QUARTO DIA

LAUDAS

Onde Guilherme e Severino examinam o cadáver de Berengário e descobrem que tem
a língua negra, coisa singular para um afogado. Depois discutem sobre venenos
dolorosíssimos e sobre um furto remoto.

Não me demorarei a dizer como informamos o Abade, como toda a abadia acordou
antes da hora canônica, os gritos de horror, o espanto e a dor que se viam nos rostos de
todos, como a notícia se propagou a todo o povo do planalto, com os servos que se
benziam e pronunciavam esconjuros. E não sei se naquela manhã o primeiro ofício se
desenrolou segundo as regras, e quem nele tomou parte. Eu segui Guilherme e Severino,
que mandaram envolver o corpo de Berengário e ordenaram que o estendessem sobre
uma mesa no hospital.
Mal o Abade e os outros monges se afastaram, o ervanário e o meu mestre observaram
longamente o cadáver com a frieza dos homens da medicina.
- Morreu afogado - disse Severino -, não há dúvida. A cara está inchada, o ventre está
raso...

- Mas não foi afogado por outros - observou Guilherme -, senão ter-se-ia rebelado
contra a violência do homicida, e teríamos encontrado marcas de água espalhada em
torno da banheira. Pelo contrário, estava tudo arrumado e limpo, como se Berengário
tivesse aquecido a água, enchido a banheira, e nela se tivesse acomodado de livre
vontade.
- Isso não me admira - disse Severino. - Berengário sofria de convulsões, e eu próprio
lhe tinha dito várias vezes que os banhos tépidos servem para acalmar a excitação do
corpo e do espírito. Várias vezes me tinha pedido licença para ter acesso aos balnea.
Assim poderia ter feito esta noite...
- A noite passada - observou Guilherme -, porque este corpo, como vês, ficou na água
pelo menos um dia...
- É possível que tenha sido a noite passada - concordou Severino.
Guilherme pô-lo parcialmente ao corrente dos acontecimentos da noite anterior. Não
lhe disse que tínhamos estado furtivamente no scriptorium mas, ocultando-lhe várias
circunstâncias, disse-lhe que tínhamos perseguido uma figura misteriosa que nos tinha
tirado um livro. Severino compreendeu que Guilherme lhe dizia apenas uma parte da
verdade mas não fez mais perguntas. Observou que a agitação de Berengário, se era ele
o ladrão misterioso, podia tê-lo levado a procurar a tranqüilidade num banho
restaurador. Berengário, observou, era de natureza muito sensível, por vezes uma
contrariedade ou uma emoção provocavam-lhe tremores, suores frios, arregalava os
olhos e caía por terra cuspindo uma baba esbranquiçada.
- Em todo o caso - disse Guilherme -, antes de vir para aqui esteve em qualquer outro
sítio, porque não vi nos balnea o livro que roubou.
- Sim - confirmei com um certo orgulho -, levantei a sua veste, que jazia ao lado da
banheira, e não encontrei marcas de nenhum objeto volumoso.
- Muito bem - sorriu-me Guilherme. - Portanto esteve em qualquer outro sítio, depois
admitamos ainda que, para acalmar a sua própria agitação, e talvez para se subtrair às
nossas buscas, se tenha enfiado nos balnea e tenha mergulhado na água. Severino, julgas
que o mal de que sofria era suficiente para lhe fazer perder os sentidos e fazê-lo afogar?
- Podia ser - observou Severino duvidando. - Por outro lado, se tudo aconteceu há duas
noites, podia ter havido água em torno da banheira, que depois secou. Assim, não
podemos concluir que tenha sido afogado à viva força.
- Não - disse Guilherme. - Alguma vez viste um assassinado que, antes de se deixar
afogar, despe a roupa?
Severino abanou a cabeça, como se aquele argumento já não tivesse grande valor. Há
alguns instantes que estava examinando as mãos do cadáver:
- Eis uma coisa curiosa... - disse.
- O quê?
- No outro dia observei as mãos de Venancio, quando o corpo foi limpo do sangue, e
notei um pormenor a que não tinha dado muita importância. As pontas de dois dedos da
mão direita de Venancio estavam escuras, como enegrecidas por uma substancia escura.
Exatamente, vês? Como agora as pontas de dois dedos de Berengário. Mais, aqui temos
mesmo algumas marcas no terceiro dedo. Então pensei que Venancio tinha tocado nas
tintas do scriptorium...
- Muito interessante - observou Guilherme pensativo, aproximando os olhos dos dedos
de Berengário. A Alba estava surgindo, a luz no interior era ainda fraca, o meu mestre
sofria evidentemente pela falta da suas lentes. - Muito interessante - repetiu. - O
indicador e o polegar estão escuros nas pontas, o médio só na parte interna, e
levemente. Mas também há marcas mais leves na mão esquerda, pelo menos no indicador
e no polegar.

- Se fosse só a mão direita, seriam os dedos de quem agarra alguma coisa pequena, ou
comprida e delgada...
- Como um estilete. Ou um alimento. Ou um inseto. Ou uma serpente. Ou um
ostensório. Ou um pau. Demasiadas coisas. Mas se tinham um sinal na outra mão também
podia ser uma faca, a direita segura bem e a esquerda colabora com menor força...
Severino esfregava agora ligeiramente os dedos do morto, nelas a cor escura não
desaparecia. Notei que tinha posto um par de luvas, que provavelmente usava quando
manuseava substancias venenosas. Cheirava, mas sem tirar dai sensação alguma.
- Poderia citar-te muitas substancias vegetais (e até minerais) que provocam marcas
deste tipo. Algumas letais, outras não. Os miniaturistas têm por vezes os dedos sujos de
pó de ouro...
- Adelmo era miniaturista - disse Guilherme. – Suponho que diante do seu corpo
esfacelado tu não
pensaste em examinar-lhe os dedos. Mas estes podiam ter tocado nalguma coisa que
tenha pertencido a Adelmo.
- Verdadeiramente não sei - disse Severino. - Dois mortos, ambos com os dedos negros.
Que deduzes?
- Não deduzo nada, nihil sequitur geminis ex particularibus unquam. Seria preciso
reconduzir ambos os casos a uma regra. Por exemplo: existe uma substancia que
enegrece os dedos dos que tocam...
Terminei triunfante o silogismo:
- ... Venancio e Berengário têm os dedos enegrecidos, cargo tenham tocado essa
substancia!
- Muito bem, Adso - disse Guilherme -, pena que o teu silogismo não seja válido,
porque aut semel aut iterum médium genera-liter esto, e neste silogismo o termo médio
nunca aparece como geral. Sinal de que escolhemos mal a premissa maior. Não devia
dizer: todos aqueles que todos os que tocam certa substancia tem os dedos negros, pois
também podia haver pessoas com os dedos negros e que não tivessem tocado a
substancia. Devia dizer: todos aqueles e só todos aqueles que têm os dedos negros
tocaram certamente uma dada substancia. Venancio e Berengário etcétera. Com o que
teríamos um Darii, um ótimo terceiro silogismo de primeira figura.
- Então teremos a resposta! -disse todo contente.
- Ai, Adso, como te fias em silogismos! Temos apenas e de novo a pergunta. Isto é,
pusemos a hipótese que Venancio e Berengário tocaram a mesma coisa, hipótese sem
dúvida razoável. Mas, uma vez que imaginamos uma substancia que, única entre todas,
provoca este resultado (o que é ainda para apurar), não sabemos qual é nem onde eles a
terão encontrado, e porque a terão tocado. E, repara bem, não sabemos sequer se é
afinal a substancia que tocaram aquela que os conduziu à morte. Imagina que um louco
queria matar todos aqueles que tocam no pó de ouro. Diríamos que é o pó de ouro que
mata?

Fiquei perturbado. Sempre tinha acreditado que a lógica era uma arma universal, e
apercebia-me agora como a sua validade dependia do modo como se usava. Por outro
lado, freqüentando o meu mestre, tinha-me dado conta, e dei-me conta cada vez mais
dos dias que se seguiram, que a lógica podia servir de muito com a condição de entrar
dentro dela e depois sair.
Severino, que não era decerto um bom lógico, refletia entretanto segundo a sua
própria experiência:
- O universo dos venenos é vário, como vários são os mistérios da natureza - disse.
Indicou uma série de frascos e ampolas que já uma vez tínhamos admirado, dispostos em
boa ordem nas estantes ao longo das paredes, junto de muitos volumes. - Como já te
disse, muitas destas ervas, devidamente compostas e dosadas, poderiam dar lugar a
bebidas e ungüentos mortais. Eis ali datura stramonium, beladona, cicuta: podem dar
sonolência, excitação, ou ambas; administradas com cautela são ótimos medicamentos,
em doses excessivas levam à morte. Ali está a fava de Santo Inácio, a angustura pseudoferrugínea,
a nux vômica, que poderiam tirar a respiração...

- Mas nenhuma destas substancias deixaria sinais nos dedos?
- Nenhuma, creio. Depois, existem substancias que só se tornam perigosas se
ingeridas, e outras que, pelo contrário, atuam sobre a pele. O heléboro branco pode
provocar vômitos em quem o agarra para o arrancar da terra. Existem begônias que
quando estão em flor provocam embriaguez nos jardineiros que as tocam, como se
tivessem bebido vinho. O heléboro negro, só de o tocar provoca diarréia. Outras plantas
provocam palpitações de coração, outras na cabeça, outras ainda fazem perder a voz.
Pelo contrário, o veneno da víbora, aplicado na pele sem penetrar no sangue, produz
apenas uma ligeira irritação... Mas uma vez mostraram-me um composto que, aplicado
na parte interna das coxas de um cão, perto dos órgãos genitais, leva o animal a morrer
em pouco tempo, no meio de convulsões atrozes, com os membros que pouco a pouco se
tornam rígidos...
- Sabes muitas coisas sobre os venenos - observou Guilherme com um tom de voz que
parecia de admiração.
Severino fixou-o e suportou o seu olhar por alguns instantes:
- Sei aquilo que um médico, um ervanário, uma pessoa que cultiva a ciência e a saúde
humana deve saber.
Guilherme ficou longo tempo distraído. Depois pediu a Severino que abrisse a boca do
cadáver e que lhe observasse a língua. Severino, intrigado, usou uma espátula delgada,
um dos instrumentos da sua arte médica, e executou. Deu um grito de estupefação:
- A língua está negra!
- Então é isso - murmurou Guilherme. - Agarrou alguma coisa com os dedos e ingeriua...
Isto elimina os venenos que citaste antes, que matam penetrando através da pele.
Mas não torna mais fáceis as nossas induções. Porque agora temos de pensar, para ele e
para Venancio, num gesto voluntário, não casual, não devido a distração ou a
imprudência, nem induzido pela violência. Agarraram alguma coisa e introduziram-na na
boca conscientes do que faziam.

- Um alimento? Uma bebida?
- Talvez! Talvez! O que seria? Um instrumento musical, por exemplo uma flauta.
- Absurdo! – disse Severino.
- Decerto que é absurdo. Mas não devemos transcutar nenhuma hipótese, por
extraordinária que seja. Mas agora procuremos remontar à matéria venenosa. Se alguém
que conhece os venenos como tu se tivesse introduzido aqui e tivesse usado algumas
destas tuas ervas teria podido compor um ungüento mortal capaz de produzir aqueles
sinais nos dedos e na língua? Capaz de ser posto num alimento, numa bebida, numa
colher, nalguma coisa que se mete à boca?
- Sim - admitiu Severino -, mas quem? E depois, mesmo adquirindo essa hipótese,
como teria sido administrado o veneno aos nossos pobres irmãos?
Francamente também eu não conseguia imaginar Venancio ou Berengário deixando-se
abordar por alguém que lhes estendia uma substancia misteriosa que alguém o
oferecera. Mas Guilherme não pareceu perturbado por esta extravagância.
- Nisso pensaremos depois – disse -, porque agora queria que tu procurasses recordar
algum fato que talvez não te tenha ainda voltado à mente, não sei, alguém que tenha
feito perguntas sobre as suas ervas. alguém que tenha acesso fácil ao hospital....
- Um momento - disse Severino -, há muito tempo, falo de anos, conservava numa
daquelas estantes uma substancia muito forte, que me tinha dado um irmão que tinha
viajado por países distantes. Não sabia dizer-me de que era feita, certamente de ervas,
e nem todas conhecidas. Era, na aparência, viscosa e amarelada, mas aconselharam-me
que não lhe tocasse, porque se ficasse mesmo só em contato com os lábios ter-me-ia
morto em pouco tempo. O irmão disse-me que, mesmo ingerida em doses mínimas,
provocava no espaço de meia hora uma sensação de prostração, depois uma lenta
paralisia de todos os membros, e por fim a morte. Não queria levá-la consigo, e fez-me
presente dela. Conservei-a por longo tempo, porque me propunha examiná-la de alguma
maneira. Depois, um dia, houve no planalto uma grande tempestade. Um dos meus
ajudantes, um noviço, tinha deixado a porta do hospital aberta, e o furacão tinha
devastado toda a sala em que agora estamos. Ampolas quebradas, líquidos espalhados
pelo pavimento, ervas e pós dispersos. Trabalhei um dia a pôr de novo em ordem as
minhas coisas, e pedi ajuda apenas para varrer os cacos e as ervas já irrecuperáveis. No
fim apercebi-me que faltava precisamente a ampola de que te falava. Primeiro
preocupei-me, depois convenci-me que se tinha quebrado e confundido com outros
detritos. Mandei lavar bem o pavimento do hospital e as estantes.
- E tinhas visto a ampola poucas horas antes do furacão?
- Sim... Ou melhor, não, agora que penso nisso. Estava atrás de uma fila de frascos,
bem escondida, e não a fiscalizava todos os dias...
- Então, pelo que sabes, podiam ter-te tirado mesmo muito tempo antes do furacão,
sem tu saberes?
- Agora que me fazes refletir, sim, sem dúvida nenhuma.
- E esse teu noviço podia ter-te tirado e depois podia ter aproveitado o ensejo do
furacão para deixar de propósito a porta aberta e criar a confusão entre as tuas coisas...
Severino pareceu muito excitado:
- Decerto, sim. Não só, mas recordando quanto aconteceu, admirei-me muito que o
furacão, por muito violento que fosse, tivesse derrubado tantas coisas. Poderia
perfeitamente dizer que alguém aproveitou o furacão para devastar a sala e produzir
mais danos que o vento poderia ter feito!

- Quem era o noviço?
- Chamava-se Agostinho. Mas morreu o ano passado, ao cair de um andaime quando,
com outros monges e servos, limpava as esculturas da fachada da igreja. E depois,
pensando bem, ele tinha jurado e tresjurado que não tinha deixado a porta aberta antes
do furacão. Fui eu, enfurecido, que o considerei responsável pelo incidente. Talvez
estivesse verdadeiramente inocente.
- E assim temos uma terceira pessoa, talvez bem mais esperta que um noviço, que
tinha conhecimento do teu veneno. A quem tinhas falado nisso?
- Disso, precisamente, não me recordo. Ao Abade, claro, pedindo-lhe licença para
conservar uma substancia tão perigosa. E a mais alguém, talvez precisamente na
biblioteca, porque procurava herbários que pudessem revelar-me alguma coisa.
- Mas não me disseste que conservas junto de ti os livros mais úteis à tua arte?
- Sim, e muitos - disse, indicando num angulo da sala algumas estantes carregadas de
dezenas de volumes. - Mas na altura procurava certos livros que não poderia conservar e
que até Malaquias era reticente em me deixar ver, de tal modo que tive de pedir
autorização ao Abade. - A sua voz tornou-se mais baixa, como se tivesse escrúpulo em
que eu a ouvisse. - Sabes, num lugar desconhecido da biblioteca conservam-se mesmo
obras de necromancia, de magia negra, receitas de filtros diabólicos. Pude consultar
algumas destas obras, por dever científico, e esperava encontrar uma descrição daquele
veneno e das suas funções. Em vão.
- Então, falaste nisso a Malaquias.
- Decerto, sem dúvida a ele, e talvez também ao próprio Berengário, que lhe assistia.
Mas não tires conclusões apressadas: não me recordo, talvez enquanto falava estivessem
presentes outros monges, sabes, por vezes no scriptorium há bastante gente...
-Não suspeito de ninguém. Procuro apenas compreender o que pode ter acontecido.
Em todo o caso dizes-me que o fato aconteceu há alguns anos, e é curioso que alguém
tenha tirado com tanta antecipação um veneno que havia de vir a usar tanto tempo
depois. Seria indício de uma vontade maligna que incubou longamente na sombra um
propósito homicida.
Severino benzeu-se com uma expressão de horror no rosto.
- Deus nos perdoe a todos! - disse.
Não havia mais comentários a fazer. Voltamos a cobrir o corpo de Berengário, que
devia ser preparado para as exéquias.

QUARTO DIA

PRIMA

Onde Guilherme induz primeiro Salvador e depois o despenseiro a confessar o seu
passado, Severino encontra as lentes roubadas, Nicolau traz as novas e Guilherme, com
seis olhos, vai decifrar o manuscrito de Venancio.

Íamos a sair quando entrou Malaquias. Pareceu contrariado com a nossa presença, e
fez menção de se retirar. Do interior, Severino viu-o e disse:
- Procuravas-me? É por...
Interrompeu-se, olhando para nós. Malaquias fez-lhe um sinal, imperceptível, como
para dizer «Falaremos depois...» Nós íamos a sair, ele vinha a entrar, encontramo-nos
todos três no vão da porta. Malaquias disse, de modo bastante redundante:
- Procurava o irmão ervanário... Tenho... tenho dores de cabeça.
- Deve ser o ar fechado da biblioteca - disse-lhe Guilherme com um tom de pressurosa
compreensão. - Devias fazer sufumígios.
Malaquias moveu os lábios como se ainda quisesse falar, depois, desistiu, baixou a
cabeça e entrou, enquanto nós nos afastávamos.
- Que vai fazer junto de Severino? - perguntei.
- Adso - disse-me com impaciência o mestre -, aprende a raciocinar com a sua cabeça.
- Depois mudou de conversa: - Temos de interrogar algumas pessoas, agora. Pelo menos -
acrescentou, ao mesmo tempo que, com o olhar, explorava o planalto -, enquanto ainda
estão vivas. A propósito: doravante prestemos atenção àquilo que comemos e bebemos.
Tira sempre os teus alimentos do prato comum e as tuas bebidas da caneca de onde já se
tenham servido os outros. Depois de Berengário, somos aqueles que sabem mais coisas.
Além, naturalmente, do assassino.
- Mas quem quereis interrogar agora?
- Adso - disse Guilherme -, terás observado que aqui as coisas mais interessantes
acontecem de noite. De noite se morre, de noite se anda pelo scriptorium, de noite se
introduzem mulheres na cerca... Temos uma abadia diurna e uma abadia noturna, e a
noturna parece desgraçadamente mais interessante que a diurna. Portanto, toda a
pessoa que ande de noite nos interessa, incluindo por exemplo o homem que viste ontem
à noite com a rapariga. Talvez a história da rapariga não tenha nada a ver com a dos
venenos, ou talvez sim. Em todo o caso tenho cá a minha idéia sobre o homem de ontem
à noite, que deve ser pessoa que sabe também outras coisas sobre a vida noturna deste
santo lugar. E, fala-se do lobo, ei-lo que justamente vai a passar lá em baixo.
Apontou-me Salvador, o qual, por sua vez, nos tinha visto. Notei uma leve hesitação
no seu passo, como se, desejando evitar-nos, tivesse parado para voltar atrás. Foi um
instante. Evidentemente tinha dado conta de que não podia furtar-se ao encontro, e
retomou a marcha. Dirigiu-se a nós com um largo sorriso e um «benedicite» um tanto
untuoso. O meu mestre quase não o deixou acabar e falou-lhe em tom brusco.
- Sabes que amanhã chega aqui a inquisição? - perguntou-lhe.
Salvador não pareceu contente. Com um fio de voz perguntou.

