TERCEIRO DIA

DE LAUDAS A PRIMA

Onde se encontra um pano sujo de sangue na cela de Berengário, desaparecido, e é
tudo.

Enquanto escrevo sinto-me cansado, como me sentia naquela noite, ou melhor,
naquela manhã. Que dizer? Depois do ofício, o Abade incitou a maior parte dos monges,
já em alarme, a procurar por toda a parte, sem resultado.
Quando estavam para chamar as laudas, procurando na cela de Berengário, um monge
encontrou debaixo do enxergão um pano branco sujo de sangue. Mostraram-no ao Abade,
que viu nele tenebrosos auspícios. Estava presente Jorge, que, ao ser informado, disse:

«Sangue!», como se a coisa lhe parecesse inverossímil. Disseram-no a Alinardo, que
abanou a cabeça e disse:
- Não, não, à terceira trombeta a morte vem pela água...
Guilherme observou o pano e depois disse:
- Agora tudo é claro.
- Então, onde está Berengário? - perguntaram-lhe.
- Não sei - respondeu.
Ouviu-o Aymaro, que elevou os olhos ao céu e sussurrou a Pedro de Sant Albano:
- Os ingleses são assim.
Cerca de prima, quando já não havia sol, foram enviados servos a explorar os pés da
escarpa, a toda a volta das muralhas. Voltaram a terça, não tendo encontrado nada.
Guilherme disse-me que não podíamos ter feito melhor. Era preciso esperar os
eventos. E dirigiu-se à forja entretendo-se em cerrada conversa com Nicolau, o mestre
vidreiro.
Eu sentei-me na igreja, junto ao portal central, enquanto se celebravam as missas.
Assim devotamente adormeci, e longo tempo, porque parece que nós, jovens, temos
mais necessidade de sono que os velhos, que já dormiram tanto e se preparam para
dormir pela eternidade.

TERCEIRO DIA

TERÇA

Onde Adso reflete no scriptorium sobre a história da sua ordem e sobre o destino dos
livros.

Saí da igreja menos cansado mas com a mente confusa, porque o corpo não goza um
repouso tranqüilo senão nas horas noturnas. Subi ao scriptorium, pedi licença a Malaquias
e comecei a folhear o catálogo. E enquanto lançava olhares distraídos às folhas que me
passavam debaixo dos olhos, observava na realidade os monges.
Fiquei impressionado com a calma e com a serenidade com que eles estavam
absorvidos pelo seu trabalho, como se um seu irmão não fosse afanosamente procurado
por todo o recinto e outros dois não tivessem já desaparecido em circunstancias
pavorosas. Aqui se vê disse para comigo, a grandeza da nossa ordem: durante séculos e
séculos homens como estes viram irromper as turbas dos bárbaros, saquear as suas
abadias, precipitar os reinos em vértices de fogo, e todavia continuaram a ler a meia voz
palavras que se transmitiam há séculos e que eles transmitiam aos séculos vindouros.
Continuaram a ler e a copiar quando, se aproximava o milênio, porque não haviam de
continuar a fazê-lo agora?
No dia anterior, Bêncio tinha dito que estaria disposto a cometer um pecado para ter
um livro raro. Não mentia nem gracejava. Um monge deveria decerto amar os seus livros
com humildade, querendo o seu bem e não a glória da sua própria curiosidade: mas
aquilo que é para os leigos a tentação do adultério e para os eclesiásticos seculares a
ambição de riquezas é, para os monges, a sedução do conhecimento.
Folheei o catálogo e dançou diante dos meus olhos uma festa de títulos misteriosos:
Quinti Serení de medicamentis, Phaenomena, Líber Aesopi de natura animalium. Líber
Aethici peronymi de cosmographia, Libri tres quos Arculphus episcopus Adamnano
excipiente de loas sanctis ul-tramarínis designavit conscribendos, Libellus Q. lulii
Hilaríonis de origine mundi, Solini Polyhisíor de situ orbis terrarum et mirabili-bus,
Almagesthus...... Não me espantava que o mistério dos delitos girasse à volta da
biblioteca. Para estes homens votados à escrita, a biblioteca era ao mesmo tempo a
Jerusalém celeste e um mundo subterrâneo nos confins entre a terra incógnita e os
infernos. Eles eram dominados pela biblioteca, pelas suas promessas e pelos seus
interditos. Viviam com ela, por ela e talvez contra ela, na esperança culpável de violar
um dia todos os seus segredos. Porque não haviam de se arriscar à morre para satisfazer
uma curiosidade da sua mente, ou matar para impedir que alguém se apropriasse de um
seu segredo ciosamente guardado?

Tentações, decerto, soberba da mente. Bem diverso era o monge escrivão imaginado
pelo nosso santo fundador, capaz de copiar sem compreender, abandonado à vontade de
Deus, escrevente porque orante e orante enquanto escrevente. Porque já não era assim?
Oh, não eram decerto apenas aquelas as degenerescências da nossa ordem! Tinha-se
tornado demasiado poderosa, os seus abades rivalizavam com os reis, não tinha acaso em
Abbone o exemplo de um monarca que com ar de monarca procurava resolver
controvérsias entre monarcas? O próprio saber que as abadias tinham acumulado era
agora usado como moeda de troca, razão de soberba, motivo de ostentação e prestígio;
tal como os cavaleiros ostentavam armaduras e estandartes, os nossos abades
ostentavam códices iluminados... E tanto mais (loucura! ) quanto agora os nossos
mosteiros tinham perdido até a palma da sabedoria: agora as escolas catedrais, as
corporações urbanas, as universidades copiavam livros, talvez mais e melhor do que nós,
e produziam-nos novos - e talvez fosse esta a causa de tantas desventuras.
A abadia em que me encontrava talvez fosse ainda a última a ostentar uma certa
excelência na produção e reprodução da sabedoria. Mas, talvez precisamente por isso, os
seus monges já não se satisfaziam com a obra santa da cópia, queriam também eles
produzir novos complementos da natureza, impelidos pela cobiça de coisas novas. E não
se apercebiam, intuí confusamente naquele momento (e sei-o bem hoje, já encanecido
pelos anos e pela experiência), que, assim fazendo, eles sancionavam a ruína da sua
excelência. Porque, se aquele novo saber que eles queriam produzir refluísse livremente
para fora daquelas muralhas, nada mais distinguiria aquele sagrado lugar de uma escola
catedral ou de uma universidade citadina. Permanecendo oculto, pelo contrário,
mantinha intactos o seu prestígio e a sua força, não era corrompido pela disputa, pela
arrogância quodlibetal que quer submeter ao exame do sic et non todo o mistério e toda
a grandeza. Eis, disse para comigo, as razões do silêncio e da obscuridade que circundam
a biblioteca, ela é reserva de saber mas só pode manter esse saber intacto se impedir
que chegue a qualquer um, até aos próprios monges. O saber não é como a moeda, que
permanece fisicamente íntegra mesmo através das trocas mais infames: ele é antes,
como um fato belíssimo, que se consome através do uso e da ostentação. Não é assim de
fato o próprio livro, cujas páginas se esfarelam, cujas tintas e ouros se tornam opacos se
demasiadas mãos lhe tocam? Aí está, via a pouca distância de mim Pacífico de Tivoli, que
folheava um volume antigo cujas folhas se tinham como que colado umas às outras
devido à umidade. Molhava o indicador e o polegar com a língua para folhear o seu livro,
e a cada toque da sua saliva aquelas páginas perdiam vigor, abri-las queria dizer dobrálas,
oferecê-las à severa ação do ar e do pó, que roeriam as finas veias em que o
pergaminho se encrespava no esforço e produziriam novos mofos lá onde a saliva tinha
amolecido mas enfraquecido o canto da folha. Como um excesso de doçura torna mole e
inábil o guerreiro, este excesso de amor possessivo e curioso predisporia o livro à doença
destinada a matá-lo.

Que se deveria fazer? Cessar de ler, somente conservar? Eram justos os meus temores?
Que diria o meu mestre?
Vi, não muito longe, um rubricador, Magnus de Iona, que tinha acabado de esfregar o
seu velo com a pedra-pomes e o amolecia com o gesso, para depois lhe alisar a superfície
com a plaina. Um outro a seu lado, Rábano de Toledo, tinha fixado o pergaminho à mesa,
marcando-lhe as margens com pequenos furos laterais de ambos os lados, entre os quais
agora riscava com um estilete metálico linhas horizontais finíssimas. Dentro em pouco as
duas folhas encher-se-iam de cores e de formas, a página tornar-se-ia como um relicário,
fúlgida de gemas encastoadas naquele que seria depois o tecido devoto da escritura.
Aqueles dois irmãos disse para comigo, estão vivendo as suas horas de paraíso na terra.
Estavam produzindo novos livros, iguais àqueles que o tempo havia depois de destruir
inexoravelmente... Portanto, a biblioteca não podia ser ameaçada por nenhuma força
terrena, era portanto uma coisa viva... Mas, se era viva, porque não devia abrir-se ao
risco do conhecimento? Era isto o que queria Bêncio e, provavelmente, o que tinha
querido Venancio?
Senti-me confuso e temeroso com os meus pensamentos. Talvez eles não conviessem a
um noviço que devia apenas seguir com escrúpulo e humildade a regra durante os anos
futuros - o que depois fiz, sem me pôr outras perguntas, enquanto à minha volta o
mundo se afundava numa tempestade de sangue e de loucura.
Era a hora da refeição matinal, e dirigi-me à cozinha, onde já me tinha tornado amigo
dos cozinheiros, que me deram alguns dos melhores bocados.

TERCEIRO DIA

SEXTA

Onde Adso recebe as confidências de Salvador, que não se podem resumir em poucas
palavras, mas que lhe inspiram muitas e preocupantes meditações.

Enquanto comia vi, evidentemente reconciliado com o cozinheiro, Salvador, que a um
canto devorava com satisfação um pastel de carne de ovelha. Comia como se nunca
tivesse comido na sua vida, sem deixar cair sequer uma migalha, e parecia dar graças a Deus por aquele fato extraordinário.
Piscou-me o olho e disse-me, na sua linguagem bizarra, que comia por todos aqueles
anos em que tinha jejuado. Interroguei-o. Contou-me a sua infância penosa numa aldeia
em que os ares eram maus, as chuvas muito freqüentes e os campos apodreciam
enquanto tudo era viciado por mortíferos miasmas. Houve, assim o entendi, aluviões
durante estações e estações, a ponto de os campos já não terem regos e com um moio
de semente se fazer um sesteiro, e depois o sesteiro ainda se reduzia a quase nada. Até
os senhores tinham rostos brancos como os pobres, embora, observou Salvador, os pobres
morressem mais do que os senhores, talvez (observou com um sorriso) porque eram em
maior número... Um sesteiro custava quinze soldos, um moio sessenta soldos, os
pregadores anunciavam o fim dos tempos, mas os pais e os avós de Salvador recordavamse
que também tinha sido assim de outras vezes, de modo que daí tinham tirado a
conclusão que os tempos estavam sempre para acabar. E assim, quando haviam comido
todas as carcaças das aves e todos os animais imundos que se podiam encontrar, correu
voz que alguém na aldeia começava a desenterrar os mortos. Salvador explicava com
muita habilidade, como se fosse um histrião, como costumavam fazer aqueles «homeni
malissimi», que escavavam com os dedos debaixo da terra, nos cemitérios, no dia
seguinte às exéquias de alguém. «Gnam!», dizia, e cravava os dentes no seu pastel de
ovelha, mas eu via no seu rosto o trejeito do desesperado que comia o cadáver. E depois,
não contentes com escavar em terra consagrada, uns piores do que os outros, como
ladrões de estrada, agachavam-se na floresta e surpreendiam os viandantes. «Zás!», dizia
Salvador, a faca na garganta, e «Gnam!» E os piores de todos atraiam as crianças com um
ovo ou uma maçã e davam cabo delas, mas, como Salvador me precisou com muita
seriedade, cozendo-as primeiro. Contou o caso de um homem que foi à aldeia vender
carne cozida por pouco dinheiro, e ninguém conseguia capacitar-se de tamanha sorte;
depois o padre disse que se tratava de carne humana, e o homem foi desfeito em
pedaços pela multidão enfurecida. Mas, nessa mesma noite, um qualquer da aldeia foi
escavar a fossa do morto e comeu das carnes do canibal, de modo que, quando foi
descoberto, a aldeia condenou-o também à morte.
Mas Salvador não me contou só esta história. Com palavras truncadas, empenhandome
eu em recordar o pouco que sabia de provençal e de dialetos italianos, contou-me a
história da sua fuga da aldeia natal e o seu vagabundear pelo mundo. E no seu relato
reconheci muitos que já tinha conhecido ou encontrado ao longo do caminho, e muitos
outros que conheci depois reconheço-os agora, de modo que não tenho a certeza de não
lhes atribuir, à distância no tempo, aventuras e delitos que foram de outros, antes dele e
depois dele, e que, agora, na minha mente cansada, se aplanam para desenhar uma
única imagem precisamente pela força da imaginação que, unindo a recordação do ouro
à do monte, sabe compor a idéia de uma montanha de ouro.
Freqüentemente durante a viagem tinha ouvido Guilherme nomear os simples, termo
com que alguns do seus irmãos designavam não só o povo mas ao mesmo tempo os
iletrados. Expressão que me pareceu sempre genérica, porque nas cidades italianas tinha
encontrado homens de comércio e artesãos que não eram clérigos mas que não eram
iletrados, embora os seus conhecimentos se manifestassem através do uso da língua
vulgar. E, devo dizer, alguns dos tiranos que governavam naquele tempo a península
eram ignorantes em ciência teológica, e médica, e lógica, e em latim, mas não eram
decerto simples ou ingênuos. Por isso, creio que também o meu mestre, quando falava
dos simples, usava um conceito bastante simples. Mas, indubitavelmente, Salvador era
um simples, vinha de uma terra castigada, durante séculos, pela penúria e pelas
prepotências dos senhores feudais. Era um simples mas não era um tolo. Aspirava a um
mundo diverso, que, no tempo em que fugiu de casa dos seus, pelo que me disse,
assumia o aspecto do país de Cocanha, onde, das árvores que transpiram mel, crescem
formas de queijo e salpicões perfumados.
Impelido por esta esperança, como se se recusasse a reconhecer este mundo como um
vale de lágrimas, em que (como me ensinaram) até a injustiça foi predisposta pela
providência para manter o equilíbrio das coisas, cujos desígnios freqüentemente nos
escapam, Salvador viajou por várias terras, do seu Monferrate natal até à Ligúria, e
subindo depois da Provença às terras do rei de França.
Salvador vagueou pelo mundo, mendigando, roubando aqui e ali, fingindo-se doente,
pondo-se ao serviço transitório de algum senhor, seguindo de novo a via da floresta, da
estrada principal. Pelo relato que me fez, vi-o associado àqueles bandos de vadios que
depois, nos anos que se seguiram, vi cada vez mais vaguear pela Europa: falsos monges,
charlatões, embusteiros, corcundas, pedintes e maltrapilhos, leprosos e estropiados,
andarilhos, vagabundos, cantores ambulantes, clérigos sem pátria, estudantes
itinerantes, batoteiros, malabaristas, mercenários inválidos, judeus errantes, escapados
aos infiéis com o espírito incapacitado, loucos, fugitivos do degredo, malfeitores de
orelhas cortadas, sodomitas, e entre eles artesãos ambulantes, tecelões, caldeireiros,
cadeireiros, amoladores, empalhadores, pedreiros, e ainda canalhas de toda a espécie,
batoteiros, malandros, malandrões, patifes, velhacos, guiões, burlões, zés-ninguém,
pedintes, e canônicos e padres simomacos, e aldrabões e gente que então vivia à custa
da credulidade alheia, falsários de bulas e selos papais, vendedores de indulgências,
falsos paralíticos que se deitavam à porta das igrejas, vadios em fuga dos conventos,
vendedores de relíquias, perdoadores, adivinhos e quiromantes, necromantes,
curandeiros, falsos mendigos, e fornicadores de toda a espécie, corruptores de monjas e
de raparigas com enganos e violências, simuladores de hidropisia, epilepsia,
hemorróidas, gota e chagas, e até de loucura melancólica. Havia-os que aplicavam
emplastros pelo corpo para fingirem úlceras incuráveis, outros que enchiam a boca com
uma substancia cor de sangue para simularem escarros de tísica, patifes que fingiam ser
débeis de um dos membros, usando bengalas sem necessidade e imitando a epilepsia,
sarnas, bubões, inchaços, aplicando vendas, tinturas de açafrão, usando ferros nas mãos,
faixas na cabeça, enfiando-se fedorentos nas igrejas e deixando-se cair de repente nas
praças, cuspindo baba e revirando os olhos, deitando pelas narinas sangue feito de sumo
de amoras e vermelhão, para arrancar comida ou dinheiro às gentes atemorizadas que
recordavam os convices dos santos padres à esmola: divide com o esfomeado o teu pão,
leva para casa quem não tem teto, visitemos Cristo, acolhamos Cristo, vistamos Cristo,
porque como a água purga o fogo assim a esmola purga os nossos pecados.

