despenseiro, tinha entrado antes.
- Isto é, uma terceira pessoa que matou Severino?
- Gente de mais - disse Guilherme.
- Por outro lado – disse -, quem podia saber que o livro estava aqui?
- Jorge, por exemplo, se nos ouviu.
- Sim - disse -, mas Jorge não poderia ter morto um homem robusto como Severino, e
com tanta violência.
- Certamente que não. Além disso, tu viste-o dirigir-se para o Edifício, e os archeiros
encontraram-no na cozinha pouco antes de encontrarem o despenseiro. Portanto, não
teria tido tempo de vir para aqui e depois de voltar para a cozinha. Calcula que, embora
se mova com desenvoltura, tem todavia de avançar costeando as paredes, e não teria
podido atravessar o horto e a correr...
- Deixai-me raciocinar com a minha cabeça - disse, eu que já tinha a ambição de
emular o meu mestre. - Portanto, não pode ter sido Jorge. Alinardo andava nas
proximidades, mas também ele se segura com dificuldade nas pernas, e não pode ter
dominado Severino. O despenseiro esteve aqui, mas o tempo decorrido entre a sua saída
das cozinhas e a chegada dos archeiros foi tão breve que me parece difícil que tenha
podido conseguir que Severino lhe abrisse a porta, enfrentá-lo, matá-lo e depois arranjar
todo este pandemônio. Malaquias podia ter precedido todos os outros: Jorge ouviu-nos no
nártex, foi ao scriptorium informar Malaquias que um livro da biblioteca estava com
Severino. Malaquias vem para aqui, convence Severino a abri-lhe a porta, mata-o, sabe
Deus porquê. Mas, se procurava o livro, deveria tê-lo reconhecido sem revistar desta
maneira porque é ele o bibliotecário! Então, quem resta?
- Bêncio - disse Guilherme.
Bêncio negou vigorosamente sacudindo a cabeça:
- Não, frade Guilherme, vós sabeis que ardia de curiosidade. Mas se tivesse entrado
aqui e tivesse podido sair com o livro, agora não estaria a fazer-vos companhia, mas em
qualquer outro lado a examinar o meu tesouro...
- Uma prova quase convincente - sorriu Guilherme. - Porém, também tu não sabes
como é o livro. Poderias ter matado e agora estarias aqui a procurar identificá-lo.
Bêncio corou violentamente:
- Eu não sou um assassino! - protestou.
- Ninguém o é, antes de cometer o primeiro delito - disse filosoficamente Guilherme. -
Em todo o caso o livro não está aqui, e esta é uma prova suficiente do fato de que tu não
o deixaste aqui. E parece-me razoável que, se o tivesses apanhado antes, te terias
escapulido para fora durante a confusão. - Depois voltou-se para considerar o cadáver.
Pareceu que só então se dava conta da morte do seu amigo. - Pobre Severino - disse -,
também tinha suspeitado de ti e dos teus venenos. E tu esperavas a insídia de um
veneno, senão não terias calçado estas luvas. Temias um perigo da terra e afinal chegoute
da esfera celeste... - Voltou a pegar na esfera, observando-a com atenção. - Quem
sabe porque usaram precisamente esta arma...
- Estava ao alcance da mão.
- Pode ser. Também havia outras coisas, vasos, instrumentos de jardineiro... É um
belo exemplar de arte dos metais e de ciência astronômica. Estragou-se e... Santo Deus!
- exclamou.
- O que é?
- E foi atingida a terça parte do Sol e a terça parte da Lua e a terça parte das
estrelas... - recitou.
Eu conhecia bem de mais o texto do apóstolo João:
- A quarta trombeta! - exclamei.
- De fato. Primeiro o granizo, depois o sangue, depois a água, e agora as estrelas... Se
é assim, tudo tem de ser revisto, o assassino não agiu ao acaso, seguiu um plano... Mas
será acaso possível imaginar uma mente tão malvada que mata só quando pode fazê-lo
seguindo os ditames do livro do Apocalipse?
- Que acontecerá com a quinta trombeta? - perguntei aterrado. Procurei recordar-me:
- E viu um astro caído do céu sobre a terra e a ele foi dada a chave do poço do abismo...
Morrerá alguém afogado no poço?
- A quinta trombeta promete-nos muitas outras coisas - disse Guilherme. - Do poço
sairá o fumo de uma fornalha, depois sairão gafanhotos que atormentarão os homens
com um aguilhão semelhante ao dos escorpiões. E a forma dos gafanhotos será
semelhante à dos cavalos com coroas de ouro na cabeça e dentes de leão... O nosso
homem teria à disposição vários meios para realizar as palavras do livro... Mas não
corramos atrás de fantasias. Procuremos antes recordar o que nos disse Severino quando
nos anunciou que tinha encontrado o livro...
- Vós disseste-lhes que vo-lo trouxesse, e ele disse que não podia...
- De fato, depois fomos interrompidos. Porque é que não podia? Um livro pode
transportar-se. E porque é que pôs as luvas? Há qualquer coisa na encadernação do livro
relacionada com o veneno que matou Berengário e Venancio? Uma insídia misteriosa,
uma ponta infectada...
- Uma serpente! - disse.
- Porque não uma baleia? Não, estamos ainda a fantasiar. O veneno vimo-lo, deveria
passar pela boca. Depois, não é que Severino tenha dito que não podia transportar o
livro, disse que preferia mostrar-mo aqui. E pôs as luvas... De momento, sabemos que
naquele livro se toca com luvas. E isto é válido também para ti Bêncio, se o encontrares
como esperas. E, visto que és tão serviçal, podes ajudar-me. Volta para o scriptorium e
mantém Malaquias debaixo de olho. Não o percas de vista.
- Assim se fará! - disse Bêncio, e saiu, contente pareceu-nos, com a missão.
Não pudemos reter mais tempo os outros monges, e a sala foi invadida de gente. Já
tinha passado a hora do almoço e, provavelmente, Bernardo já estava reunindo no
capítulo a sua corte.
- Aqui não há mais nada a fazer - disse Guilherme.
Uma idéia atravessou-me a mente:
- O assassino - disse não podia ter lançado o livro pela janela para depois ir buscá-lo
atrás do hospital?
Guilherme olhou com cepticismo para as grandes janelas do laboratório, que pareciam
hermeticamente fechadas.
- Tentaremos verificar - disse ele.
Saímos e inspecionamos o lado posterior da construção, que estava quase encostado
ao muro da cerca, deixando apenas uma estreita passagem. Guilherme avançou com
cautela, porque naquele espaço a neve dos últimos dias tinha-se conservado intacta. Os
nossos passos imprimiam sobre a crosta gelada, mas frágil, sinais evidentes, e, portando
se alguém tivesse passado antes de nós, a neve ter-no-lo-ia assinalado. Não vimos nada.
Abandonamos com o hospital a minha pobre hipótese, e, enquanto atravessávamos o
horto, perguntei a Guilherme se confiava verdadeiramente em Bêncio.
- Não completamente - disse Guilherme -, mas em todo o caso não lhe dissemos nada
que ele não soubesse já, e inspiramos-lhe medo do livro. Finalmente, fazendo-o vigiar
Malaquias fazemos com que o vigie também a ele Malaquias, o qual está evidentemente
procurando o livro por sua conta.
- E o despenseiro que queria?
- Em breve o saberemos. Decerto queria qualquer coisa, e queria-a imediatamente,
para evitar um perigo que o aterrorizava. Essa qualquer coisa deve ser do conhecimento
de Malaquias, senão não explicaríamos a invocação desesperada que Remígio lhe
dirigiu...
- De qualquer modo, o livro desapareceu...
- Esta é a coisa mais inverossímil - disse Guilherme quando já estávamos a chegar ao
capítulo. - Se lá estava, e Severino disse que estava, ou o levaram ou ainda lá está.
- E como lá não está, alguém o levou - conclui.
- Não quer dizer que o raciocínio não seja feito partindo de outra premissa menor.
Como tudo confirma que ninguém pode tê-lo levado...
- Então devia ainda lá estar. Mas não está.
- Um momento. Nós dizemos que não estava porque não o encontramos. Mas talvez
não o tenhamos encontrado porque não o vimos onde ele estava.
- Mas olhamos por toda a parte!
- Olhamos e não vimos. Ou, então, vimos mas não reconhecemos... Adso, como é que
Severino nos descreveu aquele livro, que palavras usou?
- Disse que tinha encontrado um livro que não era dos seus, em grego...
- Não. Agora me recordo. Disse um estranho livro. Severino era uma pessoa culta, e
para pessoa culta um livro em grego não é estranho, ainda que essa pessoa não saiba
grego, porque, pelo menos, reconheceria o alfabeto. E uma pessoa culta não definiria
como estranho nem sequer um livro árabe, ainda que não conheça o alfabeto... -
Interrompeu-se. - E que fazia um livro árabe no laboratório de Severino?
- Mas porque é que havia de definir como estranho um livro árabe?
- Esse é o problema. Se o definiu como estranho é porque tinha um aspecto insólito,
insólito pelo menos para ele, que era ervanário e não bibliotecário... E nas bibliotecas
acontece que muitos manuscritos antigos são por vezes encadernados em conjunto,
reunindo num volume textos diversos e curiosos, um em grego, outro em aramaico...
- ... e outro em árabe! - gritei, fulminado por aquela iluminação.
Guilherme arrastou-me brutalmente para fora do nártex, fazendo-me correr para o
hospital:
- Besta de teutão, nabo, ignorante, olhaste só para as primeiras páginas e não para o
resto!
-Mas, mestre - ofegava -, fostes vós que olhastes para as páginas que vos mostrei e
dissestes que era árabe e não grego!
- É verdade, Adso, é verdade, sou eu a besta, corre depressa!
Voltamos ao laboratório e tivemos dificuldade em lá entrar, porque os noviços
estavam já transportando para fora o cadáver. Outros curiosos andavam pela sala.
Guilherme precipitou-se sobre a mesa, levantou os volumes procurando o fatídico, ia-os
atirando para o chão sob os olhos espantados dos circunstantes, depois abriu-os e
reabriu-os todos duas vezes. Infelizmente, o manuscrito árabe já lá não estava.
Recordava-me vagamente da velha capa, que não era robusta, bastante gasta, com finas
bandas metálicas.
- Quem é que entrou aqui depois de eu ter saído? - perguntou Guilherme a um monge.
Este encolheu os ombros, era claro que tinham entrado todos e ninguém.
Procuramos considerar as possibilidades. Malaquias? Era verossímil, sabia o que queria,
tinha-nos talvez vigiado, tinha-nos visto sair sem nada na mão, havia voltado com toda a
segurança. Bêncio? Recordei que, quando se dera a altercação sobre o texto árabe, ele
se tinha rido. Então, tinha julgado que se ria da minha ignorância, mas talvez se risse da
ingenuidade de Guilherme, ele sabia bem de quantas maneiras se pode apresentar um
velho manuscrito, talvez tivesse pensado naquilo que nós não tínhamos pensado logo, e
que deveríamos ter pensado, isto é, que Severino não sabia árabe e que, portanto, era
singular que conservasse entre os seus um livro que não podia ler. Ou, então, havia um
terceiro personagem?
Guilherme estava profundamente humilhado. Procurava consolá-lo, dizia-lhe que ele
estava procurando há três dias um texto em grego e que era natural que tivesse apartado
no curso do seu exame todos os livros que não apareciam em grego. E ele respondia que
é certamente humano cometer erros, porém existem seres humanos que cometem mais
que os outros, e são chamados estultos, e ele estava entre esses, e perguntava-se se
tinha valido a pena estudar em Paris e em Oxford para ser incapaz de pensar que os
manuscritos também se encadernam em grupos, coisa que até os noviços sabem, mesmo
os estúpidos como eu, e um par de estúpidos como nós dois teria um rico êxito nas
feiras, e era isso que devíamos fazer e não procurar resolver os mistérios, especialmente
quando tínhamos diante gente muito mais astuta que nós.
- Mas é inútil chorar - concluiu depois. - Se o levou Malaquias, já o voltou a pôr na
biblioteca. E só o encontraríamos se soubéssemos entrar no finis Africae. Se o levou
Bêncio, terá imaginado que, mais tarde ou mais cedo, eu teria a suspeita que tive e
voltaria ao laboratório, senão não teria agido tão depressa. E portanto ter-se-á
escondido, e o único ponto onde decerto não se escondeu é aquele em que nós o
procuraríamos imediatamente, isto é, a sua cela. Por isso voltemos ao capítulo e vejamos
se durante a instrução o despenseiro dirá alguma coisa de útil. Porque, no fim de contas,
não tenho ainda muito claro o plano de Bernardo, ele que procurava o seu homem antes
da morte de Severino, e com outros fins.
Voltamos ao capítulo. Teríamos feito bem em ir à cela de Bêncio, porque como depois
soubemos, o nosso jovem amigo não tinha realmente em tão grande estima Guilherme e
não tinha pensado que voltasse tão depressa ao laboratório; por isso, julgando não ser
procurado daquele lado, tinha precisamente ido esconder o livro na sua cela.
Mas sobre isto falarei depois. Entretanto aconteceram fatos tão dramáticos e
inquietantes que nos fizeram esquecer o livro misterioso. E, se todavia o não
esquecemos, fomos tomados por outras tarefas urgentes, relacionadas com a missão de
que Guilherme continuava, apesar de tudo, encarregado.
QUINTO DIA
NONA
Onde se administra a justiça e se tem a estranha impressão de que todosr estão
errados.
Bernardo Gui colocou-se ao centro da grande mesa de nogueira na sala do capítulo.
Junto dela, um dominicano desempenhava as funções de tabelião, e dois prelados da
delegação pontifícia estavam a seu lado como juízes. O despenseiro estava de pé diante
da mesa, entre dois archeiros.
O Abade dirigiu-se a Guilherme, sussurrando-lhe:
- Não sei se o processo é legítimo. O concílio de Latrão de mil duzentos e quinze
sancionou no seu canone trinta e sete que não se pode citar ninguém a comparecer
diante de juízes que exerçam a mais de dois dias de marcha do seu domicílio. Aqui, a
situação é talvez diversa, é o juiz que vem de longe, mas...
- O inquisidor está isento de qualquer jurisdição regular - disse Guilherme - e não tem
de sentir as normas do direito comum. Goza de privilégio especial e não é sequer
obrigado a escutar os advogados.

Olhei para o despenseiro. Remígio estava reduzido a um estado miserável. Olhava à
sua volta como um animal amedrontado, como se reconhecesse os movimentos e os
gestos de uma temida liturgia. Agora sei que temia por duas razões, igualmente
medonhas: uma porque tinha sido apanhado, como tudo parecia indicar, em flagrante
delito, outra porque, desde o dia anterior, quando Bernardo tinha iniciado o seu
inquérito, recolhendo murmúrios e insinuações, ele temia que viessem à luz os seus erros
passados; e havia começado a agitar-se ainda mais quando tinha visto prender Salvador.
Se o desventurado Remígio era presa dos seus próprios terrores, Bernardo Gui
conhecia por seu lado os modos de transformar em pânico o medo das suas vítimas. Ele
não falava. Enquanto já todos esperavam que desse início ao interrogatório, mantinha as
mãos sobre os papéis que tinha diante, fingindo ordená-los, mas distraidamente. O seu
olhar estava na verdade postado sobre o acusado, e era um olhar misto de hipócrita
indulgência (como a dizer: «Não temas, estás nas mãos de uma assembléia fraterna, que
só pode querer o teu bem.»), de gélida ironia (como a dizer: «Não sabeis ainda qual é o
teu bem, e eu daqui a pouco to direi.»), de impiedosa severidade (como a dizer: «Mas,
em todo o caso, o teu único juiz aqui sou eu, e tu és coisa minha.») Tudo coisas que o
despenseiro já sabia, mas o silêncio e a demora do juiz serviam para lho fazer recordar,
quase saborear melhor, a fim de que - em vez de se esquecer - ele cada vez mais daí
tirasse motivo de humilhação, a sua inquietação se transformasse em desespero e do juiz
se tornasse coisa exclusiva, cera mole entre as suas mãos.
Finalmente, Bernardo rompeu o silêncio. Pronunciou algumas fórmulas rituais, e disse
aos juizes que se procederia ao interrogatório do imputado por dois delitos igualmente
odiosos, dos quais um era a todos evidente, mas não menos desprezível que o outro,
porque, com efeito, o imputado tinha sido surpreendido a cometer o homicídio quando
era procurado por delito de heresia.
Tinha-o dito. O despenseiro escondeu o rosto entre as mãos, que movia com
dificuldade porque estavam apertadas em correntes. Bernardo deu início ao
interrogatório.
- Quem és tu? - perguntou.
- Remígio de Varagine. Nasci há cinqüenta e dois anos e entrei ainda criança no
convento dos menoritas de Varagine.
- E como é que acontece que te encontres hoje na ordem de São Bento?
- Há anos, quando o pontífice emitiu a bula Sancta Romana, como temia ser
contagiado pela heresia dos fraticelli... embora nunca tenha aderido às suas
proposições... pensei que era mais útil à minha alma pecadora subtrair-me a um
ambiente carregado de seduções e consegui ser admitido entre os monges desta abadia,
onde há mais de oito anos sirvo como despenseiro.
- Subtraíste-te às seduções da heresia - ironizou Bernardo – ou melhor, subtraíste-te
ao inquérito de quem estava designado para descobrir a heresia e arrancar-lhe a planta
má, e os bons monges clunicenses julgaram cumprir um ato de caridade acolhendo-te a ti
e a outros como tu. Mas não basta mudar de saio para apagar da alma a torpeza da
depravação herética, e por isso nós estamos agora aqui para investigar o que se move
pelos recessos da tua alma impenitente e o que fizeste antes de chegar a este santo
lugar.
- A minha alma está inocente e não sei que coisa entendeis quando falais de
depravação herética - disse cautelosamente o despenseiro.
- Vedes? - exclamou Bernardo, dirigindo-se aos outros juízes. - São todos assim!
Quando um deles é preso, apresenta-se a juízo como se a sua consciência estivesse
tranqüila e sem remorsos. E não sabem que este é o sinal mais evidente da sua culpa,
porque o justo, no processo, apresenta-se inquieto! Perguntai-lhe se conhece a causa
pela qual eu tinha predisposto a sua prisão. Conhece-la, Remígio?
- Senhor - respondeu o despenseiro -, ficaria contente em ouvi-la da vossa boca.
Fiquei surpreendido, porque me pareceu que o despenseiro respondia às perguntas de
rito com palavras igualmente rituais, como se conhecesse bem as regras da instrução e as
suas armadilhas e há muito tempo tivesse sido instruído para enfrentar um evento
semelhante.
- Aí está - exclamava entretanto Bernardo -, a típica resposta do herege impenitente!