- E eu?
- E tu farás bem em dizer-me a verdade a mim, que sou teu amigo, e sou frade menor
como tu foste, em vez de a dizeres amanhã aos outros que conheces muito bem.
Assaltado assim bruscamente, Salvador pareceu abandonar qualquer resistência. Olhou
com ar submisso para Guilherme como para lhe fazer compreender que estava pronto a
dizer-lhe aquilo que lhe perguntasse.
- Esta noite estava na cozinha uma mulher. Quem estava com ela?
- Oh, femena que véndese come mercandía non puede num-quam ser bona ni tener
cortesía! - recitou Salvador.
- Não quero saber se era boa rapariga. Quero saber quem estava com ela!
- Deus, como são as femenas malvadas e espertas! Pensam dia e noite como o homem
enganar...
Guilherme agarrou-o bruscamente pelo peito:
- Quem estava com ela, tu ou o despenseiro?
Salvador compreendeu que não podia mentir durante mais tempo. Começou a contar
uma estranha história, pela qual fadigosamente ficamos a saber que ele para agradar ao
despenseiro, lhe arranjava raparigas na aldeia, fazendo-as entrar durante a noite na
cerca por vias que não nos quis dizer. Mas tresjurou que agia por puro bom coração,
deixando transparecer um cômico remorso pelo fato de não encontrar modo de também
tirar daí o seu prazer, de modo que a rapariga, depois de ter contentado o despenseiro,
lhe desse qualquer coisa também a ele. Disse tudo isto com viscosos e lúbricos sorrisos, e
piscadelas de olhos, como para dar a entender que falava com homens feitos de carne,
acostumados às mesmas práticas. E olhava para mim de soslaio, e eu não podia retorquirlhe
como quereria, porque me sentia ligado a ele por um segredo comum, seu cúmplice e
companheiro de pedaço.
Guilherme decidiu naquela altura tentar tudo por tudo. Perguntou-lhe de chofre:
- Conheceste Remígio antes ou depois de teres estado com Dolcino?
Salvador ajoelhou-se a seus pés, suplicando-lhe entre lágrimas que não quisesse
perdê-lo e que o salvasse da inquisição, Guilherme jurou-lhe solenemente que não dizia
a ninguém quanto viesse a saber, e Salvador não hesitou em entregar o despenseiro à
nossa mercê. Tinham-se conhecido na Parede Calva, ambos do bando de Dolcino, com o
despenseiro tinha fugido e entrado no convento de Casale, com ele se tinha transferido
entre os clunicenses. Mastigava implorando perdão, e claro que dele não se poderia
saber mais. Guilherme decidiu que valia a pena apanhar Remígio de surpresa, e deixou
Salvador, que correu a refugiar-se na igreja.

O despenseiro estava na parte oposta da abadia, diante dos celeiros, e estava a
negociar com alguns aldeões do vale. Olhou-nos com apreensão, e procurou mostrar-se
muito atarefado, mas Guilherme insistiu para falar com ele. Até então tínhamos tido com
aquele homem poucos contatos; ele tinha sido cortês conosco, nós com ele. Naquela
manhã, Guilherme dirigiu-se-lhe como teria feito com um irmão da sua ordem. O
despenseiro pareceu embaraçado com aquela confiança e respondeu a princípio com
muita prudência.
- Pelas razões do teu ofício, tu és obrigado a vaguear pela abadia mesmo quando os
outros dormem, imagino - disse Guilherme.
- Depende - respondeu Remígio -, por vezes há pequenos serviços a despachar e tenho
de lhes dedicar algumas horas de sono.
- Não te aconteceu nada, nestes casos, que possa indicar-nos quem terá vagueado,
sem ter as tuas justificações, entre a cozinha e a biblioteca?
- Se tivesse visto alguma coisa, teria dito ao Abade.
- Certo - concordou Guilherme, e mudou bruscamente de conversa: - A aldeia do vale
não é muito rica, pois não?
- Sim e não - respondeu Remígio -, habitam aí alguns prebendários que dependem da
abadia, e estes partilham da nossa riqueza nos anos de abundância. Por exemplo, no dia
de São João receberam doze moios de malte, um cavalo, sete bois, um touro, quatro
novilhas, cinco vitelos, vinte ovelhas, quinze porcos, cinqüenta frangos e dezessete
colméias. E, depois, vinte porcos fumados, vinte e sete formas de banha, meia medida
de mel, três medidas de sabão, uma rede de pesca...

- Já compreendi, já compreendi - interrompeu Guilherme -, mas tens de admitir que
isso ainda não me diz qual é a situação da aldeia, quais os habitantes que são
prebendários da abadia, e quanta terra tem de cultivar por sua conta quem não é
prebendário...
- Oh, para isso - disse Remígio -, uma família normal lá em baixo chega a possuir até
cinqüenta tábuas de terreno.
- Quanto é uma tábua?
- Naturalmente, quatro trabucos quadrados.
- Trabucos quadrados? quantos são?
- Trinta e seis pés quadrados por trabuco. Ou, se quiseres, oitocentos trabucos
lineares fazem uma milha piemontesa. E calcula que uma família, nas terras para norte,
pode cultivar oliveiras para ao menos meio saco de azeite.
- Meio saco?
- Sim, um saco tem cinco heminas, e uma hemina tem oito taças.
- Já compreendi - disse o meu mestre desanimado. - Cada região tem as suas medidas.
Vós por exemplo, o vinho medi-lo em canadas?
- Ou em almudes. Seis almudes, um barril, e oito barris uma pipa. Se quiseres, um
almude tem seis pintas de duas canadas.
- Creio que tenho as idéias claras - disse Guilherme resignado.
- Desejas saber mais alguma coisa? - perguntou Remígio, com um tom que me pareceu
um desafio.
- Sim! Perguntava-te sobre o modo como viviam no vale porque meditava hoje na
biblioteca sobre as prédicas de Humberto de Romans às mulheres, e em particular sobre
o capítulo Ad mulleres pauperes in villulis. Onde diz que estas, mais que outras, são
tentadas aos pecados da carne, por causa da sua miséria, e sabiamente diz que elas
peccant enim mortaliter, cum peccant cum quocumque laico, mortalius vero quando cum
Clerico in sacris ordinibus constituto, máxime vero quando cum Religioso mundo mortuo.
Tu sabes melhor que eu que, mesmo em lugares santos como as abadias, as tentações do
demônio meridiano nunca faltam. Perguntava-me se, nos teus contatos com a gente da
aldeia, terás vindo a saber que alguns monges, Deus não queira, tenham induzido
algumas raparigas a fornicação.
Embora o meu mestre dissesse estas coisas com tom quase distraído, o meu leitor terá
compreendido como aquelas palavras perturbavam o pobre despenseiro. Não sei dizer se
empalideceu, mas direi que tanto esperava que empalidecesse que o vi empalidecer.

- Perguntas-me coisas que, se as soubesse, já teria dito ao Abade - respondeu
humildemente. - Em todo o caso, se, como imagino, essas notícias servem à tua
investigação, não te calarei nada que possa vir a saber. Melhor, agora que me fazes
pensar, a propósito da tua primeira pergunta... Na noite em que morreu o pobre Adelmo,
eu circulava pelo pátio... sabes, uma história de galinhas... rumores que tinha captado
sobre um certo ferrador que de noite andava a roubar na capoeira... Pois bem, naquela
noite aconteceu-me ver... de longe, não poderia jurar... Berengário, que reentrava no
dormitório ladeando o coro, como se proviesse do Edifício... Não me admirei, porque,
entre os monges, murmurava-se há algum tempo sobre Berengário, talvez tenhas
sabido...
- Não, diz-me.
- Bem, como dizer? Suspeitava-se que Berengário nutria paixões que... não convêm a
um monge...
- Queres talvez sugerir-me que tinha relações com raparigas da aldeia, como te estava
a perguntar?
O despenseiro tossiu, embaraçado, e teve um sorriso bastante imundo:
- Oh, não... paixões ainda mais inconvenientes...
- Porque um monge que se deleite carnalmente com raparigas da aldeia pratica, pelo
contrário, paixões de algum modo convenientes?
- Não disse isso, mas tu ensinas-me que há uma hierarquia na depravação como na
virtude. A carne poder ser tentada segundo a natureza e... contra a natureza.
- Tu estás a dizer-me que Berengário era movido por desejos carnais por homens do
seu sexo?
- Eu digo que isso se murmurava dele... Comunicava-te estas coisas como prova da
minha sinceridade e da minha boa vontade...
- E eu agradeço-te. E concordo contigo que o pecado de sodomia é bem pior que
outras formas de luxúria, sobre as quais francamente não me sinto inclinado a
investigar...
- Misérias, misérias, se acaso se verificassem - disse com filosofia o despenseiro.
- Misérias, Remígio. Somos todos pecadores. Jamais procuraria o argueiro no olho do
irmão, tanto temo ter uma grande trave no meu. Mas ficar-te-ei grato por todas as traves
de que me quiseres falar no futuro. Assim, conversaremos sobre grandes e robustos
troncos de madeira e deixaremos que os argueiros volteiem no ar. Quanto dizias que é
um trabuco?
- Trinta e seis pés quadrados. Mas não te preocupes. Quando quiseres saber alguma
coisa com precisão vem ter comigo. Conta que tens em mim um amigo fiel.
- Como tal eu te considero - disse Guilherme com calor. – Ubertino disse-me que, em
tempos, pertenceste à mesma ordem que eu. Jamais trairia um antigo irmão,
especialmente nestes dias em que se espera a chegada de uma delegação pontifícia
conduzida por um grande inquisidor, famoso por ter queimado tantos dolcinianos. Dizias
que um trabuco tem trinta e seis pés quadrados?
O despenseiro não era tolo. Decidiu que já não valia a pena jogar ao gato e ao rato,
tanto mais que se apercebia de ser o rato.
- Frade Guilherme – disse -, vejo que tu sabes muito mais coisas do que eu imaginava.
Não me traias e eu não te trairei. É verdade, sou um pobre homem carnal, e cedo aos
engodos da carne. Salvador disse-me que tu ou o teu noviço o tínheis surpreendido
ontem à noite na cozinha. Tu tens viajado muito, Guilherme, sabes que nem sequer os
cardeais de Avinhão são modelos de virtude. Sei que não é por estes pequenos e
miseráveis pecados que me estás a interrogar. Mas compreendo também que soubeste
alguma coisa sobre a minha história de outros tempos. Tive uma vida bizarra, como
aconteceu a muitos de nós, menoritas. Há anos acreditei no ideal de pobreza, abandonei
a comunidade para me entregar à vida errante. Acreditei na pregação de Dolcino, como
muitos outros como eu. Não sou um homem culto, recebo ordens mas mal sei dizer
missa. Sei pouco de teologia. E talvez não consiga sequer afeiçoar-me às idéias. Vês, em
tempos tentei rebelar-me contra os senhores, agora sirvo-os, e pelo senhor destas terras
comando outros como eu. Ou rebelar-se ou trair, dão-nos pouca escolha, a nós simples.

- Por vezes, os simples compreendem as coisas melhor que os doutos - disse
Guilherme.
- Talvez - respondeu o despenseiro com um encolher de ombros. - Mas nem sequer sei
porque fiz aquilo que fiz, então. Vês, para Salvador era compreensível, vinha dos servos
da gleba, de uma infância de penúria e de doenças... Dolcino representava a rebelião e a
destruição dos senhores. Para mim foi diferente, era de família citadina, não fugia da
fome. Foi... não sei como dizer, uma festa de loucos, um belo carnaval... Nos montes
com Dolcino, antes de sermos reduzidos a comer a carne dos nossos companheiros mortos
em combate, antes de morrerem tantos de privações que não se podia comê-los a todos,
e atiravam-se como pasto às aves e às feras nas encostas do Rebello... ou talvez mesmo
nesses momentos... respirássemos um ar... posso dizer de liberdade? Não sabia antes o
que era a liberdade, os pregadores diziam-nos. «A verdade vos fará livres.» Sentíamo-nos
livres, pensávamos que era a verdade. Pensávamos que tudo aquilo que fazíamos era
justo...

- E ai começaste... a unir-vos livremente com uma mulher? - perguntei, e nem sequer
sei porquê, mas obcecavam-me desde a noite anterior as palavras de Ubertino, e aquilo
que tinha lido no scriptorium, e os próprios casos que me tinham acontecido.
Guilherme olhou para mim intrigado, provavelmente não esperava que eu fosse tão
audacioso e impudente. O despenseiro fixou-me como se eu fosse um estranho animal.
- No Rebello – disse - havia gente que durante toda a infância tinha dormido, aos dez e
mais, em poucos côvados de terra batida, irmãos e irmãs, pais e filhas. Que queres que
fosse para eles aceitar esta nova situação? Faziam por eleição aquilo que antes tinham
feito por necessidade. E depois, de noite, quando temes a chegada das esquadras
inimigas e te aconchegas ao teu companheiro, sobre a terra, para não sentir frio... Os
hereges: vós, mongezinhos que vindes de um castelo e acabais numa abadia, credes que
é um modo de pensar, inspirado pelo demônio. Pelo contrário; é um modo de viver, e
é... e foi... uma experiência nova...Já não havia patrões, e Deus, diziam-nos, estava
conosco. Não digo que tivéssemos razão, Guilherme, e de fato vês-me aqui porque os
abandonei bem depressa. Mas é que nunca compreendi as vossas disputas doutas sobre a
pobreza de Cristo e o uso e o fato e o direito... Já to disse, foi um grande carnaval, e no
carnaval fazem-se as coisas ao contrário. Depois tornas-te velho, não te tornas sábio,
mas tornas-te glutão. E aqui faço de glutão... Podes condenar um herege, mas queres
condenar um glutão?
- Já chega Remígio - disse Guilherme. - Não te interrogo por aquilo que sucedeu
então, mas por aquilo que aconteceu recentemente. Ajuda-me, e eu não procurarei
decerto a tua ruína. Não posso e não quero julgar-te. Mas tens de me dizer o que sabes
sobre os fatos da abadia. Andas demasiado, de noite e de dia, para não saberes alguma
coisa. Quem matou Venancio?
- Não sei, juro-te. Sei quando morreu e onde.
- Quando? Onde?
- Deixa-me contar. Naquela noite, uma hora depois de completas, entrei na cozinha...
- Por onde, e por que razões?
- Pela porta que dá para o horto. Tenho uma chave que há algum tempo mandei fazer
aos ferreiros. A porta da cozinha é a única que não é trancada por dentro. E as razões...
não contam, disseste tu mesmo que não queres acusar-me pelas fraquezas da minha
carne... - Sorriu embaraçado. - Mas não queria tão-pouco que julgasses que passo os
meus dias na fornicação... Naquela noite procurava comida para oferecer à rapariga que
Salvador devia fazer entrar na cerca...

- Por onde?
- Oh, a cerca das muralhas tem outras entradas, além do portal. Conhece-as o Abade,
conheço-as eu... Mas naquela noite a rapariga não veio, mandei-a voltar para trás
precisamente por causa daquilo que descobri e que vou contar. Eis porque tentei fazê-la
voltar ontem à noite. Se vós tivésseis chegado pouco depois, ter-me-ieis encontrado a
mim em vez de Salvador, foi ele que me avisou que havia gente no Edifício, e eu voltei
para a minha cela...
- Voltemos à noite entre domingo e segunda.
- Pois bem: eu entrei na cozinha e vi por terra Venancio, morto.
- Na cozinha?
- Sim, perto da pia. Acabava talvez de descer do scriptorium.
- Nenhuma marca de luta?
- Nenhuma. Ou melhor, perto do corpo estava uma chávena quebrada, e havia sinais
de água no chão.
- Porque sabes que era água?
- Não sei. Pensei que fosse água. Que podia ser?
Como Guilherme me fez observar depois, aquela chávena podia significar duas coisas
diversas. Ou precisamente ali na cozinha alguém tinha dado de beber a Venancio uma
poção venenosa, ou o desgraçado já tinha ingerido o veneno (mas onde?, e quando) e
tinha descido a beber para acalmar um improviso ardor, um espasmo, uma dor que lhe
queimava as vísceras, ou a língua (que, certamente, a sua devia estar negra como a de
Berengário).
Em todo o caso, de momento não se podia saber mais nada. Descoberto o cadáver, e
aterrorizado, Remígio tinha-se perguntado o que fazer, e tinha decidido não fazer nada.
Se pedisse socorro, devia admitir que tinha vagueado durante a noite pelo Edifício, e isso
não teria valido de nada ao irmão já perdido. Portanto, tinha decidido deixar as coisas
como estavam, esperando que alguém descobrisse o corpo na manhã seguinte, ao abrir
as portas. Tinha corrido a deter Salvador, que já estava a fazer entrar a rapariga na
abadia, depois – ele e o seu cúmplice - tinham voltado a dormir, se acaso se podia
chamar sono à vigília agitada que tiveram até matinas. E a matinas, quando os
porqueiros foram avisar o Abade, Remígio julgava que o cadáver tinha sido descoberto
onde ele o tinha deixado, e tinha ficado interdito ao descobri-lo na talha. Quem tinha
feito desaparecer o cadáver da cozinha? Sobre isto, Remígio não tinha nenhuma idéia.
- O único que pode mover-se livremente pelo edifício é Malaquias - disse Guilherme.
O despenseiro reagiu com energia:
- Não! Malaquias não. Isto é, não creio... Em todo o caso, não fui eu que te disse algo
contra Malaquias...
- Está tranqüilo, qualquer que seja a dívida que te liga a Malaquias. Sabe alguma coisa
de ti?
- Sim - corou o despenseiro -, e comportou-se como homem discreto. Se estivesse no
teu lugar eu vigiaria Bêncio. Tinha estranhas ligações com Berengário e Venancio... Mas,
juro-te, não vi mais nada. Se souber alguma coisa, dir-te-ei.
- Por agora pode chegar. Voltarei junto de ti, se tiver necessidade.
O despenseiro, evidentemente aliviado, voltou aos seus negócios, repreendendo
asperamente os aldeões, que tinham deslocado não sei que sacos de sementes.
Naquele entretanto chegou junto de nós Severino. Trazia na mão as lentes de
Guilherme, as que lhe tinham tirado duas noites antes.
- Encontrei-as no saio de Berengário - disse. - Vi-as no nariz, no outro dia na
biblioteca. São as tuas, não são?
- Deus seja louvado - exclamou alegremente Guilherme. – Resolvemos dois problemas!
Tenho as minhas lentes e sei finalmente que era Berengário o homem que nos derrubou a
noite passada no scriptorium!
Mal tínhamos acabado de falar quando chegou a correr Nicolau de Morimondo, ainda
mais triunfante que Guilherme. Tinha nas mãos um par de lentes acabadas, montadas na
sua forquilha:
- Guilherme – gritava -, consegui-o sozinho, acabei-as, creio que funcionam!
Depois viu que Guilherme tinha outras lentes no rosto e ficou petrificado. Guilherme
não quis humilhá-lo, tirou as suas velhas lentes e mediu as novas:
- São melhores que as outras - disse. - Quer dizer que terei as velhas de reserva e
usarei sempre as tuas. - Depois voltou-se para mim: - Adso, agora retiro-me para a minha
cela para ler aqueles papéis que sabes. Finalmente! Espera-me em qualquer sítio. E
obrigado, obrigado a todos vós, caríssimos irmãos.
Soava a hora terça e dirigi-me para o coro, para recitar com os outros o hino, os
salmos, os versículos e o Kyrye. Os outros rezavam pela alma do morto Berengário. Eu
agradecia a Deus por nos ter feito encontrar não um mas dois pares de lentes.
Devido à grande serenidade, esquecidas todas as torpezas que tinha visto e ouvido,
adormeci, acordando quando o ofício terminou. Dei-me conta que naquela noite não
tinha dormido, e perturbei-me pensando que tinha, além disso, usado muitas das minhas
forças. E naquela altura, saindo para o ar livre, o meu pensamento começou a ser
obcecado pela recordação da rapariga.
Procurei distrair-me, e pus-me a andar depressa pelo planalto. Experimentava uma
sensação de leve vertigem. Esfregava as mãos entorpecidas uma contra a outra. Batia
com os pés no chão. Ainda tinha sono, e no entanto sentia-me acordado e cheio de vida.

Não compreendia o que me estava acontecendo.

QUARTO DIA

TERÇA

Onde Adso se debate nos padecimentos de amor, depois chega Guilherme com o texto
de Venancio, que continua a permanecer indecifrável, mesmo depois de ter sido
decifrado.