Mesmo depois dos fatos que narro, ao longo do curso do Danúbio, vi e ainda vejo
muitos destes charlatões, que tinham os seus nomes e as suas subdivisões em legiões,
como os demônios: capões, lotori, protomédicos, pauperes verecundi, cangalheiros,
esfomeados, cruzeiros, chagados, relicários, enfatinhados, apalpadores, incchi specrini,
cochini, esfarrapados e atarantados, acconi e admiracti, muruadores, tremelicantes,
vira-latas, falsos-bordões, desdentados, lacrimejantes e farsantes.
Era como um lodo que escorria pelas veredas do nosso mundo, e entre eles
insinuavam-se pregadores de boa-fé, hereges à procura de novas presas, agitadores de
discórdia. Tinha sido precisamente o papa João, sempre temeroso dos movimentos dos
simples que pregassem e praticassem a pobreza, que se tinha lançado contra os
pregadores mendicantes, que, segundo ele, atraíam os curiosos arvorando estandartes
pintados com figuras, pregavam e extorquiam dinheiro. Estaria o papa simoníaco e
corrupto, na verdade, quando equiparava frades mendicantes, que pregavam a pobreza,
a estes bandos de deserdados e de rapinadores? Eu, naqueles dias, depois de ter viajado
um pouco pela península italiana, já não tinha as idéias claras: tinha ouvido frades de
Altopascio que, pregando, ameaçavam excomunhões e prometiam indulgências,
absolviam de roubos e fratricídios, de homicídios e perjúrios contra o desembolso de
dinheiro, davam a entender que no seu hospital se celebravam por dia até cem missas,
para as quais recolhiam doações, e que, com os seus bens, dotavam duzentas raparigas
pobres. E tinha ouvido falar de frade Paulo Coxo, que na floresta de Rieri vivia como
eremita e se gabava de ter tido diretamente do Espírito Santo a revelação de que o ato
carnal não era pecado: assim, seduzia as suas vítimas, que chamava suas irmãs,
obrigando-as a entregar ao açoite a carne nua, fazendo em terra cinco genuflexões em
forma de cruz, antes de apresentar as suas vítimas a Deus e de pretender delas aquilo a
que chamava o beijo da paz. Mas seria verdade? E que coisa ligava estes eremitas, que se
diziam iluminados, aos frades da vida pobre que percorriam as estradas da península
fazendo verdadeiramente penitência, malvistos pelo clero e pelos bispos cujos vícios e
roubos fustigavam?
Pelo relato de Salvador, tal como se misturava com as coisas que eu já sabia por mim,
estas distinções não apareciam à luz do dia: tudo parecia igual a tudo. Por vezes pareciame
um daqueles pedintes aleijados de Turena de que fala a fábula , os quais, ao
aproximarem-se dos despojos milagrosos de São Martinho, se puseram em fuga temendo
que o santo os curasse, tirando-lhes assim a fonte dos seus lucros, e o santo, sem
piedade, agraciou-os antes de chegarem à fronteira, punindo-os da sua malvadez ao
restituir-lhes o uso dos membros. Outras vezes, pelo contrário, o rosto ferido do monge
iluminava-se de luz dulcíssima quando me contava como, vivendo entre aqueles bandos,
tinha escutado a palavra dos pregadores franciscanos, como ele clandestinos, e tinha
compreendido que a vida pobre e errante que levava não devia ser tomada como uma
sombria necessidade mas como um gesto alegre de dedicação, e tinha começado a fazer
parte de seitas e grupos penitenciais cujos nomes estropiava e cuja doutrina definia de
modo bastante impróprio. Dai deduzi que tinha encontrado patarinos e valdenses, e
talvez cátaros, arnaldistas e humilhados, e que, vagueando pelo mundo, tinha passado
de grupo em grupo, assumindo gradualmente como missão a sua condição de errante e
fazendo pelo Senhor aquilo que antes fazia pelo seu ventre.

Mas como e até quando? Pelo que compreendi, uns trinta anos antes, ele tinha-se
agregado a um convento de menoritas na Toscana e ai tinha endossado o saio de São
Francisco, sem tomar ordens. Ali, creio, tinha aprendido o pouco latim que falava,
misturando-o com os falares de todos os lugares em que, pobre sem pátria, tinha estado
e de todos os companheiros de vagabundagem que tinha encontrado, desde os
mercenários das minhas terras aos bogomilos dálmatas. Ali se tinha entregue a uma vida
de penitência, dizia (penitenciagite, citava-me com olhos inspirados, e de novo ouvi a
fórmula que tinha intrigado Guilherme), mas, segundo parece, também os frades
menores junto de quem estava tinham idéias confusas, porque, irados contra o canônico
da igreja vizinha, acusado de roubos e outras ações nefandas, invadiram-lhe um dia a
casa e fizeram-no rolar pelas escadas, de maneira que o pecador morreu, e depois
saquearam a igreja. Por isto, o bispo enviou homens armados, os frades dispersaram-se,
e Salvador vagueou longo tempo pela alta Itália com um bando de fraticelli, ou melhor,
de menoritas mendicantes sem outra lei ou disciplina.
Refugiou-se então na região de Toulouse, onde lhe aconteceu uma estranha história,
enquanto se inflamava ao ouvir o relato das grandes empresas dos cruzados. Uma massa
de pastores e de gente humilde, em grande procissão, reuniu-se um dia para atravessar o
mar e combater contra os inimigos da fé. Chamaram-lhes pastorelli. De fato, o que eles
queriam era fugir da sua terra maldita. Havia dois chefes, que lhes inculcaram falsas
teorias, um sacerdote, que tinha sido privado da sua igreja devido à sua conduta, e um
monge apóstata da ordem de São Bento. Estes tinham feito perder a cabeça àqueles
ingênuos a tal ponto que, correndo em bandos atrás deles, até rapazes de dezesseis
anos, contra a vontade dos pais, levando consigo apenas uma sacola e um bordão, sem
dinheiro, abandonando os campos, os seguiam como um rebanho e formavam uma grande
multidão. Então, já não seguiam nem a razão nem a justiça, mas apenas a força e a sua
vontade. Encontraram-se todos juntos, finalmente livres e com uma obscura esperança
de terras prometidas, como que os embriagou. Percorriam as aldeias e as cidades
apoderando-se de tudo, e se um deles era preso assaltavam as prisões e libertavam-no.
Quando entraram na fortaleza de Paris para fazer sair alguns dos seus companheiros que
os senhores tinham mandado prender, pois que o preboste de Paris tentava opor
resistência, feriram-no e atiraram-no pelos degraus da fortaleza e quebraram as portas
do cárcere. Depois alinharam-se em posição de batalha no prado de Saint-Germain. Mas
ninguém ousou fazer-lhes frente, e saíram de Paris dirigindo-se para a Aquitania. E
matavam todos os judeus que iam encontrando e despojavam-nos dos seus bens...

- Porquê os judeus? - perguntei a Salvador.
E ele respondeu-me:
- E porque não?
E explicou-me que toda a vida tinham ouvido os pregadores que os judeus eram os
inimigos da cristandade e acumulavam os bens que a eles lhes eram negados. Pergunteilhe
se não era porém verdade que os bens eram acumulados pelos senhores e pelos
bispos, através das décimas, e que, portanto, os pastorelli não combatiam os seus
verdadeiros inimigos. Respondeu-me que, quando os verdadeiros inimigos são demasiado
fortes, é preciso então escolher inimigos mais fracos. Refleti que, por esse motivo, os
simples são assim chamados. Só os poderosos sabem sempre com grande clareza quem
são os seus verdadeiros inimigos. Os senhores não queriam que os pastorelli pusessem em
perigo os seus bens, e foi portanto uma grande sorte para eles que os chefes dos
pastorelli insinuassem a idéia de que muitas das riquezas estavam entre os judeus.
Perguntei quem tinha metido na cabeça à multidão que era preciso atacar os judeus.
Salvador não se recordava. Creio que, quando se reúnem tais multidões seguindo uma
promessa e pedindo de imediato alguma coisa, nunca se sabe quem fala no meio deles.
Pensei que os seus chefes tinham sido educados nos conventos e nas escolas episcopais, e
falavam a linguagem dos senhores, embora a traduzissem em termos compreensíveis a
pastores. E os pastores não sabiam onde estava o papa, mas sabiam onde estavam os
judeus. Em suma, tomaram de assalto uma alta e sólida torre do rei de França, onde os
judeus, assustados, tinham acorrido a refugiar-se em massa. E os judeus que saíam por
baixo das muralhas da torre defendiam-se corajosa e tenazmente, lançando lenha e
pedras. Mas os pastorelli pegaram fogo à porta da torre, torturando os judeus barricados
com o fumo e o fogo. Os judeus, não podendo salvar-se, preferindo matar-se a morrer às
mãos dos não circuncisos, pediram a um deles, que parecia o mais corajoso, que os
matasse com a espada. Ele consentiu, e matou quase quinhentos. Depois saiu da torre
com os filhos dos judeus, e pediu aos pastorelli para ser batizado. Mas os pastorelli
disseram-lhe: «Tu fizeste um tal massacre entre a tua gente e agora pretendes livrar-te
da morte?», e fizeram-no em pedaços, poupando as crianças, que mandaram batizar.
Depois dirigiram-se para Carcassonne, perpetrando muitas e sangrentas rapinas pelo
caminho. Então o rei de França apercebeu-se que eles tinham passado os limites e
ordenou que se lhes opusesse resistência em todas as cidades por onde passassem e se
defendessem inclusivamente os judeus como se fossem homens do rei...

Porque é que o rei se tornou tão solícito para com os judeus naquela altura? Talvez
por ter receio daquilo que os pastorelli poderiam fazer em todo o reino e que o seu
número crescesse demasiado. Então sentiu ternura até pelos judeus, quer porque os
judeus eram úteis ao comércio do reino quer porque agora era preciso destruir os
pastorelli, e era necessário que todos os bons cristãos achassem razão para chorarem
sobre os seus delitos. Mas muitos cristãos não obedeceram ao rei, pensando que não era
justo defender os judeus, que sempre tinham sido inimigos da fé cristã. E em muitas
cidades a gente do povo, que tivera de pagar usura aos judeus, sentia-se feliz, porque os
pastorelli os puniam pela sua riqueza. Então, o rei ordenou sob pena de morte que não
se desse ajuda aos pastorelli. Reuniu um numeroso exército e atacou-os, e muitos deles
foram mortos, outros escaparam pela fuga e refugiaram-se nas florestas, onde pereceram
à mingua. Em pouco tempo foram todos aniquilados. E o representante do rei capturouos
e enforcou-os aos vinte e trinta de cada vez nas árvores mais altas, para que a vista
dos seus cadáveres servisse de exemplo eterno e mais ninguém ousasse perturbar a paz
do reino.
O fato singular é que Salvador me contou esta história como se se tratasse de uma
virtuosíssima empresa. E, de fato, continuava convencido que a multidão dos pastorelli
se tinha agitado para conquistar o sepulcro de Cristo e libertá-lo dos infiéis, e não me foi
possível fazer-lhe crer que esta belíssima conquista já tinha sido feita, no tempo de
Pedro, o Eremita e de São Bernardo e sob o reinado de Luís, o Santo, de França. De
qualquer modo, Salvador não foi para a terra dos infiéis, porque teve de se afastar o
mais depressa possível das terras francesas. Passou pela província de Novara, disse-me,
mas sobre o que então aconteceu foi muito vago. E finalmente chegou a Casale, onde
conseguiu que o acolhessem no convento dos menoritas (e creio que aqui tinha
encontrado Remígio), precisamente no tempo em que muitos deles, perseguidos pelo
papa, mudavam de saio e procuravam refúgio em mosteiros de outra ordem, para não
acabarem por ser queimados. Como de fato nos tinha contado Ubertino. Por causa das
suas longas experiências em muitos trabalhos manuais (que tinha feito com fins
desonestos quando errava livremente e com fins santos quando errava por amor de
Cristo), Salvador foi logo escolhido pelo despenseiro como seu ajudante. Eis porque há
muitos anos estava naquele sitio, pouco interessado nos fatos da ordem, muito na
administração da cave e da despensa, livre de comer sem roubar e de louvar o Senhor
sem ser queimado.

Esta foi a história que dele ouvi, entre duas dentadas, e perguntei-me o que teria ele
inventado e o que teria calado.
Olhei-o com curiosidade, não pela singularidade da sua experiência mas antes
precisamente porque o que lhe tinha acontecido me parecia um epítome esplêndido de
tantos eventos e movimentos que tornavam fascinante e incompreensível a Itália daquele
tempo.
Que tinha emergido daquela conversa? A imagem de um homem de vida aventurosa,
capaz até de matar um seu semelhante sem dar conta do seu próprio delito. Mas, embora
naquele tempo uma ofensa à lei divina me parecesse igual a qualquer outra, começava já
a compreender alguns dos fenômenos de que ouvia falar, e compreendia que uma coisa é
o massacre que uma multidão, arrebatada quase ao êxtase e trocando as leis do diabo
pelas do Senhor, podia cometer, e outra coisa é o delito individual perpetrado a sanguefrio,
no silêncio e na astúcia. E não me parecia que Salvador pudesse ter-se manchado
com um crime semelhante.
Por outro lado, queria descobrir alguma coisa sobre as insinuações feitas pelo Abade,
e estava obcecado pela idéia de frei Dolcino, de quem não sabia quase nada. E no
entanto o seu fantasma parecia adejar sobre muitas conversas que tinha ouvido naqueles
dois dias.
Assim, perguntei-lhe à queima-roupa:

- Nas tuas viagens nunca conheceste frei Dolcino?
A reação de Salvador foi singular. Arregalou os olhos, se acaso pudesse tê-los ainda
mais arregalados, benzeu-se repetidas vezes, murmurou algumas frases entrecortadas,
numa linguagem que daquela vez, verdadeiramente não entendi. Mas pareceram-me
frases de negação. Até então tinha-me olhado com simpatia e confiança, diria com
amizade. Naquele instante olhou-me quase com rancor. Depois, com um pretexto
qualquer, foi-se embora.
A partir de agora não podia resistir mais. Quem era este frade que incutia terror a
quem o ouvia nomear? Decidi que não podia ficar mais tempo subjugado pelo meu desejo
de saber. Uma idéia me atravessou a mente. Ubertino! Ele próprio tinha pronunciado
aquele nome, na primeira noite em que o encontramos, ele sabia tudo das vicissitudes
claras e obscuras dos frades, fraticelli e outras raças daqueles últimos anos. Onde podia
encontrá-lo aquela flora? Certamente na igreja, mergulhado na oração. E foi ali, visto
que gozava de um momento de liberdade, que me dirigi.
Não o encontrei, e não o encontrei mesmo até à noite. E assim fiquei com a minha
curiosidade, enquanto aconteciam os outros fatos que devo agora narrar.

TERCEIRO DIA

NONA

Onde Guilherme fala a Adso do grande rio herético, da Junção dos simples na igreja,
das suas dúvidas sobre a cognoscivilidade das leis gerais, e quase por acaso conta como
decifrou os sinais necrománticos deixados por Venancio.

Encontrei Guilherme na forja, trabalhando com Nicolau, ambos bastante absorvidos
pelo seu trabalho. Tinham disposto sobre o balcão muitos minúsculos discos de vidro,
talvez já prontos para serem inseridos nas juntas de um vitral, e tinham reduzido alguns,
com os instrumentos adequados, à espessura desejada. Guilherme experimentava-os,
pondo-os diante dos olhos. Nicolau, por seu lado, estava dando instruções aos ferreiros
para que construíssem a forquilha em que os vidros melhores deveriam ser depois
encastoados.
Guilherme resmungava irritado, porque, até àquele momento, a lente que mais o
satisfazia era cor de esmeralda, e ele, dizia, não queria ver os pergaminhos como se
fossem prados. Nicolau afastou-se para vigiar os ferreiros. Enquanto se atarefava com os
seus pequenos discos, contei-lhe o meu diálogo com Salvador.
- O homem teve várias experiências – disse -, talvez tenha estado realmente com os
dolcinianos. Esta abadia é um verdadeiro microcosmo; quando tivermos cá os legados do
papa João e frei Miguel o quadro estará realmente completo.
- Mestre - disse-lhe -, eu já não compreendo nada.
- A propósito de quê, Adso?
- Primeiro, acerca das diferenças entre grupos heréticos. Mas isso pergunto-vo-lo
depois. Agora estou preocupado com o próprio problema da diferença. Tive a impressão
de que, falando com Ubertino, vós tentastes demonstrar-lhe que são todos iguais, santos
e hereges. E, ao invés, falando com o Abade, vós esforçáveis-vos por lhe explicar a
diferença entre herege e herege, e entre herege e ortodoxo. Isto é, vos censuráveis a
Ubertino que considerasse diferentes aqueles que no fundo eram iguais, e ao Abade que
considerasse iguais aqueles que no fundo eram diferentes.
Guilherme pousou por um instante as lentes sobre a mesa.
- Meu bom Adso - disse -, procuremos fazer distinções, e distingamos então nos termos
das escolas de Paris. Então, dizem por lá, todos os homens têm a mesma forma
substancial, ou engano-me?
- Decerto - disse, orgulhoso do meu saber – são animais racionais e se distinguem por
serem capazes de rir.
- Muito bem. Porém, Tomás é diferente de Boaventura, e Tomás e gordo enquanto
Boaventura é magro, e até pode acontecer que Ugaccione seja mau enquanto Francisco é
bom, e Aldemaro é fleumático enquanto Agilulfo é bilioso. Ou não?
- Sem dúvida, é assim.
- Então isso significa que há identidade, em homens diferentes, quanto à sua forma
substancial e diferença quanto aos acidente, ou melhor, quanto às suas terminações
superficiais.
- É, sem dúvida alguma, assim.
- E então, quando digo a Ubertino que a mesma natureza humana, na complexidade
das suas operações, preside tanto ao amor do bem como ao amor do mal, procuro
convencer Ubertino da identidade da natureza humana. Quando depois digo ao Abade
que há diferença entre um cátaro e um valdense, insisto na variedade dos seus
acidentes. E insisto nisso porque acontece que se queima um valdense atribuindo-lhe os
acidentes de um cátaro e vice-versa. E quando se queima um homem queima-se a sua
substancia individual e reduz-se a puro nada aquilo que era um concreto ato de existir,
bom em si pelo mesmo, pelo menos aos olhos de Deus, que o mantinha no ser. Parece-te
uma boa razão para insistir sobre as diferenças?
- Sim, mestre - respondi com entusiasmo. - Agora compreendi porque falais assim, e
aprecio a vossa boa filosofia!
- Não é a minha - disse Guilherme -, e nem sequer sei se é a boa. Mas o importante é
que tu tenhas compreendido. Vamos agora à tua segunda pergunta.
- É que – disse - creio que não sirvo para nada. Já não consigo distinguir a diferença
acidental entre valdenses, cátaros, pobres de Lião, humilhados, beguinos, santanários,
lombardos, joaquimitas, patarinos, apostólicos, pobres lombardos, arnaldistas,
guilhermistas, seguidores do livre espírito e luciferinos. Que hei-de fazer?
- Oh, pobre Adso - riu Guilherme, dando-me uma afetuosa palmadinha na nuca -, não
estás errado de todo! Vês, é como se nos últimos dois séculos, e ainda antes, este nosso
mundo tivesse sido percorrido por ventos de intolerância, esperança e desespero, todos
juntos... Ou então não, não é uma boa analogia. Pensa num rio, denso e majestoso, que
corre por milhas e milhas entre robustos diques, e tu sabes onde está o rio, onde o
dique, onde a terra firme. A certa altura, o rio, de cansaço, porque correu por
demasiado tempo e demasiado espaço, porque se aproxima o mar, que anula em si todos
os rios, já não sabe o que é. Torna-se o seu próprio delta. Permanece talvez um braço
maior, mas muitos outros se ramificam, em todas as direções, e alguns confluem uns nos
outros, e já não sabes o que está na origem do que é, e por vezes não sabes o que ainda
é rio e o que é já mar...
- Se bem compreendo a vossa alegoria, o rio é a cidade de Deus, ou o reino dos justos,
que se aproxima do milênio, e nesta incerteza ele já não se contém, nascem falsos e
verdadeiros profetas, e tudo conflui na grande planície onde terá lugar o Armagedon...
- Não pensava exatamente nisso. Mas também é verdade que entre nós, franciscanos,
continua viva a idéia de uma terceira idade e do advento do reino do Espírito Santo. Não,
procurava antes fazer-te compreender como o corpo da Igreja, que também foi durante
séculos o corpo de toda a sociedade, o povo de Deus, se tornou demasiado rico, e denso,
e arrasta consigo as escórias de todos os países que atravessou, e perdeu a sua pureza
própria. Os braços do delta são, se quiseres, outras tantas tentativas do rio para correr o
mais depressa possível para o mar, ou seja, para o momento da purificação. Mas a minha
alegoria era imperfeita, servia apenas para te dizer como os ramos da heresia e dos
movimentos de renovação, quando o rio já não se contém, são numerosos e se
confundem. Podes ainda acrescentar à minha péssima alegoria a imagem de alguém que
tenta à viva força reconstruir os diques do rio, mas não consegue. E alguns braços do
delta são enterrados, outros reconduzidos ao rio por canais artificiais, outros ainda
deixam-nos correr, porque não se pode conter tudo, e é bom que o rio perca parte da
sua água se quer manter-se íntegro no seu curso, se quer ser um curso reconhecível.