Percorrem veredas de raposas e é muito difícil apanhá-los em falta, porque a sua
comunidade admite o seu direito a mentir para evitarem a devida punição. Eles recorrem
a respostas tortuosas tentando fazer cair em engano o inquisidor, que já tem de suportar
o contato com gente tão desprezível. Portanto, frei Remígio, tu nunca tiveste nada a ver
com os chamados fraticelli, ou frades da pobre vida, ou beguinos?
- Eu vivi as vicissitudes dos frades menores, quando longamente se discutiu sobre a
pobreza, mas nunca pertenci à seita dos beguinos.
- Vedes? - disse Bernardo. - Nega que foi beguino, porque os beguinos, embora
participando da mesma heresia que os fraticelli, consideram estes últimos um ramo seco
da ordem franciscana e julgam-se mais puros e perfeitos que eles. Mas muitos dos
comportamentos de uns são comuns aos outros. Podes negar, Remígio, ter sido visto na
igreja encolhido com o rosto voltado para a parede, ou prostrado com a cabeça coberta
pelo capucho, em vez de ajoelhado de mãos postas como os outros homens?
- Também na ordem de São Bento nos prostramos por terra, nos momentos devidos...
- Eu não te pergunto o que fizeste nos momentos devidos, mas nos não devidos!
Portanto, não negas ter adotado uma ou outra posição, típica dos beguinos! Mas tu não
és beguino, disseste... E então diz-me: em que crês?
- Senhor, creio em tudo aquilo em que crê um bom cristão...
- Que santa resposta! E em que crê um bom cristão?
- Naquilo que ensina a Santa Igreja.
- E qual Santa Igreja? Aquela que é considerada como tal pelos crentes que se definem
perfeitos, os pseudo-apóstolos, os fraticelli heréticos, ou a Igreja que eles comparam à
meretriz de Babilônia e em que todos nós, pelo contrário, firmemente acreditamos?
- Senhor - disse, perdido, o despenseiro -, dizei-me vós qual acreditais que é a
verdadeira Igreja...
- Eu creio que é a Igreja romana, una, santa e apostólica, dirigida pelo papa e pelos
seus bispos.
- Assim eu o creio - disse o despenseiro.
- Admirável astúcia! - gritou o inquisidor. - Admirável argúcia de dicto! Ouviste-lo: ele
quer dizer que ele crê que eu creio nesta Igreja e subtrai-se ao dever de dizer em que é
que crê ele! Mas conhecemos bem estas artes de fuinha! Vamos à questão. Crês tu que os
sacramentos foram instituídos por Nosso Senhor, que para fazer uma reta penitência é
necessário confessar-se aos servos de Deus, que a Igreja romana tem o poder de desligar
e ligar sobre esta terra aquilo que será ligado e desligado no céu?
- Não deveria acaso crer nisso?
- Não te pergunto em que deverias crer, mas em que crês!
- Eu creio em tudo o que vós e os outros bons doutores me ordenais que creia - disse o
despenseiro, assustado.
- Ah! Mas os bons doutores a que fazes alusão não são acaso aqueles que comandam a
tua seita? É isto que querias dizer quando falavas dos bons doutores? É a estes perversos
mentirosos que se consideram os únicos sucessores dos apóstolos que te referes para
reconhecer os teus artigos de fé? Tu insinuas que, se eu creio naquilo em que eles
crêem, então acreditarás em mim, senão acreditarás só neles?
- Eu não disse isso, senhor - balbuciou o despenseiro -, sois vós que mo fazeis dizer. Eu
creio em vós, se vós me ensinais aquilo que é bem.
- Oh, arrogância! - gritou Bernardo, batendo com o punho na mesa. - Repetes de cor
com torva determinação o formulário que se ensina na tua seita. Tu dizes que
acreditarás em mim só se pregar aquilo que a tua seita considera o que é o bem. Assim
respondes tu agora, talvez sem te aperceberes, porque reafloram aos teus lábios as
frases que um dia reensinaram para enganar os inquisidores. E é assim que te estás
acusando com as tuas próprias palavras, e eu só cairia na tua armadilha se não tivesse
uma longa experiência de inquisição... Mas vamos à verdadeira questão, homem
perverso. Alguma vez ouvistes falar de Geraldo Segalelli de Parma?
- Ouvi falar dele - disse o despenseiro, empalidecendo, se acaso se pudesse ainda falar
de palidez para aquele rosto desfeito.
- Alguma vez ouviste falar de frei Dolcino de Novara?
- Ouvi falar dele.
- Alguma vez o viste pessoalmente, conversaste com ele?
O despenseiro ficou uns instantes em silêncio, como para avaliar até que ponto lhe
convinha dizer uma parte da verdade. Depois decidiu-se, e com um fio de voz:
- Vi-o e falei com ele.
-Mais alto! - gritou Bernardo -, que finalmente se possa ouvir uma palavra verdadeira
sair dos teus lábios! Quando é que falaste com ele?
- Senhor - disse o despenseiro -, eu era frade num convento de província de Novara
quando as gentes de Dolcino se juntaram naquelas paragens, e passaram também perto
do meu convento, e a princípio não se sabia quem eram...
- Tu mentes! Como podia um franciscano de Varagine estar num convento da província
de Novara? Tu não estavas no convento, tu já fazias parte de um bando de fraticelli que
percorria aquelas terras vivendo de esmolas e juntaste-te aos dolcinianos!
- Como podeis afirmar isso, senhor? - disse, tremendo, o despenseiro.
- Dir-te-ei como posso, melhor, devo afirma-lo - disse Bernardo, e ordenou que
fizessem entrar Salvador.
A vista do desgraçado, que certamente tinha passado a noite num interrogatório não
público e mais severo, encheu-me de piedade. O rosto de Salvador, já o disse, era
habitual ente horrível. Mas naquela manhã parecia ainda mais semelhante ao de um
animal. Não apresentava sinais de violência, mas o modo como o corpo se movia,
acorrentado, com os membros deslocados, quase incapaz de se mover, arrastado pelos
archeiros como um macaco atado à corda, patenteavam muito bem o modo como devia
ter-se desenrolado o seu atroz responso.
- Bernardo torturou-o... - sussurrei a Guilherme.
- Que idéia - respondeu - Um inquisidor nunca tortura. O cuidado do corpo do
imputado é confiado sempre ao braço secular.
- Mas é a mesma coisa! - disse eu.
- De modo nenhum. Não o é para o inquisidor, querem as mãos limpas, e não o é para
o inquirido, que, quando vem o inquisidor, acha nele um inesperado apoio, um lenitivo
para as suas penas, e abre-lhe o coração.
Olhei para o meu mestre:
- Vós estais brincando - disse assombrado.
- Parecem-te coisas sobre as quais se brinque? – respondeu Guilherme.
Bernardo estava agora interrogando Salvador, e a minha pena não consegue
transcrever as palavras entrecortadas e, se acaso fosse possível, ainda mais babélicas
com que aquele homem já diminuído, agora reduzido à categoria de um babuíno,
respondia, compreendido com dificuldade por todos, ajudado por Bernardo, que lhe
punha os quesitos de modo que ele não pudesse responder senão que sim ou não, incapaz
de qualquer mentira. E o que disse Salvador pode bem o meu leitor imaginar. Contou, ou
admitiu ter contado durante a noite, uma parte daquela história que eu já tinha
reconstruído: as suas vagabundagens como fraticello, pastorello ou pseudo-apóstolo; e
como nos tempos de frei Dolcino, ele tinha encontrado Remígio entre os dolcinianos e
com ele se tinha salvado após a batalha de monte Rebello, refugiando-se depois de várias
vicissitudes no convento de Casale. Além disso, acrescentou que o heresiarca Dolcino,
próximo da derrota e da captura, tinha confiado a Remígio algumas cartas, para levar
não sabia ele onde ou a quem. E Remígio tinha sempre trazido consigo aquelas cartas,
sem ousar expedi-las, e à sua chegada à abadia, temeroso de as conservar ainda consigo
mas não querendo destruí-las, tinha-as entregado ao bibliotecário, sim, a Malaquias
precisamente, para que as escondesse em qualquer parte nos recessos do Edifício.
Enquanto Salvador falava, o despenseiro olhava-o com ódio, e a certa altura não pôde
conter-se que não lhe gritasse:
-Serpente, macaco lascivo, fui teu pai, amigo, escudo, assim me pagas.
Salvador olhou para o seu protetor, agora necessitado de proteção, e respondeu a
custo:
- Senhor Remígio, pudesse eu e seria teu. E eras-me diletíssimo. Mas tu conheces a
família do alcaide. Qui non habet caballum vadat cum pede...
- Louco! -gritou-lhe ainda Remígio. - Esperas salvar-te? Não sabes que morrerás como
um herege tu também? Diz que falaste sob tortura, diz que inventaste tudo!
- Que sei eu, senhor, que nome têm todas estas risias... Paterinos, gazesos, leonistas,
arnaldistas, esperonistos, circuncisos... Eu não sou homo literatus, peccavi sine malitia,
e o senhor Bernardo magnificentíssimo el sabe, et ispero na indulgentia sua indulgência
suya in nomine patre et filio et spiritis sanctis...
- Seremos indulgentes quanto nos for concedido pelo nosso ofício - disse o inquisidor -
e apreciaremos com paternal benevolência a boa vontade com que nos abristes o teu
espírito. Vai, vai, volta para a tua cela a meditar e espera na misericórdia do Senhor.
Agora temos de debater uma questão de alcance bem diverso. Portanto, Remígio, tu
trazias contigo cartas de Dolcino e deste-as ao teu irmão que cuida da biblioteca.
- Não é verdade, não é verdade! - gritou o despenseiro, como se aquela defesa tivesse
ainda alguma eficácia. E justamente Bernardo interrompeu-o:
- Mas não é de ti que nos serve uma confirmação, mas sim de Malaquias de
Hildesheim.
Mandou chamar o bibliotecário, que não estava entre os presentes. Eu sabia que
estava no scriptorium, ou em torno do hospital, à procura de Bêncio e do livro. Foram
procurá-lo, e quando apareceu, perturbado e procurando não olhar ninguém de frente,
Guilherme murmurou desapontado:
- E agora Bêncio poderá fazer o que quiser.
Mas enganava-se, porque vi o vulto de Bêncio despontar acima dos ombros de outros
monges, que se apinhavam às portas da sala para seguirem o interrogatório. Apontei-o a
Guilherme. Pensamos então que a curiosidade por aquele evento era ainda mais forte
que a sua curiosidade pelo livro. Soubemos depois que, naquela altura, já ele tinha
concluído um seu ignóbil mercado.
Malaquias apareceu portanto diante dos juízes, sem nunca cruzar o seu olhar com o do
despenseiro.
- Malaquias - disse Bernardo -, esta manhã, depois da confissão feita esta noite por
Salvador, perguntei-vos se tínheis recebido do imputado aqui presente umas cartas...
- Malaquias! - bradou o despenseiro -, há pouco juraste-me que não farás nada contra
mim!
Malaquias voltou-se apenas para o imputado, colocado atrás dele, e disse em voz tão
baixa que quase não o ouvia:
- Não cometi perjuro. Se podia fazer alguma coisa contra ti já o fizera. As cartas
tinham sido entregues ao senhor Bernardo esta manhã, antes de tu matares Severino...
- Mas tu sabes, tu deves saber que eu não matei Severino! Tu sabe-lo porque já lá
estavas!
- Eu? - perguntou Malaquias. - Eu entrei ali depois de te terem descoberto.
- E, mesmo assim - interrompeu Bernardo-, que procuravas tu junto de Severino,
Remígio?
O despenseiro voltou-se para olhar para Guilherme com olhos desvairados, depois
olhou para Malaquias, depois ainda para Bernardo:
- Mas eu... eu ouvi esta manhã frade Guilherme aqui presente dizer a Severino que
guardasse certos papéis... eu desde ontem à noite, depois da captura de Salvador, temia
que se falasse daquelas cartas...
- Então tu sabes alguma coisa dessas cartas! – exclamou triunfantemente Bernardo.
O despenseiro já estava na armadilha. Encontrava-se apertado entre duas urgências,
desculpar-se da acusação de heresia e afastar de si a suspeita de homicídio. Resolveu
provavelmente enfrentar a segunda acusação, por instinto, porque agora agia sem regra
e sem conselho:
- Falarei das cartas depois... justificarei... direi como cheguei à sua posse... Mas
deixai que explique o que aconteceu esta manhã. Eu pensava que se falaria dessas
cartas, quando vi Salvador cair nas mãos do senhor Bernardo, há anos que a memória
dessas cartas me atormenta o coração... Então, quando ouvi Guilherme e Severino
falarem de alguns papéis... não sei, preso pelo medo, pensei que Malaquias se tinha
desembaraçado delas e as tivesse dado a Severino... queria destruí-las, e por isso fui ter
com Severino... a porta estava aberta e Severino estava já morto, pus-me a rebuscar
entre as suas coisas para procurar as cartas... apenas tinha medo...
Guilherme sussurrou-me ao ouvido:
- Pobre estúpido, atemorizado por um perigo, atirou-se de cabeça para outro...
- Admitamos que tu dizes quase, digo quase, a verdade - interveio Bernardo. - Tu
pensavas que Severino tinha as cartas e procuraste-as junto dele. E porque é que
pensaste que as tinha? E porque matastes antes também os outros irmãos? Pensavas
talvez que essas cartas circulavam há muito tempo pelas mãos de muitos? Talvez se use
nesta abadia andar à caça das relíquias dos hereges queimados?
Vi o Abade estremecer. Não havia nada de mais insidioso que a acusação de recolher
relíquias de hereges, e Bernardo era muito hábil a misturar os delitos à heresia, e o todo
à vida da abadia. Fui interrompido nas minhas reflexões pelo despenseiro, que gritava
que ele nada tinha a ver com os outros delitos. Bernardo indulgentemente tranqüilizouo:
não era aquela de momento a questão sobre a qual se estava discutindo, ele era
interrogado por delito de heresia, e que não tentasse (e aqui a sua voz fez-se severa)
desviar a atenção do seu passado herético falando de Severino ou procurando tornar
suspeito Malaquias. Que se voltasse portanto às cartas.
- Malaquias de Hildesheim - disse, virado para a testemunha -, vós não estais aqui
como acusado. Esta manhã respondestes às minhas perguntas e à minha petição sem
tentar esconder nada. Agora repetireis aqui o que dissestes esta manhã e não tereis nada
a temer.
- Repito quanto disse esta manhã - disse Malaquias. - Pouco tempo depois de ter
chegado aqui, Remígio começou a ocupar-se das cozinhas, e tivemos freqüentes contatos
por razões de trabalho... eu como bibliotecário estou encarregado do fecho noturno de
todo o Edifício, e portanto também das cozinhas... Não tenho motivo para ocultar que
nos tornamos fraternos amigos, e nem eu tinha motivo para nutrir suspeitas contra ele. E
ele contou-me que tinha consigo alguns documentos de natureza secreta, confiados em
confissão, que não deviam cair em mãos profanas e que não ousava ter junto de si. Como
eu guardava o único lugar do mosteiro interdito a todos os outros, pediu-me que lhe
conservasse aqueles papéis longe de qualquer olhar curioso, e eu consenti, não
presumindo que os documentos fossem de natureza herética, e nem sequer os li,
colocando-os... colocando-os no mais inatingível dos penetrais da biblioteca, e desde
então tinha-me esquecido deste fato, até que esta manhã o senhor inquisidor lhes fez
alusão, e então fui buscá-los e entreguei-lhos...
O Abade tomou a palavra, irritado:
- Porque não me informaste desse teu pacto com o despenseiro? A biblioteca não é
reservada a coisas de propriedade dos monges!
O Abade tinha posto a claro que a abadia nada tinha a ver com aquela história.
- Senhor - respondeu Malaquias, confuso -, parecera-me coisa de pouca importância.
Pequei sem malícia.
- Decerto, decerto - disse Bernardo em tom cordial -, estamos todos convencidos que
o bibliotecário agiu de boa-fé, e a franqueza com que colaborou com este tribunal é a
prova disso. Peço fraternalmente à Vossa Magnificência que não o culpe por aquela
antiga imprudência. Nós acreditamos em Malaquias. E só lhe pedimos que nos confirme
agora sob juramento que os papéis que agora lhe mostro são aqueles que ele me deu esta
manhã e são aqueles que Remígio de Varagine lhe entregou há anos, depois da sua
chegada à abadia.
Mostrava dois pergaminhos que tinha tirado das folhas pousadas sobre a mesa.
Malaquias olhou para eles e disse com voz firme:
- Juro por Deus Pai Onipotente, pela Santíssima Virgem e por todos os santos que
assim é e assim foi.
- Basta-me - disse Bernardo. - Podeis ir, Malaquias de Hildesheim.
Quando Malaquias saía de cabeça baixa, pouco antes de chegar à porta, ouviu-se uma
voz elevar-se do grupo dos curiosos amontoados ao fundo da sala:
- Tu escondias-lhe as cartas e ele mostrava-te o cú dos noviços na cozinha!
Estalaram algumas risadas, Malaquias saiu rapidamente dando empurrões à direita e à
esquerda, eu teria jurado que a voz era a de Aymaro, mas a frase tinha sido gritada em
falsete. O Abade, de rosto violáceo, bradou que estivessem em silêncio e ameaçou
tremendos castigos para todos, intimando os monges a evacuarem a sala. Bernardo sorria
lubricamente, o cardeal Bertrando, do outro lado da sala, inclinava-se ao ouvido de Jean
d’Anneaux e dizia-lhe qualquer coisa a que o outro reagia tapando a boca com a mão e
inclinando a cabeça como se tossisse. Guilherme disse-me:
- O despenseiro não era só um pecador carnal para seu prazer mas também fazia de
rufião. Mas a Bernardo nada disto importa, a não ser quanto baste para colocar em
embaraço Abbone, mediador imperial...
Foi interrompido precisamente por Bernardo, que agora se dirigia a ele:
- Interessar-me-ia depois saber de vós, frade Guilherme, de que papéis estáveis
falando esta manhã com Severino, quando o despenseiro vos ouviu e daí se enganou.
Guilherme susteve o seu olhar:
- Enganou-se, precisamente. Falávamos de um exemplar do tratado sobre a hidrofobia
canina de Ayyub al Ruhawi, admirável livro de doutrina que vós decerto conheceis pela
sua fama e que vos terá sido freqüentemente de muita utilidade... A hidrofobia, diz
Ayyub, reconhece-se por vinte e cinco sinais evidentes...
Bernardo, que pertencia à ordem dos domini canes, não julgou oportuno enfrentar
uma nova batalha.