Na verdade, depois do meu encontro pecaminoso com a rapariga, os outros terríveis
acontecimentos quase me tinham feito esquecer aquela aventura, e, por outro lado, logo
depois de me ter confessado a frade Guilherme, o meu espírito tinha-se aliviado do
remorso que havia sentido ao acordar depois da minha culpável cedência, de tal maneira
que me parecia ter entregado ao frade, com as palavras, o próprio fardo de que elas
eram a voz significativa. Para que outra coisa serve, com efeito, a benéfica purificação
da confissão, senão pare descarregar o peso do pecado, e do remorso que comporta, no
próprio seio de Nosso Senhor, obtendo com o perdão uma nova aérea ligeireza de alma,
de forma a esquecer o corpo martirizado pela inequícia? Mas não me tinha libertado de
tudo. Agora que passeava ao sol pálido e frio daquela manhã invernal, circundado pelo
fervor dos homens e dos animais, começava a recorder os acontecimentos passados de
modo diverso. Como se de tudo quanto tinha acontecido já não restassem o
arrependimento e as palavras consoladoras da purificação penitencial, mas apenas
imagens de corpos e de membros humanos. Saltava-me à mente sobreexcitada o
fantasma de Berengário inchado de água, e estremecia de nojo e de piedade. Depois
como para afugentar aquele lêmure, a minha mente dirigia-se a outras imagens de que a
memória fosse fresco receptáculo, e não podia deixar de ver, evidente aos meus olhos
(aos olhos da alma, mas quase como se aparecesse diante dos olhos carnais), a imagem
da rapariga, bela e terrível, como exército alinhado pare a batalha.
Comprometi-me (velho amanuense de um texto nunca escrito até agora, mas que
durante longos decênios falou na minha mente) a ser cronista fiel, e não só por amor da
verdade, nem pelo desejo (aliás muito digno) de instruir os meus leitores futuros; mas
também para libertar a minha memória ressequida e cansada de visões que durante toda
a vida a têm atormentado. E por isso devo dizer tudo, com decência mas sem vergonha.
E devo dizer, agora, e com todas as letras, aquilo que então pensei e quase tentei
esconder a mim próprio, passeando pelo planalto, pondo-me por vezes a correr para
poder atribuir ao movimento do corpo o bater improvisado do meu coração, parando
para admirar as obras dos vilãos e imaginando que me distraía na sua contemplação,
aspirando o ar frio a plenos pulmões, como faz quem bebe vinho para esquecer temor ou
dor.
Em vão. Eu pensava na rapariga. A minha carne tinha esquecido o prazer, intenso,
pecaminoso e passageiro (coisa vil) que me tinha dado a união com ela; mas a minha
alma não tinha esquecido o seu rosto, e não conseguia sentir como perversa essa
recordação, melhor, palpitava como se naquele rosto resplandecessem todas as doçuras
da criação.
Percebia, de modo confuso e quase negando a mim próprio a verdade de quanto
sentia, que aquela pobre, suja, impudente criatura que se vendia (quem sabe com que
proterva constância) a outros pecadores, aquela filha de Eva que, frágil como todas as
suas irmãs, tinha tantas vezes feito comércio com a sua própria carne, era todavia
qualquer coisa de esplêndido e de mirífico. O meu intelecto sabia-a fonte de pecado, o
meu apetite sensitivo percebia-a como receptáculo de toda a graça. É difícil dizer aquilo
que eu sentia. Poderia tentar escrever que, ainda preso pelas tramas do pecado,
desejava, culpavelmente, vê-la aparecer a todo o instante, e quase espiava o trabalho
dos operários para perscrutar se, do ângulo de uma cabana, do escuro de um estábulo,
aparecia a figura que me tinha seduzido. Mas não escreveria a verdade, ou então
tentaria pôr um véu à verdade para atenuar a sua força e a sua evidência. Porque a
verdade é que eu «via» a rapariga, via-a nos ramos da árvore despojada que palpitavam
ligeiramente quando um pássaro transido voava para aí procurar refúgio; via-a nos olhos
das novilhas que saíam do estábulo, e ouvi-a no balido dos cordeiros que se cruzavam
com o meu errar. Era como se toda a criação me falasse dela, e desejava, sim, voltar a
vê-la, mas também estava pronto a aceitar a idéia de jamais voltar a vê-la, e de jamais
me unir a ela, contando que pudesse gozar do júbilo que me invadia naquela manhã, e
tê-la sempre perto ainda que estivesse, e por toda a eternidade, longe de mim. Era,
procuro agora compreender, como se o universo inteiro, que claramente é quase um
livro escrito pelo dedo de Deus, onde cada coisa nos fala da imensa bondade do seu
criador, em que cada criatura é quase escritura e espelho da vida e da morte, em que a
mais humilde rosa se faz glosa do nosso caminho terreno, como se tudo em suma, não me
falasse de outra coisa senão do rosto que apenas tinha entrevisto nas sombras odorosas
da cozinha. Cedia a estas fantasias porque me dizia (ou melhor, não me dizia, porque
naquele momento não formulava pensamentos traduzíveis em palavras) que, se o mundo
inteiro está destinado a falar-me do poder, bondade e sabedoria do criador, e se naquela
manhã o mundo inteiro me falava da rapariga, que (por pecadora que fosse) sempre era
ainda um capítulo do grande livro da criação, um versículo do grande salmo cantado pelo
cosmo - dizia-me (agora digo) que, se isto acontecia, não podia deixar de fazer parte do
grande desígnio teofânico que rege o universo, disposto em forma de citara, milagre de
consonância e harmonia. Quase inebriado, gozava então da presença dela nas coisas que
via, e, desejando-a nelas, à vista delas me saciava. E, no entanto, sentia como uma dor,
porque, ao mesmo tempo, sorria de uma ausência, mesmo sendo feliz com tantos
fantasmas de uma presença. Torna-se-me difícil explicar este mistério de contradição,
sinal de que o espírito humano é bastante frágil e nunca prossegue diretamente ao longo
dos caminhos da razão divina, que construiu o mundo como um pericito silogismo, mas
deste silogismo colhe apenas proposições isoladas e freqüentemente desconexas, de
onde a nossa facilidade em cair vítima das ilusões do maligno. Era uma ilusão do maligno
a que naquela manhã tanto me emocionava? Hoje penso que era, porque era noviço, mas
penso que o humano sentimento que me agitava não era mau em si, mas apenas em
relação ao meu estado. Porque, em si, era o sentimento que move o homem para uma
mulher a fim de que um se una com a outra, como quer o apóstolo dos gentios, e ambos
sejam carne de uma só carne, e juntos procriem novos seres humanos e se assistam
mutuamente da juventude à velhice. Só que o apóstolo falou assim para aqueles que
procuram o remédio para a concupiscência e para quem não quer arder, recordando
porém que bem mais preferível é o estado de castidade, a que eu, monge, me tinha
consagrado. E assim eu sofria, naquela manhã, aquilo que era mal para mim, mas para
outros talvez fosse bem, e bem dulcíssimo, pelo que agora compreendo que a minha
perturbação não era devida à perversidade dos meus pensamentos, em si dignos e
suaves, mas à perversidade da relação entre os meus pensamentos e os votos que tinha
pronunciado. E, assim, fazia mal em gozar de uma coisa sob uma certa razão e má sob
outra, e o meu direito estava em tentar conciliar com o apetite natural os ditames da
alma racional. Agora sei que sofria pelo contraste entre o apetite intelectivo, onde
deveria manifestar-se o império da vontade, e o apetite sensitivo, sujeito das paixões humanas.

Com eleito, actus appetitus sensitivi in quantum habent transmutationem
corporalem annexam, passiones dicuntur, non autem actus voluntatis. E o meu ato
apetitivo era precisamente acompanhado por um tremor de todo o corpo, por um
impulso físico a gritar e a agitar-me. O angélico doutor diz que as paixões em sí não são
más, salvo que devem ser moderadas pela vontade guiada pela alma racional. Mas a
minha alma racional estava naquela manhã adormecida de cansaço, o qual refreava o
apetite irascível, que se dirige para o bem e para o mal enquanto conhecidos. Para
justificar a minha irresponsável leviandade de então, direi hoje, e com as palavras do
doutor angélico, que era indubitavelmente possuído de amor, que é paixão e é lei
cósmica, porque também a gravidade dos corpos é amor natural. E por esta paixão era
naturalmente seduzido, porque nesta paixão appetitus tendit in appetibile realiter
consequendum ut sit ibi finis motus. Pelo que, naturalmente, amor facit quod ipsae res
quae amantur, amanti aliquo modo uniantur et amor est magis cognitivus quam cognitio.
Com efeito, eu via agora a rapariga melhor do que a tinha visto na noite anterior, e
compreendia-a intus et in cute, porque nela compreendia-me a mim e em mim ela
mesma. Pergunto-me agora se aquilo que sentia era o amor da amizade, em que o
semelhante ama o semelhante e quer apenas o bem de outrem, ou amor de
concupiscência, em que se quer o seu próprio bem e o incompleto quer apenas o que o
completa. E creio que amor de concupiscência tinha sido o da noite, em que queria da
rapariga alguma coisa que nunca tinha tido, enquanto naquela manhã da rapariga não
queria nada, e queria apenas o seu bem, e desejava que ela fosse subtraída à cruel
necessidade que a obrigava a dar-se por pouca comida, e fosse feliz, e não queria pedirlhe
mais nada, mas apenas continuar a pensá-la e a vê-la nas ovelhas, nos bois, nas
árvores, na luz serena que envolvia de júbilo a cerca da abadia.

Agora sei que causa do amor é o bem, e o que é bem define-se por conhecimento, e
não se pode amar senão aquilo que se apreendeu como bem, enquanto a rapariga a tinha
apreendido, sim, como bem do apetite irascível mas como mal da vontade. Mas, então,
era presa de tantos e tão contrastantes movimentos do espírito, porque aquilo que sentia
era semelhante ao amor mais santo, precisamente como o descrevem os doutores: ele
produzia-me o êxtase, em que amante e amado querem a mesma coisa (e, por misteriosa
iluminação, eu naquele momento sabia que a rapariga, onde quer que estivesse, queria
as mesmas coisas que eu próprio queria ), e por ela eu sentia ciúme, mas não o mau,
condenado por Paulo na primeira aos coríntios, que é principium contentionis e não
admite consortium in amato, mas aquele de que fala Dionísio nos Nomes Divinos, pelo
que também Deus é dito ciumento propter multum amorem quem habet ad existentia (e
eu amava a rapariga precisamente porque ela existia, e era feliz, não invejoso, de que
ela existisse). Era ciumento do modo em que, para o angélico doutor, o ciúme é motus in
amatum, ciúme de amizade que leva a mover-se contra tudo aquilo que prejudica o
amado (e eu outra coisa não fantasiava naquele instante senão libertar a rapariga do
poder de quem lhe estava comprando as carnes sujando-a com as próprias paixões
nefastas).
Agora sei, como diz o doutor, que o amor pode levar o amante quando é excessivo. E o
meu era excessivo. Tentei explicar aquilo que então sentia, não tento de modo nenhum
justificar o que sentia. Falo do que foram os meus culpáveis ardores de juventude. Eram
maus, mas a verdade impõe-me que diga que, então, os percebi como extremamente
bons. E que isto sirva para instruir quem, como eu, cair nas redes da tentação. Hoje,
velho, conheceria mil formas de escapar a tais seduções (e pergunto-me até que ponto
devo ter orgulho nisso, pois que estou liberto das tentações do demônio meridiano; mas
não liberto de outras, de tal modo que me pergunto se quanto estou fazendo não será
culpável condescendência para com a paixão terrestre da rememoração, estúpida
tentativa de fugir ao fluxo do tempo e à morte).
Então salvei-me quase por instinto miraculoso. A rapariga aparecia-me na natureza e
nas obras humanas que me circundavam. Procurei, pois, por feliz intuição da alma,
mergulhar na detalhada contemplação daquelas obras. Observei o trabalho dos vaqueiros
que levavam os bois para fora do estábulo, dos porqueiros que davam comida aos porcos,
dos pastores que atiçavam os cães a reunir as ovelhas, dos camponeses que levavam
espelta e milho aos moinhos e saíam deles com sacos de boa comida. Mergulhei na
contemplação da natureza, procurando esquecer os meus pensamentos e procurando
olhar os seres apenas como nos aparecem, e olvidar-me na sua visão, jucundamente.
Como era belo o espetáculo da natureza ainda não tocada pela sabedoria, muitas
vezes perversa, do homem!
Vi o cordeiro, a quem foi dado este nome quase em reconhecimento da sua pureza e
bondade. Com efeito, o nome agnus deriva do fato que este animal agnoscit reconhece a
sua própria mãe e reconhece a sua voz no meio do rebanho, enquanto a mãe, entre
tantos cordeiros de idêntica forma e de idêntico balido, reconhece sempre e apenas o
seu filho, e alimenta-o. Vi a ovelha, que oris se diz ab oblatione, porque servia desde os
primeiros tempos para os ritos sacrificiais; a ovelha que, como é seu costume, ao chegar
o Inverno, procura a erva com avidez e se enche de forragem antes de os pastos serem
queimados pelo gelo. E os rebanhos eram vigiados pelos cães, assim chamados por canor
por causa do seu latido. Animal perfeito entre os outros, com dons superiores de
agudeza, o cão reconhece o seu próprio dono, e é adestrado para a caça às feras nos
bosques, para a guarda dos rebanhos contra os lobos, protege a casa e os filhos do seu
dono, e por vezes, em tais funções de defesa, encontra a morte. O rei Garamante, que
tinha sido feito prisioneiro pelos seus inimigos, foi reconduzido à pátria por uma matilha
de duzentos cães que abriram caminho no meio das fileiras adversárias; o cão de Jasão
Lício, depois da morte do dono, continuou a recusar a comida até morrer de inanição; o
do rei Lisímaco lançou-se na fogueira do próprio dono para morrer com ele. O cão tem o
poder de curar as feridas lambendo-as com a língua, e a língua dos seus cachorros pode
curar as lesões intestinais. Por natureza costuma utilizar duas vezes o mesmo alimento,
depois de o ter vomitado. Sobriedade que é símbolo de perfeição de espírito, tal como o
poder taumatúrgico da sua língua é símbolo da purificação dos pecados obtida através da
confissão e da penitência. Mas que o cão volte àquilo que vomitou é também sinal de
que, depois da confissão, se volta aos mesmos pecados de antes, e esta moralidade foime
bastante útil naquela manhã para admoestar o meu coração, enquanto admirava as
maravilhas da natureza.

Entretanto, os meus passos levavam-me para os estábulos dos bois, que estavam a sair
em grande número guiados pelos seus boieiros. Pareceram-me logo tal como eram e são,
símbolos de amizade e de bondade, porque cada boi no trabalho volta-se para procurar o
seu companheiro de arado, se por acaso ele, naquele momento, estiver ausente, e para
ele se volta com efetuosos mugidos. Os bois, obedientes, aprendem a voltar sozinhos ao
estábulo quando chove, e quando se abrigam na manjedoura estendem continuamente a
cabeça para olhar para fora a ver se o mau tempo cessou, porque aspiram a voltar ao
trabalho. E com os bois saíam, naquele momento, os vitelinhos, que, fêmeas e machos,
tiram o seu nome da palavra viriditas, ou mesmo de virgo, porque naquela idade eles são
ainda frescos, jovens e castos, e mal tinha feito e fazia, disse para comigo, em ver nos
seus movimentos graciosos uma imagem da rapariga não casta. Nestas coisas pensei,
reconciliado com o mundo e comigo mesmo, observando o alegre trabalho da hora
matutina. E não pensei mais na rapariga, ou melhor, esforcei-me por transformar o ardor
que sentia por ela num sentimento de alegria interior e de paz devota.
Disse para comigo que o mundo era bom e admirável. Que a bondade de Deus se
manifesta até nos animais mais horríveis, como explica Honório Augustoduniense. É
verdade, há serpentes tão grandes que devoram os cercos e nadam através dos oceanos,
e há a besta cenocroca, de corpo de burro, cornos de cabra-montês, peito e faces de
leão, pé de cavalo mas fendido como o do boi, um corte na boca que chega até às
orelhas, a voz quase humana e no lugar dos dentes um único sólido osso. E há a besta
mantícora, de rosto de homem, uma tripla ordem de dentes, corpo de leão, cauda de
escorpião, olhos glaucos, cor de sangue e voz semelhante ao sibilo das serpentes, ávida
de carne humana. E há monstros com oito dedos em cada pé, e focinhos de lobo, unhas
aduncas, pele de ovelha e latido de cão, que se tornam negros em vez de brancos com a
velhice, e excedem em muito a nossa idade. E há criaturas com olhos nos ombros e dois
furos no peito em vez de narinas, porque lhes falta a cabeça, e outras ainda que habitam
ao longo do rio Ganges, que vivem só do odor de um certo pomo, e morrem quando se
afastam dele. Mas mesmo todas estas bestas imundas cantam na sua variedade os
louvores do Criador e a sua sabedoria, como o cão, o boi, a ovelha, o cordeiro e o lince.

Como é grande, disse então para comigo, repetindo as palavras de Vicente Belovacense,
a mais humilde beleza deste mundo, e como é agradável aos olhos da razão considerar
atentamente não só os modos e os números e as ordens das coisas, tão decorosamente
estabelecidos por todo o universo, mas também o volver dos tempos que
incessantemente se enovelam através de sucessões e quedas, marcados pela morte
daquilo que nasceu. Confesso, como pecador que sou, com a alma ainda há pouco
prisioneira da carne, que fui movido então por espiritual doçura para com o criador e a
regra deste mundo, e admirei com jubilosa veneração a grandeza e a estabilidade da
criação.
Nesta boa disposição de espírito me encontrou o meu mestre quando, arrastado pelos
meus pés e sem dar conta, completado quase o périplo da abadia, me encontrei de novo
onde nos tínhamos deixado duas horas antes. Ali estava Guilherme, e o que me disse
distraiu-me dos meus pensamentos e fez-me volver de novo a mente para os tenebrosos
mistérios da abadia.
Guilherme parecia muito contente. Tinha na mão a folha de Venancio, que finalmente
tinha decifrado. Fomos para a sua cela, longe de ouvidos indiscretos, e ele traduziu-me
aquilo que tinha lido. Depois da frase em alfabeto zodiacal (secretum finis Africae manus
supra idolum age primum et septimum de quatuor), eis o que dizia o texto grego:
O veneno tremendo que dá a purificação...
A arma melhor para destruir o inimigo...
Usa as pessoas humildes vis e brutas, tira prazer do seu defeito... Não devemos
morrer.. Não nas casas dos nobres e dos poderosos mas das aldeias dos camponeses,
depois de abundante repasto e libações.. Corpos toscos, caras disformes.
Estupram virgens e deitam-se com meretrizes, não malvados, sem temor
Uma verdade diversa, uma diversa imagem da verdade...
As veneráveis figueiras.
A pedra desavergonhada rola pela planura... Sob os olhos.

É necessário enganar e surpreender enganando, dizer as coisas ao contrario do que se
acreditava, dizer uma coisa e entender outra.
Para eles as cigarras cantarão da terra.
Nada mais. Na minha opinião, demasiado pouco, quase nada. Pareciam os desvarios de
um demente, e disse-o a Guilherme.
- Podia ser. E parece sem dúvida mais demente do que era por causa da minha
tradução. Conheço o grego duma forma bastante aproximativa. E todavia, posto que
Venancio fosse louco, ou fosse louco o autor do livro, isto não nos diria porque é que
tantas pessoas, e nem todas loucas, tanto fizeram, primeiro para esconder o livro e
depois para o recuperar...
- Mas as coisas que estão escritas aqui provêm do livro misterioso?
- Trata-se sem dúvida de coisas escritas por Venancio. Vê-lo também tu, não se trata
de um pergaminho antigo. E devem ser notas tiradas ao ler o livro, senão Venancio não
teria escrito em grego. Ele recopiou certamente, abreviando-as, frases que encontrou no
volume subtraído ao finis Africae. Levou-o para o scriptorium e começou a lê-lo,
anotando aquilo que lhe parecia digno de nota. Depois aconteceu qualquer coisa. Ou se
sentiu mal, ou ouviu alguém subir. Então repôs o livro, com as notas, debaixo da mesa,
provavelmente prometendo-se retomá-lo na noite seguinte. Em todo o caso, é apenas
partindo desta folha que poderemos reconstruir a natureza do livro misterioso, e é só da
natureza daquele livro que será possível inferir a natureza do homicida. Porque em todo
o delito cometido para possuir o objeto, a natureza do objeto deveria fornecer-nos uma
idéia, embora pálida, da natureza do assassino. Se se mata por um punhado de ouro, o
assassino será pessoa ávida, se por um livro, o assassino estará ansioso por guardar para
si os segredos daquele livro. É preciso portanto saber o que diz o livro que nós não
temos.

- E vós sereis capaz, por estas poucas linhas, de compreender de que livro se trata?
- Querido Adso, estas parecem as palavras de um texto sagrado, cujo significado vai
para além da letra. Lendo-as esta manhã, depois de termos falado com o despenseiro,
impressionou-me o fato de também aqui se fazer referência aos simples e aos
camponeses como portadores de uma verdade diversa da dos sábios. O despenseiro
deixou compreender que alguma estranha cumplicidade o ligava a Malaquias. Que
Malaquias tivesse escondido algum perigoso texto herético que Remígio lhe tinha
entregado? Então Venancio teria lido e anotado alguma misteriosa instrução respeitante
a uma comunidade de homens rudes e vis em revolta contra tudo e todos. Mas...
- Mas?
- Mas dois fatos estão contra esta minha hipótese. Um é que Venancio não parecia
interessado em tais questões: era um tradutor de textos gregos, não um pregador de
heresias... O outro é que frases como a das Figueiras, da pedra ou das cigarras não
seriam explicadas por esta primeira hipótese...
- São talvez enigmas com outro significado - sugeri. - Ou tendes outra hipótese?
- Tenho, mas é ainda confusa. Parece-me, lendo esta página, já ter lido algumas
destas palavras, e voltam-me à mente frases quase semelhantes que vi algures. Pareceme
que esta folha fala de algo de que já se falou nos dias anteriores... mas não me
recordo o quê. Tenho de pensar nisso. Talvez tenha de ler outros livros.
- Como assim? Para saber o que diz um livro tendes de ler outros?
- Por vezes pode fazer-se assim. Muitas vezes os livros falam de outros livros.