- Cada vez compreendo menos.
- Também eu. Não sou forte a falar de modo parabólico. Esquece esta história do rio.
Procura antes compreender como nasceram muitos dos movimentos que nomeaste, há
pelo menos duzentos anos, e já morreram, outros são recentes...
- Mas quando se fala de hereges nomeiam-se todos em conjunto.
- É verdade, mas este é um dos modos pelos quais a heresia se difunde e um dos
modos pelos quais é destruída.
- Não compreendo novamente.
- Meu Deus, como é difícil. Bem. Imagina que és um reformador dos costumes e reúnes
alguns companheiros no cimo de um monte, para viver na pobreza. E, algum tempo
depois, vês que muitos vêm a ti, mesmo de terras distantes, e te consideram um profeta,
ou um novo apóstolo, e te seguem. Vêm verdadeiramente por ti ou por aquilo que dizes?
- Não sei, espero. Porquê de outro modo?
- Porque ouviram aos seus pais histórias de outros reformadores lendas de
comunidades mais ou menos perfeitas, e pensam que esta aquela e aquela é esta.
- Assim, qualquer movimento herda os filhos dos outros.
- Decerto, porque a ele acorrem na sua maior parte os simples, que não têm sutileza
doutrinal. E no entanto os movimentos de reforma dos costumes nascem em lugares e de
modos diversos e com diversas doutrinas. Por exemplo, confundem-se freqüentemente os
cátaros e os valdenses. Mas existe entre eles uma grande diferença. Os valdenses
pregavam uma reforma dos costumes no interior da Igreja, os cátaros pregavam uma
Igreja diversa, uma diversa visão de Deus e da moral. Os cátaros pensavam que o mundo
estava dividido entre as forças opostas do bem e do mal, e tinham constituído uma Igreja
em que se distinguiam os crentes perfeitos dos simples, e tinham os seus sacramentos e
os seus ritos; tinham constituído uma hierarquia muito rígida, quase tanto como a da
nossa Santa Madre Igreja, e não pensavam de forma nenhuma em destruir qualquer
forma de poder. O que te explica porque aderiram aos cátaros mesmo homens de
comando, proprietários, feudatários. Também não pensavam em reformar o mundo,
porque a oposição entre bem e mal para eles não poderá jamais ser desfeita. Os
valdenses, pelo contrário (e com eles os arnaldistas ou os pobres lombardos), queriam
construir um mundo diverso a partir de um ideal de pobreza, por isso acolhiam os
deserdados e viviam em comunidade do trabalho das suas própria mãos. Os cátaros
negavam os sacramentos da Igreja, os valdenses não, negavam só a confissão auricular.

- Mas porque é que então são confundidos e se fala deles como da mesma planta má?
- Já to disse, aquilo que os faz viver é também aquilo que os faz morrer. Enriquecem
com os simples que foram estimulados por outros movimentos e que crêem que se trata
do mesmo movimento de revolta e de esperança; e são destruídos pelos inquisidores, que
atribuem a uns os erros dos outros, e se os seguidores de um movimento cometeram um
delito, este delito será atribuído a cada seguidor de cada um dos movimentos. Os
inquisidores estão errados segundo a razão, porque juntam doutrinas contrastantes; têm
razão segundo o erro dos outros, porque quando nasce um movimento, verbigratia, de
arnaldistas, numa cidade, para aí convergem também aqueles que seriam ou foram
cátaros ou valdenses algures. Os apóstolos de frei Dolcino pregavam a destruição física
dos clérigos e dos senhores, e cometeram muitas violências; os valdenses são contrários à
violência, e os fraticelli também. Mas tenho a certeza de que nos tempos de frei Dolcino
convergiram no seu grupo muitos que já tinham seguido a pregação dos fraticelli ou dos
valdenses. Os simples não podem escolher a sua heresia, Adso, agarram-se a quem prega
na sua terra, a quem passa pela aldeia ou pela praça. É com isto que jogam os seus
inimigos. Apresentar aos olhos do povo uma única heresia, que possa aconselhar ao
mesmo tempo não só a recusa do prazer sexual mas também a comunhão dos corpos, é
boa arte de pregador: porque mostra os hereges como um único enredo de diabólicas
contradições que ofendem o senso comum.

- Portanto não há relação entre eles e é por engano do demônio que um simples que
quereria ser joaquimita ou espiritual cai nas mãos dos cátaros ou vice-versa?
- E, no entanto, não é assim. Procuremos recomeçar do princípio, Adso, e asseguro-te
que procuro explicar-te uma coisa sobre a qual nem eu sequer creio possuir a verdade.
Penso que o erro é crer que primeiro vem a heresia, depois os simples que a ela se dão (e
se condenam). Na verdade, primeiro vem a condição dos simples, depois a heresia.
- E como?
- Tu tens uma visão clara da constituição do povo de Deus. Um grande rebanho,
ovelhas boas e ovelhas más, refreadas por cães mastins, os guerreiros, ou melhor, o
poder temporal, o imperador e os senhores guiados pelos pastores, os clérigos, os
intérpretes da palavra divina. A imagem é clara.
- Mas não é verdadeira. Os pastores combatem com os cães, porque cada um deles
quer os direitos do outro.
- É verdade, e é exatamente isso que torna imprecisa a natureza do rebanho. Perdidos
como são para se dilacerarem mutuamente, cães e pastores já não cuidam do rebanho.
Uma parte dele fica de fora.
- Como de fora?
- Nas margens. Camponeses não são camponeses, porque não têm terra, ou aquela que
têm não os alimenta. Cidadãos não são cidadãos, porque não pertencem nem a uma arte
nem a outra corporação, são a arraia-miúda, presa de qualquer um. Viste alguma vez nos
campos grupos de leprosos?
- Sim, uma vez vi cem juntos. Disformes, com a carne a desfazer-se e toda
esbranquiçada, de muletas, pálpebras inchadas, os olhos ensangüentados, não falavam
nem gritavam: chiavam como ratos.
- Eles são para o povo cristão os outros, os que se encontram nas margens do rebanho.
O rebanho odeia-os, eles odeiam o rebanho. Quereriam ver-nos todos mortos, todos
leprosos como eles.
- Sim, recordo uma história do rei Tristão, que devia condenar Isolda, a Bela, e a fazia
subir à fogueira e vieram os leprosos e disseram ao rei que a fogueira era castigo leve e
que havia um pior. E gritaram-lhe: dá-nos Isolda, que pertença a todos nós, o mal acende
os nossos desejos, dá-a aos teus leprosos, olha, os nossos farrapos estão colados às
chagas que gemem, ela, que a teu lado se comprazia com os ricos tecidos forrados de
baio e com as jóias, quando vir a corte dos leprosos, quando tiver de entrar nos nossos
tugúrios e deitar-se conosco, então reconhecerá deveras o seu pecado e terá saudades
deste belo fogo de sarças!

- Vejo que, sendo um noviço de São Bento, tens leituras bastante curiosas - gracejou
Guilherme, e eu corei, porque sabia que um noviço não devia ler romances de amor, mas
entre nós, rapazinhos, circulavam no mosteiro de Melk, e liamo-los de noite à luz da
vela. - Mas não importa - continuou Guilherme -, compreendeste o que queria dizer. Os
leprosos excluídos quereriam arrastar todos na sua ruma. E tornar-se-ão tanto piores
quanto mais os exclusos, e quanto mais os representares como uma corte de lêmures que
querem a tua ruína tanto mais eles serão excluídos. São Francisco compreendeu isto, e a
sua primeira escolha foi ir viver entre os leprosos. Não se muda o povo de Deus se não se
integrarem no seu corpo os marginais.
- Mas vós faláveis de outros excluídos, não são os leprosos que compõem os
movimentos heréticos.
- O rebanho é como uma série de círculos concêntricos, das mais amplas distâncias do
rebanho à sua periferia imediata. Os leprosos são sinal da exclusão em geral. São
Francisco tinha-o compreendido. Não queria ajudar apenas os leprosos, que a sua ação
Ter-se-ia reduzido a um bem pobre e impotente ato de caridade. Queria significar outra
coisa. Contaram-te as prédicas aos pássaros?
- Oh, sim, ouvi essa historia belíssima e admirei o santo que gozava da companhia
daquelas ternas criaturas de Deus – disse com grande fervor.
- Pois bem, contaram-te uma história falsa, ou melhor, a história que a ordem está
hoje a reconstruir. Quando Francisco falou ao povo da cidade e aos seus magistrados e
viu que estes não o compreendiam saiu para o cemitério e pôs-se a pregar a corvos e
pegas, a gaviões, a aves de rapina que se alimentavam de cadáveres.

- Que coisa horrenda – disse -, não eram então pássaros bons!
- Eram aves de rapina, aves excluídas, como os leprosos. Francisco pensava decerto
naquele verso do Apocalipse que diz: «Vi um anjo, levantado no Sol, gritar com voz forte
e dizer a todas as aves que voavam ao sol, vinde e reuni-vos todas no grande banquete
de Deus, comei a carne de reis, a carne de tribunos e de soberbos, a carne de cavalos e
de cavaleiros, a carne de livres e de escravos, de pequenos e de grandes!»
- Então, Francisco queria incitar os excluídos à revolta?
- Não, isso fizeram-no quando muito Dolcino e os seus. Francisco queria chamar os
excluídos, prontos para a revolta, a fazer parte do povo de Deus. Para recompor o
rebanho era preciso reencontrar os excluídos. Francisco não conseguiu, e digo-te com
muita amargura. Para reintegrar os excluídos devia agir no interior da Igreja, para agir
no interior da Igreja devia obter o reconhecimento da sua regra, da qual sairia uma
ordem, e uma ordem, como daí resultou, recomporia a imagem de um círculo, à margem
do qual estão os excluídos. Então compreendes, agora, porque existem os bandos dos
fraticelli e dos joaquimitas, que reúnem à sua volta os excluídos, uma vez mais.
-Mas não estávamos a falar de Francisco, mas de como a heresia é o produto dos
simples e dos excluídos.
- De fato. Falávamos dos excluídos do rebanho das ovelhas. Durante séculos, enquanto
o papa e o imperador se digladiavam nas suas diatribes de poder, estes continuaram a
viver nas margens, eles, os verdadeiros leprosos, dos quais os leprosos são apenas a
imagem disposta por Deus para que nós compreendêssemos esta admirável parábola e
dizendo «leprosos» compreendêssemos «excluídos, pobres, simples, deserdados,
desenraizados dos campos, humilhados nas cidades». Não compreendemos, o mistério da
lepra continuou a obcecar-nos porque não reconhecemos a sua natureza de sinal.
Excluídos como eram do rebanho, todos eles estavam prontos a escutar, ou a produzir,
qualquer pregação que, reclamando-se da palavra de Cristo, pusesse com eleito sob
acusação o comportamento dos cães e dos pastores e prometesse que um dia eles seriam
punidos. Isto, os poderosos sempre o compreenderam. A reintegração dos excluídos
impunha a redução dos seus privilégios, por isso os excluídos que assumiam consciência
da sua exclusão eram rotulados de hereges, independentemente da sua doutrina. E
estes, por seu lado, cegos pela sua exclusão, não estavam verdadeiramente interessados
em nenhuma doutrina. A ilusão da heresia é esta. Qualquer um é herege, qualquer um é
ortodoxo, não conta a fé que um movimento oferece, conta a esperança que propõe.

Todas as heresias são a bandeira de uma realidade da exclusão. Raspa a heresia,
encontrarás o leproso. Qualquer batalha contra a heresia quer somente isto: que o
leproso permaneça tal como é. Quanto aos leprosos, que lhes queres pedir? Que
distingam no dogma trinitário ou na definição da eucaristia o que é justo e o que é
errado? Vamos, Adso, estes são jogos para nós, homens de doutrina. Os simples têm
outros problemas. E, repara, resolvem-nos todos da pior maneira. Por isso se tornam
hereges.
- Mas porque é que alguns os apóiam?
- Porque servem o seu jogo, que raramente diz respeito à fé e mais freqüentemente à
conquista do poder.
- É por isso que a Igreja de Roma acusa de heresia todos os seus adversários?
- É por isso, e é por isso que reconhece como ortodoxia a heresia que pode reconduzir
sob o seu próprio controle ou que tem de aceitar, porque se tornou demasiado forte e
não seria bom tê-la como adversária. Mas não há uma regra precisa, depende dos
homens, das circunstâncias. E isto é válido também para os senhores laicos. Há cinqüenta
anos, a comuna de Pádua emitiu uma ordem pela qual quem matava um clérigo era
condenado à multa de um denário grande...
- Nada!
- Exato. Era um modo de encorajar o ódio popular contra os clérigos, a cidade estava
em luta contra o bispo. Agora compreendes porque, há tempos, em Cremona, os fiéis do
império ajudaram os cátaros, não por razões de fé, mas para colocar em embaraço a
Igreja de Roma. Por vezes, as magistraturas citadinas encorajam os hereges porque
traduzem em língua vulgar o Evangelho: o vulgar é hoje em dia a língua das cidades, o
latim é a língua de Roma e dos mosteiros. Ou então apóiam os valdenses porque afirmam
que todos, homens e mulheres, pequenos e grandes, podem ensinar e pregar, e o
operário que é discípulo dez dias depois procura outro para se tornar seu mestre...
- E assim eliminam a diferença que torna insubstituíveis os clérigos! Mas então porque
acontece depois que as próprias magistraturas citadinas se revoltam contra os hereges e
dão mão forte à Igreja para os mandar queimar?
- Porque se apercebem que a sua expansão também porá em crise os privilégios dos
leigos que falam em língua vulgar. Já no concílio de Latrão de mil cento e setenta e nove
(vê que são histórias que remontam a quase a duzentos anos atrás), Walter Map punha
em guarda contra aquilo que aconteceria dando crédito àqueles homens idiotas e
iletrados que eram os valdenses. Disse, se bem recordo, que eles não têm morada fixa,
caminham descalços sem nada possuírem, mantendo tudo em comum, seguindo nus o
Cristo nu; ora começam deste modo humildíssimo porque são excluídos, mas, se se lhes
deixa demasiado espaço, expulsá-los-ão a todos. Por isto, depois as cidades favoreceram
as ordens medicantes e a nós franciscanos em particular: porque permitíamos
estabelecer uma relação harmoniosa entre necessidade de penitência e vida citadina,
entre a Igreja e os burgueses que se interessavam pelos seus mercados...

- Atingiu-se, então, a harmonia entre amor de Deus e amor dos negócios?
- Não, bloquearam-se os movimentos de renovação espiritual, canalizaram-se nos
limites de uma ordem reconhecida pelo papa. Mas aquilo que serpenteava por baixo não
foi canalizado. Acabou, por um lado, nos movimentos dos flagelantes, que não fazem mal
a ninguém, nos bandos armados como os de frei Dolcino, nos ritos de bruxaria como os
dos frades de Montefalco de que falava Ubertino...
- Mas quem tinha razão, quem tem razão, quem está errado? - perguntei perdido.
- Todos tinham as suas razões, todos erraram.
- Mas vós - gritei quase num ímpeto de rebelião -, porque não tomais posição, porque
não me dizeis onde está a verdade?
Guilherme ficou algum tempo em silêncio, levantando para a luz a lente sobre a qual
estava a trabalhar. Depois baixou-a sobre a mesa e mostrou-me, através da lente, um
ferro de trabalho:
- Olha - disse-me -, que vês?
- O ferro, um pouco maior.
- Aí está, o máximo que se pode fazer é ver melhor.
- Mas é sempre o mesmo ferro!
- Também o manuscrito de Venancio será sempre o mesmo manuscrito quando puder
lê-lo graças a esta lente. Mas quando ler o manuscrito talvez conheça melhor uma parte
da verdade. E talvez possamos tornar melhor a vida da abadia.