- Tratava-se, portanto, de coisas estranhas ao caso em questão - disse rapidamente. E
prosseguiu a instrução: - Voltemos a ti, frade Remígio menorita, bem mais perigoso que
um cão hidrófobo. Se frade Guilherme tivesse prestado mais atenção à baba dos hereges
que à dos cães, talvez ele tivesse descoberto também que serpente se aninhava na
abadia. Voltemos a estas cartas. Agora sabemos como certo que estiveram nas tuas mãos
e que te preocupaste em escondê-las como se fossem um veneno perigosíssimo, e que
inclusivamente mataste... - impediu com um gesto uma tentativa de negação - ...e do
assassínio falaremos depois... que mataste, dizia, para que eu jamais as tivesse. Então
reconheces estes papéis como coisa tua.
O despenseiro não respondeu, mas o seu silêncio era bastante eloqüente. Pelo que
Bernardo prosseguiu:
- E que são estes papéis? São duas páginas redigidas pelo punho do heresiarca Dolcino,
poucos dias antes de ser preso, e que ele confiava a um seu acólito para que as levasse
aos seus outros sectários ainda espalhados pela Itália. Poderia ler-vos tudo aquilo que
nelas se diz, e como Dolcino, temendo o seu fim iminente, confia uma mensagem de
esperança, diz ele aos seus irmãos, no demônio! Ele consola-os avisando que, por mais
que as datas que ele aqui anuncia não concordem com as das suas cartas precedentes,
onde tinha prometido para o ano de mil trezentos e cinco a destruição completa de
todos os padres por obra do imperador Frederico, todavia essa destruição não estaria
longe. Mais uma vez o heresiarca mentia, porque mais de vinte anos se passaram desde
aquele dia e nenhuma das suas nefastas predições se verificou. Mas não é sobre as
ridículas presunções destas profecias que devemos discutir, mas sim sobre o fato de
Remígio ser seu portador. Podes ainda negar, frade herético e impenitente, que tiveste
comércio e contubérnio com a seita dos pseudo-apóstolos?
O despenseiro agora já não podia negar.
- Senhor - disse -, a minha juventude foi povoada de erros bem funestos. Quando
soube da pregação de Dolcino, já seduzido como estava pelos erros dos frades da pobre
vida, acreditei nas suas palavras e juntei-me ao seu bando. Sim, é verdade, estive com
eles na província de Brescia e na província de Bérgamo, estive com eles em Como e em
Valsesia, com eles me refugiei na Parede Calva e no vale de Rassa e por fim no monte
Rebello. Mas não tomei parte em nenhuma malfeitoria, e quando eles cometeram saques
e violências eu trazia ainda em mim o espírito de mansidão que foi próprio dos filhos de
Francisco, e precisamente no monte Rebello disse a Dolcino que já não me sentia
disposto a participar na sua luta, e ele deu-me licença para me ir embora, porque, disse,
não queria medrosos com ele, e pediu-me apenas que lhe levasse aquelas cartas a
Bolonha...
- A quem? - perguntou o cardeal Bertrando.
- A alguns dos seus sectários, cujos nomes me parece que recordo, e, como recordo,
digo-vo-los, senhor - apressou-se a assegurar Remígio.
E pronunciou os nomes de alguns que o cardeal Bertrando mostrou conhecer, porque
sorriu com ar de satisfação, fazendo um sinal de entendimento a Bernardo.
- Muito bem - disse Bernardo, e tomou nota daqueles nomes. Depois perguntou a
Remígio:
- E porque é que agora nos entregas os teus amigos?
- Não são meus amigos, senhor, e prova seja que as cartas nunca as entreguei. Melhor,
fiz mais, e digo-o agora depois de ter tentado esquecê-lo durante tantos anos: para
poder deixar aqueles lugares sem ser preso pelo exército do bispo de Vercelli, que nos
esperava na planície, consegui pôr-me em contato com alguns deles, e em troca de um
salvo-conduto indiquei-lhes algumas passagens para poderem assaltar as fortificações de
Dolcino, pelo que parte do sucesso das forças da Igreja foi devido à minha colaboração...
- Muito interessante. Isto diz-nos que não só foste herege mas também que foste vil e
traidor. O que não muda a tua situação. Como hoje para te salvares tentaste acusar
Malaquias, que no entanto te tinha prestado um favor, assim agora para te salvares
entregaste os teus companheiros de pecado às mãos da justiça. Mas traíste os seus
corpos, nunca traíste os seus ensinamentos, e conservaste estas cartas como relíquias,
esperando um dia ter a coragem, e a possibilidade, sem correr riscos, de as entregar,
para te tornares de novo bem aceite pelos pseudo-apóstolos.
- Não, senhor, não - dizia o despenseiro, coberto de suor, com as mãos a tremer. -
Não; juro-vos que...
- Um juramento! - disse Bernardo. - Eis outra prova da tua malícia! Queres jurar
porque sabes que eu sei que os hereges valdenses estão prontos a qualquer astúcia, e até
à morte, do que a jurar! E se são impelidos pelo medo fingem jurar e resmungam falsos
juramentos! Mas eu sei bem que tu não és da seita dos pobres de Lião, raposa maldita, e
procuras convencer-me de que não és aquilo que não és a fim de que eu não diga que tu
és aquilo que és! Então juras? Juras para seres absolvido, mas fica sabendo que um único
juramento não me basta! Posso exigir um, dois, três, cem, quantos quiser. Sei muito bem
que vós, os pseudo-apóstolos, concedeis dispensa a quem jura falso para não trair a
seita. E, assim, cada novo juramento será uma nova prova da tua culpabilidade!
- Mas então que devo fazer? - bradou o despenseiro, caindo de joelhos.
- Não te prostes como um beguino! Não deves fazer nada. Agora só eu sei o que se
deverá fazer - disse Bernardo com um sorriso tremendo. - Tu não deves senão confessar.
E serás danado e condenado se confessares, e serás danado e condenado se não
confessares, porque serás punido como per juro! Então confessa, ao menos para abreviar
este dolorosíssimo interrogatório, que perturba as nossas consciências e o nosso sentido
da brandura e da compaixão!
- Mas que devo confessar?
- Duas ordens de pecados. Que foste da seita de Dolcino, que partilhaste as suas
proposições heréticas e os costumes e as ofensas à dignidade dos bispos e dos
magistrados citadinos, que, impenitente, continuas a partilhar as suas mentiras e ilusões,
mesmo depois do heresiarca ter morrido e da seita ter sido dispersa, embora não de todo
debelada e destruída. E que, corrompido no íntimo do teu espírito pelas práticas que
aprendeste na seita imunda, és culpado das desordens contra Deus e os homens
perpetradas nesta abadia, por razões que ainda me escapam mas que não deverão
sequer ser de todo esclarecidas, uma vez que se tenha luminosamente demonstrado
(como estamos fazendo) que a heresia daqueles que pregaram e pregam a pobreza,
contra os ensinamentos do senhor papa e das suas bulas, não pode levar senão a obras
delituosas. Isto deverão aprender os fiéis e isto me bastará. Confessa.
Nesta altura foi claro o que Bernardo queria. Nada interessado em saber quem tinha
matado os outros monges, queria apenas demonstrar que Remígio de certo modo
partilhava as idéias propugnadas pelos teólogos do imperador. E depois de ter mostrado a
conexão entre aquelas idéias, que eram também as do capítulo de Perugia e as dos
fraticelli e dos dolcinianos, e de ter mostrado que um só homem, naquela abadia,
participava de todas aquelas heresias e tinha sido o autor de muitos delitos, daquela
maneira ele daria um golpe deveras mortal aos seus próprios adversários. Olhei para
Guilherme e compreendi que tinha compreendido, mas não podia fazer nada, mesmo que
o tivesse previsto. Olhei para o Abade e vi-o de rosto sombrio: dava-se conta, tarde, de
ter sido também ele arrastado para uma armadilha e de que a sua própria autoridade de
mediador se estava esboroando, agora que ia aparecer como o senhor de um lugar em
que todas as infâmias do século tinham marcado encontro. Quanto ao despenseiro, agora
já não sabia qual era o delito de que podia ainda desculpar-se. Mas talvez naquele
momento ele não fosse capaz de nenhum cálculo, o grito que saiu da sua boca era o grito
da sua alma, e com ele descarregava anos de longos e secretos remorsos. Ou então,
depois de uma vida de incertezas, entusiasmos e desilusões, vilezas e traições, posto
diante da inelutabilidade da sua ruína, ele decidia professar a fé da sua juventude, sem
já se perguntar se era certa ou errada, mas quase para mostrar a si mesmo que era capaz
de alguma fé.
- Sim, é verdade - gritou -, estive com Dolcino e partilhei dos seus delitos, licenças,
talvez eu estivesse louco, confundia o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo com a
necessidade de liberdade e o ódio aos bispos, é verdade, pequei, mas estou inocente de
quanto aconteceu na abadia, juro!
- Entretanto obtivemos alguma coisa - disse Bernardo. - Portanto admites ter
praticado a heresia de Dolcino, da bruxa Margarida e dos seus comparsas. Admites ter
estado com eles quando, perto de Trivero, enforcavam muitos fiéis de Cristo, entre os
quais um menino inocente de dez anos? E quando enforcaram outros homens na presença
das suas mulheres e dos pais porque não queriam entregar-se ao arbítrio daqueles cães? E
porque é que, então, cegos pela vossa fúria e pela vossa soberba, defendíeis que
ninguém se podia salvar se não pertencesse à vossa comunidade? Fala!
- Sim, sim, acreditei nessas coisas e pratiquei aquelas!
- E estavas presente quando capturaram alguns fiéis dos bispos e deixaram morrer
alguns de fome no cárcere, e cortaram a uma mulher grávida um braço e uma mão,
deixando-a depois dar à luz uma criança que morreu logo sem batismo? E estavas com
eles quando deitaram por terra e pegaram fogo às aldeias de Mosso, Trivero, Cossila e
Flecchia, e muitas outras localidades da zona de Crepacorio e muitas casas em Mortiliano
e em Quorino, e incendiaram a igreja de Trivero, sujando primeiro as imagens sagradas,
arrancando as lápides dos altares, quebrando um braço à estátua da Virgem, saqueando
os cálices, os paramentos e os livros, destruindo o campanário, quebrando os sinos,
apropriando-se de todos os vasos da confraria e dos bens do sacerdote?
- Sim, sim, eu estava lá, e já ninguém sabia o que fazia, queríamos antecipar o
momento do castigo, éramos as vanguardas do imperador mandado pelo céu e pelo papa
santo, devíamos apressar o momento da descida do anjo de Filadélfia, e então todos
receberiam a graça do Espírito Santo e a Igreja seria renovada, e depois da destruição de
todos os perversos apenas reinariam os perfeitos!
O despenseiro parecia possuído e iluminado ao mesmo tempo, parecia que agora o
dique do silêncio e da simulação se tinha quebrado, que o seu passado voltava não só em
palavras mas por imagens e que ele voltava a experimentar as emoções que o tinham
exaltado em tempos.
- Então - instava Bernardo -, tu confessas que honrastes como mártir Gerardo
Segalelli, que negastes toda a autoridade à Igreja romana, que afirmáveis que nem o
papa nem autoridade alguma podia prescrever-vos um modo de vida diferente do vosso,
que ninguém tinha o direito de excomungar-vos, que desde o tempo de São Silvestre
todos os prelados da Igreja tinham sido prevaricadores e sedutores, salvo Pedro de
Morrone, que os leigos não são obrigados a pagar as décimas aos padres que não
pratiquem um estado de absoluta perfeição e pobreza como o praticaram os primeiros
apóstolos, que as décimas, portanto, deviam ser pagas só a vós, os únicos apóstolos e
pobres de Cristo, que para rezar a Deus uma igreja consagrada não vale mais que um
estábulo, que percorríeis as aldeias e seduzíeis as gentes gritando «penitenziagite», que
cantáveis o Salvie Regina para atrair perfidamente as multidões, e que vos fazíeis passar
por penitentes levando uma vida perfeita aos olhos do mundo, e que depois vos
concedíeis todas as licenças e todas as luxúrias, porque não acreditáveis no sacramento
do matrimônio, nem em qualquer outro sacramento, e, considerando-vos mais puros que
os outros, podíeis permitir-vos toda a sujeira e toda a ofensa do vosso corpo e do corpo
dos outros? Fala!
- Sim, sim, eu confesso a verdadeira fé em que então tinha acreditado com toda a
alma, confesso que abandonamos as nossas vestes em sinal de espoliação, que
renunciamos a todos os nossos bens, enquanto vós, raça de cães, jamais renunciastes a
eles, que desde então deixamos de aceitar dinheiro de qualquer pessoa e nem o
trazíamos conosco, e vivemos de esmolas e não guardávamos nada para o dia de amanhã,
e quando nos acolhiam e nos punham a mesa comíamos e partíamos deixando sobre a
mesa quanto tinha sobejado...
- E incendiastes e saqueastes para vos apoderardes dos bens dos bons cristãos!
- E incendiamos e saqueamos, porque tínhamos eleito a pobreza como lei universal e
tínhamos o direito de nos apropriarmos das riquezas ilegítimas dos outros e queríamos
atingir no coração a trama de avidez que se estendia de paróquia em paróquia, mas
nunca saqueamos para possuir, nem matamos para saquear, matávamos para punir, para
purificar os impuros através do sangue, talvez estivéssemos dominados por um desejo
desmedido de justiça, também se peca por excesso de amor de Deus, por
superabundância de perfeição, nós éramos a verdadeira congregação espiritual
convidada pelo Senhor e reservada à glória dos últimos tempos, procurávamos o nosso
prêmio no paraíso antecipando os tempos da vossa destruição, só nós éramos os apóstolos
de Cristo, todos os outros tinham traído, e Gerardo Segalelli tinha sido uma planta
divina, planta Dei pullulans in radice fidei, a nossa regra vinha-nos diretamente de Deus,
não de vós, cães danados, pregadores mentirosos que espalhais em redor o odor do
enxofre e não o do incenso, cães vis, carcaças pútridas, corvos, servos da puta de
Avinhão, prometidos como estais à perdição! Então eu acreditava, e também o nosso
corpo se tinha redimido, e éramos a espada do Senhor, era preciso matar mesmo
inocentes para poder matar-vos a todos o mais depressa possível. Nós queríamos um
mundo melhor, de paz e de gentileza, e a felicidade para todos, nós queríamos matar a
guerra que vós trazíeis com a vossa avidez, porque nos repreendeis se para estabelecer a
justiça e a felicidade tivemos de derramar um pouco de sangue... é... é que não faltava
muito, para agir depressa, e valia bem a pena tingir de vermelho toda a água do
Carnasco, naquele dia em Stavello, era também sangue nosso, não nos poupávamos,
sangue nosso e sangue vosso, muito depressa, muito depressa, os tempos da profecia de
Dolcino urgiam, era preciso apressar o curso dos acontecimentos...
Tremia todo, passava as mãos pelo hábito como se quisesse limpá-las do sangue que
evocava.
- O glutão tornou-se um puro - disse-me Guilherme.
- Mas é esta a pureza? - perguntei, horrorizado.
- Deve existir também de outro tipo - disse Guilherme -, mas, qualquer que ela seja,
faz-me sempre medo.
- O que é que mais vos aterroriza na pureza? - perguntei.
- A pressa - respondeu Guilherme.
- Basta, basta - dizia agora Bernardo -, pedíamos-te uma confissão, não um apelo ao
massacre. Está bem, não só foste herege mas ainda o és. Não só foste assassino mas
continuaste a matar. Então diz-nos como mataste os teus irmãos nesta abadia, e porquê.
O despenseiro deixou de tremer, olhou em seu redor como se saísse de um sonho:
- Não - disse -, com os delitos da abadia nada tenho a ver. Confessei tudo aquilo que
fiz, não me façais confessar aquilo que não fiz...
- Mas que resta ainda que tu não possas ter feito? Agora dizes-te inocente? Ó cordeiro,
ó modelo de mansidão! Vós ouviste-lo, teve em tempos as mãos sujas de sangue e agora
está inocente? Talvez nos tenhamos enganado, Remígio de Varagine é um modelo de
virtudes, um filho fiel da Igreja, um inimigo dos inimigos de Cristo, sempre respeitou a
ordem que a mão vigilante da Igreja se esforçou por impor a aldeias e cidades, a paz dos
comércios, as oficinas dos artesãos, os tesouros das igrejas. Ele está inocente, não
cometeu nada, vem aos meus braços, irmão Remígio, que eu te possa consolar das
acusações que os malvados levantaram contra ti! - E enquanto Remígio olhava para ele
com olhos desvairados, como se de repente estivesse acreditando numa absolvição final,
Bernardo recompôs-se e dirigiu-se em tom de comando ao capitão dos archeiros. -
Repugna-me recorrer a meios que a Igreja sempre criticou quando são praticados pelo
braço secular. Mas há uma lei que domina e dirige mesmo os meus sentimentos pessoais.
Pedi ao Abade um lugar onde se possam preparar os instrumentos de tortura. Mas que
não se proceda imediatamente. Que fique três dias numa cela, a ferros de pés e mãos.
Depois, que lhe mostrem os instrumentos. Somente. E ao quarto dia que se proceda. A
justiça não é movida pela pressa, como acreditavam os pseudo-apóstolos, e a de Deus
tem séculos à sua disposição. Que se proceda devagar e por graus. E, sobretudo, recordai
quanto foi dito repetidamente: que se evitem as mutilações e o perigo de morte. Uma
das graças providenciais que este processo reconhece ao ímpio é precisamente que a
morte seja saboreada, e esperada, mas não venha antes que a confissão seja plena, e
voluntária, e purificadora.
Os archeiros inclinaram-se para levantarem o despenseiro, mas este fincou os pés em
terra e fez resistência, indicando que queria falar. Obtida licença, falou, mas as palavras
saíam-lhe a custo da boca, e o seu discurso era como o entaramelar de um bêbado e
tinha algo de obsceno. Só à medida que falava recuperou aquela espécie de energia
selvagem que tinha animado a sua confissão pouco antes.