Muitas
vezes um livro inócuo é como uma semente, que florescerá num livro perigoso, ou
inversamente, é o fruto doce de uma raiz amarga. Não poderias, lendo Alberto, saber o
que poderia ter dito Tomás? Ou, lendo Tomás, saber o que terá dito Averroes?
- É verdade - disse admirado. Até então tinha pensado que cada livro falava das
coisas, humanas ou divinas, que estão fora dos livros. Agora apercebia-me que, não raro,
os livros falam dos livros, ou melhor, é como se falassem entre si. À luz desta reflexão, a
biblioteca pareceu-me ainda mais inquietante. Era portanto o lugar de um longo e
secular sussurro, de um diálogo imperceptível entre pergaminhos e pergaminhos, uma
coisa viva, um receptáculo de poderes que uma mente humana não podia dominar,
tesouro de segredos emanados de tantas mentes, e sobrevivendo à morte daqueles que
os tinham produzido ou deles se tinham feito mensageiros – Mas então - disse - para que
serve esconder os livros, se dos livros patentes se pode remontar aos ocultos?

- No arco dos séculos não serve de nada. No arco dos anos e dos dias serve para
alguma coisa. De fato, vês como nós nos encontramos perdidos.
- E, assim, uma biblioteca não é um instrumento para distribuir a verdade, mas para
retardar a sua aparição? –perguntei espantado.
- Nem sempre e não necessariamente. Neste caso é.

QUARTO DIA

SEXTA

Onde Adso vai procurar trufas e encontra os menoritas a chegar na abadia, estes têm
um longo colóquio com Guilherme e Ubertino e se sabem coisas muito tristes sobre João
XXII.

Depois destas considerações, o meu mestre decidiu não fazer mais nada. Já disse que
tinha por vezes destes momentos de total falta de atividade, como se o ciclo incessante
dos astros tivesse parado, e ele com um e outros. Assim fez naquela manhã. Estendeu-se
no enxergão com os olhos abertos no vazio e as mãos cruzadas sobre o peito, movendo
apenas os lábios, como se recitasse uma oração, mas de modo irregular e sem devoção.
Pensei que ele pensava, e resolvi respeitar a sua meditação. Voltei ao pátio e vi que o
sol tinha enfraquecido. De bela e límpida que era, a manhã (enquanto o dia se preparava
para consumir a sua primeira metade) estava a tornar-se úmida e brumosa. Grossas
nuvens moviam-se de setentrião e estavam a invadir o cume do planalto, cobrindo-o de
uma camada ligeira. Parecia névoa, e talvez também subisse névoa da terra, mas àquela
altura, era difícil distinguir as brumas que vinham de baixo das que desciam do alto,
começava a ver-se com dificuldade a mole dos edifícios mais distantes.
Vi Severino, que reunia os porqueiros e alguns dos seus animais com alegria. Disse-me
que iam ao longo das faldas do monte, e ao vale, à procura de trufas. Eu não conhecia
ainda aquele fruto do fundo do bosque que crescia naquela península e parecia típico das
terras beneditinas, quer em Norcia – negro - quer naquelas terras - mais branco e
perfumado. Severino explicou-me o que era, e como era gostoso, preparado dos modos
mais variados. E disse-me que era dificílimo de encontrar, porque se escondia debaixo da
terra, mais secreto que um cogumelo, os únicos animais capazes de o encontrar,
seguindo o olfato, eram os porcos. Salvo que, mal o encontrassem, queriam devorá-lo, e
era preciso afastá-los logo e intervir para o desenterral. Soube depois que muitos gentishomens
não desdenhavam entregar-se àquela caça, seguindo os porcos como se fossem
sabujos muito nobres, e seguidos, por sua vez, pelos servos com as enxadas. Recordo até
que, alguns anos mais tarde, um senhor das minhas terras, sabendo que eu conhecia a
Itália, me perguntou como é que lá tinha visto senhores que levavam os porcos a pastar,
e eu ri compreendendo que, pelo contrário, andavam à procura de trufas. Mas como eu
disse àquele que estes senhores desejavam encontrar o «tar-tufo» debaixo da terra para
depois o comerem, aquele compreendeu que eu dizia que procuravam «der Teufel», ou
melhor, o diabo, e benzeu-se devotadamente olhando-me assombrado. Depois o equívoco
desfez-se, e rimo-nos ambos. Tal é a magia das falas humanas, que por humano acordo
significam muitas vezes, com sons iguais, coisas diversas.

Intrigado com os preparativos de Severino, decidi segui-lo, até porque compreendi que
ele se entregava àquela busca para esquecer os tristes casos que a todos oprimiam; e eu
pensei que, ajudando-o a esquecer os seus pensamentos, teria talvez, senão esquecido,
pelo menos refreado os meus. E não escondo, pois que decidi escrever sempre e só a
verdade, que, secretamente, me seduzia a idéia de que, descendo o vale, poderia talvez
entrever alguém que não digo. Mas a mim próprio e quase em voz alta afirmei pelo
contrário que, como naquele dia se esperava a chegada das duas delegações, poderia
talvez avistar uma.
À medida que se desciam as curvas do monte, o ar tornava-se mais claro; não que
voltasse o sol, que a parte superior do céu estava carregada de nuvens, mas as coisas
distinguiam-se nitidamente, porque a névoa permanecia sobre as nossas cabeças.
Melhor, tendo descido muito, voltei-me para olhar o cimo do monte, e não vi mais nada:
de metade da subida em diante, o cume da colina, o planalto, o Edifício, tudo
desaparecia entre as nuvens.
Na manhã da nossa chegada, quando já estávamos entre os montes, em certas curvas,
era ainda possível distinguir, a pouco mais de dez milhas e talvez menos, o mar. A nossa
viagem tinha sido rica de surpresas, porque, de repente, encontrávamo-nos como sobre
um terraço montanhoso que dava a pique para golfos belíssimos, e não muito depois
penetrava-se em gargantas profundas, onde montanhas se elevavam entre as montanhas,
e uma embotava à outra a vista da costa longínqua, enquanto o sol penetrava a custo no
fundo dos vales. Nunca como naquele lugar da Itália tinha visto tão estreitas e repentinas
interpenetrações de mar e montes, de litorais e paisagens alpinas, e no vento que
sibilava entre as gargantas podia perceber-se a luta alternada dos bálsamos marinhos e
dos gélidos sopros rupestres.

Naquela manhã, porém, tudo era cinzento e quase branco-leite. Não havia horizontes
mesmo quando as gargantas se abriam para as costas longínquas. Mas demoro-me em
recordações de pouco interesse para a história que nos preocupa, meu paciente leitor.
Assim, não falarei das sucessivas vicissitudes da nossa bisca dos «derteufel». E falarei
antes da delegação dos frades menores, que fui o primeiro a avistar, correndo
imediatamente para o mosteiro, para avisar Guilherme de sua chegada.
O meu mestre deixou que os recém-chegados entrassem e fossem saudados pelo Abade
segundo o rito. Depois foi ao encontro do grupo, e foi uma seqüência de abraços e de
saudações fraternas.
Já tinha passado a hora da refeição, mas haviam posto uma mesa para os hóspedes, e
o Abade teve a delicadeza de os deixar entre si e sozinhos com Guilherme, dispensados
dos deveres da regra, livres de se alimentarem e de trocarem ao mesmo tempo as suas
impressões: dado que afinal se tratava, Deus me perdoe a desagradável comparação,
como de um conselho de guerra a reunir-se o mais depressa possível antes que chegasse
o nosso inimigo, isto é, a delegação avinhonense.
É inútil dizer que os recém-chegados também se encontraram logo com Ubertino, que
todos saudaram com a surpresa, a alegria e a veneração que eram devidas à sua longa
ausência, e aos temores que tinham rodeado o seu desaparecimento, e às qualidades
daquele corajoso guerreiro que há décadas tinha caminhado com eles na mesma batalha.
Dos frades que compunham o grupo direi depois, falando da reunião do dia seguinte.
Até porque eu falei pouquíssimo com eles, preso como estava pelo conselho a três que se
estabeleceu imediatamente entre Guilherme, Ubertino e Miguel de Cesena.
Miguel devia ser um homem bem estranho: ardente na sua paixão franciscana (tinha
por vezes os gestos, as inflexões de Ubertino nos seus momentos de arrebatamento
místico); muito humano e jovial na sua natureza terrestre de homem das Romagne,
capaz de apreciar a boa mesa e feliz por se voltar a encontrar com os amigos; sutil e
evasivo, tornando-se de repente astuto e hábil como uma raposa, manhoso como uma
toupeira, quando se afloravam problemas de relações entre os poderosos; capaz de
grandes risadas, de fervidas tensões, de eloqüentes silêncios, hábil em desviar o seu
olhar do interlocutor quando a pergunta daquele exigia que se mascarasse, com a
distração, a recusa da resposta.
Dele já disse alguma coisa nas páginas precedentes, e eram coisas que tinha ouvido
dizer, mas por pessoas, que por sua vez, também tinham ouvido dizer. Agora, porém,
compreendia melhor muitas das suas atitudes contraditórias e as repentinas mudanças de
desígnio político com que nos últimos anos tinha espantado os seus próprios amigos e
sequazes. Ministro geral da ordem dos frades menores, era em princípio o herdeiro de
São Francisco, de fato o herdeiro dos seus intérpretes: devia competir com a santidade e
a sabedoria de um predecessor como Boaventura de Bagnoregio, devia garantir o
respeito da regra, mas ao mesmo tempo as fortunas da ordem, tão poderosa e vasta,
devia dar ouvidos às cortes e às magistraturas citadinas das quais a ordem obtinha, seja
embora sob a forma de esmolas, dons e legados, motivo de prosperidade e riqueza; e
devia, ao mesmo tempo, olhar a que a necessidade de penitência não arrastasse para
fora da ordem os espirituais mais acesos, dissolvendo aquela esplêndida comunidade, de
que era o chefe, numa constelação de bandos de hereges. Devia agradar ao papa, ao
império, aos frades de vida pobre, a São Francisco, que decerto o vigiava do céu, ao
povo cristão, que o vigiava da terra. Quando João tinha condenado todos os espirituais
como hereges, Miguel não tinha hesitado em entregar-lhe cinco entre os mais obstinados
frades da Provença, deixando que o pontífice os mandasse para a fogueira. Mas
percebendo (e não devia ter sido estranha a ação de Ubertino) que muitos na ordem
simpatizavam com os sequazes da simplicidade evangélica, tinha justamente agido de
modo que o capítulo de Perugia, quatro anos depois, fizesse suas as instâncias dos
queimados. Naturalmente, procurando reabsorver uma necessidade, que podia ser
herética, nos modos e nas instituições da ordem, e querendo que aquilo que a ordem
agora queria o quisesse também o papa. Mas, enquanto esperava convencer o papa, sem
cujo consenso não quereria prosseguir, não tinha desdenhado aceitar os favores do
imperador e dos teólogos imperiais. Ainda dois anos antes do dia em que o vi tinha
intimado os seus frades, no capítulo geral de Lião, a falar da pessoa do papa apenas com
moderação e respeito (e isto poucos meses depois de o papa ter falado dos menoritas
protestando contra «os seus latidos, os seus erros e as suas insânias»). Mas agora estava à
mesa, amicíssimo, com pessoas que do papa falavam com respeito menos que nulo.

O resto já o disse. João queria-o em Avinhão, ele queria e não queria ir, e o encontro
do dia seguinte deveria decidir sobre os modos e sobre as garantias de uma viagem que
não deveria aparecer como um ato de submissão nem, tão-pouco, como um ato de
desafio. Não creio que Miguel tivesse alguma vez encontrado João pessoalmente, pelo
menos desde que este era papa. Em todo o caso, não o via há muito tempo, e os seus
amigos apressavam-se a pintar-lhe com tintas muito negras a figura daquele simoníaco.
- Uma coisa terás de aprender - dizia-lhe Guilherme -, a não te fiar nos seus
juramentos, que ele mantém sempre à letra, violando-os na substancia.
- Todos sabem - dizia Ubertino - o que aconteceu no tempo da sua eleição...
- Não lhe chamaria eleição, mas sim imposição! - interveio um comensal, a quem ouvi
depois chamar Hugo de Newcastle, de inflexão afim à do meu mestre. - Entretanto, já a
morte de Clemente V nunca foi muito clara. O rei nunca lhe tinha perdoado por ter
prometido processar a memória de Bonifácio VIII, e depois ter feito tudo para não
desacreditar o seu predecessor. Como é que morreu em Carpentras, ninguém sabe bem.
O fato é que, quando os cardeais confluem a Carpentras para o conclave, dele não sai o
novo papa, porque (e justamente) a disputa se desloca para a escolha entre Avinhão e
Roma. Não sei bem o que sucedeu naqueles dias, um massacre, dizem-me, com os
cardeais ameaçados pelo sobrinho do papa morto, os seus servos trucidados, o palácio
pasto das chamas, os cardeais que apelam ao rei, este que diz que nunca quis que o papa
desertasse de Roma, que tenham paciência, e que façam uma boa escolha... Depois
Filipe, O Belo, morre, também ele sabe Deus como...

- Ou sabe-o o diabo - disse benzendo-se, imitado por todos, Ubertino.
- Ou sabe-o o diabo - admitiu Hugo escarninho. - Em suma, sucede-lhe outro rei,
sobrevive dezoito meses, morre, morre em poucos dias também o seu herdeiro recémnascido,
seu irmão, o regente, sobe ao trono...
- E é precisamente este Filipe V que, quando ainda era conde de Poitiers, tinha
voltado a reunir os cardeais que fugiam de Carpentras - disse Miguel.
- De fato - continuou Hugo - reúne-os em conclave em Lião, no convento dos
dominicanos, jurando defender a sua incolumidade e não os manter prisioneiros. Porém,
mal aqueles se põem à sua mercê, não só os manda fechar à chave (o que seria, afinal, o
justo costumes) mas diminui-lhes os alimentos dia a dia até que tomem uma decisão. E
promete a cada um apoiá-lo nas suas pretensões ao sólio. Quando depois sobe ao trono,
os cardeais, cansados de estarem prisioneiros há dois anos, com temor de ali
permanecerem mesmo toda a vida, comendo pessimamente, aceitam tudo, os glutões,
colocando na cátedra de Pedro aquele gnomo de mais de setenta anos...
- Gnomo decerto, sim - riu Ubertino -, e de aspecto tísico, mas mais robusto e mais
astuto que se julgava!

- Filho de sapateiro - resmungou um dos legados.
- Cristo era filho de carpinteiro! - repreendeu-o Ubertino. - Não é esse o fato. É um
homem culto, estudou leis em Montpellier e medicina em Paris, soube cultivar as suas
amizades dos modos mais apropriados para ter as sedes episcopais e o chapéu
cardinalício quando lhe parecia oportuno, e quando foi conselheiro de Roberto, O Sábio,
em Nápoles, espantou muitos com a sua agudeza. E como bispo de Avinhão deu todos os
conselhos justos (justos digo, para aquela esquálida empresa) a Filipe, O Belo, para
arruinar os Templários. E depois da eleição conseguiu fugir a um conluio de cardeais que
queriam matá-lo... Mas não é isto que queria dizer, falava da sua habilidade em trair os
juramentos sem poder ser inculpado de perjúrio. Quando foi eleito, e para ser eleito,
prometeu ao cardeal Orsini que havia de levar novamente a sede pontifícia para Roma, e
jurou sobre a hóstia consagrada que, se não mantivesse a sua promessa, nunca mais
montaria um cavalo ou mulo. Pois bem, sabeis o que fez aquela raposa? Quando se fez
coroar em Lião (contra a vontade do rei, que queria que a cerimônia tivesse lugar em
Avinhão), viajou depois de Lião a Avinhão de barco!
Os frades riram todos. O papa era um perjuro, mas não se lhe podia negar um certo
engenho.
- É um despudorado - comentou Guilherme. - Hugo não disse que não tentou sequer
esconder a sua má-fé! Não me contaste tu, Ubertino, aquilo que disse a Orsini no dia da
sua chegada a Avinhão?
- Decerto - disse Ubertino -, disse-lhe que o céu de França era tão belo que não via
porque devia pôr os pés numa cidade de ruínas como Roma. E que como o papa, tal como
Pedro, tinha o poder de ligar e de desligar, ele exercia agora esse poder, e decidia
permanecer ali onde estava e onde se encontrava tão bem. E como Orsini procurou
recordar-lhe que o seu dever era viver na colina vaticana, chamou-o severamente à
obediência, e cortou a discussão. Mas não acabou a história do juramento. Quando
desceu do barco, devia montar uma égua branca, seguido pelos cardeais em cavalos
negros, como manda a tradição. Mas, pelo contrário, foi a pé para o palácio episcopal. E
não me consta que, na verdade, tenha mais alguma vez montado a cavalo. E deste
homem tu, Miguel, esperas que se mantenha fiel às garantias que te der?

Miguel ficou longo tempo em silêncio. Depois disse:
- Posso compreender o desejo do papa de permanecer em Avinhão, e não o discuto.
Mas ele não poderá discutir o nosso desejo de pobreza e a nossa interpretação do
exemplo de Cristo.
- Não sejas ingênuo, Miguel - interveio Guilherme -, o vosso, o nosso desejo faz
aparecer o seu a uma luz sinistra. Tens de te dar conta que há séculos que nunca
ascenderá ao trono pontifício um homem mais ávido. As meretrizes de Babilônia contra
as quais bradava em tempos o nosso Ubertino, os papas corruptos de que falavam os
poetas do teu país, como o Alighieri, eram cordeiros mansos e sóbrios em confronto com
João. É uma pega ladra, um usurário hebreu, em Avinhão fazem-se mais trágicos que em
Florença! Soube da ignóbil transação com o sobrinho do Clemente, Bertrand de Goth, o
do massacre a Carpentras (em que, entre outras coisas, os cardeais foram aliviados de
todas as suas jóias): este tinha lançado a mão ao tesouro do tio, que não era pouca
coisa, e a João não tinha escapado nada daquilo que tinha roubado (na Cum venerabiles
enumera com precisão as moedas, os vasos de ouro e de prata, os livros, os tapetes, as
pedras preciosas, os ornamentos...) João, porém, fingiu ignorar que Bertrand tinha
lançado a mão a mais de um milhão e meio de florins de ouro durante o saque de
Carpentras, e discutiu outros trinta mil florins que Bertrand confessava ter recebido do
tio para «um propósito pio», isto é, para uma cruzada. Estabeleceu-se que Bertrand
ficaria com metade da soma para a cruzada e a outra metade iria para o solio pontifício.
Afinal Bertrand nunca fez a cruzada, ou pelo menos ainda não a fez e o papa não viu um
florim...
- Não é afinal assim tão hábil, então - observou Miguel.
- Foi a única vez que se deixou enganar em matéria de dinheiro - disse Ubertino. -
Deves saber bem com que raça de mercador tens de lidar. Em todos os outros casos tem
mostrado uma habilidade diabólica para juntar dinheiro. É um rei Midas, aquilo em que
toca torna-se ouro que aflui às caixas de Avinhão. De todas as vezes que entrei nos seus
aposentos encontrei banqueiros, cambistas de moeda, e mesas carregadas de ouro, e
clérigos que contavam e empilhavam florins uns sobre os outros... E verás que palácio
mandou construir, com riquezas que noutros tempos se atribuíam apenas ao imperador
de Bizâncio ou ao Grande Cão dos tártaros. E agora compreendes porque emitiu todas
aquelas bulas contra a idéia da pobreza? Mas sabes bem que impeliu os dominicanos,
pelo ódio à nossa ordem, a esculpirem estátuas de Cristo com a coroa real, túnica de
púrpura e ouro e calçado suntuoso? Em Avinhão foram expostos crucifixos com Jesus
pregado só por uma mão, enquanto com a outra toca numa bolsa presa à cintura, para
indicar que Ele autoriza o uso do dinheiro para fins de religião...
- Oh, o despudorado! - exclamou Miguel. - Mas isso é pura blasfêmia!
- Acrescentou - continuou Guilherme - uma terceira coroa à tiara papal, não é
verdade, Ubertino?