- Mas não basta!
- Estou a dizer mais do que parece, Adso. Talvez que te falo de Roger Bacon.
Provavelmente não foi o homem mais sábio de todos os tempos, mas sempre me fascinou
a esperança que animava o seu amor pela sabedoria. Bacon acreditava na força, nas
necessidades, nas invenções espirituais dos simples. Não teria sido um bom franciscano
se não tivesse pensado que os pobres, os deserdados, os idiotas e os iletrados falam
muitas vezes com a boca de Nosso Senhor. Se tivesse podido conhecê-los de perto, teria
prestado mais atenção aos fraticelli que aos provinciais da ordem. Os simples têm
qualquer coisa mais que os doutores, que muitas vezes se perdem à procura das leis mais
gerais. Eles têm a intuição do individual. Mas esta intuição, só por si, não basta. Os
simples captam uma verdade sua, talvez mais verdadeira que a dos doutores da Igreja,
mas depois consomem-na em gestos irrefletidos. Que é preciso fazer? Dar a ciência aos
simples? Demasiado fácil ou demasiado difícil. E depois, que ciência? A da biblioteca de
Abbone? Os mestres franciscanos puseram-se este problema. O grande Boaventura dizia
que os sábios devem levar a uma clareza conceptual a verdade implícita nos gestos dos
simples...
- Como o capítulo de Perugia e as doutas memórias de Ubertino que transformam em
decisões teológicas o apelo dos simples à pobreza - disse.
- Sim, mas viste-o, chega tarde e, quando chega, a verdade dos simples já se
transformou na verdade dos poderosos, mais adequada para o Imperador Luís que para
um frade de vida pobre. Como ficar próximo da experiência dos simples mantendo-lhe,
por assim dizer, a virtude operativa, a capacidade de operar para a transformação e para
o melhoramento do seu mundo? Este era o problema de Bacon: «Quod enim laicali
ruditate turgescit non habet effectum nisi fortuito», dizia. A experiência dos simples tem
saídas selvagens e incontroláveis. «Sed opera sapientiae certa lege vallantur et in finem
debitum efficaciter diriguntur.» Que é como dizer que mesmo na condução das coisas
práticas, sejam elas a mecânica, a agricultura ou o governo de uma cidade, é preciso
uma espécie de teologia. Ele pensava que a nova ciência da natureza devia ser a nova
grande empresa dos doutos para coordenar, através de um conhecimento diverso dos
processos naturais, as necessidades elementares que constituíam também o acervo
desordenado, mas a seu modo verdadeiro e justo, das expectativas dos simples. A nova
ciência, a nova magia natural. Só que para Bacon esta empresa devia ser dirigida pela
Igreja, e creio que dizia isso porque, no seu tempo, a comunidade dos clérigos
identificava-se com a comunidade dos sábios. Hoje já não é assim, nascem sábios fora
dos mosteiros, e das catedrais, e até das universidades. Vê por exemplo neste país, o
maior filósofo do nosso século não foi um monge, mas um boticário. Falo daquele
florentino cujo poema terás ouvido nomear, que eu nunca li porque não compreendo o
seu vulgar, e pelo que sei me agradaria muito pouco, porque divaga sobre coisas muito
distantes da nossa experiência. Mas escreveu, creio, as coisas mais sábias que nos é dado
compreender sobre a natureza dos elementos e de todo o cosmo, e sobre a condução dos
estados. Assim, penso que, como eu e os meus amigos consideramos hoje que para a
condução das coisas humanas não compete à Igreja legislar mas à assembléia do povo, do
mesmo modo, no futuro, competirá à comunidade dos doutos propor esta novíssima e
humana teologia, que é filosofia natural e magia positiva.

- Uma belíssima empresa – disse -, mas é possível?
- Bacon acreditava nisso.
- E vos?
- Também eu acreditava nisso. Mas para acreditar nisso será preciso estar certo de
que os simples têm razão porque possuem a intuição do individual, a única que é boa.
Porém, se a intuição do individual é a única que é boa como poderá a ciência chegar a
recompor as leis universais através das quais, e pela interpretação das quais, a boa
magia se torna operante?
- Pois – disse -, como poderá?
- Já não sei. Tive muitas discussões em Oxford com o meu amigo Guilherme de Oscam,
que está agora em Avinhão. Semeou de dúvidas o meu espírito. Porque, se só a intuição
do individual é justa, o fato que causas do mesmo gênero tenham efeitos do mesmo
gênero é proposição difícil de provar. Um mesmo corpo pode ser frio ou quente, doce ou
amargo, úmido ou seco, num lugar... e num outro lugar não. Como posso descobrir a
relação universal que torna ordenadas as coisas se não posso mover um dedo sem criar
uma infinidade de novos seres, pois que, com tal movimento, mudam todas as relações
de posição entre o meu dedo e todos os outros objetos? As relações são os modos pelos
quais a minha mente capta a relação entre seres singulares, mas qual é a garantia de que
este modo é universal e estável?
- Mas vós sabeis que a uma certa espessura de um vidro corresponde um certo poder
de visão, e é porque o sabeis que podeis agora construir lentes iguais àquelas que
perdestes, senão como poderíeis?
- Sutil resposta, Adso. Com efeito, eu elaborei esta proposição, que a espessura igual
deve corresponder igual poder de visão. Emiti-a porque de outras vezes tive intuições
individuais do mesmo tipo. Decerto é conhecido de quem experimenta a propriedade
curativa das ervas que todos os indivíduos herbáceos da mesma natureza têm no
paciente igualmente disposto, efeitos da mesma natureza, e por isso o experimentador
formula a proposição que toda a erva desse tipo ajuda o doente febril, ou que toda a
lente de tal tipo aumenta em igual medida a visão do olho. A ciência de que falava
Bacon versa indubitavelmente sobre estas proposições. Repara, falo de proposições sobre
as coisas, não de coisas. A ciência tem a ver com as proposições e os seus termos, e os
termos indicam coisas singulares. Compreendes, Adso, eu tenho de acreditar que a
minha proposição funciona, porque o aprendi com base na experiência, mas para o
acreditar tenho de supor que há leis universais, e no entanto não posso falar delas,
porque o próprio conceito de que existem leis universais e uma dada ordem das coisas
implicaria que Deus fosse prisioneiro delas, enquanto Deus é coisa tão absolutamente
livre que, se quisesse, e com um só ato da sua vontade, o mundo seria de outra maneira.

- Portanto, se bem compreendo, fazeis, e sabeis porque fazeis, mas não sabeis porque
sabeis que sabeis aquilo que fazeis?
Devo dizer com orgulho que Guilherme me olhou com admiração.
- Talvez seja assim. De qualquer modo, isso diz-te porque me sinto tão inseguro da
minha verdade, mesmo se creio nela.
- Sois mais místico que Ubertino! - disse maliciosamente.
- Talvez. Mas, como vês, trabalho sobre as coisas da natureza. E também na
investigação que estamos desenvolvendo não quero saber quem é bom ou quem é mau,
mas quem esteve no scriptorium ontem à noite, quem pegou nos óculos, quem deixou
sobre a neve as pegadas de um corpo que arrasta outro corpo, e onde está Berengário.
Isto são fatos depois tentarei ligá-los entre si, se acaso for possível, porque é difícil dizer
qual o efeito que é produzido por uma certa causa; bastaria a intervenção de um anjo
para tudo mudar, por isso não é de admirar se não se pode demonstrar que uma coisa é a
causa de outra coisa. Mesmo que seja preciso tentar sempre, como estou fazendo.
- É uma vida difícil, a vossa - disse.
- Mas encontrei Brunello - exclamou Guilherme, aludindo ao cavalo de dois dias antes.
- Então há uma ordem do mundo! – gritei triunfante.
- Então há um pouco de ordem nesta minha pobre cabeça – respondeu Guilherme.
Naquele momento entrou Nicolau, trazendo uma forquilha quase pronta e mostrando-a
triunfante. - E quando esta forquilha estiver sobre o meu pobre nariz – disse Guilherme -
talvez a minha pobre cabeça esteja ainda mais condenada.
Veio um noviço informar-nos que o Abade queria ver Guilherme e o esperava no
jardim. O meu mestre foi obrigado a adiar as suas experiências para mais tarde, e
apressamo-nos para o lugar do encontro. Enquanto nos encaminhávamos para lá,
Guilherme deu uma palmada na testa, como se só naquele momento se recordasse de
alguma coisa que tinha esquecido.
- A propósito – disse -, decifrei os sinais cabalísticos de Venancio.
- Todos?! Quando?
- Quando dormias. E depende daquilo que estenderes por todos. Decifrei os sinais que
apareceram à chama, aqueles que tu copiaste. Os apontamentos em grego têm de
esperar que eu tenha umas novas lentes.
- Então? Tratava-se do segredo do finis Africae?
- Sim, e a chave era bastante fácil. Venancio dispunha dos doze signos zodiacais e de
oito signos para os cinco planetas, os dois luminares e a Terra. Vinte signos ao todo. O
bastante para lhes associar as letras do alfabeto latino, dado que podes usar a mesma
letra para exprimir o som das duas iniciais de unum y velut. A ordem das letras, sabemola.
Qual podia ser a ordem dos signos? Pensei na ordem dos céus, quando o quadrante
zodiacal na última periferia. Portanto, Terra, Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, etcétera, e
depois, em seguida, os signos zodiacais na sua seqüência tradicional, tal como também
os classifica Isidoro de Sevilha, a começar pelo Carneiro e pelo solstício da Primavera,
acabando com os Peixes. Ora, se experimentares aplicar esta chave, eis que a mensagem
de Venancio adquire um sentido.
Mostrou-me o pergaminho, sobre o qual tinha transcrito a mensagem em grandes
letras latinas: Secretum finís Africae manus supra idolum age primum et septimum de
quatuor.

- É claro? - perguntou.
- A mão sobre o ídolo opera sobre o primeiro e sobre o sétimo dos quatro... - repeti,
abanando a cabeça. - Não é mesmo nada claro!
- Eu sei. Seria preciso antes de mais nada saber o que entendia Venancio por idolum.
Uma imagem, um fantasma, uma figura? E depois, que serão estes quatro que têm um
primeiro e um sétimo? E que é preciso fazer deles? Movê-los, empurrá-los, puxá-los?
- Então não sabemos nada e estamos no ponto de partida – disse com grande
desapontamento.
Guilherme parou e olhou para mim com um ar nada benévolo.
- Meu rapaz – disse -, tens diante de ti um pobre franciscano que, com os seus
modestos conhecimentos e um pouco de habilidade, que deve ao infinito poder do
Senhor, conseguiu, em poucas horas, decifrar uma escrita secreta que o seu autor tinha a
certeza de que permaneceria hermética para todos menos para ele... e tu, miserável
malandro iletrado, permites-te dizer que estamos no ponto de partida?

Desculpei-me com muita atrapalhação. Tinha ferido a vaidade do meu mestre,
sabendo quanto ele era orgulhoso da rapidez e segurança das suas deduções. Guilherme
tinha na verdade concluído uma obra digna de admiração, e não era culpa sua se o
astutíssimo Venancio não só tinha ocultado quanto tinha descoberto sob as aparências de
um obscuro alfabeto zodiacal, mas tinha ainda elaborado um indecifrável enigma.
- Não importa, não importa, não te desculpes - interrompeu-me Guilherme. - No fundo
tens razão, sabemos ainda muito pouco. Vamos.

TERCEIRO DIA

VÉSPERAS

Onde se fala ainda com o Abade, Guilherme tem algumas idéias mirabolantes para
decifrar o enigma do labirinto, e o consegue de modo mais razoável. Depois ele e Adso
comem queijo em pasteizinhos.

O Abade esperava-nos com ar sombrio e preocupado. Tinha na mão um papel.
- Recebi agora uma carta do Abade de Conques - disse. - Comunica-me o nome
daquele a quem João confiou o comando dos soldados franceses, e o cuidado da
incolumidade da delegação. Não é um homem de armas, não é um homem de corte, e
será ao mesmo tempo um membro da delegação.
- Raro conúbio de diferentes virtudes - disse Guilherme inquieto. - Quem será?
- Bernardo Gui, ou Bernardo Guidoni, como queirais chamar-lhe.
Guilherme explodiu com uma exclamação na sua própria língua, que eu não
compreendi, nem o Abade, e talvez fosse melhor para todos, porque a palavra que
Guilherme disse sibilava de modo obsceno.
- A coisa não me agrada - acrescentou logo. - Bernardo foi durante anos martelo dos
hereges na região de Toulouse e escreveu uma Practica officii inquisitionis heretice
pravi-tatis para uso de todos aqueles que tenham de perseguir e destruir valdenses,
beguinos, santanários fraticelli e dolcinianos.
- Eu sei. Conheço o livro, admirável de doutrina.
- Admirável de doutrina - admitiu Guilherme. - É dedicado a João, que em anos
passados lhe confiou muitas missões na Flandres e aqui na Alta Itália. E, mesmo quando
foi nomeado bispo da Galiza, nunca o viram na sua diocese e continuou a atividade
inquisitorial. Agora julgava que se tivesse retirado no bispado de Lodève, mas, ao que
parece, João repõe-no em ação e precisamente aqui na Itália Setentrional. Porquê
precisamente Bernardo e porquê com a responsabilidade dos homens armados?
- A resposta existe - disse o Abade - e confirma todos os temores que vos exprimia
ontem. Sabeis bem, mesmo que não queirais admiti-lo comigo, que as posições sobre a
pobreza de Cristo e da Igreja defendidas pelo capítulo de Perugia, embora com
abundância de argumentos teológicos, são as mesmas que, de modo muito menos
prudente e com um comportamento menos ortodoxo, defendem muitos movimentos
heréticos. Não é preciso muito para demonstrar que as posições de Miguel de Cesena,
feitas suas pelo imperador, são as mesmas de Ubertino e de Angelo Clareno. E até aqui
as duas delegações estarão de acordo. Mas Gui poderia fazer mais, e tem habilidade para
isso: procurará defender que as teses de Perugia são as mesmas dos fraticelli, ou dos
pseudo-apóstolos. Estais de acordo?
- Dizeis que as coisas estão assim ou que Bernardo Gui dirá que estão assim?
- Digamos que digo que ele o dirá - concedeu prudentemente o Abade.
- Concordo também eu. Mas isso estava previsto. Quero dizer, sabia-se que se chegaria
a isso mesmo sem a presença de Bernardo. No máximo, Bernardo fá-lo-á com mais
eficiência do que muitos curiais de pouco valor, e tratar-se-á de discutir contra ele com
maior sutileza.
- Sim - disse o Abade -, mas nesse caso estamos diante da questão suscitada ontem. Se
não encontramos até amanhã o culpado de dois ou talvez três delitos, terei de conceder
a Bernardo que exerça uma vigilância sobre as coisas da abadia. Não posso ocultar a um
homem investido com o poder de Bernardo (e por nosso mútuo acordo, recordemo-lo)
que aqui na abadia aconteceram, estão ainda a acontecer, fatos inexplicáveis. Senão, no
momento em que ele o descobrisse, no momento em que (Deus não queira) acontecesse
um novo fato misterioso, ele teria todo o direito de gritar que tinha havido traição...

- É verdade - murmurou Guilherme preocupado. - Não há nada a fazer. É preciso
estarmos atentos e vigiar Bernardo, que vigiará o misterioso assassino. Talvez seja um
bem, porque Bernardo, ocupado a cuidar do assassino, estará menos disponível para
intervir na discussão.
- Bernardo ocupado em descobrir o assassino será um espinho no flanco da minha
autoridade, recordai-vos disso. Esta obscura história impõe-me pela primeira vez a
cedência de parte do meu poder dentro destas muralhas, e é um fato novo não só na
história desta abadia mas da própria ordem clunicense. Faria fosse o que fosse para o
evitar. E a primeira coisa a fazer seria negar hospitalidade às delegações.
- Rogo ardentemente a Vossa Sublimidade que reflita sobre essa grave decisão - disse
Guilherme. - Vós tendes nas mãos uma carta do imperador que vos convida
calorosamente a...
- Sei aquilo que me liga ao imperador - disse bruscamente o Abade -, e sabei-lo
também vós. E portanto sabeis que infelizmente não posso retroceder. Mas tudo isto está
muito feio. Onde está Berengário?, que lhe aconteceu?, que estais fazendo?
- Sou apenas um frade que conduziu há muito tempo eficazes investigações
inquisitoriais. Vós sabeis que não se encontra a verdade em dois dias. E, afinal, que
poder me haveis concedido? Posso entrar na biblioteca? Posso fazer todas as perguntas
que quiser, defendido sempre pela vossa autoridade?
- Não vejo a relação entre os delitos e a biblioteca – disse carrancudo o Abade.
- Adelmo era miniaturista, Venancio tradutor, Berengário ajudante-bibliotecário... -
explicou pacientemente Guilherme.
- Nesse sentido, os sessenta monges têm que ver com a biblioteca, tal como têm a ver
com a igreja. Porque é que então não procurais na igreja? Frade Guilherme, vós estais
conduzindo um inquérito por meu mandado e nos limites em que vos pedi para o
conduzirdes. Quanto ao resto, dentro deste recinto, eu sou o único senhor depois de
Deus, e por sua graça. E isto valerá também para Bernardo. Por outro lado - acrescentou
em tom mais manso -, nem sequer é dito que Bernardo esteja aqui para o encontro. O
abade de Conques escreve-me também que desce à Itália para prosseguir para o sul. Dizme
também que o papa pediu ao cardeal Bertrando do Poggetto para vir de Bolonha e se
dirigir para aqui para tomar o comando da delegação pontifícia. Bernardo vem aqui
talvez para se encontrar com o cardeal.
- O que, numa perspectiva mais ampla, seria pior. Bertrando é o martelo dos hereges
na Itália Central. Este encontro entre dois campeões da luta anti-herética pode anunciar
uma ofensiva mais vasta no país, para envolver no fim todo o movimento franciscano...
- E disto informaremos imediatamente o imperador - disse o Abade -, mas neste caso o
perigo não seria imediato. Vigiaremos. Adeus.
Guilherme ficou um momento silencioso enquanto o Abade se afastava. Depois disseme:
- Sobretudo, Adso, procuremos não nos deixar dominar pela pressa. As coisas não se
resolvem rapidamente quando têm de se acumular tantas pequenas experiências
individuais. Eu volto ao laboratório, porque sem as lentes não só não poderei ler o
manuscrito mas também não convirá sequer que se volte esta noite à biblioteca. Tu vai
informar-te se se sabe alguma coisa de Berengário.