- Não, senhor. A tortura não. Eu sou um homem vil. Traí então, reneguei durante onze
anos neste mosteiro a minha fé de outrora, cobrando as décimas de vinhateiros e de
camponeses, inspecionando as cavalariças e os estábulos para que florescessem para
enriquecer o Abade, colaborei de bom grado na administração desta fábrica do
Anticristo. E achava-me bem, tinha esquecido os dias da revolta, deleitava-me nos
prazeres da gula e noutros ainda. Eu sou um vil. Vendi hoje os meus antigos irmãos de
Bolonha, vendi então Dolcino. E como vil, disfarçado como um dos homens da cruzada,
assisti à captura de Dolcino e de Margarida, quando os levaram no sábado santo para o
castelo de Bugello. Vagueei em torno de Vercelli durante três meses, até que chegou a
carta do papa Clemente com a ordem da condenação. E vi Margarida cortada em pedaços
diante dos olhos de Dolcino, e gritava, massacrada como estava, pobre corpo que uma
noite tinha tocado eu também... E, enquanto o seu cadáver dilacerado ardia, foram
sobre Dolcino e arrancaram-lhe o nariz e os testículos com tenazes em brasa, e não é
verdade aquilo que disseram depois, que não lançou sequer um gemido. Dolcino era alto
e robusto, tinha uma grande barba de diabo e os cabelos ruivos que lhe caíam em anéis
sobre os ombros, era belo e poderoso e quando nos guiava com um chapéu de abas
largas, e a pluma, e a espada cingida sobre a veste talar, Dolcino fazia medo aos homens
e fazia gritar de prazer as mulheres... Mas, quando o torturaram, também ele gritava de
dor, como uma mulher, como um vitelo, perdia sangue de todas as feridas enquanto o
levavam de um canto para outro, e continuavam a feri-lo pouco, para mostrarem quão
longamente podia viver um emissário do demônio, e ele queria morrer, pedia que
acabassem com ele, mas morreu demasiado tarde, quando chegou à fogueira, e era
apenas um amontoado de carne ensangüentada. Eu seguia-o e alegrava-me comigo
mesmo por ter fugido àquela prova, tinha orgulho na minha astúcia, e aquele patife do
Salvador estava comigo, e dizia-me: como fizemos bem, irmão Remígio, em comportarnos
como pessoas avisadas, não há nada mais terrível que a tortura! Eu teria abjurado
mil religiões, naquele dia. E há anos, muitos anos, que digo a mim mesmo como fui vil,
como fui feliz por ser vil, e todavia esperava sempre poder mostrar a mim mesmo que
não era assim tão vil. Hoje, tu deste-me essa força, senhor Bernardo, foste para mim
aquilo que os imperadores pagãos foram para os mais vis dos mártires. Deste-me a
coragem de confessar aquilo em que acreditei com a alma, enquanto o corpo se retraía.
Porém, não me imponhas demasiada coragem, mais que pode suportar esta minha
carcaça mortal. A tortura não. Direi tudo aquilo que tu quiseres, mais vale a fogueira
logo, morre-se sufocado antes de arder. A tortura, como a Dolcino, não. Tu queres um
cadáver, e para o teres tens necessidade que assuma em mim a culpa por outros
cadáveres. Cadáver serei em breve, em todo o caso. E assim te dou quanto pedes. Matei
Adelmo de Otranto por ódio à sua juventude e à sua habilidade em jogar com monstros
iguais a mim, velho, gordo, pequeno e ignorante. Matei Venancio de Salvemec porque
era demasiado sabedor e lia livros que eu não compreendia. Matei Berengário de Arundel
por ódio à sua biblioteca, eu que fiz teologia espancando os párocos demasiado gordos.
Matei Severino de Sant'Emmerano... porquê?, porque colecionava ervas, eu que estive no
monte Rebello, onde, as ervas, as comíamos sem nos interrogarmos sobre as suas
virtudes. Na verdade, poderia matar também os outros, incluindo o nosso Abade: com o
papa ou com o império, ele faz sempre parte dos meus inimigos e sempre o odiei, mesmo
quando me dava de comer porque lhe dava de comer. Basta-te? Ah, não, queres saber
também como matei toda aquela gente... Mas matei-os... vejamos... invocando as
potências infernais, com a ajuda de mil legiões que consegui comandar com a arte que
me ensinou Salvador. Para matar alguém não é necessário ferir, o diabo fá-lo por vós, se
souberdes comandar o diabo.
Olhava para os circunstantes com ar cúmplice, rindo. Mas era então o riso de um
demente, embora, como me fez depois observar Guilherme, este demente tivesse tido a
perspicácia de arrastar na sua ruína Salvador, para se vingar da sua delação.
- E como podias comandar o diabo? - instava Bernardo, que assumia este delírio como
legítima confissão.
- Sabe-lo tão bem como eu, não se faz comércio tantos anos com os endemoninhados
sem assumir o seu hábito! Sabe-lo tão bem como eu, torturador de apóstolos! Pegas num
gato preto, não é verdade?, que não tenha sequer um pêlo branco (e tu bem sabes), e
atas-lhe as quatro patas, depois leva-lo à meia-noite a uma encruzilhada, então gritas
em voz alta: ó grande Lúcifer, imperador do inferno, eu te tomo e te introduzo no corpo
do meu inimigo tal como agora tenho prisioneiro este gato, e se levares o meu inimigo à
morte, no dia seguinte à meia-noite, neste mesmo lugar, eu te oferecerei este gato em
sacrifício, e tu farás quanto te ordeno pelos poderes da magia que eu agora exerço
segundo o livro oculto de São Cipriano, em nome de todos os chefes das maiores legiões
do inferno, Adramelch, Alastor e Azazele, que eu agora invoco com todos os seus
irmãos... - O lábio tremia-lhe, os olhos pareciam saídos das órbitas, e começou a rezar...
ou melhor, parecia que rezava, mas elevava as suas implorações a todos os barões das
legiões infernais... - Abigor, pecca pro nobis... Amón, miserere nobis... Samael, libera
nos a bono... Belial aleyson... Focalor, in corruptionem meam intende... Haborym,
damnamus dominum... Zaebos, anum meum aperies... Leonardo, asperge me spermate
tuo et inquinabor...
- Basta, basta! - bradavam os presentes, benzendo-se.
- Oh, Senhor, perdoa-nos a todos!
O despenseiro agora calava-se. Depois de ter pronunciado os nomes de todos estes
diabos, caiu de face por terra, deitando saliva esbranquiçada pela boca torcida e pela
fiada dos dentes, que rangia. As suas mãos, embora mortificadas pelas correntes,
abriam-se e apertavam-se de modo convulsivo, os seus pés davam de vez em quando
pontapés irregulares para o ar. Percebendo que eu tinha sido tomado por uma tremura
de horror, Guilherme pousou-me a mão na cabeça, quase me agarrou pela nuca,
apertando-ma e dando-me de novo a calma:
- Aprende - disse-me -, sob tortura, ou ameaçado de tortura, um homem não só diz
aquilo que fez mas também aquilo que quereria ter feito, embora o não soubesse.
Remígio agora quer a morte com toda a sua alma.
Os archeiros levaram dali o despenseiro, ainda tomado por convulsões. Bernardo
reuniu os seus papéis. Depois fixou os circunstantes, imóveis, presos por grande
perturbação.
- O interrogatório acabou. O imputado, réu confesso, será conduzido a Avinhão, onde
terá lugar o processo definitivo, com escrupulosa salvaguarda da verdade e da justiça, e
só depois desse processo regular será queimado. Ele, Abbone, já não vos pertence, nem
já me pertence a mim, que fui apenas o humilde instrumento da verdade. O instrumento
da justiça está noutro sitio, os pastores fizeram o seu dever, agora é a vez dos cães, que
separem a ovelha infecta do rebanho e a purifiquem com o fogo. O miserável episódio
que viu este homem culpado de tantos delitos atrozes está concluído. Agora, que a
abadia viva em paz. Mas o mundo... - e aqui elevou a voz e dirigiu-se ao grupo dos
legados - o mundo ainda não encontrou paz, o mundo é dilacerado pela heresia, que
encontra abrigo até nas salas dos palácios imperiais! Que os meus irmãos recordem isto:
um cingulum diaboli liga os perversos sectários de Dolcino aos honrados mestres do
capítulo de Perugia. Não o esqueçamos, diante dos olhos de Deus as divagações daquele
miserável que acabamos de entregar à justiça não são diferentes das dos mestres que se
banqueteiam à mesa do alemão excomungado de Baviera. A fonte nefanda dos hereges
brota de muitas pregações, embora honradas, ainda impunes. É dura paixão e humilde
calvário o de quem foi chamado por Deus, como a minha pessoa pecadora, a reconhecer
a serpente da heresia onde quer que se aninhe. Mas cumprindo esta obra santa aprendese
que não é herético apenas quem pratica a heresia às claras. Os defensores da heresia
podem reconhecer-se através de cinco indícios probantes. Primeiro, aqueles que os
visitam às escondidas enquanto são mantidos na prisão; segundo, aqueles que choram a
sua captura e foram seus amigos íntimos em vida (é difícil, de fato, que não saiba da
atividade do herege quem o freqüentou durante muito tempo); terceiro, aqueles que
defendem que os hereges foram condenados injustamente, mesmo quando tenha sido
demonstrada a sua culpa; quarto, aqueles que vêem com maus olhos e criticam aqueles
que perseguem os hereges e pregam com êxito contra eles, e pode-se deduzi-lo pelos
olhos, pelo nariz, pela expressão que procuram esconder, mostrando odiar aqueles por
quem sentem amargura e amar aqueles cuja desgraça tanto lhes dói. Quinto sinal é, por
fim, o fato de se recolherem as cinzas dos hereges queimados e de se fazer disso objeto
de veneração... Mas eu atribuo altíssimo valor também a um sexto sinal, e considero
manifestamente amigos dos hereges aqueles em cujos livros (ainda que eles não ofendam
abertamente a ortodoxia) os hereges tenham encontrado as premissas para os seus
silogismos perversos.
Falava, e olhava para Ubertino. Toda a delegação franciscana compreendeu bem a que
aludia Bernardo. A partir de então, o encontro tinha falhado, ninguém mais ousaria
retomar a discussão da manhã, sabendo que cada palavra seria escutada pensando nos
últimos e desgraçados acontecimentos. Se Bernardo tinha sido enviado pelo papa para
impedir uma recomposição entre os dois grupos, tinha-o conseguido.
QUINTO DIA
VÉSPERAS
Onde Ubertino se põe em fuga, Bêncio começa a observar as leis e Guilherme faz
algumas reflexões sobre os vários tipos de luxúria encontrados naquele dia.
Enquanto a assembléia dispersava lentamente da sala capitular Miguel aproximou-se
de Guilherme, e a ambos reuniu-se Ubertino. Todos juntos saímos para o ar livre,
discutindo em seguida no claustro, protegidos pelo nevoeiro, que não dava sinais de
diminuir, antes tornava-se ainda mais denso com as trevas.
- Creio que não é necessário comentar quanto aconteceu - disse Guilherme. - Bernardo
derrotou-nos. Não me pergunteis se aquele imbecil dolciniano é verdadeiramente
culpado de todos aqueles delitos. Por aquilo que me é dado compreender, não, sem
dúvida alguma. O fato é que estamos como antes. João quer-te sozinho em Avinhão,
Miguel, e este encontro não te forneceu as garantias que procurávamos. Pelo contrário,
deu-te uma imagem de como cada palavra tua, lá, poderia ser desvirtuada. Daqui se
deduz, parece-me, que tu não deves ir.
Miguel abanou a cabeça:
- Todavia irei. Não quero um cisma. Tu, Guilherme, hoje falaste claro e disseste o que
quererias. Pois bem, não é o que eu quero, e dou-me conta que as deliberações do
capítulo de Perugia foram usadas pelos teólogos imperiais para além das nossas
intenções. Eu quero que a ordem franciscana seja aceita, nos seus ideais de pobreza,
pelo papa. E o papa terá de compreender que só se a ordem assumir em si o ideal da
pobreza se poderão reabsorver as suas ramificações heréticas. Eu não penso na
assembléia do povo ou no direito das gentes. Eu tenho de impedir que a ordem se
dissolva numa pluralidade de fraticelli. Irei a Avinhão e, se for necessário, farei ato de
submissão a João. Transigirei em tudo, menos sobre o princípio de pobreza.
Interveio Ubertino:
- Sabes que arriscas a vida?
- Assim seja - respondeu Miguel -, é melhor que arriscar a alma.
Arriscou seriamente a vida e, se João estava na verdade (o que eu ainda não creio),
também perdeu a alma. Como todos sabem, Miguel foi ter com o papa, na semana que se
seguiu aos fatos que agora narro. Fez-lhe frente durante quatro meses, até que, em Abril
do ano seguinte,João convocou um consistório em que o tratou de louco, temerário,
teimoso, tirano, promotor de heresia, serpente nutrida pela Igreja no seu próprio seio. E
há que pensar que, então, segundo o modo como ele via as coisas, João tinha razão,
porque, naqueles quatro meses, Miguel tornara-se amigo do amigo do meu mestre, o
outro Guilherme, o de Occam, e perfilhava as suas idéias - não muito diferentes, talvez
ainda mais extremistas, daquelas que o meu mestre perfilhava com Marsílio e tinha
expresso naquela manhã. A vida destes dissidentes tornou-se precária, em Avinhão, e, no
fim de Maio, Miguel, Guilherme de Occam, Bonagrazia de Bérgamo, Francisco d'Ascoli e
Henri de Talheim puseram-se em fuga, seguidos pelos homens do papa em Nice, Toulon,
Marselha e Aigues Morres, onde se lhes juntou o cardeal Pierre de Arrablay, que procurou
em vão induzi-los a voltar, sem vencer as suas resistências, o seu ódio para com o
pontífice, o seu medo. Em Junho chegaram a Pisa, acolhidos em triunfo pelos imperiais,
e nos meses seguintes Miguel havia de denunciar João publicamente. Demasiado tarde,
porém. A fortuna do imperador estava a diminuir, de Avinhão João manobrava para dar
aos menoritas um novo superior geral, obtendo por fim a vitória. Melhor teria feito
Miguel naquele dia em não decidir ir ter com o papa: teria podido cuidar de perto da
resistência dos menoritas, sem perder tantos meses à mercê do seu inimigo,
enfraquecendo a sua posição... Mas talvez assim o tivesse predisposto a onipotência
divina - e agora já nem sei quem de todos eles estava na verdade, e depois de tantos
anos também o fogo das paixões se extingue, e com ele aquilo que se julgava ser a luz da
verdade. Quem de nós é já capaz de dizer se tinham razão Heitor ou Aquiles,
Agamémnon ou Príamo, quando se debatiam pela beleza de uma mulher que agora é
cinza de cinzas?
Mas perco-me em melancólicas divagações. Devo, em vez disso, dizer o fim daquele
triste colóquio. Miguel tinha decidido, e não houve modo de o convencer a desistir. À
parte que se punha agora um outro problema, e Guilherme enunciou-o sem embargue: já
nem o próprio Ubertino estava em segurança. As frases que lhe tinha dirigido Bernardo, o
ódio que por ele já nutria o papa, o fato de que, enquanto Miguel representava ainda um
poder com o qual tratar, Ubertino, pelo contrário, tinha permanecido sozinho, como
partidário de si próprio...
- João quer Miguel na corte e Ubertino no inferno. Se bem conheço Bernardo, até
amanhã, e com a cumplicidade do nevoeiro, Ubertino será morto. E, se alguém se
perguntar por quem, a abadia bem poderá suportar outro delito, e dir-se-á que eram
diabos invocados pelo Remígio com os seus gatos pretos, ou algum dolciniano supérstite
que ainda vagueia por estas muralhas...
Ubertino estava preocupado:
- E então? - perguntou.
- Então - disse Guilherme -, vai falar com o Abade. Pede-lhe uma cavalgadura,
provisões, uma carta para alguma abadia distante, para lá dos Alpes. E aproveita o
nevoeiro e o escuro para partires imediatamente.
- Mas os archeiros não guardam ainda as portas?
- A abadia tem outras saídas, e o Abade conhece-as. Basta que um servo te espere
numa das curvas inferiores com uma cavalgadura, e, saindo por alguma passagem da
cerca, terás apenas de percorrer um pedaço de bosque. Deves fazê-lo imediatamente,
antes que Bernardo se refaça do êxtase do seu triunfo. Eu tenho de me ocupar de mais
alguma coisa, tinha duas missões, uma falhou, que ao menos não falhe a outra. Quero
deitar a mão a um livro e a um homem. Se tudo correr bem, tu estarás fora daqui ainda
antes que eu me preocupe contigo. Portanto adeus.
Abriu os braços. Comovido, Ubertino estreitou-o nos seus:
- Adeus, Guilherme, és um inglês louco e arrogante, mas tens um grande coração.
Voltaremos a ver-nos?
- Voltaremos a ver-nos - tranqüilizou-o Guilherme. - Deus há-de querer.
Deus, afinal, não quis. Como já disse, Ubertino morreu misteriosamente assassinado
dois anos depois. Vida dura e aventurosa a deste velho combativo e ardente. Talvez não
tenha sido um santo, mas espero que Deus tenha premiado aquela sua adamantina
certeza de o ser. Quanto mais envelheço e mais me abandono à vontade de Deus, menos
aprecio a inteligência que quer saber e a vontade que quer fazer: e reconheço como
único elemento de salvação a fé, que sabe esperar pacientemente sem interrogar
demasiado. E Ubertino teve certamente muita fé no sangue e na agonia de Nosso Senhor
crucificado.
Talvez eu pensasse também então nestas coisas, e o místico velho apercebeu-se disso,
ou adivinhou que as havia de pensar um dia. Sorriu-me com doçura e abraçou-me, sem o
ardor com que me tinha apertado algumas vezes nos dias anteriores. Abraçou-me como
um avô abraça o neto, e com o mesmo espírito lho retribuí. Depois afastou-se com Miguel
para procurar o Abade.
- E agora? - perguntei a Guilherme.
- E agora voltamos aos nossos delitos.
- Mestre - disse -, hoje sucederam coisas muito graves para a cristandade e falhou a
vossa missão. E no entanto pareceis mais interessado na solução deste mistério que no
reencontro entre o papa e o imperador.
- Os loucos e as crianças dizem sempre a verdade, Adso. Será porque, como
conselheiro imperial, o meu amigo Marsílio é mais dotado que eu, mas como inquisidor o
mais dotado sou eu. Até mais dotado que Bernardo Gui, Deus me perdoe. Porque a
Bernardo não interessa descobrir os culpados, mas sim queimar os imputados. E eu, pelo
contrário, encontro o maior deleite, a maior alegria em deslindar uma meada bem
intrincada. E será ainda porque, no momento em que, como filósofo, duvido que o
mundo tenha uma ordem, me consola descobrir, se não uma ordem, pelo menos uma
série de conexões em pequenas porções dos assuntos do mundo. Por fim há
provavelmente outra razão: é que nesta história talvez estejam em jogo coisas maiores e
mais importantes que a batalha entre João e Luís...
- Mas é uma história de roubos e de vinganças entre monges de pouca virtude! -
exclamei duvidando.
- A volta de um livro proibido, Adso, à volta de um livro proibido - respondeu
Guilherme.
Os monges estavam-se encaminhando agora para a ceia. A refeição já ia em meio
quando se sentou a nosso lado Miguel de Cesena, avisando-nos que Ubertino tinha
partido. Guilherme soltou um suspiro de alívio.
No fim da ceia evitamos o Abade, que estava conversando com Bernardo, e
localizamos Bêncio, que nos saudou com um meio-sorriso, tentando chegar à porta.
Guilherme alcançou-o e obrigou-o a seguir-nos para um canto da cozinha.
- Bêncio - perguntou-lhe Guilherme -, onde está o livro?
- Qual livro?
- Bêncio, nenhum de nós dois é tolo. Falo do livro que procurávamos hoje no
laboratório de Severino e que eu não reconheci e que tu reconheceste muito bem e foste
buscar depois...