- Decerto. No início do milênio, o papa Hildebrando tinha adotado uma, tendo escrito
Corona regni de manu Dei, o infame Bonifácio tinha-lhe acrescentado recentemente uma
segunda, escrevendo nela Diadema imperii de manu Petrí, e João não fez mais que
aperfeiçoar o símbolo: três coroas, o poder espiritual, o temporal e o eclesiástico. Um
símbolo dos reis persas, um símbolo pagão...
Havia um frade que até então tinha permanecido em silêncio, ocupado com muita
devoção a engolir os bons pratos que o Abade tinha mandado levar para a mesa. Lançava
um ouvido distraído aos vários discursos, emitindo de vez em quando um riso sarcástico
dirigido ao pontífice, ou um grunhido de aprovação às interjeições de indignação dos
comensais. Mas, quanto ao resto, cuidava em limpar do queixo os molhos e os pedaços de
carne que deixava cair da boca desdentada mas voraz, e as únicas vezes que tinha
dirigido a palavra a um dos seus vizinhos tinha sido para louvar a qualidade de alguma
guloseima. Soube depois que era monsenhor Jerônimo, o bispo de Caffa, que Ubertino
dias antes julgava já defunto (e devo dizer que aquela idéia de que tinha morrido há dois
anos circulou como notícia verdadeira por toda a cristandade por muito tempo, porque a
ouvi mesmo depois; e, com efeito, morreu poucos meses depois daquele nosso encontro,
e continuo a pensar que terá falecido pela grande raiva que a reunião do dia seguinte lhe
terá metido no corpo: quase julguei que rebentasse súbita e imediatamente, tanto era
frágil de corpo e bilioso de humor).
Intrometeu-se naquele ponto no discurso, falando com a boca cheia:
- E, depois, sabeis que o infame elaborou uma constituição sobre as taxae sacrae
paenitentiariae, onde especula sobre os pecados dos religiosos para daí tirar mais
dinheiro. Se um eclesiástico comete pecado carnal, com uma monja, com uma parente,
ou mesmo com uma mulher qualquer (porque também isto sucede!), apenas poderá ser
absolvido pagando sessenta e sete libras de ouro e doze soldos. E se cometer
bestialidades serão mais de duzentas libras, mas se as cometer só com crianças ou
animais, e não com fêmeas, a multa será reduzida cem libras. E uma monja que se tenha
entregado a muitos homens, seja ao mesmo tempo seja em momentos diversos, fora ou
dentro do convento, e depois queira ser abadessa, deverá pagar cento e trinta e uma
libras de ouro e quinze soldos...

- Vamos, monsenhor Jerônimo - protestou Ubertino -, sabeis que amo pouco o papa,
mas sobre isso devo defendê-lo! É uma calúnia posta a circular em Avinhão, nunca vi essa
constituição!
- Existe - afirmou vigorosamente Jerônimo. - Tão-pouco eu a vi, mas existe.
Ubertino abanou a cabeça, e os outros calaram-se. Apercebi-me que estavam
habituados a não levar demasiado a sério monsenhor Jerônimo, que no outro dia
Guilherme tinha definido como sendo um tolo. Guilherme em todo o caso, procurou
retomar a conversação:
- De qualquer maneira, quer seja verdadeiro ou falso, esse rumor diz-nos qual é o
clima moral de Avinhão, onde qualquer um, explorados e exploradores, sabe que vive
mais num mercado do que na corte de um representante de Cristo. Quando João subiu ao
trono falava-se de um tesouro de setenta mil florins de ouro, e agora há quem diga que
terá amontoado mais de dez milhões.
- É verdade - disse Ubertino. - Miguel, Miguel, não sabes que vergonhas fui obrigado a
ver em Avinhão!
- Procuremos ser honestos - disse Miguel. - Sabemos que os nossos também cometeram
excessos. Tive notícias de franciscanos que atacavam com armas os conventos
dominicanos e desnudavam os frades inimigos para lhes imporem a pobreza... É por isso
que não ousei opor-me a João no tempo dos casos da Provença... Quero chegar a um
acordo com ele, não humilharei o seu orgulho, pedir-lhe-ei apenas que não humilhe a
nossa humildade. Não lhe falarei de dinheiro, pedir-lhe-ei apenas que condescenda com
uma sã interpretação das Escrituras. E é o que deveremos fazer com os seus legados,
amanhã. Ao fim e ao cabo, são homens de teologia, e nem todos serão rapaces como
João. Quando homens sábios tiverem deliberado sobre uma interpretação das Escrituras,
ele não poderá...
- Ele? - interrompeu Ubertino. - Mas tu não conheces ainda as suas loucuras no campo
teológico. Ele quer ligar verdadeiramente tudo pela sua mão, no céu e na terra. Na terra
vimos o que faz, Quanto ao céu.. Pois bem, ele ainda não exprimiu as idéias que te digo,
não publicamente pelo menos, mas eu sei de fonte segura que murmurou com os seus
fiéis. Ele está a elaborar algumas proposições loucas, se não perversas, que mudariam a
própria substancia da doutrina e tirariam toda a força à nossa pregação!

- Quais? - perguntaram muitos.
- Perguntai a Berengário, ele sabe-o, foi ele que me falou disso.
Ubertino tinha-se voltado para Berengário Talloni, que tinha sido nos últimos anos um
dos mais decididos adversários do pontífice na sua própria corte. Vindo de Avinhão,
tinha-se reunido há dois anos ao grupo dos outros franciscanos, e com eles tinham
chegado à abadia.
- É uma história obscura e quase incrível - disse Berengário. – Pois bem, parece
portanto que João tem em mente defender que os justos não gozarão da visão beatífica
senão depois do Juízo. Há bastante tempo que está refletindo sobre o versículo nove do
capítulo sexto do Apocalipse, lá onde se fala da abertura do quinto selo: onde aparecem
sob o altar aqueles que foram mortos por testemunharem a palavra de Deus e pedem
justiça. A cada um é dada uma veste branca pedindo-lhes que tenham um pouco mais de
paciência... Sinal, argumenta João, que eles não poderão ver Deus na sua essência senão
ao cumprir-se o Juízo Final.
- Mas quem disse essas coisas? - perguntou Miguel aterrado.
- Até agora a poucos íntimos, mas a voz espalhou-se, dizem que está a preparar uma
intervenção aberta, não de imediato, talvez dentro de alguns anos, está consultando os
seus teólogos...
- Ah! Ah! - troçou Jerônimo mastigando.
- Não somente, parece que quer ir mais longe e defender que o inferno também não
será aberto antes daquele dia... Nem sequer para os demônios.
- Jesus Senhor, ajuda-nos! – exclamou Jerônimo. - E que contaremos então aos
pecadores se não podemos ameaça-los com um inferno imediato, logo após a morte?!
- Estamos nas mãos de um louco - disse Ubertino. - Mas não compreendo porque quer
defender essas coisas...
- Desfaz-se em fumo toda a doutrina das indulgências – lamentou Jerônimo -, e nem
mesmo ele poderá vender mais. Porque é que um padre que tenha pecado por
bestialidade deve pagar tantas libras de ouro para evitar um castigo remoto?
- Não tão remoto como isso - disse com força Ubertino -, os tempos estão próximos!
- Sabe-lo tu, caro irmão, mas os simples não o sabem. Eis como estão as coisas! –
gritou Jerônimo, que já não tinha o ar de se deleitar com a sua própria comida. - Que
idéia nefasta, devem ter-lha metido na cabeça esses frades pregadores... Ah! – e abanou
a cabeça.

- Mas porquê? - repetiu Miguel de Cesena.
- Não creio que haja uma razão - disse Guilherme. - É uma prova que ele se concede,
um ato de orgulho. Quer ser verdadeiramente aquele que decide pelo céu e pela terra.
Sabia desses rumores, tinha-mo escrito Guilherme de Occam. Veremos no fim se levará a
melhor o papa ou se levarão a melhor os teólogos, a voz de toda a Igreja, os próprios
desejos do povo de Deus, os bispos...
- Oh, em matérias doutrinais ele poderá dobrar até os teólogos - disse Miguel, triste.
- Não se sabe - respondeu Guilherme. - Vivemos em tempos em que os sábios em
coisas divinas não têm receio de proclamar que o papa é um herege. Os sábios em coisas
divinas são, a seu modo, a voz do povo cristão. Contra o qual já nem o próprio papa
poderá ir.
- Pior, pior ainda - murmurou Miguel assustado. - De um lado um papa louco, do outro
o povo de Deus, que, seja embora pela boca dos seus teólogos, pretenderá dentro em
pouco interpretar livremente as Escrituras...
- Porquê, que fizestes vós de diferente em Perugia? – perguntou Guilherme.
Miguel estremeceu como picado ao vivo:
- Por isso quero encontrar-me com o papa. Nada podemos nós sobre aquilo com que
também ele não concordar.
- Veremos, veremos - disse Guilherme de modo enigmático.
O meu mestre era na verdade muito perspicaz. Como é que conseguia prever que o
próprio Miguel havia depois de decidir apoiar-se nos teólogos do império e no povo para
condenar o papa? Como é que conseguia prever que, quando, quatro anos depois, João
havia de enunciar pela primeira vez a sua incrível doutrina, haveria sublevação por parte
de toda a cristandade? Se a visão beatífica era retardada a esse ponto, como é que
poderiam os defuntos interceder pelos vivos? E onde iria parar o culto dos santos?
Precisamente os menoritas haviam de iniciar as hostilidades condenando o papa, e
Guilherme de Occam havia de estar na primeira fila, severo e implacável nas suas
argumentações. A luta havia de durar três anos, até que João, já próximo da morte,
faria uma parcial emenda. Ouvi descrevê-lo anos depois, como apareceu no consistório
de Dezembro de 1334, mais pequeno do que jamais tinha parecido até então, ressequido
pela idade, monagenário e moribundo, de rosto pálido, e teria dito (a raposa, tão hábil
em jogar com as palavras não só para violar os seus próprios juramentos mas também
para renegar as suas próprias obstinações): «Nós confessamos e cremos que as almas
separadas do corpo e completamente purificadas estão no céu, no paraíso com os anjos e
com Jesus Cristo, e que elas vêem Deus na sua divina essência, claramente e face a
face...», e depois, com uma pausa, nunca ninguém soube se devida à dificuldade da
respiração ou à vontade perversa de sublinhar a última cláusula como adversativa, «na
medida em que o estado e a condição da alma separada o permita.» Na manhã seguinte,
era domingo, fez-se instalar numa cadeira de encosto e, de costas reclinadas, acolheu o
beija-mão dos seus cardeais e morreu.

Mas novamente divago, e conto coisas diferentes das que devia contar. Também
porque, no fundo, o resto daquela conversação à mesa não acrescenta muito à
compreensão das vicissitudes que narro. Os menoritas concordaram sobre a atitude a
manter no dia seguinte. Pesaram um a um os seus adversários. Comentaram com
preocupação a notícia, dada por Guilherme, da chegada de Bernardo Gui. E ainda mais o
fato de que a presidir à delegação avinhonense estaria o cardeal Bertrando do Poggetto.
Dois inquisidores eram de mais: sinal de que se queria usar contra os menoritas o
argumento da heresia.
- Tanto pior - disse Guilherme -, nós tratá-los-emos de hereges a eles.
- Não, não - disse Miguel -, procedamos com cautela, não devemos comprometer
nenhum acordo possível.
- Pelo que consigo pensar - disse Guilherme -, embora tendo trabalhado para a
realização deste encontro, e tu bem o sabes, Miguel, não creio que os avinhonenses
venham aqui para obter algum resultado positivo. João quer-te em Avinhão sozinho e
sem garantias. Mas o encontro terá ao menos uma função: fazer-te compreender isto.
Teria sido pior se tu tivesses ido antes de ter esta experiência.
- Assim, tu esforçaste-te, e durante muitos meses, para realizar uma coisa que crês
inútil - disse amargamente Miguel.
- Tinha-me sido pedido, por ti e pelo imperador – disse Guilherme. - E, enfim, nunca é
inútil conhecer melhor os próprios inimigos.
Naquela altura vieram avisar-nos que estava a entrar nas muralhas a segunda
delegação. Os menoritas levantaram-se e foram ao encontro dos homens do papa.

QUARTO DIA

NONA

Onde chegam o cardeal do Poggetto, Bernardo Gui e os outros homens de Avinhão, e
depois cada um faz coisas diversas.

Homens que já se conheciam há bastante tempo, homens que sem se conhecerem
tinham ouvido falar uns dos outros saudavam-se no pátio com aparente benevolência. Ao
lado do Abade, o cardeal Bertrando do Poggetto movia-se como quem tem familiaridade
com o poder, como se fosse ele próprio um segundo pontífice, e distribuía a todos,
especialmente aos menoritas, cordiais sorrisos, auspiciando maravilhas de entendimento
para o encontro do dia seguinte, e transmitindo explicitamente os votos de paz e de
felicidade (usou intencionalmente esta expressão cara aos franciscanos) da parte de João
XXII.
- Muito bem, muito bem - disse-me, quando Guilherme teve a bondade de me
apresentar como seu escrivão e discípulo.
Depois perguntou-me se conhecia Bolonha, e louvou-me a sua beleza, a boa comida e
a esplêndida universidade, convidando-me a visitá-la, em vez de voltar um dia. disse-me,
para as minhas gentes alemãs, que tanto estavam fazendo sofrer o papa nosso senhor.
Depois deu-me o anel a beijar, quando já dirigia o seu sorriso para outro qualquer.
Por outro lado, a minha atenção voltou-se logo para o personagem de que mais tinha
ouvido falar naqueles dias: Bernardo Gui, como lhe chamavam os franceses, ou Bernardo
Guidoni ou Bernardo Guido, como lhe chamavam noutros lugares.
Era um dominicano de cerca de setenta anos, frágil mas direito de figura.
Impressionaram-me os seus olhos cinzentos, frios, capazes de fixar sem expressão, em
que muitas vezes, porém, havia de ver bailar lampejos equívocos, hábil tanto em ocultar
pensamentos e paixões como em exprimi-los de propósito.
Na troca geral das saudações, não foi como os outros afetuoso ou cordial, mas sempre
e apenas cortês. Quando viu Ubertino, que já conhecia, foi muito diferente com ele, mas
fixou-o de modo tal que provocou em mim um estremecimento de inquietação. Quando
saudou Miguel de Cesena, teve um sorriso difícil de decifrar, e murmurou sem calor: «Lá
em baixo esperam-vos há muito tempo», frase em que não consegui colher nem um
aceno de ansiedade, nem uma sombra de ironia, nem uma injunção, nem por outro lado,
uma réstea de interesse. Encontrou-se com Guilherme, e, logo que soube quem era,
olhou-o com educada hostilidade: mas não porque o rosto traísse os seus sentimentos
secretos, tinha a certeza (embora não tivesse a certeza se ele jamais nutria sentimento
algum), mas porque certamente queria que Guilherme o sentisse hostil. Guilherme
devolveu a sua hostilidade sorrindo-lhe de modo exageradamente cordial dizendo-lhe:

- Há bastante tempo que desejava conhecer um homem cuja fama me serviu de lição
e de aviso para muitas importantes decisões que inspiraram a minha vida.
Sentença sem dúvida elogiosa e quase aduladora para quem não soubesse, como
porém Bernardo bem sabia, que uma das decisões mais importantes da vida de
Guilherme tinha sido a de abandonar o ofício de inquisidor, fiquei com a impressão de
que, se Guilherme veria de boa vontade Bernardo nalguma masmorra imperial, Bernardo
veria certamente com agrado Guilherme colhido de morte acidental e súbita; e, como
Bernardo tinha sob o seu próprio comando naqueles dias homens de armas, temi pela
vida do meu bom mestre.
Bernardo já devia ter sido informado pelo Abade acerca dos delitos cometidos na
abadia. De fato, fingindo não captar o veneno contido na frase de Guilherme, disse-lhe:
- Parece que nestes dias, a pedido do Abade, e para cumprir a tarefa que me foi
confiada nos termos do acordo que nos vê aqui reunidos, terei de me ocupar de casos
tristíssimos em que se percebe o pestífero odor do demônio. Falo-vos disso porque sei
que em tempos remotos, em que estaríeis mais próximo de mim, também vós a meu
lado... e ao lado dos que são como eu... vos batestes no campo que via travar a batalha
das fileiras do bem contra as fileiras do mal.
- De fato - disse calmamente Guilherme -, mas depois eu passei para o outro lado.
Bernardo agüentou valentemente o golpe:
- Podeis dizer-me alguma coisa de útil sobre estas coisas delituosas?
- Infelizmente não - respondeu urbanamente Guilherme. - Não tenho a vossa
experiência em coisas delituosas.
A partir daquele momento perdi o rasto de uns e de outros. Guilherme, depois de
outra conversa com Miguel e Ubertino, retirou-se para o scriptorium. Pediu a Malaquias
para poder examinar certos livros, e não cheguei a ouvir-lhes o título. Malaquias olhou-o
de modo estranho, mas não pôde negar-lhos. Caso curioso, não teve de os procurar na
biblioteca, já estavam todos na mesa de Venancio. O meu mestre mergulhou na leitura,
e decidi não o perturbar.
Desci à cozinha. Ali vi Bernardo Gui. Talvez quisesse dar-se conta da disposição da
abadia, e andava por todo o lado. Ouvi-o interrogar os cozinheiros e outros servos,
falando de qualquer maneira a língua vulgar do lugar (recordei-me que tinha sido
inquisidor na Itália Setentrional). Pareceu-me que pedia informações do trabalho no
mosteiro. Mas, mesmo fazendo as perguntas mais inocentes, olhava o seu interlocutor
com olhos penetrantes, depois fazia de repente outra pergunta, e nessa altura a sua
vítima empalidecia e gaguejava. Concluí que, de algum modo singular, ele estava
inquirindo, e valia-se de uma arma formidável que todo o inquisidor no exercício da sua
função possui e manobra: o medo do outro. Porque, em geral, todo o inquirido diz ao
inquisidor, com medo de ser suspeito de alguma coisa, aquilo que pode servir para tornar
suspeito qualquer outro.
Durante todo o resto da tarde, à medida que me movia, vi Bernardo proceder assim,
quer junto dos moinhos quer no claustro. Mas quase nunca abordou monges, nem sequer
frades laicos ou camponeses. Ao contrário do que até então tinha feito Guilherme.

QUARTO DIA

VÉSPERAS

Onde Alinardo parece dar informações preciosas e Guilherme revela o seu método
para chegar a uma verdade provável através de uma série de seguros erros.

Mais tarde, Guilherme desceu do scriptorium de bom humor. Enquanto esperávamos
que chegasse a hora da ceia, encontramos Alinardo no claustro. Recordando o seu
pedido, desde o dia anterior que tinha arranjado grãos-de-bico na cozinha, e oferecilhos.
Agradeceu-me, enfiando-os na boca desdentada e babosa.
- Viste rapaz - disse-me -, o outro cadáver também jazia lá onde o livro o anunciava...
Espera agora a quarta trombeta!
Perguntei-lhe porque é que pensava que a chave para a seqüência dos crimes estava
no livro da revelação. Olhou-me espantado:
- O livro de João oferece a chave de tudo! - E acrescentou com um trejeito de rancor:
- Eu sabia-o, eu dizia-o há muito tempo... Fui eu, sabes, a propor ao Abade... ao de
então, que recolhesse o maior número de comentários ao Apocalipse que fosse possível.
Eu devia vir a ser bibliotecário... Mas depois o outro conseguiu que o mandassem a Silos,
onde encontrou os manuscritos mais belos, e voltou com uma bagagem esplêndida... Oh,
ele sabia onde procurar, falava até a língua dos infiéis... E assim ele recebeu a guarda da
biblioteca, e não eu. Mas Deus puniu-o, e fê-lo entrar antes do tempo no reino das
trevas. Ah, ah... - riu com maldade aquele velho que até então me tinha parecido,
imerso na serenidade dos seus cabelos brancos, semelhante a um menino inocente.
- Quem era esse de quem falais - perguntou Guilherme.
Olhou para nós atônito.
- De quem falava? Não me recordo... Foi há muito tempo. Mas Deus castiga, Deus
apaga, Deus ofusca até as recordações. Muitos atos de orgulho foram cometidos na
biblioteca. Especialmente desde que caiu na mão dos estrangeiros. Deus castiga ainda...
Não conseguimos arrancar-lhe mais palavras e abandonamo-lo ao seu quedo e
rancoroso delírio. Guilherme declarou-se muito interessado por aquele solilóquio:
- Alinardo é um homem a escutar, de cada vez que fala diz qualquer coisa de
interessante.
- Que disse desta vez?
- Adso - disse Guilherme -, resolver um mistério não é a mesma coisa que deduzir de
princípios primeiros. E não equivale sequer a recolher muitos dados particulares para
depois inferir deles uma lei geral. Significa antes encontrar-se diante de um, dois ou três
dados particulares, que aparentemente não têm nada em comum, e procurar imaginar se
podem ser outros tantos casos de uma lei geral que não conheces ainda e que talvez
nunca tenha sido enunciada. Decerto, se sabes, como diz o filósofo, que o homem, o
cavalo e o mulo são todos sem fel e todos vivem muito tempo, podes tentar enunciar o
princípio pelo qual os animais sem fel vivem muito tempo. Mas imagina o caso dos
animais com cornos. Porque é que têm cornos? Repentinamente apercebes-te de que
todos os animais com cornos não têm dentes na mandíbula superior. Seria uma bela
descoberta, se não te desses conta de que, infelizmente, há animais sem dentes na
mandíbula superior e que todavia não têm cornos, como o camelo. Finalmente
apercebes-te que todos os animais sem dentes na mandíbula superior têm dois
estômagos. Bem, podes imaginar que quem não tem dentes suficientes mastiga mal e,
portanto, tem necessidade de dois estômagos para poder digerir melhor a comida. Mas os
cornos? Então tentas imaginar uma causa material dos cornos, pela qual a falta de dentes
prevê o animal com um excesso de matéria óssea que tem de despontar em qualquer
outro sitio. Mas é uma explicação suficiente? Não, porque o camelo não tem dentes
superiores, tem dois estômagos, mas não tem cornos. E então tens de imaginar também
uma causa final. A matéria óssea exterioriza-se em cornos apenas nos animais que não
têm outros meios de defesa. O camelo, pelo contrário, tem uma pele duríssima e não
tem necessidade de cornos. Então, a lei poderia ser...
- Mas que vêm aqui fazer os cornos? - perguntei com impaciência -, e porque vos
ocupais de animais com cornos?
- Eu nunca me ocupei disso, mas o bispo de Lincoln ocupou-se muito, seguindo uma
idéia de Aristóteles. Honestamente, eu não sei se as razões que encontrou são boas, e
nunca controlei onde é que o camelo tem os dentes e quantos estômagos tem: mas era
para te dizer que a procura das leis explicativas, nos fatos naturais, procede de modo
tortuoso. Diante de alguns fatos inexplicáveis, tu deves tentar imaginar muitas leis
gerais, cuja conexão com os fatos de que te ocupas não vês ainda: e, de repente, na
conexão imprevista de um resultado, um caso e uma lei, perfila-se a teus olhos um
raciocínio que te parece mais convincente que os outros. Tentas aplicá-lo a todos os
casos semelhantes, usá-lo para dele extrair previsões, e descobres que tinhas adivinhado.
Mas, até ao fim, nunca saberás quais os predicados a introduzir no teu raciocínio e quais
deixar cair. E assim faço eu agora. Alinho uns tantos elementos desconexos e imagino
hipóteses. Mas tenho de imaginar muitas, e muitas delas são tão absurdas que me
envergonharia de tas dizer. Vês, no caso do cavalo Brunello, quando vi as marcas, eu
imaginei muitas hipóteses complementares e contraditórias: podia ser um cavalo em
fuga, podia ser que naquele belo cavalo o Abade tivesse descido ao longe do declive,
podia ser que um cavalo Brunello tivesse deixado os sinais sobre a neve e um outro
cavalo Favello, no dia anterior, as crinas no arbusto, e que os ramos tivessem sido
quebrados por homens. Eu não sabia qual era a hipótese certa enquanto não vi o
despenseiro e os servos, que procuravam com ânsia. Então compreendi que a hipótese de
Brunello era a única boa, e procurei provar se era verdadeira, apostrofando os monges
como fiz. Venci, mas podia também ter perdido. Os outros julgaram-me sábio porque
venci, mas não conheciam os numerosos casos em que fui estulto porque perdi, e não
sabiam que, poucos segundos antes de vencer, eu não tinha a certeza de não perder.