Naquele momento correu ao nosso encontro Nicolau de Morimondo, portador de
péssimas notícias. Quando procurava lapidar melhor a melhor lente, aquela em que
Guilherme depositava tantas esperanças, esta quebrara-se. E uma outra, que talvez
pudesse substitui-la, tinha-se rachado quando tentava encaixá-la na forquilha. Nicolau
mostrou-nos desconsoladamente, o céu. Era já a hora de vésperas, e a obscuridade
estava descendo. Naquele dia já não se poderia trabalhar. Mais um dia perdido,
reconheceu amargamente Guilherme, reprimindo (como me confessou depois) a tentação
de agarrar pelo pescoço o vidreiro desajeitado, que, aliás, já estava bastante humilhado.
Deixamo-lo com a sua humilhação e fomos informar-nos acerca de Berengário.
Naturalmente, ninguém o tinha encontrado.
Sentíamo-nos num ponto morto. Passeamos um pouco pelo claustro, sem saber que
fazer. Mas, pouco depois, vi que Guilherme estava absorto, com o olhar perdido no ar,
como se não visse nada. Havia pouco tinha tirado do saio um raminho daquelas ervas que
o tinha visto colher semanas antes, e estava-o mastigando como se dele retirasse uma
espécie de calma excitação. De fato parecia ausente, mas de vez em quando os seus
olhos iluminavam-se, como se no vazio da sua mente se tivesse acendido um idéia nova;
depois recaía naquele seu singular e ativo hebetismo. De repente disse:
- Decerto, poder-se-ia...
- O quê? - perguntei.
- Pensava num modo de nos orientarmos no labirinto. Não é simples de realizar, mas
seria eficaz... No fundo, a saída é no torreão oriental, e isso sabemo-lo. Ora supõe que
tínhamos uma máquina que nos diz de que lado está o setentrião. Que aconteceria?
- Que naturalmente bastaria girar para a direita e dirigir-nos-íamos para oriente. Ou
então bastaria ir em sentido contrário, e saberíamos que íamos para o torreão
meridional. Mas, mesmo admitindo que existisse semelhante magia, o labirinto é
precisamente um labirinto, e mal nos dirigíssemos para oriente encontraríamos uma
parede que nos impediria de ir a direito e perderíamos de novo o caminho... - observei.
- Sim, mas a máquina de que falo indicaria sempre a direção do setentrião, mesmo
que nós tivéssemos mudado o caminho, e a cada momento dir-nos-ia para que lado
voltar.
- Seria maravilhoso. Mas seria preciso ter essa máquina, e ela deveria ser capaz de
reconhecer setentrião de noite e em local fechado, sem poder ver nem o Sol nem as
estrelas... E não creio que mesmo o vosso Bacon possuísse uma máquina semelhante! - ri.

- E no entanto enganas-te - disse Guilherme -, porque uma máquina do gênero foi
construída e alguns navegadores usaram-na. Ela não tem necessidade das estrelas nem
do Sol, porque desfruta a força de uma pedra maravilhosa, igual àquela que vimos no
hospital de Severino, aquela que atrai o ferro. E foi estudada por Bacon e por um mago
picardo, Pedro de Maricourt, que descreveu os seus múltiplos usos.
- E vós saberíeis construí-la?
- Em si não seria difícil. A pedra pode ser usada para produzir muitas mirabilia, entre
elas uma máquina que se move perpetuamente sem nenhuma força externa, mas o
achado mais simples foi também descrito por um árabe, Baylek al Qabayaki. Pegas num
vaso cheio de água e pões-lhe a flutuar uma rolha de cortiça em que enfiaste uma agulha
de ferro. Depois passas a pedra magnética sobre a superfície da água, com um
movimento circular, até que a agulha adquira as mesmas propriedades da pedra. E então
a agulha, mas fá-lo-ia também a pedra se tivesse tido a possibilidade de se mover em
torno de um eixo, coloca-se com a ponta na direção de setentrião, e se tu te moveres
com o vaso, ele volta-se sempre para o lado da tramontana. É inútil que te diga que se
tiveres marcado no bordo do vaso, em relação a transmontana, também as posições de
austro, aquilão e assim sucessivamente, saberás sempre para que lado te hás-de mover
na biblioteca para chegar ao torreão oriental.
- Que coisa maravilhosa! - exclamei. - Mas porque é que a agulha aponta sempre para
setentrião? A pedra atrai o ferro, eu vi, e imagino que uma imensa quantidade de ferro
atraia a pedra. Mas então... então na direção da Estrela Polar, nos limites extremos do
globo, existem grandes minas de ferro!
- Alguém sugeriu de fato que é assim. Salvo que a agulha não aponta exatamente na
direção da estrela náutica, mas para o ponto de encontro dos meridianos celestes. Sinal
que, como foi dito, «hic lapis gerit in se similitudinem coeli», e os pólos do magnete
recebem a sua inclinação dos pólos do céu e não dos da terra. O que é um belo exemplo
de movimento impresso a distância e não por direta causalidade material: um problema
de que se está ocupando o meu amigo João de Gianduno, quando o imperador não lhe
pede que faça afundar Avinhão nas vísceras da terra...
- Então vamos buscar a pedra de Severino, e um vaso, e água, e uma rolha de cortiça -
disse excitado.
- Devagar, devagar - disse Guilherme. - Não sei porquê, mas nunca vi uma máquina
que, perfeita na descrição dos filósofos, seja perfeita depois no seu funcionamento
mecânico. Enquanto a pôdoa de um camponês, que nenhum filósofo jamais descreveu,
funciona como deve ser... Tenho receio de que girando pelo labirinto com uma candeia
numa mão e um vaso cheio de água na outra... Espera, ocorre-me outra idéia. A máquina
indicaria setentrião mesmo se estivéssemos fora do labirinto, não e?

- Sim, mas nesse caso não nos serviria porque teríamos o Sol e as estrelas... - disse.
- Eu sei, eu sei. Mas, se a máquina funciona tanto fora como dentro, porque não havia
de ser assim também para a nossa cabeça?
- A nossa cabeça? Decerto que ela funciona também fora, e, efetivamente, de fora
sabemos muito bem qual é a orientação do Edifício! Mas é quando estamos dentro que já
não compreendemos nada!
- Exatamente. Mas esquece agora a máquina. Pensar na máquina induziu-me a pensar
nas leis naturais e nas leis do nosso pensamento. Eis a questão: temos de encontrar de
fora um modo de descrever o Edifício como é por dentro...
- E como?
- Deixa-me pensar. Não deve ser assim tão difícil...
- E o método que mencionavas fazer? Não queríeis percorrer o labirinto fazendo sinais
com um carvão?
- Não – disse -, quanto mais penso nisso, menos me convence. Talvez consiga recordar
bem a regra, ou talvez para andar num labirinto seja preciso ter uma boa Ariana que te
espere à porta segurando a ponta de um fio. Mas não existem fios assim tão longos. E
ainda que existissem, isso significaria (muitas vezes as tabulas dizem a verdade) que só
se sai dum labirinto com uma ajuda externa. Onde as leis do exterior sejam iguais às do
interior. Pronto, Adso, usaremos as ciências matemáticas. Só nas ciências matemáticas,
como diz Averroes, se identificam as coisas conhecidas por nós com as conhecidas de
modo absoluto.

- Então vedes que admitis conhecimentos universais.
- Os conhecimentos matemáticos são proposições construídas pelo nosso intelecto de
modo a funcionarem sempre como verdadeiras, ou porque são inatas ou porque a
matemática foi inventada antes das outras ciências. E a biblioteca foi construída por
uma mente humana que pensava de modo matemático, porque sem matemática não se
fazem labirintos. E, portanto, trata-se de confrontar as nossas proposições matemáticas
com as proposições do construtor, e deste confronto pode surgir ciência, porque é
ciência de termos sobre termos. E, em todo o caso, pára de me arrastar para discussões
metafísicas. Que bicho te mordeu hoje? Melhor, tu que tens bons olhos pegar num
pergaminho, numa tabuinha, alguma coisa em que fazer sinais, e um estilete... bem,
tens tudo, ótimo, Adso. Vamos dar uma volta em torno do Edifício, enquanto temos
ainda um pouco de luz.
Andamos portanto longamente em torno do Edifício. Isto é, examinamos de longe os
torreões oriental meridional e ocidental com as paredes que os ligavam. Porque, quanto
ao resto, dava para o despenhadeiro, mas, por razões de simetria, não devia ser
diferente daquilo que víamos.
E aquilo que víamos, observou Guilherme enquanto me fazia tomar notas precisas na
minha tabuinha, era que cada muro tinha duas janelas, e cada torreão cinco.
- Ora raciocina - disse-me o meu mestre. - Cada uma das salas que vimos tinha uma
janela...
- Menos as de sete lados - disse.
- E é natural, são as do centro de cada torre.
- E menos algumas que encontramos sem janelas e não eram heptagonais.
- Esquece-as. Primeiro encontremos a regra, depois procuremos justificar as exceções.
Portanto, teremos no exterior cinco salas por cada torre e duas salas por cada muro,
cada uma com uma janela. Mas se de uma sala com janela se prossegue para o interior
do edifício encontra-se uma outra sala com janela. Sinal de que se trata das janelas
interiores. Ora que forma tem o poço interior, tal como se vê na cozinha e no
scriptorium?
- Octogonal - disse.
- Ótimo. E de cada lado do octógono, no scriptorium, abrem-se duas janelas. Isto quer
dizer que por cada lado do octógono há duas salas interiores? Exato?
- Sim, mas e as salas sem janela?
- São oito ao todo. De fato, a sala interna de cada torreão, de sete lados, tem cinco
paredes que dão para cada uma das cinco salas de cada torreão. Com que confinam as
outras duas paredes? Não com uma sala situada ao longo das paredes exteriores, porque
haveria janelas, nem com uma disposta ao longo do octógono, pelas mesmas razões, e
porque seriam então salas exageradamente compridas. Tenta efetivamente traçar um
desenho de como poderá aparecer a biblioteca vista do alto. Vês que correspondendo a
cada torre deve haver duas salas que confinam com a sala heptagonal e dão para duas
salas que confinam com o poço octogonal interior.
Tentei traçar o desenho que o meu mestre me sugeria e lancei um grito de triunfo.
- Mas então sabemos tudo! Deixai-me contar... A biblioteca tem cinqüenta e seis salas,
das quais quatro heptagonais e cinqüenta e duas mais ou menos quadradas, e, destas,
quatro não têm janelas, enquanto vinte e oito dão para o exterior e dezesseis para o
interior!
- E os quatro torreões têm cada um cinco salas de quatro lados e uma de sete... A
biblioteca está construída segundo uma harmonia celeste a que se podem atribuir vários
e miríficos significados...
- Esplêndida descoberta – disse -, mas então porque é tão difícil orientarmo-nos nela?
- Porque aquilo que não corresponde a nenhuma lei matemática é a disposição das
passagens. Algumas salas permitem a passagem a muitas outras, algumas outras a uma
só, e há que perguntar se não haverá salas que não permitem a passagem a nenhuma. Se
considerares este elemento, mais a falta de luz e a ausência de indício fornecido pela
posição do Sol (e acrescenta-lhes as visões e os espelhos), compreenderás como o
labirinto é capaz de confundir quem quer que o percorra, já agitado por um sentimento
de culpa. Por outro lado, pensa como nós estávamos desesperados ontem a noite quando
não conseguíamos encontrar o caminho. O máximo de confusão conseguido com o
máximo de ordem: parece-me um cálculo sublime. Os construtores da biblioteca eram
grandes mestres.

- Como faremos então para nos orientarmos?
- No ponto em que estamos não é difícil. Com o mapa que tu traçaste, e que bem ou
mal deve corresponder ao traçado da biblioteca, logo que estejamos na primeira sala
heptagonal, mover-nos-emos de modo a encontrar imediatamente uma das duas salas
cegas. Depois voltando sempre à direita, depois de três ou quatro salas, deveremos estar
de novo num torreão, que não poderá ser senão o torreão setentrional, até voltar a uma
outra sala cega, que à esquerda confinará com a sala heptagonal e à direita deverá
permitir-nos encontrar um trajeto análogo àquele que te acabo de dizer, até chegar ao
torreão ocidental.
- Sim, se todas as salas dessem para todas as salas...
- De fato. E para isso precisamos do teu mapa, para marcar as paredes inteiras, de
modo a saber que desvios vamos fazendo. Mas não será difícil.
- Mas temos a certeza de que funcionará? - perguntei perplexo, porque me parecia
tudo demasiado simples.
- Funcionará - respondeu Guilherme. - «Omnes enim causae effectuum naturalium
dantur per lineas, ángulos et figuras. Aliter enim impossibile est scire propter quid in
illis.» - citou. - São palavras de um dos grandes mestres de Oxford. Mas infelizmente não
sabemos ainda tudo. Aprendemos a maneira de não nos perdermos. Agora trata-se de
saber se há uma regra que governa a distribuição dos livros nas salas. E os versículos do
Apocalipse dizem-nos muito pouco, até porque muitos se repetem igualmente em salas
diferentes...

- E no entanto o livro do apóstolo permitiria encontrar bem mais de cinqüenta e seis
versículos!
- Sem dúvida. Portanto, só alguns versículos são bons. Estranho. Como se tivessem tido
menos de cinqüenta, trinta, vinte... Oh, pela barba de Merlim!
- De quem?
- Não tem importância, é... um mago da minha terra... Usaram tantos versículos
quantas as letras do alfabeto! Claro que é assim! O texto dos versículos não conta,
contam as letras iniciais. Cada sala é assinalada por uma letra do alfabeto, e todas
juntas compõem um texto que temos de descobrir!
- Como um carme figurado, em forma de cruz ou de peixe!
- Mais ou menos, e provavelmente no tempo em que a biblioteca foi constituída este
tipo de carmes estava muito em voga.
- Mas de onde se inicia o texto?
- Duma inscrição maior que as outras, da sala heptagonal do torreão da entrada... ou
então... mas é claro, das frases a vermelho!
- Mas são tantas!
- E portanto haverá muitos textos, ou muitas palavras. Agora tu vais copiar melhor e
em ponto maior o teu mapa, depois, ao visitar a biblioteca, não só marcarás com o teu
estilete, e ao de leve, as salas por onde passarmos, e a posição das portas e das paredes
(não falando das janelas), mas também a letra inicial do versículo que aí aparece, e, de
qualquer modo, como um bom miniaturista, farás maiores as letras a vermelho.
- Mas como é que - disse admirado - fostes capaz de resolver o mistério da biblioteca
olhando-a de fora e não o resolvestes quando estáveis lá dentro?
- Assim Deus conhece o mundo, porque o concebeu na sua mente, como do exterior,
antes que fosse criado, enquanto nós não lhe conhecemos a regra, porque vivemos
dentro dele encontrando-o já feito.
- Assim podem conhecer-se as coisas observando-as do exterior!
- As coisas da arte, porque voltamos a percorrer na nossa mente as operações do
artífice. Não as coisas da natureza, porque não são obra da nossa mente.
- Mas para a biblioteca isso basta-nos, não é verdade?
- Sim - disse Guilherme. - Mas só para a biblioteca. Agora vamos descansar. Eu não
posso fazer nada até amanhã de manhã quando tiver... espero... as minhas lentes. Mais
vale dormir e levantarmo-nos cedo. Procurarei refletir.
- E a ceia?
- Ah, sim, a ceia. Passou a hora entretanto. Os monges já estão em completas. Mas
talvez a cozinha ainda esteja aberta. Vai buscar alguma coisa.
- Roubar?
- Pedir. A Salvador, que agora é teu amigo.
- Mas roubará ele.
- És por acaso o guarda do teu irmão? - perguntou Guilherme com as palavras de Caim.
Mas apercebi-me que gracejava e queria dizer que Deus é grande e misericordioso. Por
isso pus-me à procura de Salvador, e encontrei-o perto das cavalariças.
- Belo - disse apontando para Brunello, e como para puxar conversa. - Gostava de o
montar.
- No se puede. Abbonis est. Mas não é preciso um bom cavalo para correr muito. -
Indicou-me um cavalo robusto mas desajeitado - Mesmo aquele sufficit... Vide illuc,
tertius equi...
Queria indicar-me o terceiro cavalo. Ri-me do seu engraçadíssimo latim.
- E que farás com aquele? - perguntei-lhe.
E contou-me uma história estranha. Disse que se podia tornar qualquer cavalo, mesmo
o animal mais velho e fraco, tão veloz como Brunello. É preciso misturar na sua aveia
uma erva que se chama satirião, bem moída, e depois untar-lhe as coxas com gordura de
veado. Depois sobe-se para o cavalo e antes de o esporear volta-se-lhe o focinho para
levante e pronunciam-se-lhe ao ouvido, três vezes em voz baixa, as palavras «Gaspar,
Melchior, Melquisardo». O cavalo partirá à desfilada e fará numa hora o caminho que
Brunello faria em oito horas. E se se lhe tivesse suspenso ao pescoço os dentes de um
lobo que o próprio cavalo, correndo, tivesse morto, o animal não sentiria sequer o
cansaço.

Perguntei-lhe se alguma vez tinha experimentado. Disse-me, aproximando-se
circunspecto e sussurrando-me ao ouvido, com o seu hálito deveras desagradável, que
era muito difícil, porque o satirião agora só era cultivado pelos bispos e pelos cavaleiros
seus amigos, que se serviam dele para aumentarem o seu poder. Pus fim ao seu discurso
e disse-lhe que naquela noite o meu mestre queria ler uns livros na cela e desejava
comer lá em cima.
- É cá comigo – disse -, faço um pastelzinho de queijo.
- Como é?
- Facilis. Pegas no queijo que não seja demasiado velho, nem demasiado salgado, e
cortado em fatias, em bocados quadrados ou sicut te agradar. Et postea porás um pouco
de manteiga, ou melhor, de banha fresca à rechauffer sobre a brasia. E dentro vamos a
pôr duas fatias de queijo, e quando te parecer que está quente, zucharum et canela
supra positurum du bis. E manda-o imediatamente in tabula, que se que comido quente.
- Vai pelo pastelzinho de queijo - disse-lhe.
E ele desapareceu em direção às cozinhas, dizendo-me que o esperasse. Chegou meia
hora depois com um prato coberto com um pano. O cheiro era bom.