- Que vos faz pensar que eu o tenha levado?
- Penso que é assim e tu também pensas. Onde está?
- Não posso dizê-lo.
- Bêncio, se não mo dizes, falarei com o Abade.
- Não posso dizê-lo por ordem do Abade - disse Bêncio com ar virtuoso. - Hoje, depois
de nos termos visto, aconteceu alguma coisa que tendes de saber. Depois da morte de
Berengário, faltava um ajudante-bibliotecário. Hoje à tarde, Malaquias propôs-me tomar
o seu lugar. Precisamente há meia hora, o Abade concordou, e a partir de amanhã de
manhã, espero, serei iniciado nos segredos da biblioteca. É verdade, peguei no livro esta
manhã, e tinha-o escondido no enxergão da minha cela sem sequer olhar pare ele,
porque sabia que Malaquias me vigiava. E a certa altura Malaquias fez-me a proposta que
eu vos disse. E agora fiz aquilo que deve fazer um ajudante-bibliotecário: entreguei-lhe
o livro.
Não pude impedir-me de intervir, e com violência.
- Mas, Bêncio, ontem, e antes de ontem, tu... vós dizíeis que ardíeis de curiosidade de
conhecer, que não queríeis que a biblioteca encerrasse mais mistérios, que um estudante
deve saber...
Bêncio calava-se, corando, mas Guilherme deteve-me:
- Adso, já há algumas horas que Bêncio passou para o outro lado. Agora ele é o guarda
daqueles segredos que queria conhecer, e enquanto os guarda terá todo o tempo que
quiser pare os conhecer.
- Mas os outros? - perguntei. - Bêncio falava em nome de todos os sábios!
- Antes - disse Guilherme.
E arrastou-me consigo, deixando Bêncio na maior confusão.
- Bêncio - disse-me depois Guilherme - é vítima de uma grande luxúria, que não é a de
Berengário nem a do despenseiro. Como muitos estudiosos, tem a luxúria do saber. Do
saber em si mesmo. Excluído de uma parte deste saber, queria apoderar-se dele. Agora
apoderou-se dele. Malaquias conhecia o seu homem e usou o melhor meio pare reaver o
livro e selar os lábios de Bêncio. Tu perguntar-me-ás de que serve controlar tanta
reserve de saber se se aceita não o pôr à disposição de todos os outros. Mas é
precisamente por isso que falei de luxúria. Não era luxúria a sede de conhecimento de
Roger Bacon, que queria empregar as ciências para tornar mais feliz o povo de Deus, e
portanto não procurava o saber pelo saber. A de Bêncio é apenas curiosidade insaciável,
orgulho do intelecto, um modo como qualquer outro, pare um monge, de transformar e
apaziguar os desejos da sua carne, ou o ardor que fez de outro um guerreiro da fé ou da
heresia. Não existe apenas a luxúria da carne. É luxúria a de Bernardo Gui, desvairada
luxúria de justiça que se identifica com uma luxúria de poder. É luxúria de riqueza a do
nosso santo e já não romano pontífice. Era luxúria de testemunho e de transformação e
de penitência e de morte a do despenseiro quando jovem. E é luxúria de livros a de
Bêncio. Como todas as luxúrias, como a de Onan, que espalhava o seu próprio sêmen por
terra, é luxúria estéril, e nada tem a ver com o amor, nem sequer com o carnal...
- Eu sei - murmurei sem querer.
Guilherme fingiu que não ouviu. Mas, como continuando o seu discurso, disse:
- O amor verdadeiro quer o bem do amado.
- Não será que Bêncio quer o bem dos seus livros (que agora são também seus) e pensa
que o seu bem é ficarem longe de mãos rapaces? - perguntei.
- O bem de um livro reside em ser lido. Um livro é feito de signos que falam de outros
signos, os quais por sua vez falam das coisas. Sem um olho que o leia, um livro é portador
de signos que não produzem conceitos, e portanto é mudo. Esta biblioteca nasceu talvez
para salvar os livros que contém, mas agora vive para os sepultar. Por isso tornou-se
fonte de impiedade. O despenseiro disse que traíra. Assim fez Berengário. Traiu. Oh, que
dia horrível, meu bom Adso! Cheio de sangue e de ruína. Por hoje já chega. Vamos nós
também a completas, e depois vamos dormir.
Saindo da cozinha, encontramos Aymaro. Perguntou-nos se era verdade aquilo que se
murmurava, que Malaquias tinha proposto Bêncio como seu ajudante. Não pudemos
senão confirmar.
- Este Malaquias fez muitas coisas boas, hoje - disse Aymaro com o seu habitual esgar
de desprezo e de indulgência. - Se houvesse justiça, o diabo viria buscá-lo esta noite.
QUINTO DIA
COMPLETAS
Onde se escuta um sermão sobre a vinda do Anticristo e Adso descobre o poder dos
nomes próprios.
O ofício de vésperas tinha tido lugar de modo confuso, ainda durante o interrogatório
do despenseiro, com os noviços curiosos que tinham escapado à alçada do seu mestre
para seguirem por janelas e aberturas quanto se passava na sala capitular. Era necessário
agora que toda a comunidade rezasse pela boa alma de Severino. Pensava-se que o
Abade falaria a todos, e perguntava-se o que diria. Pelo contrário, depois da ritual
homilia de São Gregório, o responsório e os três salmos prescritos, o Abade subiu ao
púlpito, mas apenas para dizer que naquela noite se calaria. Demasiadas desventuras
tinham afligido a abadia, disse, para que mesmo o pai comum pudesse falar com o tom
de quem censura e admoesta. Era necessário que todos, sem excluir ninguém, fizessem
um severo exame de consciência. Mas, visto que era preciso que alguém falasse,
propunha que a admoestação viesse de quem, por ser o mais velho de todos e já próximo
da morte, fosse de todos o menos envolvido nas paixões terrestres que tinham
ocasionado tantos males. Por direito de idade, a palavra caberia a Alinardo de
Grottaferrata, mas todos sabiam como a saúde do venerável irmão era frágil. Logo depois
de Alinardo, na ordem estabelecida pelo volver inexorável dos tempos, vinha Jorge. A ele
dava o Abade agora a palavra.
Ouvimos um murmúrio do lado das estalas onde se sentavam habitualmente Aymaro e
os outros italianos. Imaginei que o Abade tivesse confiado o sermão a Jorge sem
consultar Alinardo. O meu mestre fez-me notar a meia-voz que o fato de não falar tinha
sido para o Abade uma prudente decisão: porque fosse o que fosse que ele dissesse seria
sopesado por Bernardo e pelos outros avinhonenses presentes. O velho Jorge, pelo
contrário, limitar-se-ia a algum dos seus vaticínios místicos, e os avinhonenses não lhe
dariam grande peso.
- Porém, eu não - acrescentou Guilherme -, porque não creio que Jorge tenha aceite,
e talvez pedido para falar, sem um objetivo bem preciso.
Jorge subiu ao púlpito, amparado por alguém. O seu rosto era iluminado pelo trípode
que, sozinho, dava luz à nave. A luz da chama punha em evidência a treva que pesava
sobre os seus olhos, que pareciam dois buracos negros.
- Irmãos diletíssimos - começou ele -, e vós todos nossos hóspedes muito caros, se
quiserdes escutar este pobre velho... As quatro mortes que afligiram a nossa abadia
(para não falar dos pecados, remotos e recentes, dos mais desgraçados entre os vivos)
não devem, vós bem sabeis, atribuir-se aos rigores da natureza que, implacável nos seus
ritmos, administra a nossa jornada terrena desde o berço à cova. Todos vós pensareis
talvez que, por mais que vos tenha perturbado de dor, esta triste história não envolve a
vossa alma, porque todos, menos um, estais inocentes, e quando esse for punido restarvos-
á decerto chorar a ausência dos desaparecidos, mas não tereis que vos justificar a
vós mesmos de nenhuma imputação diante do tribunal de Deus. Assim pensais vós.
Loucos! - gritou com voz terrível -, loucos e temerários que vós sois! Quem matou
suportará diante de Deus o fardo das suas culpas, mas apenas porque aceitou tornar-se
intermediário dos decretos de Deus. Tal como era necessário que alguém traísse Jesus
para que o mistério da redenção se cumprisse, e todavia o Senhor decretou condenação
e vitupério para quem o traiu, assim alguém nestes dias pecou trazendo morte e ruína,
mas eu digo-vos que esta ruína foi, se não querida, pelo menos permitida por Deus para
humilhação da nossa soberba!
Calou-se e dirigiu o olhar vazio para a sombria assembléia, como se com os olhos
pudesse captar-lhe as emoções, enquanto de fato com o ouvido saboreava o seu
consternado silêncio.
- Nesta comunidade - continuou - serpenteia há muito tempo a áspide do orgulho. Mas
que orgulho? O orgulho do poder num mosteiro isolado do mundo? Não, decerto. O
orgulho da riqueza? Meus irmãos, antes que no mundo conhecido ressoassem os ecos de
longas querelas sobre a pobreza e sobre a posse, desde os tempos do nosso fundador,
nós, mesmo quando tivemos tudo, não tivemos nada, sendo a nossa única verdadeira
riqueza a observância da regra, a oração e o trabalho. Mas do nosso trabalho, do
trabalho da nossa ordem, em particular do trabalho deste mosteiro faz parte (é
substancia, aliás) o estudo, e a guarda do saber. A guarda, digo, não a busca, porque é
próprio do saber, coisa divina, ser completo e definido desde o início, na perfeição do
verbo que se exprime a si próprio. A guarda, digo, não a busca, porque é próprio do
saber, coisa humana, ter sido definido e completado no arco dos séculos que vai da
pregação dos profetas à interpretação dos padres da Igreja. Não há progresso, não há
revolução de eras, na aventura do saber, mas, no máximo contínua e sublime
recapitulação. A história humana marcha com movimento irreprimível desde a criação,
através da redenção, em direção ao retorno do Cristo triunfante, que aparecerá
circundado de um nimbo para julgar os vivos e os mortos, mas o saber divino e humano
não segue este curso: firme como uma rocha inamovível, ele permite-nos, quando nos
fazemos humildes e atentos à sua voz, seguir, predizer este curso, mas não é por ele
corrompido. Eu sou aquele que é, disse o Deus dos hebreus. Eu sou o caminho, a verdade
e a vida, disse Nosso Senhor. Aqui está, o saber não é mais que o atônito comentário
destas duas verdades. Tudo quanto se disse a mais foi proferido pelos profetas, pelos
evangelistas, pelos padres e pelos doutores para tornar mais claras estas duas sentenças.
E por vezes um oportuno comentário também lhes veio dos pagãos, que as ignoravam, e
as suas palavras foram assumidas pela tradição cristã. Mas, para além disto, não há mais
nada a dizer. Há a remeditar, glosar, conservar. Este era e deveria ser o ofício desta
nossa abadia com a sua esplêndida biblioteca, nada mais. Diz-se que um califa oriental
um dia pegou fogo à biblioteca de uma cidade famosa e gloriosa e orgulhosa e que,
enquanto aqueles milhares de volumes ardiam, disse que eles podiam e deviam
desaparecer: porque ou repetiam aquilo que já dizia o Corão, e portanto eram inúteis,
ou contradiziam aquele livro sagrado para os infiéis, e portanto eram perniciosos. Os
doutores da Igreja, e nós com eles, não raciocinaram assim. Tudo aquilo que soa a
comentário e clarificação da escritura deve ser conservado, porque aumenta a glória das
escrituras divinas; tudo aquilo que as contradiz não deve ser destruído, porque só
conservando-o poderá por sua vez ser contradito, por quem possa e tenha esse ofício,
nos modos e nos tempos que o Senhor quiser. Daqui a responsabilidade da nossa ordem
através dos séculos, e o fardo da nossa abadia hoje: orgulhosos da verdade que
proclamamos, humildes e prudentes em guardar as palavras inimigas da verdade, sem por
elas nos deixarmos sujar. Ora, meus irmãos, qual é o pecado de orgulho que pode tentar
um monge estudioso? O de entender o seu próprio trabalho não como guarda mas como
busca de alguma notícia que não tenha ainda sido dada aos humanos, como se a última
não tivesse já ressoado nas palavras do último anjo que fala no último livro das
escrituras: «Agora declaro a quem quer que escute as palavras de profecia deste livro
que, se alguém lhe acrescentar alguma coisa, Deus porá sobre ele as pragas escritas
neste livro, e se alguém retirar alguma coisa às palavras de profecia deste livro Deus lhe
retirará a sua parte do livro da vida e da cidade santa e das coisas que estão escritas
neste livro.» Pois bem... não vos parece, meus desventurados irmãos, que estas palavras
mais não refletem do que quanto aconteceu recentemente entre estas muralhas,
enquanto tudo quanto aconteceu entre estas muralhas mais não reflete do que as
próprias vicissitudes do século em que vivemos, tendence na palavra como nas obras, nas
cidades como nos castelos, nas soberbas universidades e nas igrejas catedrais a procurar
com afã descobrir novos codicilos às palavras da verdade, deformando o sentido daquela
verdade já rica de todos os escólios, e necessitando apenas de intrépida defesa e não de
estólido incremento? Este é o orgulho que serpenteou ou ainda serpenteia por estas
muralhas: e eu digo a quem se afadigou e se afadiga em quebrar os sigilos dos livros que
não lhe são devidos que é este o orgulho que o Senhor quis punir e que continuará a
punir se ele não diminuir e não se humilhar, porque ao Senhor não é difícil encontrar,
ainda e sempre, por causa da nossa fragilidade, os instrumentos da sua vingança.
- Ouviste, Adso? - murmurou-me Guilherme. - O velho sabe mais do que aquilo que diz.
Que tenha ou não as mãos nesta história, ele sabe, e adverte que se os monges curiosos
continuarem a violar a biblioteca a abadia não recuperará a sua paz.
Jorge agora, depois de uma longa pausa, recomeçava a falar.
- Mas quem é afinal o próprio símbolo deste orgulho, de quem os orgulhosos são figura
e mensageiros, cúmplices e estandartes? Quem em verdade agiu e age talvez entre estas
muralhas, de modo a avisar-nos que os tempos estão próximos, e a consolar-nos, porque,
se os tempos estão próximos, os sofrimentos serão decerto insustentáveis, mas não
infinitos no tempo, dado que o grande ciclo deste universo está para se cumprir? Oh, vós
compreendeste-lo muito bem, e receais dizer o seu nome, porque é também o vosso, e
vós tendes medo dele, mas, se vós tendes medo, não o terei eu, e esse nome di-lo-ei em
voz bem alta, a fim de que as vossas vísceras se torçam de pavor, e os vossos dentes
batam até vos cortarem a língua, e o gelo que se formará no vosso sangue faça descer
um véu escuro sobre os vossos olhos... Ele é a besta imunda, ele é o Anticristo!
Fez outra longuíssima pausa. Os circunstantes pareciam mortos. A única coisa móvel
em toda a igreja era a chama do trípode, mas até as sombras que ela formava pareciam
ter-se enregelado. O único rumor, rouco, era o arquejar de Jorge, que enxugava o suor
da fronte. Depois, Jorge continuou:
- Quereis vós talvez dizer-me: não, esse não está ainda para vir, onde estão os sinais
da sua vinda? Insipiente quem o dissesse! Mas se as temos diante dos olhos, dia após dia,
no grande anfiteatro do mundo, e na imagem reduzida da abadia, as catástrofes
anunciadoras... Foi dito que, quando o momento estiver próximo, se levantará no
ocidente um rei estrangeiro, senhor de imensas fraudes, ateu, matador de homens,
fraudulento, sedento de ouro, hábil na astúcia, malvado, inimigo dos fiéis e seu
perseguidor, e no seu tempo não se terá em conta a prata mas ter-se-á em apreço
somente o ouro! Eu sei bem: vós que me escutais apressais-vos agora a fazer os vossos
cálculos para saber se aquele de que falo se assemelha ao papa ou ao imperador ou ao
rei de França ou a quem quiserdes, para poder dizer: ele é o meu inimigo e eu estou do
lado bom! Mas não sou tão ingênuo que vos indique um homem, o Anticristo quando vier
vem em todos e para todos, e cada um é parte dele. Estará nos bandos de salteadores
que saquearão cidades e regiões, estará em imprevistos sinais do céu onde aparecerão
de improviso arco-íris, cornos e fogos, enquanto se ouvirão mugidos de vozes e o mar
ferverá. Disse-se que os homens e os animais gerarão dragões, mas queria dizer-se que os
corações conceberão ódio e discórdia, não olheis em redor para descobrir os animais das
iluminuras que vos deleitam nos pergaminhos! Disse-se que as jovens há pouco
desposadas parirão meninos já capazes de falar perfeitamente, os quais portarão o
anúncio da maturidade dos tempos e pedirão para serem mortos. Mas não procureis entre
as aldeias do vale, os meninos demasiado sábios já foram mortos entre estas muralhas! E
como os das profecias, tinham o aspecto de homens já encanecidos, e da profecia eles
eram os filhos quadrúpedes, e os espectros, e os embriões que deveriam profetizar no
ventre das mães pronunciando encantamentos mágicos. E tudo foi escrito, sabeis? Foi
escrito que muitas serão as agitações nas seitas, nos povos, nas igrejas; que se
levantarão pastores inócuos, perversos, cheios de desprezo, ávidos, desejosos de
prazeres, amantes do lucro, contentando-se com vãos discursos, fanfarrões, soberbos,
gulosos, protervos, imersos na sensualidade, à procura de vanglória, inimigos do
evangelho, prontos a repudiar a porta estreita, a desprezar a palavra verdadeira, e terão
ódio a todo o caminho de piedade, não se arrependerão do seu pecar, e por isso no meio
dos povos dilatarão a incredulidade, o ódio fraterno, a maldade, a dureza, a inveja, a
indiferença, o latrocínio, a embriaguez, a intemperança, a lascívia, o prazer carnal, a
fornicação e todos os outros vícios. Serão escassos a aflição, a humildade, o amor da paz,
a pobreza, a compaixão, o dom das lágrimas... Vamos, coragem, não vos reconheceis,
todos vós aqui presentes, monges da abadia e poderosos vindos de fora?
Na pausa que se seguiu ouviu-se um roçar ligeiro. Era o cardeal Bertrando, que se
agitava no seu cadeirão. No fundo, pensei, Jorge estava procedendo como grande
pregador, e enquanto fustigava os seus irmãos não poupava sequer os visitantes. E teria
dado não sei o quê para saber o que passava naquele momento pela cabeça de Bernardo,
ou dos gordos avinhonenses.