Ora, sobre os casos da abadia, tenho muitas e belas hipóteses, mas não há nenhum fato
evidente que me permita dizer qual é a melhor. E então, para depois não parecer tolo,
renuncio a parecer astuto agora. Deixa-me ainda pensar, até amanhã, ao menos.
Compreendi naquele momento qual era o modo de raciocinar do meu mestre, e
pareceu-me bastante dissimil do do filósofo que raciocina sobre os princípios primeiros,
de modo que o seu intelecto assume quase os modos do intelecto divino. Compreendo
que, quando não tinha resposta, Guilherme se propunha muitas e muito diferentes entre
si. Fiquei perplexo.
- Mas então - ousei comentar - estais ainda longe da solução...
- Estou pertíssimo - disse Guilherme -, mas não sei de qual.
- Então não tendes uma única resposta às vossas perguntas?
- Adso, se a tivesse ensinaria teologia em Paris.
- Em Paris têm sempre a resposta verdadeira?
- Nunca - disse Guilherme -, mas estão muito seguros dos seus erros.
- E vós - disse com infantil impertinência - nunca cometeis erros?
- Freqüentemente - respondeu. - Mas, em vez de conceber um só, imagino muitos,
assim não me torno escravo de nenhum.

Tive a impressão de que Guilherme não estava de modo nenhum interessado na
verdade, que mais não é que a adequação entre a coisa e o intelecto. Ele, pelo
contrário, divertia-se a imaginar o maior número de possíveis que fosse possível.
Naquele momento, confesso, desesperei do meu mestre, e surpreendi-me a pensar:
«Ainda bem que chegou a inquisição.» Tomei partido pela sede de verdade que animava
Bernardo Gui.
E com estas culpáveis disposições de espírito, mais perturbado que Judas na noite de
Quinta-Feira Santa, entrei com Guilherme no refeitório para consumir a ceia.

QUARTO DIA

COMPLETAS

Onde Salvador fala de uma magia portentosa.

A ceia para a delegação foi soberba. O Abade devia conhecer muito bem não só as
fraquezas dos homens mas também os usos da corte papal (que não desagradaram, devo
dizê-lo, sequer aos menoritas de frei Miguel). Com os porcos mortos há pouco, devia
haver chouriço de sangue à moda de Montecassino, disse-nos o cozinheiro. Mas o
desgraçado fim de Venancio tinha obrigado a deitar fora todo o sangue dos porcos,
enquanto não se procedesse a degolar mais. Além disso, creio que naqueles dias
repugnava a todos matar criaturas do Senhor. Mas tivemos estufado de borrachinhos,
marinados no vinho daquelas terras, e coelho assado, pãezinhos de Santa Clara, arroz
com amêndoas daqueles montes, ou seja, o manjar-branco das vigílias, folhas tostadas
de borragem, azeitonas recheadas, queijo frito, carne de ovelha com molho cru de
pimentas, favas brancas, e doçarias requintadas, doce de São Bernardo, pastéis de São
Nicolau, olhinhos de Santa Luzia, e vinhos, e licores de ervas que puseram de bom humor
o próprio Bernardo Gui, habitualmente tão austero: licor de citronela, miolo de noz,
vinho contra a gota e vinho de genciana. Parecia uma reunião de glutões, se cada gole ou
cada bocado não fosse acompanhado de devotas leituras.

No fim, todos se levantaram muito alegres, alguns alegando vagos mal-estares para
não descerem a completas. Mas o Abade não se ofendeu. Nem todos têm o privilégio e as
obrigações que resultam de se ter consagrado à nossa ordem.
Enquanto os monges se encaminhavam, demorei-me, curioso, pela
cozinha, onde estavam a preparar-se para o fecho noturno. Vi Salvador, que se
escapulia para o horto com um embrulho no braço. Intrigado, segui-o e chamei-o. Ele
procurou esquivar-se, depois, às minhas perguntas, respondeu que levava no embrulho
(que se movia como habitado por coisa viva) um basilisco.
- Cave basilischium! Est lo reys das serpentes, tant pleno de veneno que lhe reluz todo
por fora! Que dictam, o veneno, o fedor vem-lhe para fora que te mata! Intoxica-te... Et
tem manchas brancas no dorso, et caput como galo, et metade vai direita sopre a terra
et metade vai por terra como as outras serpentes. E mata-o a bellula...
- A bellula?
- Oc! Bestiola parvissima est, mais comprida alguma coisa que o rato, et odeia-a o rato
muchissimo. E assim a serpente et o sapo. Et quando eles a mordem, a bellula corre à
fenícula ou à circerbita et a mordisca, et redet ad bellum. Et dicunt que engendra pelos
oculi, mas os mais dizem que eles dizem falso.
Perguntei-lhe que fazia com um basilisco, e disse que eram assuntos seus. Disse-lhe, já
picado pela curiosidade, que naqueles dias, com todos aqueles mortos, já não havia
assuntos secretos, e que falaria nisso a Guilherme. Então Salvador implorou-me
ardentemente que me calasse, abriu o embrulho e mostrou-me um gato de pêlo negro.
Puxou-o para o pé de si e disse-me com um sorriso obsceno que não queria mais que o
despenseiro ou eu, porque éramos um poderoso e o outro jovem e belo, pudéssemos ter
o amor das raparigas da aldeia e ele não, porque era feio e pobretana. Que conhecia
uma magia absolutamente portentosa para fazer cair qualquer mulher nas malhas do
amor. Era preciso matar um gato preto e arrancar-lhe os olhos, depois metê-los dentro
de dois ovos de galinha preta, um olho num ovo, um olho no outro (e mostrou-me dois
ovos que me assegurou ter tirado das galinhas certas). Depois era necessário pôr os ovos
a apodrecer dentro de um montão de esterco de cavalo (e tinha apontado um
precisamente num cantinho do horto onde nunca passava ninguém), e dali nasceria por
cada ovo, um diabinho, que depois se poria ao seu serviço proporcionando-lhe todas as
delícias deste mundo. Mas, infelizmente, disse-me, para que a magia resultasse era
necessário que a mulher cujo amor queria cuspisse nos ovos antes de serem enterrados
no esterco, e aquele problema angustiava-o, porque era preciso ter ao lado, naquela
noite, a mulher em questão, e fazer-lhe fazer o seu ofício sem ela saber para que servia.

Fui tomado por um súbito ardor na cara, ou nas vísceras, ou em todo o corpo, e
perguntei com um fio de voz se naquela noite tinha levado para a cerca a rapariga da
noite anterior. Ele riu, troçando de mim, e disse que eu estava mesmo preso por um
grande cio (eu disse que não, perguntava por pura curiosidade), e depois disse-me que
na aldeia mulheres havia muitas, e que tinha levado uma outra, ainda mais bela que
aquela de que eu gostava. Eu supus que me mentia para me afastar dele. E por outro
lado, que podia eu fazer? Segui-lo durante toda a noite quando Guilherme me esperava
para empresas bem diversas? E voltar a ver aquela (se acaso dela se tratava) para quem
os meus apetites me impeliam enquanto a minha razão dela me desviava - e que não
devia ver nunca mais ainda que desejasse sempre vê-la outra vez? Decerto não. E, assim,
convenci-me a mim mesmo que Salvador dizia a verdade, naquilo que dizia respeito à
mulher. Ou que mentia talvez sobre tudo, que a magia de que falava era uma fantasia da
sua mente ingênua e supersticiosa, e que não faria nada disso.

Irritei-me com ele, tratei-o rudemente, disse-lhe que naquela noite teria feito melhor
em ir dormir, porque os archeiros circulavam na cerca. Ele respondeu que conhecia a
abadia melhor que os archeiros, e que, com aquele nevoeiro, ninguém veria ninguém.
Mais, disse-me, agora eu escapo-me, e nem sequer tu me verás mais, ainda que estivesse
ali a dois passos a divertir-me com a rapariga que desejas. Ele exprimiu-se com outras
palavras, bastante mais ignóbeis, mas este era o sentido daquilo que dizia. Afastei-me
indignado, porque não era próprio de um ser como eu, nobre e noviço, meter-me em
despique com aquela canalha.
Fui ter com Guilherme, e fizemos aquilo que se devia. Isto é, dispusemo-nos a seguir
completas, ao fundo da nave, de modo que quando o ofício acabou estávamos prontos
para empreender a nossa segunda viagem (terceira para mim) nas vísceras do labirinto.

QUARTO DIA

DEPOIS DE COMPLETAS

Onde se visita de novo o labirinto, se chega ao limiar do finis Africae mas não se pode aí entrar porque não se sabe o que são o primeiro e o sétimo dos quatro e por fim Adso tem uma recaída, aliás bastante douta, no seu mal de amor.

A visita à biblioteca levou-nos longas horas de trabalho. A falar, o controle que
devíamos fazer era fácil, mas caminhar à luz da candeia, ler as inscrições, assinalar no
mapa as passagens e as paredes plenas, registrar as iniciais, perfazer os vários percursos
que o jogo das aberturas e das barreiras nos permitia foi coisa bastante longa. E
fastidiosa.
Estava muito frio. A noite não era ventosa, e não se ouvia aqueles silvos sutis que nos
tinham impressionado na primeira noite, mas pelas seteiras penetrava um ar úmido e
gélido. Tínhamos calçado luvas de lã para poder tocar nos volumes sem que as mãos se
entorpecessem. Mas eram precisamente daquelas que se usavam para escrever no
Inverno com a ponta dos dedos descobertos, e por vezes tínhamos de aproximar as mãos
da chama, ou metê-las no peito, ou batê-las uma contra a outra, saltitando transidos.
Por isso, não completamos toda a obra de seguida. Parávamos a vasculhar nos
armários, e agora que Guilherme - com os seus novos vidros no nariz - podia demorar-se
a ler os livros, a cada título que descobria irrompia em exclamações de alegria, ou
porque conhecia a obra, ou porque há muito tempo a procurava, ou, enfim, porque
nunca a tinha ouvido mencionar e estava sobremodo excitado e intrigado. Em suma cada
livro era para ele como um animal fabuloso que encontrasse numa terra desconhecida. E
enquanto ele folheava um manuscrito, incumbia-me de procurar outros.

- Vê o que há naquele armário!

E eu, soletrando e deslocando volumes:
- Historia anglorum, de Beda... E, sempre de Beda, De aedificatione templi, De
tabernáculo, De temporibus et computo et chronica et circuli Dionysi, Onographia, De
ratione metrorum, Vita Sancfi Cuthberti, Ars métrica...
- É natural, todas as obras do Venerável... E olha estes! De rhetorica cognatione,
Locorum rhetoricomm distinctio, e aqui tantos gramáticos, Prisciano, Honorato, Donato,
Maxímio, Vitorino, Metrório, Eutiques, Sérvio, Focas, Asperus... Estranho, pensava à
primeira vista que aqui houvesse autores da Anglia... Olhemos mais abaixo...
- Hisperica... famina, o que é?
- Um poema hibérnico. Escuta:
Hoc spumans mundanas obvallat Pelagus oras terrestres amniosis fluctibus cudit
margines. Sáxeas undosis molibus irruit avionias. ínfima bomboso vértice miscet glareas
asprifero spergit spumas sulco, sonoreis frequenter quatitur flabris...
Eu não compreendia o sentido, mas Guilherme lia fazendo rolar as palavras na boca de
tal modo que parecia ouvir o som das ondas e da espuma marinha.
- E este? É Adhelm de Malmesbury, ouvi esta página: Primitus pantomm procerum
poematorum pió potissimum paterno-que presertim privilegio panegiricum poemataque
passim prosatori sub polo promúlgalas... As palavras começam todas pela mesma letra!
- Os homens das minhas ilhas são todos um pouco loucos – dizia Guilherme com
orgulho. - Vejamos no outro armário.
- Virgílio.
- Que faz aqui? O quê de Virgílio? As Geórgicas?
- Não. Epítomes. Nunca tinha ouvido falar.
- Mas não é o Marão! É Virgílio de Toulouse, o retórico, seis séculos depois do
nascimento de Nosso Senhor. Foi reputado como um grande sábio...
- Aqui diz que as artes são poema, rethoria, grama, leporia, dialecta, geometria... Mas
que língua fala?
- Latim, mas um latim de sua invenção, que ele reputava bastante mais belo. Lê aqui:
diz que a astronomia estuda os signos do zodíaco, que são: mon, man, tonte, pirón,
dameth, perfellea, belgalic, margaleth, lutamiron, taminon e raphalut.
- Era louco?
- Não sei, não era das minhas ilhas. Ouve ainda, diz que existem doze modos de
designar o fogo: ignis, coquihabin (quia in-cocta coquendi habet dictionem), ardo, calax
ex calore, fragon ex fragore flammae, rusin de rubore, fumaton, ustrax de uren-do,
vitius quia pene mortua membra suo vivificat, siluleus, quod de sílice siliat, unde et silex
non recte dicitur, nisi ex qua scinti-lla silit. Y aeneon, de Aenea deo, qui in eo habitat,
sive a, quo elementis flatus fertur.

- Mas não há ninguém que fale assim!
- Felizmente. Mas eram tempos em que, para esquecer um mundo mau, os gramáticos
se deleitavam com abstrusas questões. Disseram-me que nessa época, durante quinze
dias e quinze noites, os retóricos Gabundus e Terentius discutiram sobre o vocativo de
ego, e por fim pegaram em armas.
- Mas também isto, ouvi... - Tinha agarrado num livro maravilhosamente iluminado
com labirintos vegetais de cujas gavinhas assomavam macacos e serpentes. - Ouvi que
palavras: cantamen, collamen, gongelamen, stemiamen, plasmamen, sonerus, alboreus,
gaudifluus, glaucicomus...
- As minhas ilhas - disse de novo com ternura Guilherme. - Não sejas severo para com
esses monges da longínqua Hibérnia, se existe esta abadia, e se ainda falamos de sacro
Império Romano, devemo-lo talvez a eles. Naquele tempo, o resto da Europa estava
reduzido a um amontoado de ruínas, um dia declararam inválidos os batismos ministrados
por alguns padres nas Gálias, porque aí se batizava in nomine patris et filiae, e não
porque praticassem uma nova heresia e considerassem Jesus uma mulher, mas porque já
não sabiam o latim.
- Como Salvador?
- Mais ou menos. Os piratas do extremo norte chegavam ao longo dos rios para
saquearem Roma. Os templos pagãos caíam em ruínas e os dos cristãos não existiam
ainda. E foram apenas os monges da Hibérnia que nos seus mosteiros escreveram e
leram, leram e escreveram, e iluminaram, e depois se lançaram em navicelas feitas de
pele de animais e navegaram até estas terras e as evangelizaram como se fossem infiéis,
compreendes? Estiveste em Bobbio, foi fundado por São Columbano, um deles. E,
portanto, deixa-os lá se inventavam um latim novo, visto que na Europa já não se sabia o
velho. Foram grandes homens. São Brandão chegou até às ilhas Afortunadas e costeou as
costas do inferno, onde viu Judas acorrentado num rochedo, e um dia aportou a uma ilha
e aí desceu, e era um monstro marinho. Naturalmente eram loucos - repetiu com
satisfação.

- As suas imagens são... de não acreditar nos meus olhos! E quantas cores! - disse,
extasiado.
- Numa terra que cores tem poucas, um pouco de azul e muito verde. Mas não estamos
a discutir sobre os monges hibérnicos. Aquilo que quero saber é porque estão aqui com os
anglos e com gramáticos de outros países. Vê no teu mapa, onde deveríamos estar?
- Nas salas do torreão ocidental. Também transcrevi as inscrições. Portanto, saindo da
sala cega, entra-se na sala hepragonal, e há uma única passagem a uma única sala do
torreão, a letra a vermelho é H. Depois passa-se de sala em sala dando a volta ao torreão
e volta-se à sala cega. A seqüência das letras dá... tendes razão! HIBERNI!

- HIBERNIA, se das ala cega tornas à heptagonal, que tem como as outras três o Ade
Apocalypsis. Por isso, aí estão as obras de autores da última Thule, e ainda os gramáticos
e os retóricos, porque os ordenadores da biblioteca pensaram que um gramático deve
estar com os gramáticos hibérnios, mesmo que seja de Toulouse. É um critério. Vês que
começamos a compreender alguma coisa?
- Mas nas salas do torreão oriental por onde entramos lemos FONS... Que significa?
- Lê bem o teu mapa, continua a ler as letras das salas que se seguem pela ordem de
acesso.

- FONS ADAEU...
- Não, FONS ADAE, o U é a segunda sala cega oriental, recordo-me, talvez se insira
numa outra seqüência. E que encontramos no Fons Adae, isto é, no paraíso terrestre
(recorda-te que aí fica a sala com o altar que dá para o nascer do Sol)?
- Havia muitas Bíblias, e comentários à Bíblia, só livros de escrituras sagradas.
- E, então, vês a palavra de Deus em correspondência com o paraíso terrestre, que,
como todos dizem, fica longe para oriente. E aqui a ocidente a Hibérnia.
- Então o traçado da biblioteca reproduz o mapa do mundo universal?
- É provável. E os livros são aí colocados segundo os países de proveniência, ou o lugar
onde nasceram os seus autores, ou, como neste caso, o lugar onde deveriam ter nascido.
Os bibliotecários disseram para consigo que Virgílio, o gramático, nasceu por engano em
Toulouse e deveria ter nascido nas ilhas ocidentais. Repararam os erros da natureza.
Prosseguimos o nosso caminho. Passamos por uma seqüência de salas ricas de
esplêndidos Apocalipses, e uma destas era a sala onde tinha tido as visões. Assim de
longe vimos de novo a candeia, Guilherme tapou o nariz e correu a apagá-la, cuspindo
sobre as cinzas. E pelo sim pelo não, atravessamos a sala à pressa, mas recordava que
tinha aí visto o belíssimo Apocalipse multicolor com a mulier amicta sole e o dragão.
Reconstruímos a seqüência destas salas a partir da última a que acedemos e que tinha
como inicial a vermelho um Y. A leitura ao invés deu a palavra YSPANIA, mas o último A
era o mesmo com que terminava HIBERNIA. Sinal, disse Guilherme, que restavam salas
em que se recolhiam obras de caráter misto.
Em todo o caso, a zona denominada YSPANIA pareceu-nos povoada por muitos códices
do Apocalipse, todos de belíssima feitura, que Guilherme reconheceu como arte
hispânica. Reparamos que a biblioteca tinha talvez a mais ampla coleção de cópias do
livro do apóstolo que existia na cristandade, e uma quantidade imensa de comentários
sobre aquele texto. Volumes enormes eram dedicados ao comentário sobre o Apocalipse
de Beato de Liébana, e o texto era mais ou menos sempre o mesmo, mas encontramos
uma fantástica variedade de variações nas imagens, e Guilherme reconheceu a menção
de alguns entre aqueles que ele considerava entre os maiores miniaturistas do reino das
Astúrias, Magius, Facundus e outros.