- Toma - disse-me, e estendeu-me também uma grande candeia cheia de azeite.
- Para fazer o quê? - perguntei.
- Sais pas, moi - disse com ar manhoso. - Fileisch o teu magiste quer ir ao lugar escuro
esta noite.
Salvador sabia evidentemente mais do que eu suspeitava. Não investiguei o quê, e
levei a comida a Guilherme. Comemos, e eu retirei-me para minha cela. Ou, pelo menos,
fingi. Queria ainda encontrar Ubertino, e as escondidas entrei na Igreja.
TERCEIRO DIA
DEPOIS DE COMPLETAS
Onde Ubertino conta a Adso a História de frei Dolcino, Adso evoca ou lê outras
histórias na biblioteca por sua conta e depois sucede que tem um encontro com uma
rapariga bela e terrível como um exército alinhado para a batalha.
De fato encontrei Ubertino ao pé da estátua da Virgem. Uni-me silenciosamente a ele
e, por um momento, fingi (confesso-o) que rezava. Depois atrevi-me a falar-lhe.
- Padre santo - disse-lhe -, posso pedir-lhe luz e conselho?
Ubertino olhou para mim, tomou-me pela mão e levantou-me, conduzindo-me a
sentar-me com ele numa cadeira. Estreitou-me nos seus braços, e pude sentir o seu
hálito no meu rosto.

- Filho caríssimo - disse -, tudo aquilo que este pobre velho pecador puder fazer pela
tua alma, será feito com alegria. Que te perturba? As ânsias, não é verdade? - perguntou
quase com ânsia ele também. - As ânsias da carne?
- Não - respondi corando -, quando muito as ânsias da mente, que quer conhecer
demasiadas coisas...
- E é mal. O Senhor conhece as coisas, a nós cabe apenas adorar a sua sapiência.
- Mas a nós cabe também distinguir o bem do mal e compreender as paixões humanas.
Sou noviço, mas serei monge e sacerdote, e tenho de aprender onde está o mal e que
aspecto tem, para um dia o reconhecer e para ensinar os outros a reconhecê-lo.
- Isso é justo, rapaz. E então que queres conhecer?
- A planta má da heresia, padre - disse com convicção. E depois, tudo de uma vez: -
Ouvi falar de um homem malvado que seduziu outros, frei Dolcino.
Ubertino ficou em silêncio. Depois disse:
- É justo, ouviste-nos fazer-lhe referência uma noite destas com frade Guilherme. Mas
é uma história muito triste, de que me faz mal falar, porque ensina (sim, neste sentido
deverás sabê-la, para tirar dela um útil ensinamento), porque ensina, dizia, como do
amor de penitência e do desejo de purificar o mundo pode nascer sangue e extermínio.

Sentou-se melhor, alargando o seu abraço em volta dos meus ombros, mas mantendo
sempre uma mão no meu pescoço, como para me comunicar não sei se a sua sapiência ou
o seu ardor.
- A história começa antes de frei Dolcino – disse -, há mais de sessenta anos, e eu era
uma criança. Foi em Parma. Ali começou a pregar um certo Gerardo Segalelli, que
convidava todos à vida de penitência e percorria as estradas gritando «penitenciagite!»,
que era o seu modo de homem inculto para dizer: «Penitentiam agite, appropinquabit
enim regnum coelorum.» Convidava os seus discípulos a tornarem-se semelhantes aos
apóstolos, e quis que a sua seita fosse denominada na ordem dos apóstolos e que os seus
percorressem o mundo como pobres mendicantes vivendo só de esmolas...
- Como os fraticelli - disse. - Não era este o mandato de Nosso Senhor e do vosso
Francisco?
- Sim - admitiu Ubertino com uma ligeira hesitação na voz e com um suspiro. - Mas
provavelmente Gerardo exagerou. Ele e os seus foram acusados de já não reconhecerem
a autoridade dos sacerdotes, a celebração da missa, a confissão, e de vagabundearem no
ócio.

- Mas também foram acusados disso os franciscanos espirituais. E não dizem hoje os
menoritas que não se deve reconhecer a autoridade do papa?
- Sim, mas não a dos sacerdotes. Nós próprios somos sacerdotes. Meu rapaz, é difícil
distinguir nestas coisas. A linha que divide o bem do mal e tão sutil... De qualquer modo,
Gerardo errou e manchou-se de heresia... Pediu para ser admitido na ordem dos
menores, mas os nossos irmãos não o aceitaram. Passava os dias na igreja dos nossos
frades, e ali viu pintados os apóstolos com sandálias nos pés e capas em volta dos
ombros, e assim deixou crescer os cabelos e a barba, pôs sandálias nos pés e a corda dos
frades menores, porque seja quem for que queira fundar uma nova congregação vai
sempre buscar alguma coisa à ordem do beato Francisco.
- Mas então estava na verdade...
- Mas errou nalguma coisa... Vestido com um manto branco sobre uma túnica branca e
com os cabelos compridos conquistou entre os simples fama de santidade. Vendeu uma
casita que tinha e, recebido o pagamento, subiu a uma pedra de onde, em tempos
antigos, as autoridades costumavam pregoar, e, com o saquinho das moedas na mão, não
as espalhou nem as deu aos pobres, mas, tendo chamado uns malandros que jogavam ali
perto, espalhou-as entre eles dizendo: «Que as leve quem quiser», e aqueles malandros
pegaram no dinheiro e foram jogá-lo aos dados, e blasfemavam contra Deus vivo, e ele,
que tinha dado, ouvia e não corava.
- Mas Francisco também se despojou de tudo, e ouvi hoje a Guilherme que foi pregar a
gralhas e gaviões, e também aos leprosos, isto é, à ralé, que o povo dos que se diziam
virtuosos mantinha à margem...
- Sim, mas Gerardo nalguma coisa errou, Francisco nunca entrou em choque com a
Santa Igreja, e o Evangelho manda dar aos pobres, não aos malandros. Gerardo deu e não
recebeu nada em troca, porque tinha dado a gente má, e teve mau princípio, mau
prosseguimento e mau fim, porque a sua congregação foi condenada pelo papa Gregório
X.
- Provavelmente – disse - era um papa menos clarividente que aquele que aprovou a
regra de Francisco...

- Sim, mas nalguma coisa Gerardo errou, e Francisco, pelo contrário, sabia bem o que
fazia. E enfim, rapaz, estes guardadores de porcos e de vacas que de um dia para o outro
se tornam pseudo-apóstolos queriam, beatamente e sem suor, viver das esmolas
daqueles que os frades menores tinham educado com tanta fadiga e com tão heróico
exemplo de pobreza! Mas não se trata disso - acrescentou logo -, é que para se
assemelhar aos apóstolos, que ainda eram judeus, Gerardo Segalelli fez-se circuncidar, o
que vai contra as palavras de Paulo aos Gálatas, e tu sabes que muitas e santas pessoas
anunciam que o Anticristo futuro virá do povo dos circuncisos... Mas Gerardo fez pior,
andava reunindo os simples e dizia: «Vinde comigo à vinha», e aqueles que não o
conheciam entravam com ele na vinha alheia, julgando-a sua, e comiam as uvas dos
outros...
- Não devem ter sido os frades menores a defender a propriedade dos outros - disse
impudentemente.
Ubertino fixou-me com olhar severo:
- Os frades menores pedem para ser pobres, mas nunca pediram aos outros que fossem
pobres. Não se pode impunemente atentar contra a propriedade dos bons cristãos, os
bons cristãos apontar-te-ão como um bandido. E assim aconteceu a Gerardo. De quem
disseram, enfim (repara eu não sei se é verdade, e confio nas palavras de frade
Salimbene, que conheceu aquela gente), que, para pôr à prova a sua força de vontade e
a sua continência, dormiu com algumas mulheres sem ter relações sexuais; mas, quando
os seus discípulos tentaram imitá-lo, os resultados foram bem diversos... Oh, não são
coisas que deva saber um rapaz, a fêmea é baixel do demônio... Gerardo continuava a
gritar «penitenciagite», mas um seu discípulo, um certo Guido Putagio, procurou tomar a
direção do grupo, e andava com grande pompa com muitas cavalgaduras e fazia grandes
despesas e banquetes como os cardeais da Igreja de Roma. E depois houve rixas entre
eles pelo comando da seita, e aconteceram coisas de grande torpeza. E no entanto
muitos vieram junto de Gerardo, não só camponeses, mas também gente das cidades,
inscritos nas artes, e Gerardo mandava-os despir a fim de que nus seguissem Cristo nu, e
mandava-os pelo mundo a pregar, mas ele, para si, mandou fazer uma veste sem
mangas, branca, de tecido grosso, e assim vestido mais parecia um bufão que um
religioso! Viviam ao ar livre, mas por vezes subiam aos púlpitos das igrejas
interrompendo a assembléia do povo devoto e expulsando os pregadores, e uma vez
puseram um menino no trono episcopal da igreja de Sant Orso, em Ravena. E diziam-se
herdeiros da doutrina de Joaquim de Fiore...

- Mas também os franciscanos – disse -, também Gerardo de Borgo San Donnino,
também vós o disseste! - exclamei.
- Acalma-te, rapaz. Joaquim de Fiore foi um grande profeta e foi o primeiro a
compreender que Francisco havia de marcar a renovação da Igreja. Mas os pseudoapóstolos
usaram a sua doutrina para justificar as suas loucuras, Segalelli trazia consigo
uma «apóstola», uma certa Tripia ou Ripia, que tinha a pretensão de ter o dom da
profecia. Uma mulher, compreendes?
- Mas, padre - tentei objetar -, vós mesmo faláveis há dias da santidade de Clara de
Montefalco e de Angela de Foligno...
- Essas eram santas! Viviam na humildade reconhecendo o poder da Igreja, nunca se
arrogaram o dom da profecia! Pelo contrário, os pseudo-apóstolos asseveravam que as
mulheres também podiam andar de cidade em cidade a pregar, como fizeram muitos
outros hereges. E já não conheciam diferença alguma entre solteiros e casados, nem voto
algum voltou a ser considerado perpétuo. Em resumo, para não te aborrecer demasiado
com histórias tristíssimas cujos pormenores não podes compreender bem, o bispo Obizzo
de Parma decidiu finalmente pôr Gerardo a ferros. Mas aqui aconteceu uma coisa
estranha, que te diz como é fraca a natureza humana e insidiosa a planta da heresia.
Porque, finalmente, o bispo libertou Gerardo e acolheu-o junto de si, à sua mesa, e ria
com as suas piadas, e conservava-o como seu bufão.
- Mas porquê?
- Não sei, ou receio sabê-lo. O bispo era nobre e não gostava dos mercadores e dos
artesãos da cidade. Talvez não lhe desagradasse que Gerardo, com as suas prédicas de
pobreza, falasse contra eles e passasse do pedido de esmola à rapina. Mas finalmente
interveio o papa, e o bispo voltou à sua justa severidade, e Gerardo acabou na fogueira
como herege impenitente. Era o início deste século.

- E que tem a ver com estas coisas frei Dolcino?
- Tem, e isto diz-te como a heresia sobrevive à própria destruição dos hereges. Este
Dolcino era bastardo de um sacerdote que vivia na diocese de Novara, nesta parte da
Itália, um pouco mais a setentrião. Alguém disse que nasceu noutro lugar, no vale do
Ossola, ou em Romagnano. Mas pouco importa. Era um jovem de agudíssimo engenho e
foi educado nas letras, mas roubou o sacerdote que se ocupava dele e fugiu para oriente,
para a cidade de Trento. E ali retomou as pregações de Gerardo, de modo ainda mais
herético, afirmando ser o único verdadeiro apóstolo de Deus, e que todas as coisas
deviam ser comuns no amor, e que era lícito andar indiferentemente com todas as
mulheres, pelo que ninguém podia ser acusado de concubinato, mesmo que andasse com
a mulher e com a filha...
- Pregava verdadeiramente essas coisas ou foi acusado disso? Porque ouvi dizer que os
espirituais também foram acusados de crimes como aqueles frades de Montefalco...
- De hoc satis - interrompeu bruscamente Ubertino. - Esses já não eram frades. Eram
hereges. E precisamente conspurcados por Dolcino. E por outro lado, escuta, basta saber
aquilo que Dolcino fez depois para o definir como malvado. Como chegou ao
conhecimento das teorias dos pseudo-apóstolos não faço a menor idéia. Provavelmente
passou por Parma, quando jovem, e ouviu Gerardo. Sabe-se que manteve contato na
província de Bolonha com aqueles hereges depois da morte de Segalelli. Mas ao certo
sabe-se que iniciou a sua pregação em Trento. Ali, seduziu uma rapariga lindíssima e de
família nobre, Margarida, ou ela seduziu-o a ele, como Heloísa seduziu Abelardo, porque,
recorda-te, é através da mulher que o diabo penetra no coração dos homens! Nessa
altura, o bispo de Trento expulsou-o da sua diocese, mas Dolcino já tinha reunido mais
de mil sequazes, e iniciou a sua marcha que o reconduziu às terras onde tinha nascido. E
ao longo do caminho juntavam-se-lhe outros ingênuos, seduzidos pelas suas palavras, e
provavelmente juntaram-se-lhe muitos hereges valdenses que habitavam as montanhas
por onde passava, ou ele queria reunir-se aos valdenses dessas terras a setentrião.

Chegando à província de Novara, Dolcino encontrou um ambiente favorável à sua
revolta, porque os vassalos que governavam o país de Gattinara em nome do bispo de
Vercelli tinham sido expulsos pela população, que acolheu portanto os bandidos de
Dolcino como bons aliados.
- Que tinham feito os vassalos do bispo?
- Não sei, e não me compete a mim julgá-lo. Mas, como vês, a heresia casa-se com a
revolta contra os senhores, em muitos casos, e por isso o herege começa a pregar a dona
pobreza e depois cai presa de todas as tentações do poder, da guerra, da violência.
Havia uma luta entre famílias na cidade de Vercelli, os pseudo-apóstolos aproveitaram-se
disso, e estas famílias valeram-se da desordem trazida pelos pseudo-apóstolos. Os
senhores feudais recrutavam aventureiros para roubar os citadinos, e os citadinos pediam
a proteção do bispo de Novara.
- Que história complicada. Mas Dolcino com quem estava?
- Não sei, participava por si próprio, tinha-se inserido em todas estas disputas e dai
tirava ocasião para pregar a luta contra a propriedade alheia em nome da pobreza.
Dolcino acampou com os seus, que eram então três mil, num monte próximo de Novara,
chamado da Parede Calva, e construíram pequenos castelos e habitáculos, e Dolcino
dominava sobre toda aquela multidão de homens e mulheres que viviam na
promiscuidade mais vergonhosa. Dali enviava cartas aos seus fiéis, em que expunha a sua
doutrina herética. Dizia e escrevia que o seu ideal era a pobreza, e que não estavam
ligados por nenhum vínculo de obediência exterior, e que ele, Dolcino, tinha sido
mandado por Deus para desselar as profecias e compreender as escrituras do Antigo e do
Novo Testamento. E chamava ministros do diabo aos clérigos seculares, pregadores e
frades menores, e desobrigava qualquer um do dever de lhes obedecer. E distinguia
quatro idades da vida do povo de Deus: a primeira do Antigo Testamento, dos patriarcas
e dos profetas, antes da vinda de Cristo, em que o matrimônio era bom porque a gente
se devia multiplicar; a segunda a idade de Cristo e dos apóstolos, e foi a época da
santidade e da castidade; depois veio a terceira, em que os pontífices tiveram a
principio de aceitar as riquezas terrenas para poder governar o povo, mas quando os
homens começaram a afastar-se do amor de Deus veio Bento, que falou contra toda a
possessão temporal; quando depois os monges de Bento voltaram também a acumular
riquezas, vieram os frades de São Francisco e de São Domingos, ainda mais severos do
que Bento na pregação contra o domínio e a riqueza terrena. Mas, enfim, agora, que a
vida de tantos prelados de novo contradizia todos aqueles bons preceitos, tinha-se
chegado ao fim da terceira idade e era necessário converter-se aos ensinamentos dos
apóstolos.

- Mas então Dolcino pregava aquelas coisas que tinham pregado os franciscanos, e
entre os franciscanos precisamente os espirituais, e vós mesmo, padre!
- Oh, sim, mas tirava daí um pérfido silogismo! Dizia que para pôr fim a esta terceira
idade da corrupção era necessário que todos os clérigos, os monges e os frades
morressem de morte crudelíssima; dizia que todos os prelados da Igreja, os clérigos, as
monjas, os religiosos e as religiosas e todos aqueles que fazem parte das ordens dos
pregadores e dos frades menores, dos eremitas, e do próprio papa Bonifácio deveriam ser
exterminados pelo imperador escolhido por ele, Dolcino, e este seria Frederico da Sicília.
- Mas não foi precisamente Frederico que acolheu na Sicília com favor os espirituais
expulsos da Umbria, e não são os menoritas que pedem precisamente que o imperador,
ainda que agora seja Luís, destrua o poder temporal do papa e dos cardeais?
- É próprio da heresia, ou da loucura, transtornar os pensamentos mais retos e levá-los
a conseqüências contrárias à lei de Deus e dos homens. Os menoritas nunca pediram ao
imperador que matasse os outros sacerdotes.
Enganava-se, sei-o agora. Porque, quando alguns meses depois, o Bávaro instaurou a
sua própria ordem em Roma, Marsílio e outros menoritas fizeram aos religiosos fiéis ao
papa precisamente aquilo que Dolcino pedia que se fizesse. Com isto não quero dizer que
Dolcino estivesse na verdade sendo justo, mas em todo o caso, diria que Marsílio estava
equivocado. Mas eu começava a perguntar-me, especialmente depois do colóquio
daquela tarde com Guilherme, como era possível aos simples que seguiam Dolcino
distinguir entre as promessas dos espirituais e a aplicação que lhes dava Dolcino. Acaso
não era ele culpado de pôr em prática aquilo que homens reputados como ortodoxos
tinham pregado por via puramente mística? Ou, talvez ali estivesse a diferença, a
santidade consistia em esperar que Deus nos desse aquilo que os seus santos tinham
prometido, sem procurar obtê-lo por meios terrenos? Agora sei que é assim e sei porque
Dolcino estava em erro não se deve transformar a ordem das coisas, ainda que se deva
esperar fervorosamente na sua transformação. Mas naquela noite era dominado por
pensamentos contraditórios.
- Enfim - dizia-me Ubertino -, a marca da heresia encontrá-la-á sempre na soberba.
Numa segunda carta, Dolcino, no ano de mil trezentos e três, nomeava-se chefe supremo
da congregação apostólica, nomeava como seus lugares-tenentes a pérfida Margarida
(uma mulher) e Longino de Bérgamo, Frederico de Novara, Alberto Carentino e Valderico
de Brescia. E começava a divagar sobre uma seqüência de papas futuros, dois bons, o
primeiro e o último, dois maus, o segundo e o terceiro. O primeiro é Celestino, o segundo
é Bonifácio VIII, de quem os profetas dizem: «A soberba do teu coração te infamou, ó tu
que habitas nas fendas das rochas.» O terceiro papa não é nomeado, mas Jeremias dele
teria dito: «Ei-lo, qual leão.» E, infâmia, Dolcino reconhecia o leão em Frederico da
Sicília. O quarto papa para Dolcino era ainda desconhecido, e deveria ser o papa santo, o
papa angélico de que falava o abade Joaquim. Deveria ser eleito por Deus, e então
Dolcino e todos os seus (que naquela altura eram já quatro mil) receberiam em conjunto
a graça do Espírito Santo, e a Igreja seria assim renovada até ao fim do mundo. Mas nos
três anos que precediam a sua vinda todo o mal deveria ser consumado. E foi isso o que
procurou fazer Dolcino, levando a guerra a toda a parte. E o quarto papa, e aqui se vê
como o demônio joga com os seus súcubos, foi precisamente Clemente V, que proclamou
a cruzada contra Dolcino. E foi justo, porque, naquelas cartas, Dolcino já defendia
teorias inconciliáveis com a ortodoxia. Ele afirmou que a Igreja Romana é uma meretriz,
que não deve obediência aos sacerdotes, que todo o poder espiritual tinha doravante
passado para a seita dos apóstolos, que só os apóstolos formam a nova Igreja, que os
apóstolos podem anular o matrimônio, que ninguém, poderá ser salvo se não fizer parte
da seita, que nenhum papa pode absolver do pecado, que não se devem pagar as
décimas, que é vida mais perfeita viver sem votos do que com votos, que uma igreja
consagrada não vale nada para a oração, não mais do que um estábulo, e que se pode
adorar Cristo nos bosques e nas igrejas.