- E será nesse justo momento, que é justamente este - troou Jorge -, que o Anticristo
terá a sua blasfema parusia, macaco que quer ser de Nosso Senhor. Nesses tempos (que
são estes) serão subvertidos todos os reinos, haverá fome e pobreza, e penúria de meses,
e Invernos de excepcional rigor. E os filhos desse tempo (que é este) já não terão quem
administre os seus bens e conserve nos seus depósitos os alimentos e serão vexados nos
mercados de compra e de venda. Bem-aventurados então aqueles que não viverem, ou
que, vivendo, conseguirem sobreviver! Chegará então o filho da perdição, o adversário
que se glorifica e se incha, exibindo múltiplas virtudes para enganar toda a terra e para
prevalecer sobre os justos. A Síria cairá e chorará os seus filhos. A Cilícia levantará a
cabeça até que apareça aquele que é chamado a julgá-la. A filha de Babilônia levantarse-
á do trono do seu esplendor para beber do cálice da amargura. A Capadócia, a Lícia e
a Licaónia dobrarão a espinha porque multidões inteiras se verão destruídas na corrupção
da sua iniqüidade. Acampamentos de bárbaros e carros de guerra aparecerão por toda a
parte para ocuparem as terras. Na Arménia, no Ponto e na Bitínia, os adolescentes
perecerão ao fio da espada, as meninas cairão prisioneiras, os filhos e as filhas
consumarão incestos, a Pisídia, que se exalta na sua glória, será prostrada, a espada
passará no meio da Fenícia, a Judéia vestir-se-á de luto e preparar-se-á para o dia da
perdição por causa da sua impureza. De toda a parte então aparecerão desprezo e
desolação, o Anticristo vencerá o Ocidente e destruirá as vias de tráfico, terá nas mãos
espada e fogo ardente e queimará com furor de violência de chama: sua força será a
blasfêmia, engano a sua mão, a direita será ruína, a esquerda portadora de trevas. Estes
são os traços que o distinguirão: a sua cabeça será de fogo ardente, o seu olho direito
injetado de sangue, o seu olho esquerdo de um verde felino, e terá duas pupilas, e as
suas pálpebras serão brancas, o seu lábio inferior grande, terá débil o fêmur, grossos os
pés, o polegar achatado e alongado!
- Parece o seu retrato - escarneceu Guilherme num fio de voz.
Era uma frase muito ímpia, mas agradeci-lhe, porque se me eriçavam os cabelos na
cabeça. Contive a custo uma risada, enchendo as bochechas e deixando sair um fio de ar
dos lábios fechados. Rumor que, no silêncio que se tinha seguido às últimas palavras do
velho, se ouviu perfeitamente, mas por sorte todos pensaram que fosse alguém que
tossia ou que chorava, ou estremecia, e todos tinham bem de quê.
- É o momento - dizia agora Jorge - em que tudo cairá no arbítrio, os filhos levantarão
as mãos contra os pais, a mulher tramará contra o marido, o marido chamará a juízo a
mulher, os patrões serão desumanos com os servos e os servos desobedecerão aos
patrões, já não haverá reverência pare com os velhos, os adolescentes pedirão o
comando, o trabalho parecerá a todos uma inútil fadiga, por toda a parte se elevarão
cânticos de glória à licença, ao vício, à dissoluta liberdade dos costumes. E, depois disto,
estupros, adultérios, perjúrios, pecados concranatura seguir-se-ão em grandes vagas, e
males, e adivinhações, e encantamentos, e aparecerão no céu corpos volantes, surgirão
no meio dos bons cristãos falsos profetas, falsos apóstolos, corruptores, impostores,
bruxos,
estupradores, avaros, perjuros e falsificadores, os pastores transformar-se-ão em
lobos, os sacerdotes mentirão, os monges desejarão as coisas do mundo, os pobres não
acorrerão em ajuda dos chefes, os poderosos serão sem misericórdia, os justos far-se-ão
testemunhas de injustiça. Todas as cidades serão sacudidas por terremotos, haverá
pestilências em todas as regiões, tempestades de vento erguerão a terra, os campos
serão contaminados, o mar segregará humores negros, novos desconhecidos prodígios
terão lugar na Lua, as estrelas abandonarão a sua curva normal, outras (desconhecidas)
sulcarão o céu, nevará no Verão e fará um calor tórrido no Inverno. E serão chegados os
tempos do fim e o fim dos tempos... No primeiro dia, à hora terça, elevar-se-á no
firmamento uma voz grande e potente, uma nuvem purpúrea avançará de setentrião,
trovões e relâmpagos a seguirão, e sobre a terra descerá uma chuva de sangue. No
segundo dia, a terra será arrancada do seu lugar e o fumo de um grande fogo passará
através das portas do céu. No terceiro dia, os abismos da terra retumbarão dos quatro
cantos do cosmo. Os pináculos do firmamento abrir-se-ão, o ar encher-se-á de pilares de
fumo, e haverá fedor de enxofre até à hora décima. No quarto dia, de manhã cedo, o
abismo liquefar-se-á e emitirá estrondos, e cairão os edifícios. No quinto dia, à hora
sexta, ver-se-ão desfeitas as potências de luz e a roda do Sol, e haverá trevas no mundo
até à noite, e as estrelas e a Lua cessarão o seu ofício. No sexto dia, à hora quarta, o
firmamento fender-se-á de oriente a ocidente, e os anjos poderão olhar para a terra
através da fenda dos céus e todos aqueles que estão sobre a terra poderão ver os anjos
que olham do céu. Então, todos os homens se esconderão nas montanhas pare fugirem ao
olhar dos anjos justos. E no sétimo dia chegará o Cristo na luz de seu pai. E haverá então
o juízo dos bons e a sua ascensão na beatitude eterna dos corpos e das almas. Mas não é
sobre isto que meditareis esta noite, irmãos orgulhosos! Não é aos pecadores que caberá
ver a alba do oitavo dia, quando se elevará do oriente uma voz doce e terna, no meio do
céu, e manifestar-se-á aquele Anjo que tem poder sobre todos os outros anjos santos, e
todos os anjos avançarão juntamente com ele, sentados sobre um carro de nuvens,
cheios de alegria, correndo velozes pelo ar, para libertarem os eleitos que tiverem
acreditado, e todos juntos se regozijarão, porque a destruição deste mundo terá sido
consumada! Não é com isto que devemos, nós, orgulhosamente regozijar-nos esta noite!
Meditaremos em vez disso sobre as palavras que o Senhor pronunciará para expulsar de si
quem não mereceu salvação: ide para longe de mim, malditos, para o fogo eterno que
vos foi preparado pelo diabo e pelos seus ministros! Vós próprios bem o merecestes, e
agora gozai-o! Afastai-vos de mim, descendo nas trevas exteriores e no fogo
inextinguível! Eu dei-vos forma, e vós fizeste-vos sequazes de um outro! Fizeste-vos
servos de um outro senhor, ide morar com ele na escuridão, com ele, a serpente que não
repousa, no meio do ranger de dentes! Dei-vos o ouvido para prestardes atenção às
escrituras, e vós escutastes as palavras dos pagãos! Modelei-vos uma boca para
glorificardes a Deus, e vós usaste-la para as falsidades dos poetas e para os enigmas dos
histriões! Dei-vos os olhos para que vísseis a luz dos meus preceitos, e vós usaste-los para
perscrutar na treva! Eu sou um juiz humano, mas justo. A cada um darei aquilo que
merece. Quereria ter misericórdia de vós, mas não encontro óleo nos vossos vasos. Seria
impelido a apiedar-me, mas as vossas lâmpadas estão fumadas. Afastai-vos de mim...
Assim falará o Senhor. E aqueles... e nós talvez, desceremos ao eterno suplício. Em nome
do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
- Amém! - responderam todos a uma voz.
Todos em fila, sem um sussurro, foram os monges para os seus catres. Sem desejo de
se falarem desapareceram os menoritas e os homens do papa, aspirando ao isolamento e
ao repouso. O meu coração estava pesado.
- Para a cama, Adso - disse-me Guilherme, subindo as escadas do albergue dos
peregrinos. - Não é uma noite para ficar fora. A Bernardo Gui poderia vir em mente
antecipar o fim do mundo começando pelas nossas carcaças. Amanhã procuraremos estar
presentes a matinas, porque logo a seguir partirão Miguel e os outros menoritas.
- Também partirá Bernardo com os seus prisioneiros? - perguntei com um fio de voz.
- Seguramente, não tem mais nada a fazer aqui. Quererá preceder Miguel em Avinhão,
mas de modo que a chegada deste coincida com o processo ao despenseiro, menorita,
herético e assassino. A fogueira do despenseiro iluminará como archote propiciatório o
primeiro encontro de Miguel com o papa.
- E que acontecerá a Salvador... e à rapariga?
- Salvador acompanhará o despenseiro, porque deverá testemunhar no seu processo.
Pode ser que em troca deste serviço Bernardo lhe conceda a vida. Poderá mesmo deixálo
escapar para depois o mandar matar. Ou talvez o deixe ir verdadeiramente, porque
um tipo como Salvador não interessa a um tipo como Bernardo. Quem sabe, talvez acabe
como estrangulador nalguma floresta do Languedoc...
- E a rapariga?
- Já te disse, é carne queimada. Mas arderá primeiro, pelo caminho, para edificação
de alguma aldeota cátara ao longo da costa. Ouvi dizer que Bernardo se deve encontrar
com o seu colega Jacques Fournier (recorda-te deste nome, por agora queima albigenses,
mas visa mais alto), e uma bela bruxa sobre a pira aumentará o prestígio e a fama de
ambos...
- Mas não se pode fazer nada para os salvar? - gritei. - Não pode intervir o Abade?
- Por quem? Pelo despenseiro, réu confesso? Por um miserável como Salvador? Ou tu
pensas na rapariga?
- E se assim fosse? - ousei. - No fundo, é dos três a única verdadeiramente inocente,
vós sabeis que não é uma bruxa...
- E crês que o Abade, depois daquilo que sucedeu, quererá arriscar o pouco prestígio
que lhe resta por uma bruxa?
- Mas assumiu a responsabilidade de deixar fugir Ubertino!
- Ubertino era um dos seus monges e não era acusado de nada. E, depois, que tolices
me estás a dizer, Ubertino era uma pessoa importante, Bernardo só o poderia atingir
pelas costas.
- Então o despenseiro tinha razão, os simples pagam sempre por todos, mesmo por
aqueles que falam a seu favor, mesmo por aqueles, como Ubertino e Miguel, que com as
suas palavras de penitência os impeliram à revolta!
Estava desesperado, e não considerava sequer que a rapariga não era um fraticello
seduzido pela mística de Ubertino. No entanto, era uma camponesa, e pagava por uma
história que não lhe dizia respeito.
- Assim é - respondeu-me tristemente Guilherme. - E, se realmente procuras um raio
de justiça, dir-te-ei que um dia os cães grandes, o papa e o imperador, para fazerem a
paz, passarão sobre o corpo dos cães mais pequenos que se encarniçaram ao seu serviço.
E Miguel ou Ubertino serão tratados como hoje é tratada a tua rapariga.
Agora sei que Guilherme profetizava, ou melhor, silogizava, com base em princípios de
filosofia natural. Mas naquele momento as suas profecias e os seus silogismos não me
consolaram absolutamente nada. A única coisa certa era que a rapariga seria queimada.
E sentia-me co-responsável, porque era como se na fogueira ela expiasse também o
pecado que eu tinha cometido com ela.
Sem pudor algum, desatei aos soluços e fugi para a minha cela, onde durante toda a
noite mordi o enxergão e gemi impotente, porque nem sequer me era concedido - como
tinha lido nos romances de cavalaria com os meus companheiros de Melk - lamentar-me
invocando o nome da amada.
Do único amor terreno da minha vida não sabia, e jamais soube, o nome.
SEXTO DIA
MATINAS
Onde os príncipes sederunt, e Malaquias desaba por terra.
Descemos a matinas. Aquela última parte da noite, quase a primeira do novo dia
iminente, estava ainda enevoada. À medida que atravessava o claustro, a umidade
penetrava-me até ao fundo dos ossos, moídos pelo sono inquieto. Embora a igreja
estivesse fria, foi com um suspiro de alívio que me ajoelhei sob aquelas abóbadas, ao
abrigo dos elementos, confortado pelo calor dos outros corpos, e da oração.
O canto dos salmos tinha-se iniciado há pouco, quando Guilherme me indicou um lugar
vazio nas estalas à nossa frente, entre Jorge e Pacifico de Tivoli. Era o lugar de
Malaquias, que de fato se sentava sempre ao lado do cego. E não éramos nós os únicos
que nos tínhamos apercebido daquela ausência. De um lado surpreendi um olhar
preocupado do Abade, que decerto já sabia bem como aquelas faltas eram portadoras de
sombrias notícias. E do outro reparei numa singular inquietação que agitava o velho
Jorge. O seu rosto, habitualmente tão indecifrável por causa dos seus olhos brancos
privados de luz, estava quase inteiramente imerso na sombra, mas as suas mãos estavam
nervosas e irrequietas. De fato, várias vezes tateou o lugar a seu lado, como para
verificar se estava ocupado. Fazia e voltava a fazer o gesto a intervalos regulares, como
esperando que o ausente reaparecesse de um momento para o outro, mas temesse não o
ver reaparecer.
- Onde estará o bibliotecário? - sussurrei a Guilherme.
- Malaquias - respondeu Guilherme - era agora o único que tinha o livro nas mãos. Se
não é ele o culpado dos delitos, então poderia não conhecer os perigos que aquele livro
encerrava...
Não havia mais nada a dizer. Devia-se apenas esperar. E esperamos, nós, o Abade, que
continuava a fixar a estala vazia, Jorge, que não cessava de interrogar o escuro com as
mãos.
Quando se chegou ao fim do ofício, o Abade recordou aos monges e aos noviços que
era necessário prepararem-se para a grande missa natalícia e que, por isso, como de
costume, se empregaria o tempo antes de laudas experimentando o afinamento da
comunidade inteira na execução de alguns dos cantos previstos para aquela ocasião.
Aquela fileira de homens devotos estava com efeito harmonizada como um só corpo e
uma só voz, e por um longo cortejo de anos reconhecia-se unida, como uma única alma,
no canto.
O Abade convidou a entoar o Sederunt:
Sederunt principes et adversus me loquebantur, iniqui. Persecuti sunt me. Adjuva me,
Domine, Deus meus salvum me fac propter magnam misericordiam tuam.
Perguntei-me se o Abade não teria escolhido mandar cantar aquele gradual
precisamente naquela noite, quando ainda estavam presentes à função os enviados dos
príncipes, para recordar como há séculos a nossa ordem estava pronta a resistir à
perseguição dos poderosos, graças à sua privilegiada relação com o Senhor, Deus dos
exércitos. E na verdade o início do canto deu uma grande impressão de poder.
Com a primeira silaba se começou um coro lento e solene de dezenas e dezenas de
vozes, cujo som baixo encheu as naves e pairou sobre as nossas cabeças, e todavia
parecia surgir do coração da terra. E não se interrompeu, porque, enquanto outras vozes
começavam a tecer, sobre aquela linha de profundidade e continua, uma série de
vocalizos e de melismos, ele - telúrico - continuava a dominar, e não cessou durante
todo o tempo que é necessário a um recitante de voz cadenciada e lenta pare repetir
doze vezes a Ave-Maria. E, como libertas de todo o temor pela confiança que aquela
obstinada sílaba, alegoria da duração eterna, dava aos orantes, as outras vozes (e acima
de todas as dos noviços) sobre aquela base pétrea e sólida elevavam cúspides, colunas,
pináculos de neumas liquescentes e pontiagudos. E enquanto o meu coração entontecia
de doçura ao vibrar de um climacus ou de um porrectus, de um torculus ou de um
salicus, aquelas vozes pareciam dizer-me que a alma (a dos orantes e a minha que os
escutava), não podendo suportar a exuberância do sentimento, através deles se
dilacerava pare exprimir a alegria, a dor, o louvor, o amor, com impulso de sonoridades
suaves. Entretanto, o obstinado afinco das vozes atônicas não cedia, como se a presença
ameaçadora dos inimigos, dos poderosos que perseguiam o povo do Senhor,
permanecesse irresoluta. Até que aquele netúnico tumultuar de uma só nota pareceu
vencido, ou pelo menos convencido e cativo do júbilo aleluiático de quem se lhe opunha,
e desvaneceu-se num majestoso e perfeitíssimo acordo e num neuma supino.
Pronunciado com dificuldade quase obtusa o «sederunt», elevou-se no ar o
«príncipes», numa grande e seráfica calma. Deixei de me perguntar quem eram os
poderosos que falavam contra mim (contra nós), tinha desaparecido, tinha-se dissipado a
sombra daquele fantasma sentado e ameaçador.
E outros fantasmas, acreditei então, se dissiparam naquela altura, porque olhando de
novo para a estala de Malaquias, depois de a minha atenção ter sido absorvida pelo
canto, vi a figura do bibliotecário entre as dos outros orantes, como se jamais tivesse
faltado. Olhei para Guilherme e vi uma ligeira expressão de alívio nos seus olhos, a
mesma que distingui de longe nos olhos do Abade. Quanto a Jorge, tinha de novo
estendido as mãos e, encontrando o corpo do seu vizinho, tinha-as prontamente retirado.
Mas, quanto a ele, não saberia dizer que sentimentos o agitavam.
Agora o coro estava entoando festivamente o «adjuva me», cujo a claro se espalhava
alegremente pela igreja, e mesmo o u não parecia sombrio, como o de «sederunt», mas
cheio de santa energia. Os monges e os noviços cantavam, como quer a regra do canto,
com o corpo direito, a garganta livre, a cabeça olhando para o alto, o livro quase à
altura dos ombros de modo que se possa ler sem que, baixando a cabeça, o ar saia com
menor energia do peito. Mas a hora era ainda noturna e, apesar de ressoarem as
trombetas da jubilação, a caligem do sono insidiava muitos dos cantores que, perdidos
talvez na emissão de uma longa nota, confiantes na própria onda do cântico, por vezes
reclinavam a cabeça, tentados pela sonolência. Então, os vigilantes, mesmo naquela
circunstancia, exploravam os rostos com a lanterna, um a um, para os reconduzirem
justamente à vigília, do corpo e da alma.
Foi pois um vigilante o primeiro que descobriu Malaquias a cabecear de modo
estranho, a oscilar como se de repente tivesse caído outra vez nas névoas cimérias de um
sono que provavelmente naquela noite não tinha dormido. Aproximou-se dele com a
lâmpada, iluminando-lhe o rosto e atraindo assim a minha atenção. O bibliotecário não
reagiu. O vigilante tocou-lhe, e ele caiu pesadamente para a frente. O vigilante mal teve
tempo de o suster antes que ele se precipitasse no solo.
O canto abrandou, as vozes extinguiram-se, houve um breve alvoroço.
Guilherme tinha imediatamente saltado do seu lugar e tinha-se precipitado para onde
já Pacifico de Tivoli e o vigilante estavam estendendo por terra Malaquias, inanimado.