Fazendo estas e outras observações, chegamos ao torreão meridional, em cujas
proximidades já tínhamos passado na noite precedente. A sala S de YSPANIA - sem
janelas – introduzia numa sala E, e girando sucessivamente pelas cinco salas do torreão
chegamos à última, sem outras passagens, que apresentava um L a vermelho. Relemos ao
contrário e encontramos LEONES.
- Leones, meridião, no nosso mapa estamos em África, hic sunt leones. E isto explica
porque encontramos aqui tantos textos de autores infiéis.
- E há mais - disse rebuscando nos armários. - Canon de Avicena, e este belíssimo
códice em caligrafia que não conheço...
- A julgar pelas decorações, deve ser um Corão, mas infelizmente não conheço o
árabe.
- O Corão, a Bíblia dos infiéis, um livro perverso...
- Um livro que contém uma sabedoria diversa da nossa. Mas compreendes porque o
puseram aqui, onde estão os leões, os monstros. Eis porque vimos aí aquele livro sobre os
animais monstruosos onde encontraste também o unicórnio. Esta zona chamada LEONES
contém aqueles que para os construtores da biblioteca eram os livros da mentira. Que há
além?
- São em latim, mas do árabe. Ayyub al Ruhawi, um tratado sobre a hidrofobia canina.
E este é um livro dos tesouros. E este o De aspectibus, de Alhazen...
- Vês, puseram entre os monstros e as mentiras também obras de ciência das quais os
cristãos tanto têm a aprender. Assim se pensava no tempo em que a biblioteca foi
constituída...
- Mas porque puseram entre as falsidades também um livro com o unicórnio? -
perguntei.
- Evidentemente, os fundadores da biblioteca tinham estranhas idéias. Terão
considerado que este livro, que fala de animais fantásticos e que vivem em países
longínquos, fazia parte do repertório de mentiras difundido pelos infiéis...
- Mas o unicórnio é uma mentira? É um animal de uma grande doçura e altamente
simbólico. Figura de Cristo e da castidade, ele só pode ser capturado pondo uma virgem
no bosque, de modo que o animal sentindo-lhe o odor castíssimo vá pousar a cabeça no
seu colo, oferecendo-se como presa aos laços dos caçadores.
- Assim se diz, Adso. Mas muitos inclinam-se a pensar que é uma invenção fabulosa dos
pagãos.

- Que desilusão - disse. - Gostaria de encontrar um atravessando um bosque. Senão,
qual é o prazer de atravessar um bosque?
- Não quer dizer que não exista. Talvez seja diferente de como o representam estes
livros. Um viajante veneziano andou por terras muito distantes, bastante próximas do
fons paradisi de que falam os mapas, e viu unicórnios. Mas achou-os rudes e sem graça, e
feíssimos e negros. Creio que terá visto animais verdadeiros com um corno à frente.
Foram provavelmente os mesmos que os mestres da sabedoria antiga, nunca de todo
errônea, que receberam de Deus a oportunidade de ver coisas que nós não vimos, nos
transmitiram com uma primeira descrição fiel. Depois, esta descrição, viajando de
autorictas em autorictas, transformou-se por sucessivas composições da fantasia, e os
unicórnios tornaram-se animais graciosos e brancos e mansos. Por isso, se souberes que
num bosque vive um unicórnio, não vás lá com uma virgem, porque o animal pode ser
mais parecido ao testemunho veneziano que ao deste livro.
- Mas como acontece que os mestres da sabedoria antiga tiveram de Deus a revelação
sobre a verdadeira natureza do unicórnio?
- Não a revelação, mas a experiência. Tiveram a ventura de nascer em terras em que
viviam unicórnios ou em tempos em que os unicórnios viviam nessas mesmas terras.
- Mas, então, como podemos confiar na sabedoria antiga, cujo rastro vós procurais
sempre, se ela nos é transmitida por livros mentirosos que a interpretaram com tanta
licença?
- Os livros não são feitos para se crer neles, mas para serem submetidos a
investigação. Diante de um livro não devemos perguntar-nos que coisa diz, mas que coisa
quer dizer, idéia que foi muito clara para os velhos comentadores dos livros sagrados. O
unicórnio, tal como dele falam estes livros, encerra uma verdade moral, ou alegórica, ou
analógica, que permanece verdadeira, como permanece verdadeira a idéia de que a
castidade é uma nobre virtude. Mas, quanto à verdade literal que sustenta as outras três,
resta ver de que dado de experiência originária nasceu a letra. A letra deve ser
discutida, ainda que o sentido principal permaneça certo. Num livro está escrito que o
diamante se corta só com o sangue do bode. O meu grande mestre Roger Bacon disse que
não era verdade, simplesmente porque ele tinha experimentado, e não tinha conseguido.
Mas se a relação entre diamante e sangue caprino tivesse um sentido superior, este
permaneceria intacto.

- Então, podem dizer-se verdades superiores mentindo quando à letra - disse. - E, no
entanto, ainda lamento que o unicórnio, tal como é, não exista, ou não tenha existido,
ou não possa existir um dia.
- Não nos é lícito pôr limites à onipotência divina, e, se Deus quisesse, poderiam
existir mesmo os unicórnios. Mas consola-te, eles existem nestes livros, os quais, se não
falam do ser real, falam do ser possível.
- Mas é preciso, então, ler os livros sem recorrer à fé, que é virtude teologal?
- Restam mais duas virtudes teologais. A esperança que o possível seja. E a caridade,
para quem acreditou de boa-fé que o possível era.
- Mas de que vos serve o unicórnio se o vosso intelecto não crê nele?
- Serve como me serviu o rasto dos pés de Venancio sobre a neve, arrastado à cuba dos
porcos. O unicórnio dos livros é como uma marca. Se há a marca, deve ter havido alguma
coisa que deixou essa marca.
- Mas diferente da marca, dizeis-me.
- Decerto. Nem sempre uma marca tem a mesma forma do corpo que a imprimiu e
nem sempre nasce da pressão de um corpo. Por vezes reproduz a impressão que um
corpo deixou na nossa mente, é marca de uma idéia. A idéia é sinal das coisas, e a
imagem é sinal da idéia, sinal de um sinal. Mas, pela imagem, reconstruo, se não o
corpo, a idéia que outros tinham dele.
- E isso basta-vos?
- Não, porque a verdadeira ciência não deve contentar-se com as idéias, que são
precisamente sinais, mas deve encontrar as coisas na sua verdade singular. E, portanto,
gostaria de remontar desta marca de uma marca ao unicórnio indivíduo que está no
início da cadeia. Tal como gostaria de remontar dos sinais vagos deixados pelo assassino
de Venancio (sinais que poderiam referir-se a muitos) a um indivíduo único, o próprio
assassino. Mas nem sempre é possível em breve tempo e sem a mediação de outros
sinais.
- Mas, então, posso sempre e só falar de alguma coisa que me fala de algo distinto, e
assim sucessivamente, sem que exista algo final e verdadeiro?

- Mas existe, e é o indivíduo unicórnio. Não temas, passe o tempo e o encontrará,
mesmo que seja negro e feio.
- Unicórnios, leões, autores árabes e mouros em geral – disse. – Sem dúvida, estou na
África de que falam os monges.
- Sem dúvida,está. E se estamos, deveríamos encontrar os poetas africanos que
Pacifico de Tivole aludiu.
Assim retrocedemos a sala L, encontramos um armário onde havia uma coleção de
livros de Floro, Frontón, Apuleyo, Marciano Capella y Fulgencio.
- Acho que é aqui que Berengário dizia que deveria estar a explicação de certo
segredo – disse.
- Quase aqui. Usou a expressão «finis Africae»,e ao escutar essas palavras foi quando
Malaquias se enfadou tanto. E finalmente poderia ser esta a última sala, ou bem... –
lançou um grito: - Pelas sete igrejas de Clonmacnois! Não notou nada?
- Quê?
- Regressemos a sala S, é de lá que temos que partir!
Regressamos a primeira sala cega cuja inscrição dizia: Super thronos viginti quatuor.
Tinha quatro aberturas. Uma comunicava-se com a sala. E tinha uma janela aberta no
octágono. A outra se comunicava com a sala P, que, seguindo a parede externa, se
insertava na seqüência YSPA-NIA. A que dava para o Torreão comunicava-se com a sala E,
que acabávamos de atravessar. Depois havia uma parede sem aberturas, e por último um
paço que se comunicava com a segunda sala cega cuja inicial era U. A sala S era de
espelho, e por sorte este se encontrava na parede situada imediatamente a minha
direita, porque se não, teria novamente levado um bom susto. Olhando bem o mapa,
descobri que aquela sala tinha algo especial. Como as demais salas cegas dos outros três
torreões, tinha que se comunicar com a sala heptagonal central. Mas não era assim, a
entrada ao heptágono deveria estar na sala cega ao lado, na U. Porem não era assim:
esta última, que comunicava com uma sala T com janela no octágono interno, e com a
sala S, era conhecida, tinha as restantes, três paredes cheias de armários, ou seja, sem
aberturas. Olhando ao nosso redor descobrimos algo que antes não parecia evidente,
também raciocinando com o mapa: por razoes não só de estrita simetria, mas também de
lógica, aquele torreão devia ter uma sala heptagonal, e, era esta sala que faltava.
- Não existe – disse.
- Não é que não exista. Se não existisse, as outras salas seriam maiores, enquanto são
mais ou menos do formato das dos outros lados. Existe, mas não se chega lá.
-É murada?
- Provavelmente. E eis o finis Africae, eis o lugar em torno do qual giravam aqueles
curiosos que estão mortos. É murada, mas não quer dizer que não exista uma passagem.
Mais, existe seguramente, e Venancio tinha-a encontrado, ou tinha sabido a sua
descrição através de Adelmo, e este de Berengário. Voltemos a ler os seus
apontamentos. - Tirou do saio o papel de Venancio e releu: - A mão sobre o ídolo opera
sobre o primeiro e sobre o sétimo dos quatro. - Olhou em torno: - Mas decerto! O idolum
é a imagem do espelho! Venancio pensava em grego, e naquela língua, mais ainda que na
nossa, eidolon é tanto imagem como espectro, e o espelho devolve-nos a nossa imagem
deformada, que nós mesmos, na noite passada, confundimos com um espectro! Mas que
serão então as quatro supra speculum? Algo sobre a superfície refletora? Mas então
deveríamos pôr-nos de um certo ponto de vista de modo a poder distinguir algo que se
reflete no espelho e que corresponde à descrição dada por Venancio...

Movemo-nos em todas as direções, mas sem resultado. Para além das nossas imagens,
o espelho devolvia confusos contornos do resto da sala, dificilmente iluminada pela
lâmpada.
- Então - meditava Guilherme -, por supra speculum poderia querer dizer para além do
espelho... O que imporia que primeiro fôssemos para além, porque certamente este
espelho é uma porta...
O espelho era mais alto que um homem normal, encaixado na parede por uma robusta
moldura de carvalho. Tocamo-lo de todas as maneiras, procuramos introduzir os dedos,
as unhas entre a moldura e a parede, mas o espelho estava seguro como se fizesse parte
da parede, pedra na pedra.
- E, se não é para além, poderia ser super speculum – murmurava Guilherme, e
entretanto levantava o braço e erguia-se na ponta dos pés, e deixava escorregar a mão
pelo bordo superior da moldura, sem encontrar mais que pó. - Por outro lado – refletia
melancolicamente Guilherme -, se mesmo ali atrás houvesse uma sala, o livro que
procuramos, e que outros procuraram, naquela sala já não está, porque o levaram,
primeiro Venancio e depois, quem sabe para onde, Berengário.
- Mas talvez Berengário o tenha voltado a trazer para aqui.
- Não, naquela noite nós estávamos na biblioteca, e tudo nos leva a crer que ele tenha
morrido não muito tempo depois do furto, naquela mesma noite, nos balnea. Senão
teríamos voltado a vê-lo na manhã seguinte. Não importa... Por agora apuramos onde
fica o finis Africae, e temos quase todos os elementos para aperfeiçoar melhor o mapa
da biblioteca. Tens de admitir que muitos dos mistérios do labirinto já estão
esclarecidos. Todos, diria, menos um. Creio que tirarei maior partido de uma releitura
atenta do manuscrito de Venancio que de outras inspeções. Viste que o mistério do
labirinto o descobrimos melhor de fora que de dentro. Esta noite, diante das nossas
imagens deformadas, não chegaremos ao cabo do problema. E, por fim, a candeia está a
enfraquecer. Anda, vamos pôr em ordem as outras indicações que nos servem para
definir o mapa.
Percorremos outras salas, registrando sempre as nossas descobertas no meu mapa.
Encontramos salas dedicadas somente a escritos de matemática e astronomia, outras
com obras em caracteres aramaicos que nenhum de nós dois conhecia, outras em
caracteres mais desconhecidos ainda, talvez textos da Índia. Movíamo-nos entre duas
seqüências imbricadas que diziam IUDAEA e AEGYPTUS. Em suma, para não enfadar o
leitor com a crônica da nossa decifração, quando mais tarde pusemos definitivamente
em ordem o mapa, convencemo-nos que a biblioteca era na verdade constituída e
distribuída segundo a imagem do globo terráqueo. A setentrião encontramos ANGLIA e
GERMANI, que ao longo da parede ocidental se ligavam a GALLIA, para depois gerar no
extremo ocidente HIBERNIA e para meridional ROMA (paraíso de clássico latinos!) e
YSPANIA. Vinham depois a meridiano os LEONES, o AEGYPTUS, que para oriente se
tornavam IUDAEA e FONS ADAE. Entre oriente e setentrião, ao longo da parede, ACAIA,
uma boa sinédoque, como se exprimiu Guilherme, para indicar a Grécia, e de fato
naquelas quatro salas havia grande abundância de poetas e filósofos da antigüidade
pagã.

O modo de leitura era bizarro, por vezes procedia-se numa única direção, outras vezes
andava-se ao contrário, outras vezes ainda em círculo, freqüentemente, como disse,
uma letra servia para compor duas palavras diversas (e nestes casos a sala tinha um
armário dedicado a um assunto e um outro a outro). Mas não havia que procurar uma
regra áurea naquela disposição. Tratava-se de mero artifício mnemotécnico para
permitir ao bibliotecário encontrar as obras. Dizer de um livro que se encontrava em
quarta Acaiae significava que estava na quarta sala a contar daquela em que aparecia o
A inicial, e quanto ao modo de a identificar supunha-se que o bibliotecário sabia de cor o
percurso, ou reto ou circular, a fazer. Por exemplo, ACAIA estava distribuído por quatro
salas dispostas em quadrado, o que quer dizer que o primeiro A era também o último,
coisa que, aliás, também nós tínhamos apreendido em pouco tempo. Tal como logo
tínhamos apreendido o jogo das barreiras. Por exemplo, vindo de oriente, nenhuma das
salas de ACA1A introduzia nas salas seguintes: o labirinto terminava naquele ponto, e
para chegar ao torreão setentrional era necessário passar pelos outros três. Mas,
naturalmente, os bibliotecários, entrando pelo FONS, sabiam bem que para ir,
supúnhamos, a ANGLIA, deviam atravessar AEGYPTUS, YSPANIA, GALLIA e GERMANI.
Com estas e outras belas descobertas terminou a nossa frutuosa exploração à
biblioteca. Mas antes de dizer que, satisfeitos, nos dispusemos a sair dela (para tomar
parte em outros eventos que daqui a pouco contarei), devo fazer uma confissão ao meu
leitor. Disse que a nossa exploração foi conduzida, por um lado, procurando a chave do
misterioso lugar e, por outro, demorando-nos de vez em quando nas salas que
identificávamos quanto a colocação e assunto a folhear livros de vário gênero, como se
explorássemos um continente misterioso ou uma terra incógnita. E, de costume, esta
exploração fez-se de comum acordo, eu e Guilherme demorando-nos sobre os mesmos
livros, eu indicando-lhe os mais curiosos, ele explicando-me muitas coisas que não
conseguia compreender.
Mas, a certa altura, e precisamente enquanto vagueávamos pelas salas do torreão
meridional, chamadas LEONES, aconteceu que o meu mestre se deteve numa sala rica de
obras árabes com curiosos desenhos de óptica; e, visto que naquela noite não
dispúnhamos de uma mas de duas candeias, eu afastei-me por curiosidade para a sala ao
lado, apercebendo-me que a sagacidade e a prudência dos legisladores da biblioteca
tinham reunido ao longo de uma das suas paredes livros que, decerto, não podiam ser
dados a ler a qualquer um, porque, de modos diversos, tratavam de variadas doenças do
corpo e do espírito, quase sempre obras de sábios infiéis. E caíram-me os olhos num livro
que não era grande, adornado de miniaturas muito diferentes (felizmente!) do tema,
flores, gavinhas, animais aos pares, alguma erva medicinal: o título era Specu-lum
amoris, de frei Máximo de Bolonha, e reproduzia citações de muitas outras obras, todas
sobre o mal de amor. Como o leitor compreenderá, não era preciso mais para despertar a
minha curiosidade doente. Assim, o próprio título bastou para reacender a minha mente,
que desde manhã se tinha aquietado, excitando-a de noco com a imagem da rapariga.
Como durante todo o dia tinha rechaçado de mim os pensamentos matinais, dizendome
que não eram de um noviço são e equilibrado, e como, por outro lado, os eventos do
dia tinham sido bastante ricos e intensos para me distraírem, os meus apetites tinham-se
aquietado, de modo que julgava então ter-me libertado daquilo que não tinha sido mais
que uma inquietação passageira. Bastou, porém, a vista daquele livro para me fazer
dizer «de te fábula narratur» e para me descobrir mais doente de amor do que eu
julgava. Aprendi depois que, ao ler livros de medicina, convencemo-nos sempre que
sentimos as dores de que eles falam. Foi assim que, justamente, a leitura daquelas
páginas, que espreitei à pressa com receio que Guilherme entrasse na sala e me
perguntasse com que estava doutamente entretido, me fez convencer que eu sofria
realmente daquela doença, cujos sintomas eram tão esplendidamente descritos que, se
por um lado me preocupava achar-me doente (e na escolta infalível de tantas
auctoritates), por outro alegrava-me ver pintada com tanta vivacidade a minha situação;
fui-me convencendo de que, se acaso estava doente, a minha doença era, por assim
dizer, normal, dado que tantos outros dela tinham sofrido do mesmo modo, e os autores
citados pareciam ter-me tomado precisamente a mim como modelo das suas descrições.