- Disse verdadeiramente essas coisas?
- Decerto, isto é seguro, escreveu-as. Mas fez infelizmente pior. Logo que tomou
posição na Parede Calva, começou a saquear as aldeias do vale, a fazer incursões para
arranjar abastecimentos, conduzindo em suma uma autêntica guerra contra os sítios
vizinhos.
- Todos contra ele?
- Não se sabe. Provavelmente recebeu apoios de alguns, disse-te que se tinha inserido
num nó inextricável de discórdias locais. Tinha caído entretanto o Inverno de mil
trezentos e cinco, um dos mais rigorosos dos últimos decênios, e havia por toda a parte
uma grande penúria. Dolcino enviava uma terceira carta aos seus sequazes, e muitos
ainda se lhe juntavam, mas lá em cima a vida tinha-se tornado impossível e chegaram a
uma fome tal que comiam a carne dos cavalos e de outros animais e feno cozido. E
muitos morreram por isso.
- Mas contra quem se batiam agora?
- O bispo de Vercelli tinha apelado para Clemente V, e tinha sido proclamada uma
cruzada contra os hereges. Foi estabelecida uma indulgência plenária para quem quer
que nela participasse, foram solicitados Luis de Sabóia, os inquisidores da Lombardia, o
arcebispo de Milão. Muitos pegaram na cruz para ajudarem os vercelenses e os
novarenses, mesmo da Sabóia, da Provença, da França, e o bispo de Vercelli teve o
comando supremo. Eram contínuos os reencontros entre as vanguardas dos dois
exércitos, mas as fortificações de Dolcino eram inexpugnáveis, e, de uma maneira ou de
outra, os ímpios recebiam socorros.

- De quem?
- De outros ímpios, creio, que tiravam satisfação daquela fonte de desordem. Ao
findar o ano de mil trezentos e cinco, o heresiarca foi obrigado porém a abandonar a
Parede Calva deixando os feridos e os doentes, e transferiu-se para o território de
Trivero, onde se entrincheirou num monte que então se chamava Zubello e que dali em
diante passou a dizer-se Rubello ou Rebello, porque se tinha tornado a fortaleza dos
rebeldes à Igreja. Em suma, não te posso contar tudo aquilo que aconteceu, e foram
massacres terríveis. Mas no fim os rebeldes foram obrigados a render-se, Dolcino e os
seus foram capturados e acabaram com justiça na fogueira.
- A bela Margarida também?
Ubertino olhou para mim:
- Recordaste-te que era bela, não é verdade? Era bela, dizem, muitos senhores do
lugar pensaram fazer dela sua esposa para a salvarem da fogueira. Mas ela não quis,
morreu impenitentemente com o impenitente do seu amante. E que isto te sirva de
lição, livra-te da meretriz da Babilônia, mesmo quando assume a forma da criatura mais
delicada.
- Mas agora dizei-me padre. Sei que o despenseiro do convento, e talvez também
Salvador, encontraram Dolcino e estiveram com ele de alguma maneira...
- Cala-te, e não pronuncies juízos temerários. Conheci o despenseiro num convento de
menoritas. Depois dos fatos que se relacionam com a história de Dolcino, é verdade.
Muitos espirituais naqueles anos, antes de decidirmos encontrar refúgio na ordem de São
Bento, tiveram uma vida agitada, e tiveram de deixar os seus conventos. Não sei onde
terá estado Remígio antes de eu o encontrar. Sei que foi sempre um bom frade, ao
menos do ponto de vista da ortodoxia. Quanto ao resto, ai de mim, a carne é fraca...
- Que pretendeis dizer?
- Não são coisas que devas saber. Pois bem, em suma, já que falamos disso, e tens de
poder distinguir o bem do mal... – hesitou ainda - dir-te-ei que ouvi murmurar aqui, na
abadia, que o despenseiro não sabe resistir a certas tentações... Mas são murmurações.
Porem deves aprender a nem sequer pensar nestas coisas. - Puxou-me de novo para si,
abraçando-me com força, e indicou-me a estátua da Virgem: - Tu deves iniciar-te no
amor sem mácula. Eis aquela em que a feminilidade foi sublimada. Por isso, dela podes
dizer que é bela, como a amada do cântico dos Cânticos. Nela - disse com o rosto
arrebatado por um gáudio interior, precisamente como o Abade no dia em que falou das
gemas e do ouro dos seus vasos -, nela até a graça do corpo se faz sinal das belezas
celestes e por isso o escultor a representou com todas as graças de que a mulher deve
ser adornada. - Indicou-me o busto delicado da Virgem, erguido e apertado por um
corpete atado ao centro com cordões, com que brincavam as pequenas mãos do Menino.

– Vês? Pulchra enim sunt ubera quae paululum supereminent et tument modice, nec
fluitantia licenter, sed leniter restricta, repressa sed non depressa... Que sentes diante
desta dulcíssima visão?
Corei violentamente, sentindo-me agitado como por um fogo interior. Ubertino deve
tê-lo percebido, ou talvez reparasse no ardor das minhas faces, porque logo acrescentou:
- Mas deves aprender a distinguir o fogo do amor sobrenatural do deliquo dos sentidos.
É difícil até para os santos.
- Mas como se reconhece o amor bom? - perguntei, tremendo.
- Que é o amor? Não há nada no mundo, nem homem nem diabo, nem coisa alguma,
que eu considere tão suspeito como o amor, que este penetra na alma mais que qualquer
outra coisa. Não existe nada que tanto ocupe e ligue o coração como o amor. Por isso, a
menos que tenha as armas que a governam, a alma precipita-se por amor numa imensa
ruína. E eu creio que, sem as seduções de Margarida, Dolcino não se teria condenado, e
sem a vida proterva e promíscua da Parede Calva muitos não teriam sentido o fascínio da
sua rebelião. Repara, eu não te digo estas coisas apenas do amor nocivo, que
naturalmente deve ser evitado por todos como coisa diabólica, eu digo isto, e com
grande medo, mesmo do amor bom que corre entre Deus e o homem, entre o homem e o
seu próximo. Freqüentemente acontece que dois ou três, homens ou mulheres, se amem
muito cordialmente e nutram uns pelos outros uma singular afeição, e desejem viver
sempre juntos, e quando uma parte deseja a outra quer. Aí confesso-te que um
sentimento deste gênero experimentei-o eu por mulheres virtuosas como Angela e Clara.

Pois bem, também isto é bastante reprovável, ainda que se faça espiritualmente e por
Deus... Porque mesmo o amor sentido pela alma, se não está armado mas é acolhido com
calor, vem depois a cair, ou então opera desordenadamente. Oh, o amor tem diversas
propriedades, a princípio por ele a alma se enternece, depois cai enferma... Mas depois
pressente o calor verdadeiro do amor divino e grita, e lamenta-se, faz-se pedra metida
na fornalha para se desfazer em cal, e crepita lambida pela chama...
- E esse é o amor bom?
Ubertino acariciou-me a cabeça, e quando o olhei vi que tinha os olhos enternecidos
de lágrimas:
- Sim, este é enfim amor bom. - Retirou a mão dos meus ombros. - Mas como é difícil -
acrescentou -, como é difícil distingui-lo do outro. E, por vezes, quando a tua alma é
tentada pelos demônios sentes-te como o homem enforcado pela garganta que, de mãos
atadas atrás das costas e olhos vendados, permanece suspenso da forca e no entanto
vive, sem nenhum auxilio, sem nenhum apoio, sem nenhum remédio, a girar no vazio... -
O seu rosto já não estava banhado apenas pelo pranto, mas por uma camada de suor. -
Agora vai-te embora - disse-me à pressa -, disse-te aquilo que querias saber. Por aqui o
coro dos anjos, por ali a garganta do inferno. Vai, e seja louvado o Senhor.
Prostrou-se de novo diante da Virgem, e ouvi-o soluçar baixinho. Rezava.
Não saí da igreja. O colóquio com Ubertino tinha-me introduzido no espírito e nas
vísceras um estranho fogo e uma indizível inquietação. Talvez por isso me achei inclinado
à desobediência e decidi voltar sozinho à biblioteca. Nem eu sequer sabia o que
procurava. Queria explorar sozinho um lugar ignoto, fascinava-me a idéia de me poder
orientar sem a ajuda do meu mestre. Ali subi como Dolcino tinha subido ao monte
Rubello.
Tinha comigo a candeia (porque a tinha levado?, já nutria talvez esse desígnio
secreto?), e penetrei no ossário quase de olhos fechados Em pouco tempo cheguei ao
scriptorium.
Era uma noite fatal, creio, porque, enquanto revistava as mesas, descobri uma sobre a
qual estava aberto um manuscrito que um monge copiava naqueles dias. O título atraiume
logo: Historia fratris Dulcini Heresiarche. Creio que era a mesa de Pedro de Sant
Albano, de quem me tinham dito que estava a escrever uma monumental história da
heresia (depois do que aconteceu na abadia naturalmente que já não a escreveu... mas
não antecipemos os eventos). Não era pois anormal que ali estivesse aquele texto, e
outros havia de assunto afim, sobre os patarinos e sobre os flagelantes. Mas tomei como
um sinal sobrenatural, não sei ainda se celeste ou diabólico, aquela circunstância, e pusme
a ler avidamente o escrito. Não era muito longo, e na primeira parte dizia, com
muitos outros pormenores que esqueci, o que me tinha dito Ubertino. Ai se falava
também dos numerosos delitos cometidos pelos dolcinianos durante a guerra e o assédio.
E da batalha final, que foi das mais cruentas. Mas aí encontrei também aquilo que
Ubertino não me tinha contado, e dito por quem evidentemente tinha visto tudo e com
isso tinha ainda a imaginação inflamada.
Soube portanto como em Março de 1307, em sábado santo, Dolcino, Margarida e
Longino, finalmente presos, foram conduzidos à cidade de Biella e entregues ao bispo,
que esperava a decisão do papa. O papa, logo que soube a notícia, transmitiu-a ao rei de
França, Filipe, escrevendo: «Chegaram-nos notícias muitíssimo agradáveis, fecundas de
alegria e exultação, porque aquele demônio pestífero, filho de Belial, e horrendíssimo
heresiarca Dolcino, depois de longos perigos, fadigas, massacres e freqüentes incursões
com os seus sequazes, está finalmente prisioneiro nos nossos cárceres, por obra do nosso
venerável irmão Raniero, bispo de Vercelli, capturado no dia da santa ceia do Senhor, e
a numerosa gente que estava com ele, infectada pelo contágio, foi morta naquele
mesmo dia.» O papa foi impiedoso em relação aos prisioneiros e ordenou ao bispo que
lhes desse a morte. Então, em Julho do mesmo ano, no primeiro dia do mês, os hereges
foram entregues ao braço secular. Enquanto os sinos da cidade tocavam a rebate, foram
postos em cima de um carro, circundados pelos carrascos e seguidos pela milícia, que
percorreu toda a cidade, enquanto, a cada esquina, com tenazes em brasa, rasgavam as
carnes aos réus. Margarida foi a primeira a ser queimada diante de Dolcino,que não
moveu um único músculo do rosto, tal como não tinha soltado um lamento quando as
tenazes lhe mordiam os membros. Depois o carro continuou o seu caminho, enquanto os
carrascos enfiavam os seus ferros em vasos cheios de fachos ardentes. Dolcino sofreu
outros tormentos, e ficou sempre mudo, salvo quando lhe amputaram o nariz, porque
encolheu um pouco os ombros, e quando lhe arrancaram o membro viril, pois nessa
altura lançou um longo suspiro, como um gemido. As últimas coisas que disse soaram a
impenitência, e advertiu que ressuscitaria ao terceiro dia. Depois foi queimado, e as
cinzas foram dispersas ao vento.

Fechei o manuscrito com as mãos a tremer. Dolcino tinha cometido muitos delitos,
tinham-me dito, mas tinha sido horrorosamente queimado. E tinha-se comportado na
fogueira... como?, com a firmeza dos mártires ou com a arrogância dos danados?
Enquanto subia vacilando as escadas que levavam à biblioteca, compreendi porque
estava tão perturbado. Lembrei-me de repente de uma cena que tinha visto não muitos
meses antes, pouco depois da minha chegada à Toscana. Perguntava-me mesmo como é
que a tinha quase esquecido até então, como se a minha alma doente tivesse querido
apagar uma recordação que lhe pesava como um pesadelo. Ou melhor, não a tinha
esquecido, porque cada vez que ouvia falar dos fraticelli revia imagens daquele
acontecimento, mas logo as rechaçava para os recantos do meu espírito, como se fosse
um pecado ter sido testemunha daquele horror.

Tinha ouvido falar pela primeira vez de fraticelli nos dias em que, em Florença, tinha
visto queimar um na fogueira. Tinha sido pouco antes de encontrar em Pisa frade
Guilherme. Ele estava demorando a sua chegada àquela cidade, e meu pai tinha-me dado
licença para visitar Florença, cujas belíssimas igrejas tínhamos ouvido elogiar. Tinha
vagueado pela Toscana, para aprender melhor a língua vulgar italiana, e tinha
finalmente ficado uma semana em Florença, porque tinha ouvido falar muito daquela
cidade e desejava conhecê-la.
Foi assim que, mal ali cheguei, ouvi falar de um grande caso que estava agitando toda
a cidade. Um fraticello herético, acusado de delitos contra a religião, e levado à
presença do bispo e outros eclesiásticos, era naqueles dias submetido a severa
inquisição. E, seguindo aqueles que me falavam disso, encaminhei-me até ao lugar onde
se desenrolava o evento, enquanto ouvia a gente dizer que aquele fraticello, de nome
Miguel, era em verdade um homem muito piedoso, que tinha pregado penitência e
pobreza, repetindo as palavras de São Francisco, e tinha sido arrastado diante dos juízes
pela malícia de certas mulheres que, fingindo confessar-se a ele, lhe tinham depois
atribuído propostas heréticas; e, mais, tinha sido apanhado pelos homens do bispo
precisamente em casa daquelas mulheres, fato esse que me espantava, porque um
homem da Igreja não deveria ir administrar os sacramentos em lugares tão pouco
adequados, mas esta parecia ser a fraqueza dos fraticelli, não terem na devida
consideração as conveniências, e talvez houvesse algo de verdadeiro na voz do povo, que
os achava, além de hereges, de costumes duvidosos (tal como se continuava a dizer que
os cátaros eram búlgaros e sodomitas).
Cheguei à igreja de São Salvador, onde se desenrolava o processo, mas não pude
entrar por causa da grande multidão que estava em frente. Porém, alguns tinham-se
içado e agarrado às grades das janelas, e viam e ouviam quando ali se passava, e
contavam-no aos outros que se encontravam em baixo. Estavam então relendo a frade
Miguel a confissão que tinha feito no dia anterior, em que dizia que Cristo e os seus
apóstolos «não tiveram nenhuma coisa nem em particular nem em comum por razão de
propriedade», mas Miguel protestava que o tabelião lhe tinha acrescentado agora
«muitas falsas conseqüências» e gritava (e isto ouvi-o de fora): «Haveis de prestar contas
disto no dia do Juízo!» Mas os inquisidores leram a confissão como a tinham redigido e no
fim perguntaram-lhe se queria humildemente conformar-se com as opiniões da Igreja e
de todo o povo da cidade. E ouvi Miguel que gritava em voz alta que queria era
conformar-se com aquilo em que acreditava, isto é, que «queria manter Cristo como
pobre crucificado e o papa João XXII como herege, pois que dizia o contrário». Seguiu-se
uma grande discussão, em que os inquisidores, entre os quais muitos franciscanos,
queriam fazer-lhe compreender que as escrituras não tinham dito aquilo que ele dizia, e
ele acusava-os de negarem a regra da sua própria ordem, e aqueles caíam-lhe em cima
perguntando-lhe se porventura julgava entender as escrituras melhor do que eles, que
eram mestres na matéria. E frei Miguel, deveras muito pertinaz, contestava-os, tanto
que aqueles punham-se a atacá-lo com provocações como: «E agora queremos que tu
mantenhas Cristo como se fosse proprietário e o Papa João como católico e santo.» E
Miguel, não desistindo: «Não, herético.» E aqueles diziam que nunca tinham visto
ninguém tão duro na própria iniqüidade. Mas entre a multidão fora do palácio ouvi
muitos que diziam que ele era como Cristo entre os fariseus, e apercebi-me que entre o
povo muitos acreditavam na santidade de frade Miguel.