Alcançamo-los quase ao mesmo tempo que o Abade, e à luz da lâmpada vimos o rosto
do infeliz. Já descrevi o aspecto de Malaquias, mas naquela noite, àquela luz, ele era
então a própria imagem da morte. O nariz afilado, os olhos cavos, as têmporas
encovadas, as orelhas brancas e contraídas com os lobos voltados para fora, a pele da
cara já estava rígida, tesa e seca, a cor das faces amarelada e coberta de uma sombra
escura. Os olhos ainda estavam abertos e uma respiração difícil saía daqueles lábios
requeimados. Abriu a boca e, inclinado para trás de Guilherme, que se tinha inclinado
sobre ele, vi agitar-se na fiada dos seus dentes uma língua já negra. Guilherme levantouo,
abraçando-o pelos ombros, com a mão limpou-lhe um véu de suor que lhe tornava
lívida a fronte. Malaquias sentiu um toque, uma presença, olhou fixamente diante de si,
certamente sem ver, seguramente sem reconhecer quem estava à sua frente. Levantou
uma mão trêmula, agarrou Guilherme pelo peito, puxando-lhe a cara até quase tocar a
sua; depois, débil e roucamente, proferiu algumas palavras: - Tinha-mo dito... na
verdade... tinha o poder de mil escorpiões...
- Quem to tinha dito? - perguntou-lhe Guilherme. - Quem?
Malaquias tentou ainda falar. Depois foi sacudido por um grande tremor e a cabeça
caiu-lhe de novo para trás. O rosto perdeu toda a cor, toda a aparência de vida. Estava
morto.
Guilherme levantou-se. Descobriu a seu lado o Abade, e não lhe disse uma palavra.
Depois viu, atrás do Abade, Bernardo Gui.
- Senhor Bernardo - perguntou Guilherme -, quem matou este, se vós tão bem
encontrastes e encarcerastes os assassinos?
- Não mo pergunteis a mim - disse Bernardo. - Nunca disse ter entregue à justiça todos
os malvados que vagueiam por esta abadia. Tê-lo-ia feito de boa vontade, se pudesse - e
olhou para Guilherme. - Mas os outros agora deixo-os à severidade... ou à excessiva
indulgência do senhor Abade.
Disse, enquanto o Abade empalidecia em silêncio. E afastou-se.
Naquele entretanto ouvimos como um pipilar, um soluço abafado. Era Jorge, dobrado
sobre o seu genuflexório, segurado por um monge que devia ter-lhe descrito o
acontecido.
- Jamais acabará - disse com voz entrecortada. - Oh, Senhor, perdoa-nos a todos!
Guilherme inclinou-se ainda um momento sobre o cadáver. Agarrou-lhe os pulsos,
voltando-lhe para a luz as palmas das mãos. As pontas dos primeiros dedos da mão
direita estavam escuras.
SEXTO DIA
LAUDAS
Onde é eleito um novo despenseiro, mas não um novo bibliotecário.
Era já a hora de laudas? Era mais cedo ou mais tarde? A partir daquele momento perdi
a noção do tempo. Passaram talvez horas, talvez menos, em que o corpo de Malaquias
esteve estendido na igreja sobre um catafalco, enquanto os irmãos se dispunham em
leque. O Abade dava disposições para as próximas exéquias. Ouvi-o chamar a si Bêncio e
Nicolau de Morimondo. No espaço de menos de um dia, disse, a abadia tinha sido privada
do bibliotecário e do despenseiro.
- Tu - disse a Nicolau - assumirás as funções de Remígio. Conheces o trabalho de
muitos, aqui na abadia. Põe alguém em teu lugar de guarda às forjas, provê às
necessidades imediatas de hoje, na cozinha, no refeitório. Estás dispensado dos ofícios.
Vai. - Depois, a Bêncio: - Precisamente ontem à noite foste nomeado ajudante de
Malaquias. Provê à abertura do scriptorium e vigia que ninguém suba sozinho à
biblioteca.
Bêncio fez timidamente observar que ainda não tinha sido iniciado nos segredos
daquele lugar. O Abade fixou-o com severidade:
- Ninguém disse que o serás. Tu vigia que o trabalho não pare e seja vivido como
oração pelos irmãos mortos... e por aqueles que morrerão ainda. Cada um trabalhará
apenas sobre os livros que já lhe foram entregues, quem quiser poderá consultar o
catálogo. Nada mais. Estás dispensado das vésperas, porque àquela hora fecharás tudo.
- E como sairei? - perguntou Bêncio.
- É verdade, fecharei eu as portas de baixo depois da ceia. Vai.
Saiu com eles, evitando Guilherme, que procurava falar-lhe. No coro ficavam, em
pequeno grupo, Alinardo, Pacifico de Tivoli, Aymaro de Alexandria e Pedro de
Sant'Albano. Aymaro escarnecia.
- Agradeçamos ao Senhor - disse. - Morto o alemão, corríamos o risco de termos um
novo bibliotecário mais bárbaro ainda.
- Quem pensais que será nomeado para o seu lugar? - perguntou Guilherme.
Pedro de Sant'Albano sorriu de modo enigmático:
- Depois de tudo o que aconteceu nestes dias, o problema já não é o bibliotecário,
mas sim o Abade...
- Cala-te - disse-lhe Pacífico.
E Alinardo, sempre com o seu olhar absorto:
- Vão cometer outra injustiça... como nos meus tempos. É preciso impedi-los.
- Quem? - perguntou Guilherme.
Pacífico pegou-lhe confidencialmente por um braço e acompanhou-o para longe do
velho, em direção à porta.
- Alinardo... tu bem sabes, amamo-lo muito, representa para nós a antiga tradição e
os dias melhores da abadia... Mas por vezes fala sem saber o que diz. Todos nós estamos
preocupados por causa do novo bibliotecário. Deverá ser digno, e maduro, e sábio... Eis
tudo.
- Deverá conhecer o grego? - perguntou Guilherme.
- E o árabe, assim quer a tradição, assim exige o seu ofício. Mas há muitos entre nós
com estes dotes. Eu, humildemente, e Pedro, e Aymaro...
- Bêncio sabe grego?
- Bêncio é demasiado jovem. Não sei porque é que Malaquias o escolheu ontem como
seu ajudante, mas...
- Adelmo conhecia o grego?
- Creio que não. Aliás, não, sem dúvida.
- Mas conhecia-o Venancio. E Berengário. Está bem, agradeço-te.
Saímos para ir tomar qualquer coisa à cozinha.
- Porque queríeis saber quem conhecia o grego? - perguntei.
- Porque todos aqueles que morrem com os dedos negros conhecem o grego. Portanto
não será mal esperarmos o próximo cadáver entre aqueles que sabem grego. Eu incluído.
Tu estás salvo.
- E que pensais das últimas palavras de Malaquias?
- Tu ouviste-as. Os escorpiões. A quinta trombeta anuncia entre outras coisas a saída
dos gafanhotos que atormentarão os homens com um aguilhão semelhante ao do
escorpião, bem o sabes. E Malaquias fez-nos saber que alguém lho tinha anunciado.
- A sexta trombeta - disse eu - anuncia cavalos com cabeças de leões de cuja boca sai
fumo e fogo e enxofre, montados por homens cobertos de couraças cor de fogo, jacinto e
enxofre.
- Coisas de mais. Mas o próximo delito poderia ter lugar perto das cavalariças. Será
preciso tê-las debaixo de olho. E preparemo-nos para o sétimo ressoar. Mais duas
pessoas, portanto. Quem são os candidatos mais prováveis? Se o objetivo é o segredo do
finis Africae, aqueles que o conhecem. E, que eu saiba, existe só o Abade. A menos que a
trama não seja ainda outra. Como ouviste, há pouco, estavam conjurando para depor o
Abade, mas Alinardo falou no plural...
- Será preciso prevenir o Abade? - disse eu.
- De quê? Que o matarão? Não tenho provas convincentes. Eu procedo como se o
assassino raciocinasse como eu. Mas se perseguisse um outro desígnio? E se, sobretudo,
não houvesse um assassino?
- Que pretendeis dizer?
- Não sei exatamente. Mas, como te disse, é preciso imaginar todas as ordens
possíveis, e todas as desordens.
SEXTO DIA
PRIMA
Onde Nicola conta muitas coisas enquanto se visita a cripta do tesouro.
Nicolau de Morimondo, no seu novo papel de despenseiro, estava dando ordens aos
cozinheiros, e estes estavam a dar-lhe informações sobre os usos da cozinha. Guilherme
queria falar-lhe, e ele pediu-nos que esperássemos alguns minutos. Depois, disse, deveria
descer à cripta do tesouro para vigiar o trabalho de limpeza das custódias, que ainda lhe
competia, e ali teria mais tempo para conversar.
Pouco depois, de fato, convidou-nos a segui-lo, entrou na igreja, passou por trás do
altar-mor (enquanto os monges estavam dispondo um catafalco na nave, para velar os
despojos mortais de Malaquias), e fez-nos descer uma escada estreita, aos pés da qual
nos encontramos numa sala de abóbadas muito baixas sustentadas por grossas pilastras
de pedra não trabalhada. Estávamos na cripta em que se guardavam as riquezas da
abadia, lugar de que o Abade era muito cioso e que se abria apenas em circunstancias
excepcionais e para hóspedes de muito respeito.
A toda a volta havia custodias de diferentes tamanhos, no interior das quais a luz das
rochas (acesas por dois ajudantes da confiança de Nicolau) fazia resplandecer objetos de
maravilhosa beleza. Paramentos dourados, coroas de ouro com incrustações de gemas,
escrínios de vários metais historiados com figuras, trabalhos de nielo, marfins. Nicolau
mostrou-nos, extasiado, um evangeliário cuja encadernação ostentava admiráveis placas
de esmalte que compunham uma variedade unidade de compartimentos regulares,
divididos por filigranas de ouro e fixados, como pregos, por pedras preciosas. Indicou-nos
uma delicada edícula com duas colunas de lápis-lazúli e ouro que enquadravam uma
deposição do sepulcro representada em delicado baixo-relevo de prata encimada por
uma cruz de ouro com treze diamantes incrustados sobre um fundo de ônix variado,
enquanto o pequeno frontão era armado em ágata e rubis. Depois vi um díptico
criselefantino dividido em cinco partes, com cinco cenas da vida de Cristo, e ao centro
um cordeiro místico composto de alvéolos de prata dourada com massa de vidro, única
imagem policroma sobre um fundo de cérea brancura.
O rosto, os gestos de Nicolau, à medida que nos indicava estas coisas, iluminavam-se
de orgulho. Guilherme louvou as coisas que tinha visto, depois perguntou a Nicolau que
espécie de pessoa era Malaquias.
- Estranha pergunta - disse Nicolau -, tu também o conhecias.
- Sim, mas não o bastante. Nunca compreendi que pensamentos ocultava... e... -
hesitou em pronunciar juízos sobre alguém que há pouco tinha desaparecido - ...e se os
tinha.
Nicolau umedeceu um dedo, passou-o sobre uma superfície de cristal que não estava
perfeitamente polida e respondeu com um meio-sorriso, sem olhar Guilherme no rosto:
- Vês que não tens necessidade de fazer perguntas... É verdade, no dizer de muitos,
Malaquias parecia bastante pensativo, mas era, pelo contrário, um homem muito
simples. Segundo Alinardo, era um idiota.
- Alinardo guarda rancor a alguém por um acontecimento remoto, quando lhe foi
negada a dignidade de bibliotecário.
- Também eu ouvi falar disso, mas trata-se de uma velha história, remonta há pelo
menos cinqüenta anos. Quando eu aqui cheguei era bibliotecário Roberto de Bobbio, e os
velhos murmuravam sobre uma injustiça cometida em prejuízo de Alinardo. Então não
quis aprofundar, porque me parecia falta de respeito para com os mais velhos e não
queria prestar-me a murmurações. Roberto tinha um ajudante, que depois morreu, e em
seu lugar foi nomeado Malaquias, ainda muito jovem. Muitos disseram que não tinha
mérito algum, que afirmava saber grego e árabe e não era verdade, era apenas um bom
imitador que copiava em bela caligrafia os manuscritos naquelas línguas mas sem
compreender o que copiava. Dizia-se que um bibliotecário deve ser bastante mais douto.
Alinardo, que então era ainda um homem cheio de força, disse coisas duríssimas sobre
essa nomeação. E insinuou que Malaquias tinha sido posto naquele lugar para fazer o
jogo do seu inimigo, mas não compreendi de quem falava. Eis tudo. Sempre se murmurou
que Malaquias defendia a biblioteca como um cão de guarda mas sem bem compreender
aquilo que ela encerrava. Por outro lado, também se murmurou contra Berengário,
quando Malaquias o escolheu como seu ajudante. Dizia-se que ele também não era mais
hábil que o seu mestre, que era apenas um intriguista. Também se disse... mas, aliás,
também tu deves ter ouvido estas murmurações... que havia uma estranha relação entre
Malaquias e ele... coisas velhas, depois sabes que se murmurou de Berengário e de
Adelmo, e os copistas jovens diziam que Malaquias sofria em silêncio um ciúme atroz... E
depois também se murmurava das relações entre Malaquias e Jorge, não, não no sentido
que podes imaginar... nunca ninguém murmurou sobre a virtude de Jorge! Mas
Malaquias, como bibliotecário, por tradição, devia ter eleito o Abade como seu
confessor, enquanto todos os outros se confessam a Jorge (ou a Alinardo, mas o velho já
está quase demente)... Pois bem, dizia-se que, apesar disso, Malaquias conversava com
demasiada freqüência com Jorge, como se o Abade dirigisse a sua alma, mas Jorge
regulasse o seu corpo, os seus gestos, o seu trabalho. Por outro lado, tu sabe-lo, viste-o,
provavelmente: se alguém queria uma indicação sobre um livro antigo e esquecido, não a
pedia a Malaquias, mas a Jorge. Malaquias guardava o catálogo e subia à biblioteca, mas
Jorge sabia o que significava cada título...
- Porque é que Jorge sabia tantas coisas sobre a biblioteca?
- Era o mais velho, depois de Alinardo, está aqui desde a sua juventude. Jorge deve
ter mais de oitenta anos, diz-se que está cego há pelo menos quarenta anos ou talvez
mais...
- Como é que conseguiu tornar-se tão sabedor antes da cegueira?
- Oh, existem lendas sobre ele. Parece que já em criança era tocado pela graça
divina, e lá, em Castela, ainda impúbere, lia livros dos árabes e dos doutores gregos. E
depois, mesmo após a cegueira, mesmo agora, senta-se longas horas na biblioteca, pede
que lhe recitem o catálogo, pede que lhe tragam livros, e um noviço lê para ele em voz
alta durante horas e horas. Ele lembra-se de tudo, não é desmemoriado como Alinardo.
Mas porque me perguntas todas estas coisas?
- Agora que Malaquias e Berengário estão mortos, quem mais possui os segredos da
biblioteca?
- O Abade, e o Abade deverá agora transmiti-los a Bêncio... se quiser...
- Porquê se quiser?
- Porque Bêncio é jovem, foi nomeado ajudante quando Malaquias ainda era vivo, ser
ajudante-bibliotecário é diferente de ser bibliotecário. Por tradição, o bibliotecário
torna-se depois Abade...
- Ah, é assim... Por isso o lugar de bibliotecário é tão cobiçado. Mas então Abbone foi
bibliotecário?
- Não, Abbone não. A sua nomeação teve lugar antes de eu aqui chegar, deve haver
agora trinta anos. Antes era abade Paulo de Rimini, um homem curioso de quem se
contam estranhas histórias: parece que era um leitor insaciável, conhecia de cor todos os
livros da biblioteca, mas tinha uma estranha enfermidade, não conseguia escrever,
chamavam-lhe Abbas agraphicus... Tornou-se abade muito jovem, dizia-se que tinha o
apoio de Algirdas de Cluny, o Doctor Quadratus... Mas isto são velhos falatórios dos
monges. Em suma, Paulo veio a ser abade, Roberto de Bobbio tomou o seu lugar na
biblioteca, mas era minado por um mal que o consumia, sabia-se que não poderia
presidir aos destinos da abadia, e quando Paulo de Rimini desapareceu...
- Morreu?
- Não, desapareceu, não sei como, um dia partiu para uma viagem e não voltou mais,
foi talvez morto pelos ladrões no decurso da viagem... Em suma, quando Paulo
desapareceu, Roberto não podia tomar o seu lugar, e houve tramas obscuras. Abbone,
diz-se, era filho natural do senhor desta região, tinha crescido na abadia de Fossanova,
dizia-se que ainda moço tinha assistido São Tomás quando ali morreu e tinha velado pelo
transporte daquele grande corpo descendo a escada de uma grande torre por onde o
cadáver não conseguia passar... aquela era a sua glória, murmuravam as más línguas
daqui... O fato é que foi eleito abade, embora não tivesse sido bibliotecário, e foi
instruído por alguém, Roberto, creio, nos mistérios da biblioteca.
- E Roberto porque foi eleito?
- Não sei. Sempre procurei não investigar demasiado sobre estas coisas: as nossas
abadias são lugares santos, mas em torno da dignidade abacial são tecidas, por vezes,
horríveis tramas. Eu interessava-me pelos meus vidros e pelos meus relicários, não queria
ser misturado com estas histórias. Mas agora compreendes porque não sei se o Abade
quer instruir Bêncio, seria como designá-lo seu sucessor, um rapaz irrefletido, um
gramático quase bárbaro, do extremo norte, como poderia saber deste país, da abadia e
das suas relações com os senhores do lugar...
- Mas Malaquias também não era italiano, nem Berengário, e no entanto foram postos
à frente da biblioteca.
- Eis um fato obscuro. Os monges murmuram que de há meio século a esta parte a
abadia abandonou as suas tradições. Por isso, há mais de cinqüenta anos, e talvez antes,
Alinardo aspirava a dignidade de bibliotecário. O bibliotecário sempre tinha sido italiano,
não faltam os grandes engenhos nesta terra. E depois vês... - e aqui Nicolau hesitou,
como se não quisesse dizer aquilo que ia dizer - ...vês, Malaquias e Berengário estão
mortos, talvez para que não viessem a ser abades. - Sacudiu-se, agitou a mão diante do
rosto como para afugentar idéias pouco honestas, depois fez o sinal da cruz. - Que coisa
estou eu dizendo? Vês, neste país há muitos anos que se passam coisas vergonhosas,
mesmo nos mosteiros, na corte papal, nas igrejas... Lutas para conquistar o poder,
acusações de heresia para tirar uma prebenda a alguém... Que horror, eu estou a perder
a confiança no gênero humano, vejo conluios e conjures palacianas por toda a parte. A
isto devia reduzir-se também esta abadia, um ninho de víboras surgido por magia oculta
naquilo que era uma custódia de membros santos. Olha, o passado deste mosteiro!