Assim me comovi sobre as páginas de Ibn Hazm, que define o amor como uma doença
rebelde, cuja cura reside em si própria, de modo que quem está doente não quer curarse
dela e quem está enfermo não deseja melhorar (e Deus sabe se não era verdade!).
Dei-me conta porque de manhã era tão excitado por tudo o que via, porque parece que o
amor entra através dos olhos, como também diz Basílio d’Ancira, e – sintoma
inconfundível - quem está atacado por um tal mal manifesta uma excessiva alegria,
enquanto deseja ao mesmo tempo ficar à parte e privilegia a solidão (como eu tinha
feito naquela manhã), enquanto outros fenômenos que o acompanham são a inquietação
violenta e o aturdimento que tolhe as palavras... Assustei-me lendo que ao sincero
amante, a quem se impede a vista do objeto amado, não pode senão sobrevir um estado
de consumpção que muitas vezes chega a obrigá-lo a recolher ao leito, e por vezes o mal
ataca o cérebro, perde-se o tino e delira-se (evidentemente não tinha atingido ainda
aquele estado, porque tinha trabalhado bastante bem na exploração da biblioteca). Mas
li com apreensão que, se o mal piorar, pode sobrevir a morte, e perguntei-me se a
alegria que a rapariga me dava ao pensar nela valia este sacrifício supremo do corpo, à
parte qualquer justa consideração sobre a saúde da alma.
Até porque encontrei outra citação de Basílio, segundo o qual «qui animam corpori per
vitia conturbationesque commiscent, utrinque quod habet utile ad vitam necessarium
demoliuntur, animamque lucidam ac nitidam carnalium voluptatum limo per-turbant, et
corporis munditiam atque nitorem hac ratione mis-centes, inutile hoc ad vitae officia
ostendunt». Situação extrema em que realmente não queria encontrar-me.
Vim a saber também por uma frase de Santa Hildegarda que aquele humor melancólico
que durante o dia tinha experimentado, e que atribuía a um doce sentimento de pena
pela ausência da rapariga, se assemelha perigosamente ao sentimento que experimenta
quem se desvia do estado harmônico e perfeito que o homem sente no paraíso, e que
esta melancolia «nigra et amara» é produzida pelo sopro da serpente e pela sugestão do
diabo. Idéia também partilhada por infiéis de igual sabedoria, porque me caíram debaixo
dos olhos as linhas atribuídas a Abu Bakr-Muhammad Ibn Zaka-riyya ar-Razi, que num

Líber continents identifica a melancolia amorosa com a licantropia, que leva quem dela
é atingido a comportar-se como um lobo. A sua descrição apertou-me a garganta:
primeiro os amantes aparecem mudados no seu aspecto exterior, a vista enfraquecelhes,
os olhos tornam-se cavos e sem lágrimas, a língua seca lentamente e aparece
coberta de pústulas, todo o corpo fica seco, e sofrem continuadamente de sede: então
passam o dia estendidos com a face por terra, no rosto e nas tíbias aparecem sinais
semelhantes a mordeduras de cão, e por fim vagueiam de noite pelos cemitérios como
lobos.
Não tive enfim mais dúvidas sobre a gravidade do meu estado quando li citações do
grande Avicena, onde o amor é definido como um pensamento assíduo, de natureza
melancólica, que nasce por força de pensar e repensar nas feições, nos gestos ou nos
hábitos de uma pessoa de sexo oposto (como Avicena tinha representado com fiel
vivacidade o meu caso!): ele não nasce como doença mas em doença se transforma
quando, não sendo satisfeito, se torna obsessivo (e porque é que me sentia obcecado, eu
que, afinal, Deus me perdoe, me tinha satisfeito tão bem?, ou será que aquilo que tinha
acontecido na noite precedente não era satisfação de amor?, mas como se satisfaz então
este mal?), e como conseqüência tem-se um movimento continuo das pálpebras, uma
respiração irregular, ora se ri ora se chora, e o pulso bate (e, na verdade, o meu batia, e
a respiração quebrava-se enquanto lia aquelas linhas!). Avicena aconselhava um método
infalível ali proposto por Galeno para descobrir de quem uma pessoa está enamorada:
segurar o pulso do doente e ir pronunciando muitos nomes de pessoas de outro sexo, até
se perceber a que nome o ritmo do pulso se acelera: e eu temia que de repente entrasse
o meu mestre e me agarrasse o braço e espiasse na pulsação das minhas veias o meu
segredo, do que muito me teria envergonhado... Ai de mim, Avicena sugeria, como
remédio, unir os dois amantes no matrimônio, e o mal seria curado. Era bem verdade
que era um infiel, embora avisado, porque não tinha em conta a condição de um noviço
beneditino, condenado portanto a jamais curar - ou melhor, consagrado, por sua
escolha, ou por prudente escolha dos seus pais, a jamais adoecer. Felizmente, Avicena,
embora não pensando na ordem clunicense, considerava o caso dos amantes que não se
podem unir, e aconselhava como cura radical os banhos quentes (que Berengário quisesse
curar do seu mal de amor pelo desaparecido Adelmo?, mas podia alguém sofrer de mal de
amor por um ser do mesmo sexo, ou aquilo não era senão bestial luxúria?, e não era
acaso bestial a luxúria da minha noite passada?, não, decerto, dizia-me imediatamente,
era dulcíssima - e logo depois: enganas-te, Adso, aquilo foi ilusão do diabo, era
bestialíssima, e se pecaste sendo um animal pecas ainda mais agora não querendo dar-te
conta disso!). Mas depois li também que, sempre segundo Avicena, havia ainda outros
meios: por exemplo, recorrer à assistência de mulheres velhas e experientes que passam
o tempo a denegrir a amada - e parece que as mulheres velhas são mais experientes que
os homens nesta tarefa. Talvez esta fosse a solução, mas mulheres velhas na abadia não
as podia encontrar (nem jovens, na verdade), e, portanto, deveria pedir a algum monge
que me falasse mal da rapariga, mas a quem? E, depois, podia um monge conhecer bem
as mulheres como as conhecia uma mulher velha e bisbilhoteira? A última solução
sugerida pelo sarraceno era francamente impudica, porque postulava que se fizesse unir
o amante infeliz com muitas escravas, coisa bastante inconveniente para um monge.

Enfim, dizia para comigo, como pode curar de mal de amor um jovem monge, não há
realmente salvação para ele? Devia talvez recorrer a Severino e às suas ervas? De fato
encontrei um excerto de Arnaldo de Villanova, autor que já tinha ouvido citar com muita
consideração a Guilherme, o qual fazia nascer o mal de amor de uma abundância de
humores e de pneuma, isto é, quando o organismo humano se encontra em excesso de
umidade e de calor, dado que o sangue (que produz o sêmen gerador), crescendo por
excesso, provoca excesso de sêmen, uma «complexio venerea», e um desejo intenso de
união entre homem e mulher. Há uma virtude estimativa situada na parte dorsal do
ventrículo médio do encéfalo (o que é?, perguntei-me) cuja função é apreender as
intentiones não sensíveis que estão nos objetos sensíveis captados pelos sentidos, e
quando o desejo pelo objeto apreendido pelos sentidos se torna demasiado forte, eis que
a sua faculdade estimativa é perturbada, e nutre-se apenas do fantasma da pessoa
amada; então verifica-se uma inflamação de toda a alma e o corpo, com a tristeza
alternando com a alegria, porque o calor (que nos momentos de desespero desce às
partes mais profundas do corpo e enregela a cútis) nos momentos de alegria sobe à
superfície inflamando o rosto. A cura sugerida por Arnaldo consistia em procurar perder a
confiança e a esperança de alcançar o objeto amado, de modo que o pensamento se
afastasse dele.
Mas então estou curado, ou em vias de cura, disse para comigo, porque tenho pouca
ou nenhuma esperança de voltar a ver o objeto dos meus pensamentos, e, se o visse, de
o alcançar, e, se o alcançasse, de possuí-lo de novo, e, se o voltasse a possuir, de o
conservar junto de mim, tanto por cause do meu estado monacal como dos deveres que
me são impostos pela categoria da minha família... Estou salvo, disse para comigo,
fechei o fascículo e recompus-me, precisamente no momento em que Guilherme entrava
na sala. Continuei com ele a viagem através do labirinto já desvendado (como já contei)
e de momento esqueci a minha obsessão.
Como se verá, voltaria a encontrá-la dentro em breve, mas em circunstâncias (se de
mim!) bem diversas.

QUARTO DIA

NOITE

Onde Salvador se deixa miseravelmente descobrir por Bernardo Gui, a rapariga amada
por Adso é presa e acusada de bruxaria, e todos vão para a cama mais infelizes e
preocupados que antes.

Íamos de fato a descer de novo para o refeitório quando ouvimos uns clamores, e umas
luzes débeis cintilarem do lado da cozinha. Guilherme apagou de repente a candeia.
Seguindo as paredes, aproximamo-nos da porta que dava para a cozinha, e sentimos que
o rumor provinha do exterior mas que a porta estava aberta. Depois as vozes e as luzes
afastaram-se, e alguém fechou a porta com violência. Era um grande tumulto que
preludiava a qualquer coisa de desagradável. Velozmente, passamos de novo pelo
ossário, reaparecemos na igreja, deserta, saímos pelo portal meridional e distinguimos
um reluzir de archotes no claustro.
Aproximamo-nos, e na confusão parecia que também nós tínhamos acorrido
juntamente com os muitos que já estavam no lugar, saindo quer do dormitório quer da
casa dos peregrinos. Vimos que os archeiros estavam segurando Salvador, branco como o
branco dos seus olhos, e uma mulher que chorava. Senti um aperto no coração: era ela, a
rapariga dos meus pensamentos. Logo que me viu, reconheceu-me e lançou-me um olhar
implorante e desesperado. Tive o impulso de me lançar a libertá-la, mas Guilherme
deteve-me sussurrando-me alguns impropérios nada afetuosos. Os monges e os hóspedes
acorriam agora de todas as partes.
Chegou o Abade, chegou Bernardo Gui, a quem o capitão dos archeiros fez um breve
relatório. Eis o que tinha acontecido.
Por ordem do inquisidor, eles patrulhavam de noite toda a esplanada, com particular
atenção pela avenida que ia do portal de entrada à igreja, a zona do horto e a fachada
do Edifício (porquê?, perguntei-me e compreendi: evidentemente porque Bernardo tinha
ouvido aos servos ou aos cozinheiros rumores sobre alguns tráficos noturnos, talvez sem
saber quem eram exatamente os seus responsáveis, que tinham lugar entre o exterior da
cerca e as cozinhas, e quem sabe se o estúpido Salvador, como me tinha dito a mim os
seus propósitos, não teria já falado na cozinha ou nos estábulos a algum desgraçado que,
atemorizado pelo interrogatório da tarde, tinha lançado à curiosidade de Bernardo esta
murmuração). Girando circunspectos e no escuro no meio do nevoeiro, os archeiros
tinham finalmente surpreendido Salvador, em companhia da mulher, enquanto
manobrava diante da porta da cozinha.
- Uma mulher neste lugar santo! E com um monge! – disse severamente Bernardo
dirigindo-se ao Abade. – Magnificentissimo senhor – prosseguiu -, se se tratasse só da
violação do voto de castidade, a punição deste homem seria coisa da vossa jurisdição.
Mas, uma vez que não sabemos ainda se as manobras destes dois desgraçados têm alguma
coisa a ver com a saúde de todos os hóspedes, devemos primeiro fazer luz sobre este
mistério. Vamos, falo contigo, miserável - e arrancava do peito de Salvador o evidente
embrulho que ele julgava ocultar -, que tens aí dentro?
Eu já o sabia: uma faca, um gato preto, que mal foi aberto o embrulho fugiu, miando
enfurecido e dois ovos, já quebrados e viscosos, que a todos pareceram sangue, ou bilis
amarela, ou outra substancia imunda. Salvador estava para entrar na cozinha, matar o
gato arrancar-lhe os olhos, e, sabe-se lá com que promessas, tinha convencido a rapariga
a segui-lo. Com que promessas, soube-o logo. Os archeiros revistaram a rapariga, entre
risadas maliciosas e meias palavras lascivas, e encontraram-lhe um galito morto, ainda
por depenar. A desgraça quis que à noite, em que todos os gatos são pardos, o galo
parecesse preto também, como o gato. Eu pensei, pelo contrário, que não era preciso
mais nada para a atrair, a pobre esfomeada que já na noite passada tinha abandonado (e
por amor de mim!) o seu precioso coração de boi...

- Ah! Ah! - exclamou Bernardo com tom de grande preocupação. Gato e galo pretos...
Mas eu conheço-os, estes parafernais... - Avistou Guilherme entre os circunstantes: - Não
os conheceis também vós frade Guilherme? Não fostes inquisidor em Kilkenny, há três
anos, onde uma rapariga tinha comércio com um demônio que lhe aparecia sob a forma
de um gato preto?
Pareceu-me que o meu mestre se calava por covardia. Agarrei-o pela manga, sacudi-o,
sussurrei-lhe desesperado:
- Mas dizei-lhe que era para comer...
Ele libertou-se da minha mão e dirigiu-se educadamente a Bernardo:
- Não creio que vós tenhais necessidade das minhas antigas experiências para
chegardes às vossas conclusões - disse.
- Oh, não, existem testemunhas bem mais autorizadas - sorri Bernardo. - Estevão de
Bourbon conta no seu tratado sobre os sete dons do Espírito Santo como São Domingos,
depois de ter pregado em Fanjeaux contra os hereges, anunciou a certas mulheres que
elas veriam quem tinham servido até então. E de repente saltou no meio delas um gato
medonho com as dimensões de um grande cão, com os olhos grandes e chamejantes, a
língua sanguinolenta que lhe chegava ao umbigo, a cauda curta e espetada no ar de
modo que, de qualquer lado que o animal se voltasse, mostrava a torpeza do seu
traseiro, fétido como nenhum, como convém àquele anus que muitos devotos de Satanás,
e os cavaleiros templários estão longe de ser os últimos, costumavam beijar sempre no
curso das suas reuniões. E depois de ter girado em volta das mulheres durante uma hora,
o gato saltou para a corda do sino e ai trepou, deixando para trás os seus restos
fedorentos. E não é o gato o animal amado pelos cátaros, que, segundo Alano das Ilhas,
se chamam assim precisamente de catus, porque beijam o posterior deste animal,
considerando-o encarnação de Lúcifer? E não confirma também esta repugnante prática
Guilherme de Alvernia no De legibus? E não diz Albelto Magno que os gatos são demônios
em potência? E não refere o meu venerável irmão Jacques Fournier que no leito de
morte do inquisidor Godofredo de Carcassonne apareceram dois gatos pretos, que mais
não eram que demônios que queriam escarnecer daqueles despojos mortais?
Um murmúrio de horror percorreu o grupo dos monges, muitos dos quais fizeram o
santo sinal da cruz.

- Senhor Abade, senhor Abade - dizia entretanto Bernardo com ar virtuoso -, talvez a
Vossa Magnificência não saiba o que costumam fazer os pecadores com estes
instrumentos! Mas eu sei-o bem, não quisesse Deus! Vi mulheres de grande perversidade,
nas horas mais escuras da noite, juntamente com outras da mesma laia, usarem gatos
pretos para obterem prodígios que nunca puderam negar: tal como andarem a cavalo de
certos animais e percorrerem com o favor noturno espaços imensos, arrastando os seus
escravos, transformados em incubos de desejos loucos. E o próprio diabo se lhes mostra,
ou pelo menos eles acreditam nisso firmemente, sob a forma de um galo, ou de outro
animal todo negro, e com ele chegam, não me pergunteis como, a deitar-se. E sei de
fonte segura que com necromancias deste gênero, não há muito, precisamente em
Avinhão, se prepararam filtros e ungüentos para atentar contra a vida do próprio senhor
papa, envenenando-lhe a comida. O papa pôde defender-se e identificar o tóxico apenas
porque estava munido de prodigiosas jóias em forma de língua de serpente, fortificadas
por admiráveis esmeraldas e rubis que, por virtude divina, serviam para revelar a
presença de veneno na comida! Onze tinha-lhas oferecido o rei de França, dessas línguas
preciosíssimas, graças ao céu, e só assim o nosso senhor papa pôde escapar à morte! É
verdade que os inimigos do pontífice fizeram ainda mais, e todos sabem o que se
descobriu do herege Bernard Délicieux, preso há dez anos: foram-lhe encontrados em
casa livros de magia negra anotados precisamente nas páginas mais perversas, com todas
as instruções para construir figuras de cera através das quais causar dano aos próprios
inimigos. E, acreditá-lo-íeis?, em casa também lhe foram encontradas figuras que
reproduziam, com arte decerto admirável, a própria imagem do papa, com pequenos
círculos vermelhos nas partes vitais do corpo: e todos sabem que tais figuras, mantidas
suspensas por uma corda, se põem diante de um espelho, e depois atingem-se os círculos
vitais com alfinetes e... Oh, mas porque me demoro com estas misérias repugnantes? O
próprio papa falou delas e descreveu-as, condenando-as, precisamente o ano passado, na
sua constituição Super illius specula! E espero bem que tenhais um exemplar nesta vossa
rica biblioteca, para meditar nela como se deve...
- Temos um, temos um - confirmou fervorosamente o Abade, muito perturbado.
- Está bem - concluiu Bernardo. - Agora o fato parece-me claro. Um monge seduzido,
uma bruxa, e algum rito que felizmente não teve lugar. Com que fins? E o que
saberemos, e quero tirar algumas horas ao sono para saber. Queira a Vossa Magnificência
pôr à minha disposição um lugar onde este homem possa ser vigiado...
- Temos umas celas no subsolo do laboratório dos ferreiros - disse o Abade - que
felizmente se usam bastante pouco e estão vazias há anos...
- Felizmente ou infelizmente - observou Bernardo.

E ordenou aos archeiros que pedissem para lhes indicarem o caminho e conduzissem a
duas celas diferentes os cativos, e que prendessem bem o homem a algum anel fixo na
parece, de modo que ele pudesse em breve descer a interrogá-lo olhando-o bem na cara.
Quanto à rapariga, acrescentou, era claro o que era, e não valia a pena interrogá-la
naquela noite. Outras provas a esperariam antes de ser queimada como bruxa. E, se
bruxa era, não falaria facilmente. Mas o monge podia talvez ainda arrepender-se (e
fixava Salvador, que tremia, como a dar-lhe a entender que lhe oferecia ainda uma
possibilidade), contando a verdade e, acrescentou, denunciando os seus cúmplices.
Os dois foram arrastados para fora: um silencioso e desfeito, quase num estado febril,
a outra que chorava, e dava pontapés, e gritava como um animal no matadouro. Mas nem
Bernardo, nem os archeiros, nem eu mesmo entendíamos o que dizia na sua língua de
camponesa. Por mais que falasse, era como se fosse muda. Há palavras que dão poder,
outras que tornam uma pessoa ainda mais desamparada, e desta espécie são as palavras
vulgares dos simples, a quem o Senhor não concedeu saberem exprimir-se na língua
universal da sabedoria e do poder.
Mais uma vez fui tentado a segui-la, mais uma vez Guilherme, de rosto extremamente
sombrio, me reteve.
- Está quieto, tolo - disse -, a rapariga está perdida, é carne queimada.
Enquanto observava aterrado a cena, num turbilhão de pensamentos contraditórios,
fixando a rapariga, senti que me tocavam no ombro. Não sei porquê, mas, ainda antes de
me voltar, reconheci pelo toque Ubertino.

- Tu olhas para a bruxa, não é? - perguntou-me.
E eu sabia que ele não podia saber da minha aventura, e portanto falava assim apenas
porque tinha captado, com a sua terrível penetração das paixões humanas, a intensidade
do meu olhar.
- Não... - esquivei-me - não olho para ela... isto é, talvez olhe para ela, mas não é
uma bruxa... não sabemos, talvez esteja inocente...
- Tu olhas para ela porque é bela. É bela, não é? - perguntou-me com extraordinário
calor, apertando-me o braço. - Se olhas para ela porque é bela, e ficas perturbado (mas
sei que ficas perturbado, porque o pecado de que é suspeita torna-ta ainda mais
fascinante), se olhas para ela e sentes desejo, por isso mesmo ela é uma bruxa. Toma
cuidado, meu filho...A beleza do corpo limita-se à pele. Se os homens vissem o que está
debaixo da pele, tal como acontece com o lince da Beócia, estremeceriam de horror à
visão da mulher. Toda aquela graça se compõe de mucosidades e de sangue, de humores
e de bílis. Se se pensa naquilo que se esconde nas narinas, na garganta e no ventre, não
se achará senão imundície. E se te repugna tocar no muco ou no esterco com a ponta do
dedo, como é que poderemos desejar abraçar o próprio saco que contém o esterco?
Tive um acesso de vômito. Não queria escutar mais aquelas palavras. Veio em meu
socorro o meu mestre, que tinha ouvido. Aproximou-se bruscamente de Ubertino,
agarrou-lhe o braço e arrancou-o do meu.
- Já chega, Ubertino - disse. - Aquela rapariga estará daqui a pouco sob tortura, e
depois na fogueira. Tornar-se-á exatamente como tu dizes, muco, sangue, humores e
bílis. Mas serão os nossos semelhantes que arrancarão de baixo da sua pele aquilo que o
Senhor quis que fosse protegido e adornado por aquela pele. E, do ponto de vista da
matéria-prima, tu não és melhor que ela. Deixa o moço em paz.
Ubertino perturbou-se:

- Talvez tenha pecado - murmurou. - Sem dúvida que pequei. Que mais pode fazer um
pecador.
Já todos estavam entrando de novo, comentando o acontecido, Guilherme demorou-se
um pouco com Miguel e com os outros menoritas, que lhe perguntavam as suas
impressões.
- Bernardo tem agora um argumento na mão, embora equívoco. Pela abadia vagueiam
necromantes, que fazem as mesmas coisas que foram feitas contra o papa em Avinhão.
Não é decerto uma prova, e em primeira instância não pode ser usada para perturbar o
encontro de amanhã. Esta noite procurará arrancar àquele desgraçado qualquer outra
indicação, da qual, tenho a certeza, não fará uso logo amanhã de manhã. Tê-la-á de
reserva, servir-lhe-á mais adiante para perturbar o andamento das discussões, se acaso
tomarem um caminho que lhe desagrade.
- Poderia obrigá-lo a dizer qualquer coisa a usar contra nós? - perguntou Miguel de
Cesena.
Guilherme ficou na dúvida:
- Esperemos que não - disse.
Dei-me conta de que, se Salvador dizia a Bernardo aquilo que nos tinha dito a nós
sobre o seu passado e o do despenseiro, e se fazia a menor alusão à relação de ambos
com Ubertino, por mais fugaz que tivesse sido, criar-se-ia uma situação bastante
embaraçosa.
- Em todo o caso, esperemos os eventos - disse Guilherme com serenidade. - Por outro
lado, Miguel,
já tudo foi decidido antes. Mas tu queres provar.
- Pois quero - disse Miguel -, e o Senhor me ajudará. Que São Francisco interceda por
todos nós.
- Amém - responderam todos.
- Mas não se sabe - foi o irreverente comentário de Guilherme. - São Francisco poderia
estar em qualquer parte, à espera do juízo, sem ver o Senhor face a face.
- Maldito seja o herético João! - ouvi resmungar monsenhor Jerônimo enquanto cada
um voltava a ir dormir. – Se agora nos tira também a assistência aos santos, onde iremos
nós, pobres pecadores?


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