Apontava-nos os tesouros espalhados a toda a volta, e, deixando de lado cruzes e
outras alfaias sagradas, levou-nos a ver os relicários que constituíam a glória daquele
lugar.
- Olhai – dizia -, esta é a ponta da lança que trespassou o lado do Salvador!
Era uma caixa de ouro, com tampa de cristal, onde sobre uma almofadinha de púrpura
repousava um pedaço de ferro de forma triangular, já roído pela ferrugem mas agora
trazido a um vivo esplendor por um longo trabalho de óleos e de ceras. Mas isto ainda
não era nada. Porque numa outra caixa de prata com incrustações de ametista, e cuja
parede anterior era transparente, vi um pedaço do lenho venerando da santa cruz,
trazido para aquela abadia pela própria rainha Helena, mãe do imperador Constantino,
depois de ter ido como peregrina aos lugares santos e de ter exumado a colina do
Gólgota e o santo sepulcro, construindo nesse lugar uma catedral.
Depois Nicolau fez-nos admirar outras coisas, e não saberia falar de todas, pela sua
quantidade e pela sua raridade. Estava, numa custódia toda de águas-marinhas, um
prego da cruz. Estava numa ampola, pousado num ninho de pequenas rosas murchas,
uma parte da coroa de espinhos, e noutra caixa, sempre sobre um tapete de flores secas,
um pedacinho amarelecido da toalha da última ceia. E depois estava a bolsa de São
Mateus, em malha de prata, e num cilindro, atado com uma fita violeta roída pelo tempo
e selado de ouro, um osso do braço de Santa Ana! Vi, maravilha das maravilhas,
encimada por um sino de vidro e sobre uma almofada vermelha bordada de pérolas, um
pedaço da manjedoura de Belém, e um palmo da túnica purpúrea de São João
Evangelista, duas das correntes que apertaram os tornozelos do apóstolo Pedro em
Roma, o crânio de Santo Adalberto, a espada de Santo Estêvão, uma tíbia de Santa
Margarida, um dedo de São Vital, uma costela de Santa Sofia, o queixo de Santo Eobano,
a parte superior da omoplata de São Crisóstomo, o anel de noivado de São José, um
dente do Baptista, a vara de Moisés, uma rendinha rasgada e finíssima do vestido nupcial
da Virgem Maria.
E depois outras coisas que não eram relíquias mas representavam mesmo assim
testemunhos de prodígios e de seres prodigiosos de terras longínquas, trazidos pare a
abadia por monges que tinham viajado até aos extremos confins do mundo: um basilisco
e um hidra empalhados, um corno de unicórnio, um ovo que um eremita tinha
encontrado dentro de outro ovo, um pedaço do maná que nutriu os hebreus no deserto,
um dente de baleia, uma noz de coco, o úmero de um animal pré-diluviano, a presa de
marfim de um elefante, a costela de um golfinho. E depois ainda outras relíquias que não
reconheci, cujos relicários eram talvez mais preciosos, e algumas (a avaliar pela fatura
dos seus recipientes de prata enegrecida) antiqüíssimas, uma série infinita de fragmentos
de ossos, de tecido, de madeira, de metal, de vidro. E frascos com pós escuros, um dos
quais soube que continha os detritos calcinados da cidade de Sodoma, e outro cal dos
muros de Jericó. Tudo coisas, mesmo as mais modestas, pelas quais um imperador daria
mais de um feudo, e que constituíam uma reserva não só de imenso prestígio mas
também de verdadeira riqueza material para a abadia que nos hospedava.
Continuava a vaguear estupefato, enquanto Nicolau já tinha deixado de nos ilustrar os
objetos, que aliás eram descritos cada um por uma etiqueta, já livre de passear quase ao
acaso por aquela reserva de maravilhas inestimáveis, por vezes admirando aquelas coisas
em plena luz, outras vezes entrevendo-as na semiobscuridade, quando os acólitos de
Nicolau se afastavam para outro ponto da cripta com as suas tochas. Estava fascinado por
aquelas cartilagens amarelecidas, místicas e repugnantes ao mesmo tempo,
transparentes e misteriosas, por aqueles farrapos de vestidos de época imemorial,
descorados, desfiados, por vezes enrolados num frasco como um manuscrito desbotado,
por aquelas matérias em migalhas que se confundiam com o tecido que lhes servia de
leito, detritos santos de uma vida que foi animal (e racional) e agora, aprisionados por
edifícios de cristal ou de metal que mimavam na sua minúscula dimensão a ousadia das
catedrais de pedra, com as suas torres e as suas agulhas, pareciam transformados
também eles em substancia mineral. Assim, então, os corpos dos santos esperam sepultos
a ressurreição da carne? Destes estilhaços se haveriam de recompor aqueles organismos
que no fulgor da visão divina, readquirindo toda a sua sensibilidade natural, haviam de
perceber, como escrevia Piperno, até as mínimas differentias odorum?
Sacudiu-me das minhas meditações Guilherme, que me tocava no ombro:
- Eu vou-me embora - disse. - Subo ao scriptorium, ainda tenho de consultar uma
coisa...
- Mas não se poderão obter livros - disse eu - Bêncio recebeu ordem...
- Tenho só de examinar ainda o livro que lia no outro dia, e ainda estão todos no
scriptorium sobre a mesa de Venancio. Tu, se quiseres, fica aqui. Esta cripta é um belo
epítome aos debates sobre a pobreza a que assististe nestes dias. E agora sabes por que
coisa se esganam estes teus irmãos, quando aspiram à dignidade abacial.
- Mas vós acreditais naquilo que vos sugeriu Nicolau? Os delitos têm a ver então com
uma luta pela investidura?
- Já te disse que por agora não quero arriscar hipóteses em voz alta. Nicolau disse
muitas coisas. E algumas interessaram-me. Mas agora vou seguir uma outra pista ainda.
Ou talvez a mesma, mas por outro lado. E tu não te encantes demasiado com estas
custódias. Fragmentos da cruz vi muitos outros, noutras igrejas. Se todos fossem
autênticos, Nosso Senhor não teria sido supliciado sobre duas hastes cruzadas, mas sobre
uma floresta inteira.
- Mestre! - disse eu escandalizado.
- É assim, Adso. E há tesouros ainda mais ricos. Há tempos, na catedral de Colônia, vi
o crânio de João Baptista com a idade de doze anos.
- Verdade? - exclamei admirado. Depois, preso por uma dúvida: - Mas o Baptista foi
morto em idade mais avançada!
- O outro crânio deve estar noutro tesouro - disse Guilherme com ar sério.
Eu nunca compreendia quando gracejava. Na minha terra, quando se brinca, diz-se
uma coisa e depois ri-se com muito barulho, de modo que todos participem na piada.
Guilherme, pelo contrário, ria só quando dizia coisas sérias, e ficava muito sério quando
presumivelmente gracejava.
SEXTO DIA
TERÇA
Onde Adso, escutando o Dies irae, tem um sonho ou visão, como se lhe queira chamar.
Guilherme saudou Nicolau e subiu ao scriptorium. Eu já tinha visto bastante do
tesouro, e decidi ir para a igreja rezar pela alma de Malaquias. Nunca tinha gostado
daquele homem, que me fazia medo, e não escondo que durante muito tempo o tinha
julgado culpado de todos os delitos. Agora tinha ouvido que talvez fosse um pobre
homem, oprimido por paixões insatisfeitas, vaso de barro entre vasos de ferro,
ensombrado porque desorientado, silencioso e evasivo porque consciente de nada ter a
dizer. Sentia um certo remorso em relação a ele, e pensei que a oração pelo seu destino
sobrenatural poderia aquietar os meus sentimentos de culpa.
A igreja estava agora iluminada por uma claridade tênue e lívida, dominada pelos
despojos do desventurado, habitada pelo sussurro uniforme dos monges que recitavam o
ofício dos mortos.
No mosteiro de Melk tinha assistido várias vezes ao trespasse de um irmão. Era uma
circunstancia que não posso dizer alegre mas que me parecia todavia serena, regulada
pela calma e por um sentido difuso de justiça. Cada um se revezava na cela do
moribundo, confortando-o com boas palavras, e cada um pensava no seu coração como o
moribundo era feliz, porque estava prestes a coroar uma vida virtuosa e dentro em pouco
se uniria ao coro dos anjos, no júbilo que jamais tem fim. E parte desta serenidade, a
fragrância daquela santa inveja, comunicava-se ao moribundo, que no fim falecia
sereno. Quão diversas tinham sido as mortes daqueles últimos dias! Eu tinha finalmente
visto de perto como morria uma vítima dos diabólicos escorpiões do finis Africae, e
certamente também tinham morrido assim Venancio e Berengário, procurando conforto
na água, com o rosto já desfeito como o de Malaquias...
Sentei-me no fundo da igreja, enrosquei-me sobre mim mesmo para combater o frio.
Senti um pouco de calor, movi os lábios para me unir ao coro dos meus irmãos orantes.
Seguia-os quase sem dar conta do que diziam os meus lábios, com a cabeça que me
descaía e os olhos que se me fechavam. Passou muito tempo, creio ter adormecido e
acordado pelo menos três ou quatro vezes. Depois o coro entoou o Dies irae... O
salmodiar invadiu-me como um narcótico. Adormeci de todo. Ou talvez, mais que
adormecer, caí exausto num agitado torpor, dobrado sobre mim mesmo, como uma
criatura ainda encerrada no ventre da mãe. E naquela névoa da alma, encontrando-me
como numa região que não era deste mundo, tive uma visão ou sonho, tanto faz.
Penetrava por uma escada estreita num beco subterrâneo, como se entrasse na cripta
do tesouro, mas acedia, descendo sempre, a uma cripta mais ampla, que eram as
cozinhas do Edifício. Eram certamente as cozinhas, mas não só operavam fornos e potes
mas também foles e martelos, como se também ali tivessem marcado encontro os
ferreiros de Nicolau. Era tudo um relampejar vermelho de fogões e de caldeiras, e
panelas a ferver que lançavam fumo enquanto à superfície dos seus líquidos subiam
grossas bolhas crepitantes que se abriam, depois de repente com rumor surdo e
contínuo. Os cozinheiros agitavam espetos pelo ar, enquanto os noviços, todos ali
reunidos, davam saltos para capturar os frangos e outras aves enfiadas naqueles ferros
em brasa. Mas, ao lado, os ferreiros martelavam com tal força que todo o ar ensurdecia,
e nuvens de centelhas levantavam-se das bigornas confundindo-se com as que expeliam
os dois fornos.
Não compreendia se me encontrava no inferno ou num paraíso como poderia tê-lo
concebido Salvador, gotejante de molhos e palpitante de chouriços. Mas não tive tempo
para me perguntar onde estava, porque um bando de homenzinhos, de anõezinhos de
cabeça grande em forma de panela, entraram a correr e, arrastando-me no seu ímpeto,
impeliram-me para a soleira do refeitório, obrigando-me a entrar.
A sala estava adornada para uma festa. Grandes tapeçarias e estandartes pendiam das
paredes, mas as imagens que as adornavam não eram aquelas que habitualmente fazem
apelo à piedade dos fiéis ou celebram as glórias dos reis. Elas pareciam mais inspiradas
nos marginalia de Adelmo e, das suas imagens, reproduziam as menos tremendas e as
mais grotescas: lebres que dançavam em redor do mastro de cocanha, rios sulcados por
peixes que se lançavam espontaneamente na frigideira, segura por macacos vestidos de
bispos-cozinheiros, monstros de ventre gordo que dançavam em redor de marmitas
fumegantes.
Ao centro da mesa estava o Abade, vestido de festa, com um largo hábito de púrpura
bordada, empunhando o seu garfo como um cetro. A seu lado, Jorge bebia de uma
grande caneca de vinho, e o despenseiro, vestido como Bernardo Gui, lia virtuosamente
por um livro em forma de escorpião as vidas dos santos e as passagens do evangelho, mas
eram histórias que falavam de Jesus, que gracejava com o apóstolo recordando-lhe que
era uma pedra e sobre aquela pedra desavergonhada que rolava pela planura fundaria a
sua Igreja, ou a história de São Jerônimo, que comentava a Bíblia dizendo que Deus
queria desnudar o traseiro a Jerusalém. E, a cada frase do despenseiro, Jorge ria
batendo com o punho na mesa e gritava: «Tu serás o próximo abade, ventre de Deus!»,
dizia assim mesmo, Deus me perdoe.
A um sinal divertido do Abade entrou a teoria das virgens. Era uma fulgurante fila de
mulheres ricamente vestidas, no centro das quais me pareceu à primeira vista distinguir
minha mãe, depois dei-me conta do engano, porque se tratava certamente da rapariga
terrível como exército alinhado para a batalha. Salvo que trazia na cabeça uma coroa de
pérolas brancas, em duas fiadas, e outras duas cascatas de pérolas desciam de cada lado
do seu rosto, confundindo-se com outras duas fiadas de pérolas que lhe pendiam sobre o
peito, e a cada pérola estava preso um diamante grande como uma ameixa. Além disso,
de ambas as orelhas descia uma fiada de pérolas azuis que se uniam em gorjeira na base
do pescoço, branco e ereto como uma torre do Líbano. O manto era cor de múrice, e na
mão tinha uma taça de ouro com incrustações de diamantes, a qual vim a saber, não sei
como, que continha o ungüento mortal roubado um dia a Severino. Seguiam esta mulher,
bela como a aurora, outras figuras femininas, uma vestida de um manto branco bordado
sobre uma veste escura adornada por uma dupla estola de ouro semeada de flores do
campo; a segunda tinha um manto de damasco amarelo sobre uma veste rosa-pálido
constelada de folhas verdes e com dois grandes quadrados fiados em forma de labirinto
escuro; e a terceira tinha o manto vermelho e a veste esmeralda salpicada de pequenos
animais vermelhos, e trazia nas mãos uma estola bordada e branca; e, quanto às outras,
não observei as suas vestes, porque procurava compreender quem eram aquelas que
acompanhavam a rapariga, que agora se parecia com a Virgem Maria; e como se cada
uma trouxesse na mão ou lhe saísse da boca uma etiqueta, soube que eram Rute, Sara,
Susana e outras mulheres da sagrada escritura.
Naquela altura, o Abade gritou: «Traete, filii de puta!», e entrou no refeitório outra
fileira bem ordenada de personagens sagrados, que reconheci logo, austera e
esplendidamente vestidos, e no centro da fila estava um sentado no trono, que era Nosso
Senhor mas era ao mesmo tempo Adão, vestido com um manto de púrpura e um grande
diadema vermelho e branco de rubis e pérolas a fechar o manto sobre os ombros, na
cabeça uma coroa semelhante à da rapariga, na mão uma taça maior, cheia de sangue
dos porcos. Outros santíssimos personagens de que falarei, todos bem meus conhecidos,
faziam círculo à sua volta, mais uma fila de archeiros do rei de França, vestidos quer de
verde quer de vermelho, com um escudo esmeraldino sobre o qual ressaltava o
monograma de Cristo. O chefe daquela brigada dirigiu-se a prestar homenagem ao Abade
estendendo-lhe a taça, dizendo: «Sao ko kelle terre per kelle fine ke ki kontene, trenta
anni le possette parte sancti Benedicti.» Ao que o Abade respondeu: «Age primum et
septimum de quatuor», e todos entoaram: «In finibus Africae, amen.» Em seguida todos
sederunt.
Dispersas assim as duas fileiras opostas, a uma ordem do Abade Salomão começou a
pôr a mesa, Tiago e André trouxeram um molho de feno, Adão acomodou-se no centro,
Eva deitou-se sobre uma folha, Caim entrou arrastando um arado, Abel veio com um
balde para mungir Brunello, Noé fez uma entrada triunfal remando de pé sobre a arca,
Abraão sentou-se debaixo de uma árvore, Isaac deitou-se sobre o altar de ouro da igreja,
Moisés agachou-se sobre uma pedra, Daniel apareceu sobre um estrado fúnebre pelo
braço de Malaquias, Tobias estendeu-se sobre um leito, José atirou-se sobre um alqueire,
Benjamim estendeu-se sobre um saco, e depois ainda, mas aqui a visão tornava-se
confusa, David ficou de pé sobre um montinho, João por terra, Faraó na areia
(naturalmente, disse para comigo, mas porquê?), Lázaro sobre a mesa, Jesus na borda do
poço, Zaqueu nos ramos de uma árvore, Mateus sobre um escabelo, Raab sobre a estopa,
Rute sobre a palha, Tecla sobre o parapeito da janela (aparecendo do exterior o rosto de
Adelmo, que advertia que se podia mesmo cair no fundo do despenhadeiro), Susana no
horto, Judas no meio dos túmulos, Pedro na cátedra, Tiago numa rede, Elias numa sela,
Raquel sobre um fardo. E Paulo apóstolo, pousada a espada, escutava Esaú, que
resmungava, enquanto Job gemia no esterco e acorriam em seu auxílio Rebeca com uma
veste, Judite com um cobertor, Agar com um lençol mortuário, e alguns noviços traziam
um grande caldeirão fumegante do qual saltava Venancio de Salvemec, todo vermelho,
que começava a distribuir chouriços de sangue de porco.
O refeitório apinhava-se agora cada vez mais, e todos comiam à tripa-forra, Jonas
trazia para a mesa abóboras, Isaías legumes, Ezequiel amoras, Zaqueu flores de
sicômoro, Adão limões, Daniel tremoços, Faraó pimentos, Caim cardos, Eva figos, Raquel
maçãs, Ananias ameixas grandes como diamantes, Lia cebolas, Aarão azeitonas, José um
ovo, Noé uvas, Simeão caroços de pêssegos, enquanto Jesus cantava o Dies irae e
alegremente espalhava sobre todos os alimentos vinagre que espremia de uma pequena
esponja que tinha tirado da lança de um dos archeiros do rei de França.
«Meus filhos, ó minhas ovelhinhas», disse então o Abade já ébrio, «não podeis cear
assim vestidos como pedintes, vinde, vinde.» E percutia o primeiro e o sétimo dos quatro
que saíam, disformes como espectros, do fundo do espelho, o espelho voava em
estilhaços e dele se precipitavam por terra, ao longo das salas do labirinto, vestes
multicolores incrustadas de pedras, todas sujas e rasgadas. E Zaqueu tomou uma veste
branca, Abraão uma cor de pardal, Lot uma cor de enxofre, Jonas azulada, Tecla
carmim, Daniel leonina, João irisada, Adão uma de peles, Judas de moedas de prata,
Raab escarlate, Eva cor da árvore do bem e do mal, e uns tomavam-na colorida, outros
cor de esparto, uns cor de cardo e outros azul-marinho, uns verde-árvore e outros
purpúrea, ou então cor de ferrugem e negra e jacinto e cor de fogo e enxofre, e Jesus
pavoneava-se numa veste cor lumbina e rindo acusava Judas de jamais saber gracejar em
santa alegria.


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