Finalmente, os homens do bispo levaram-no de novo para a prisão e puseram-no a
ferros. E à noite disseram-me que muitos dos frades amigos do bispo tinham ido insultálo
e pedir-lhe que se retratasse, mas ele respondia como alguém que estivesse seguro da
sua própria verdade. E repetia a todos que Cristo era pobre, e que o mesmo tinham dito
também São Francisco e São Domingos, e que, se por professar esta reta opinião devia
ser condenado ao suplício, tanto melhor, porque em breve poderia ver o que diziam as
escrituras, e os vinte e quatro velhos do Apocalipse, e Jesus Cristo e São Francisco, e os
gloriosos mártires. E disseram-me que disse: «Se lemos com tanto fervor a doutrina de
certos santos abades com tanto mais fervor e alegria devemos desejar estar no meio
deles.» E a palavras deste gênero os inquisidores saíam do cárcere de rosto sombrio
gritando indignados (e eu ouvi-os): «Tem o diabo no corpo!»
No dia seguinte soubemos que a condenação tinha sido pronunciada, e dirigindo-me ao
episcopado pude ver o pergaminho, e uma parte copiei-a na minha tabuinha.
Começava «In nomine Domini amen. Hec est quedam condemnatio corporalis et
sententia condemnationis corporalis lata, data et in hiis criptis sententialiter
pronumptiata et promulgata...», etcétera, e prosseguia com uma severa descrição dos
pecados e das culpas do dito Miguel, que aqui em parte reproduzo para que o leitor
julgue com prudência:
Johannem vocatum fratrem Micchaelem lacobi, de comitatu Sancti Fre-diani,
hominem male condictionis, et pessime conversationis, vite et fame, hereticum et
herética labe pollutum et contra fidem cactolicam credentem et affirmantem... Deum
pre oculis non habendo sed potius humani generis inimicum, scienter, studiose,
appensate, nequiter et animo et intentione, exer-cendi hereticam pravitatem stetit et
conversatus fuit cum Fraticellis, vocatis fraticellis della povera vita hereticis et
scismaticis et eorum pravam sectam et heresim secutus fuit et sequitur contra fidem
cactolicam... et accessit ad dictam civitatem Florentie et in locis publicis dicte civitatis
in dicta inquisi-tione contentis, credidit, tenuit et pertinaciter affirmavit ore eí corde...
quod Christus redentor noster non habuit rem aliquam in proprio vel comuni sed habuit a
quibuscumque rebus quas sacra scriptura eum habuisse testatur, tantum simplicem facti
usum.
Mas não eram apenas estes os delitos de que era acusado, e um, entre outros,
pareceu-me dos mais torpes, embora eu não saiba (tal como se desenrolou o processo) se
ele terá na verdade afirmado tal coisa, mas dizia-se, em suma, que o dito menorita tinha
defendido que São Tomás de Aquino não era santo nem gozava da eterna salvação, mas,
pelo contrário, era condenado e em estado de perdição! E a sentença concluía
cominando a pena, pois que o acusado não tinha querido emendar-se:
Costal nobis etiam ex predictis et ex dicta sententia lata per dictum do-minum
episcopum florentinum, dictum Johannem fore hereticum, nolle se tantis herroribus et
heresi corrigere et emendare, et se ad rectam viam fidei dirigiere, habentes dictum
Johannem pro irreducibili, pertinace et hostinato in dictis suis perversis herroribus, ne
ipse Johannes de dictis suis sceleribus et herroribus perversis valeat gloriari, et ut eius
pena alus transeat in exemplum; idcirco, dictum Johannem vocatum fratrem Micchaelem
hereticum et scismaticum quod ducatur ad locum iustitie consuetum, et ibidem igne et
flammis igneis accensis concremetur et comburatur, ita quod penitus moria-tur et anima
a corpore separetur.

E, depois que a sentença foi tornada pública, foram ainda homens da Igreja à prisão e
advertiram Miguel daquilo que iria acontecer, e ouvi-os até dizer: «Frei Miguel, já estão
feitas as mitras com as capas, e têm pintados fraticelli acompanhados por diabos.» Para
o amedrontar e obrigá-lo enfim a retratar-se. Mas frade Miguel pôs-se de joelhos e disse:
«Eu penso que à volta da fogueira estará o nosso padre Francisco e, digo mais, creio que
ai estarão Jesus e os apóstolos, e os gloriosos mártires Bartolomeu e Antônio.» O que era
um modo de recusar pela última vez as ofertas dos inquisidores.
Na manhã seguinte também eu estive na ponte do episcopado onde se tinham reunido
os inquisidores, à presença dos quais foi levado, sempre acorrentado, frade Miguel. Um
dos fiéis ajoelhou-se diante dele, para receber a bênção, e foi preso pelos homens de
armas e conduzido imediatamente para a prisão. Depois, os inquisidores voltaram a ler a
sentença ao condenado e perguntaram de novo se queria arrepender-se. Cada vez que a
sentença dizia que ele era um herege, Miguel respondia «herege não sou, pecador, sim,
mas católico», e quando o texto nomeava «o venerabilissimo e santíssimo papa João
XXII» Miguel respondia «não, mas herege». Então o bispo ordenou que Miguel fosse
ajoelhar-se diante dele, e Miguel disse que não se ajoelhava diante dos hereges.
Obrigaram-no a ajoelhar-se à força, e ele murmurou: «Sou desculpado diante de Deus.»
E, como tinha sido levado para ali com todos os seus paramentos sacerdotais, iniciou-se
um rito em que peça a peça os paramentos lhe eram tirados, até que ficou apenas com
aquele saiote que em Florença chamam cioppa. E como manda o uso para o padre que se
desconsagra, com um ferro cortante rasparam-lhe as pontas dos dedos e raparam-lhe o
cabelo. Depois foi confiado ao capitão e aos seus homens, que o trataram muito
duramente e o puseram a ferros, levando-o de novo para o cárcere enquanto ele dizia à
multidão: «Per Dominum moriemur.» Devia ser queimado, assim ouvi, só no dia seguinte.
E nesse mesmo dia foram perguntar-lhe se queria confessar-se e comungar. E recusou
cometer pecado aceitando os sacramentos de quem estava em pecado. E nisto, creio, fez
mal, e mostrou-se corrompido pela heresia dos patarinos.
E chegou enfim a manhã do suplício, e foi buscá-lo um porta-bandeira que me pareceu
pessoa amiga, porque lhe perguntou que espécie de homem era e porque se obstinava
quando bastava afirmar aquilo que todo o povo afirmava e aceitar a opinião da Santa
Madre Igreja. Mas Miguel duríssimo: «Eu creio em Cristo pobre crucificado.» E o portabandeira
foi-se embora abrindo os braços. Chegaram então o capitão e os seus homens e
levaram Miguel para o pátio onde estava o vigário do bispo, que lhe voltou a ler a
confissão e a condenação. Miguel interveio ainda para contestar opiniões falsas que lhe
eram atribuídas: e eram na verdade de tão grande sutileza que eu não as recordo e
então não as compreendi bem. Mas sobre elas se decidia a morte de Miguel, decerto, e a
perseguição dos fraticelli. De tal modo que eu não compreendia por que motivo homens
da Igreja e do braço secular se encarniçavam tanto contra pessoas que queriam viver na
pobreza e consideravam que Cristo não tinham tido bens terrenos. Porque, dizia para
comigo, quando muito, deviam temer homens que querem, viver na riqueza e subtrair
dinheiro aos outros, e levar a Igreja para o pecado e introduzir nela práticas de simonia.

E falei disto a um que estava perto de mim, porque não resistia a ficar calado. E aquele
sorriu trocista e disse-me que um frade que pratica a pobreza torna-se mau exemplo
para o povo, que depois já não se habitua aos frades que não a praticam. E que,
acrescentou, aquela pregação de pobreza metia idéias nocivas na cabeça do povo, que
da sua pobreza retiraria razões de orgulho, e o orgulho pode levar a muitos atos
orgulhosos. E enfim, que eu devia saber que nem sequer para ele era claro por meio de
que silogismo, ao pregar a pobreza para os frades, se estava do lado do imperador, e isso
não agradava ao papa. Pareceram-me todas ótimas razões, ainda que ditas por um
homem de pouca doutrina. Salvo que, sendo assim, não compreendia por que motivo frei
Miguel queria morrer tão horrendamente para satisfazer o imperador, ou resolver uma
questão entre ordens religiosas. E, de fato, alguém entre os presentes dizia: «Não é um
santo, foi enviado por Luís para semear a discórdia entre os citadinos, e os fraticelli são
toscanos mas por trás deles estão os enviados do Império.» E outros: «Mas é um louco,
esta possuído pelo demônio cheio de orgulho, e goza do martírio por danada soberba;
obrigam estes frades a ler demasiadas vidas de santos, melhor seria que tomassem
mulher!» E outros ainda: «Não, teríamos necessidade que todos os cristãos fossem assim,
prontos a testemunhar a sua fé como no tempo dos pagãos.» E ao escutar aquelas vozes,
quando já não sabia que pensar, aconteceu-me que pude ver de frente o condenado, que
a espaços a multidão diante de mim escondia. E vi o rosto de alguém que olha alguma
coisa que não é desta rerra, como algumas vezes vi nas estátuas dos santos arrebatados
em visões. E compreendi que, fosse louco ou vidente, ele, lucidamente, queria morrer,
porque acreditava que, morrendo havia de, derrotar o seu inimigo, fosse ele qual fosse.
E compreendo que o seu exemplo levaria outros à morte. E apenas fiquei assombrado por
tanta firmeza porque ainda hoje não sei se neles prevalece um amor orgulhoso pela
verdade em que crêem, que os leva à morte, ou um orgulhoso desejo de morte, que os
leva a testemunhar a sua verdade, qualquer que ela seja. E por isso me sinto arrebatado
de admiração e temor.
Mas voltemos ao suplício, que já se estavam todos encaminhando para o lugar da
condenação à morte.

O capitão e os seus levaram-no para fora da porta, com o saiote vestido, e parte dos
botões desapertados, e ele andava com passo largo e a cabeça inclinada, recitando o seu
ofício, que parecia um dos mártires. E a multidão era tanta que não se acreditava, e
muitos gritavam: «Não morras!», e ele respondia: «Quero morrer por Cristo.» «Mas tu
não morres por Cristo», diziam-lhe, e ele: «Mas pela verdade.» Chegando a um lugar
chamado o canto do Proconsolo, um gritou-lhe que pedisse a Deus por todos eles, e ele
abençoou a multidão. E nos Fondamenti de Santa Liperata um disse-lhe: «Que tolo que
és, crê no papa!», e ele respondeu: «Fizestes um deus deste vosso papa», e acrescentou:
«Estes vossos papados bem vos amanharam» (que era um jogo de palavras, ou chiste, que
tornava os papas como animais, no dialeto toscano, como me explicaram): e todos se
espantaram que fosse para a morte dizendo piadas.
Em San Giovanni gritaram-lhe: «Salva a vida!», e ele respondeu: «Salvai-vos dos
pecados!»; no Mercaro Vecchio gritaram-lhe: «Salva-te, salva-te!», e ele respondeu:
«Salvai-vos do inferno»; no Mercaro Nuovo bradaram-lhe: «Arrepende-te, arrependete!
», e ele respondeu: «Arrependei-vos das usuras.» E chegando a Santa Croce viu os
frades da sua ordem que estavam na escadaria e censurou-os porque não seguiam a regra
de São Francisco. E alguns deles encolhiam os ombros, mas outros, envergonhados
cobriam o rosto com o capucho.
E andando em direção à porta da Giustizia muitos diziam-lhe: «Nega, nega, não
queiras morrer!», e ele: «Cristo morreu por nós.» E eles: «Mas tu não és Cristo, não
deves morrer por nós!», e ele: «Mas eu quero morrer por Ele.» No prado da Giustizia, um
disse-lhe se não podia fazer um certo frade seu superior que tinha negado, mas Miguel
respondeu que não tinha negado, e vi muitos entre a multidão que concordavam e
incitavam Miguel a ser forte assim, eu e muitos outros compreendemos que aqueles eram
dos seus e apartamo-nos.

Chegou-se enfim fora da porta e diante de nós apareceu a pira, ou choupana, como ali
lhe chamavam, porque a lenha era disposta em forma de cabana, e ai se fez um círculo
de cavaleiros armados para que a gente não se aproximasse demasiado. E foi então que
ataram frade Miguel à coluna. E ouvi ainda um gritar-lhe «Mas o que é isto, por quem
queres morrer?», e ele respondeu «Esta é uma verdade que habita dentro de mim, da
qual não se pode dar testemunho senão pela morte.» Acenderam o fogo. E frade Miguel,
que já tinha entoado o Credo, entoou depois o Te Deum. Cantou talvez oito versos,
depois dobrou-se, como se fosse espirrar, e caiu por terra, porque tinha ardido as cordas.
E já estava morto, porque antes que o corpo arda de todo já se morre pelo grande calor,
que faz rebentar o coração, e pelo fumo, que invade o peito.
Depois a cabana ardeu completamente como uma tocha e fez-se um grande clarão, e
se não fosse pelo pobre corpo carbonizado de Miguel que ainda se via entre os paus
incandescentes teria dito que estava diante da sarça ardente. E estive tão perto de ter
uma visão que (recordei enquanto subia as escadas da biblioteca) me tinham subido
espontaneamente aos lábios algumas palavras sobre o arrebatamento extático que tinha
lido nos livros de Santa Hildegarda: «A chama consiste numa esplêndida claridade, num
inato vigor e num ígneo ardor, mas a esplêndida claridade possui-a para reluzir e o ígneo
ardor a fim de queimar.»
Recordei-me de algumas frases de Ubertino sobre o amor. A imagem de Miguel na
fogueira confundiu-se com a de Dolcino, e a de Dolcino com a de Margarida, a Bela. Senti
de novo aquela inquietação que me tinha invadido na igreja.
Tentei não pensar nisso e prossegui decididamente para o labirinto. Penetrava ali
sozinho pela primeira vez, as longas sombras projetadas pela candeia no pavimento
aterrorizavam-me como as visões das noites anteriores. Temia a cada instante encontrarme
diante de outro espelho, porque a magia dos espelhos é tal que, mesmo sabendo que
são espelhos, não deixam de te inquietar.
Além disso não procurava orientar-me nem evitar a sala dos perfumes que provocam
visões. Prosseguia como possuído pela febre e não sabia onde queria ir. De fato não me
afastei muito do ponto de partida, porque pouco depois achei-me de novo na sala
heptagonal por onde tinha entrado. Aqui, sobre uma mesa, estavam dispostos alguns
livros que não me parecia ter visto na noite anterior. Adivinhei que eram obras que
Malaquias tinha retirado do scriptorium e que não tinha ainda recolocado nos lugares a
elas destinadas. Não compreendia se estava muito distante da sala dos perfumes, porque
me sentia como aturdido, e podia ser por algum eflúvio que chegava até aquele lugar ou
pelas coisas que tinha fantasiado até então. Abri um volume ricamente iluminado, que,
pelo estilo, me parecia que provinha dos mosteiros da última Thule.

Fiquei impressionado, numa página em que começava o santo evangelho do apóstolo
Marco, com a imagem de um leão. Era certamente um leão, ainda que nunca os tivesse
visto em carne e osso, e o miniaturista tinha-lhe reproduzido com fidelidade as feições,
inspirando-se talvez ao ver leões de Hibernia, terra de criaturas monstruosas, e
convenci-me de que este animal, como aliás diz o Fisiólogo, concentra em si todos os
caracteres das coisas mais horrendas e majestosas ao mesmo tempo. Assim aquela
imagem me evocava simultaneamente a imagem do inimigo e a de Cristo Nosso Senhor, e
nem sabia em que chave simbólica devia lê-la, e tremia todo, quer pelo temor quer pelo
vento que penetrava pelas fendas das paredes.
O leão que vi tinha uma boca eriçada de dentes, e uma cabeça finamente coberta por
escamas como a das serpentes, o corpo enorme, que se segurava em quatro patas de
unhas pontiagudas e ferozes, assemelhava-se pelo velo a um daqueles tapetes que mais
tarde vi trazer do Oriente, de escamas vermelhas e esmaragdinas, onde se desenhavam,
amarelos como a peste, horríveis e robustos entablamentos de ossos. Amarela era
também a cauda, que se retorcia do dorso subindo até à cabeça, terminando com uma
última voluta de tufos brancos e negros.
Já estava muito impressionado com o leão (e mais de uma vez me tinha voltado para
trás como se esperasse ver aparecer de repente um animal com aquele aspecto), quando
decidi ver outras folhas, e o meu olhar caiu, no início do evangelho de Mateus, sobre a
imagem de um homem. Não sei porquê, assustou-me mais ele do que o leão: o rosto era
de homem, mas este homem estava couraçado numa espécie de casula rígida que o
cobria até aos pés, e esta casula ou couraça estava incrustada de pedras vermelhas e
amarelas. Aquela cabeça, que sobressaia, enigmática, de um castelo de rubis e topázios,
surgiu-me (quanto o terror me fez blasfemo!) como o assassino misterioso cujo
impalpável rasto seguíamos. E depois compreendi porque ligava tão estreitamente a fera
e a couraça ao labirinto: porque ambas, como todas as figuras daquele livro, emergiam
de um tecido figurado de labirintos entrelaçados, onde linhas de ônix e esmeralda, fios
de crisoprásio, fitas de berilo pareciam aludir todos ao novelo de salas e corredores em
que me encontrava. O meu olhar perdia-se, sobre a página, por caminhos
resplandecentes, como os meus pés se iam perdendo na teoria inquietante das salas da
biblioteca, e ver representado naqueles pergaminhos o meu errar encheu-me de
inquietação e convenceu-me de que cada um daqueles livros contava por misteriosas
gargalhadas a minha história daquele momento. «De te fabula narratur», disse para
comigo, e perguntei-me se aquelas páginas não conteriam já a história dos instantes
futuros que me esperavam.
Abri outro livro, e este pareceu-me de escola hispânica. As cores eram violentas, os
vermelhos pareciam sangue ou fogo. Era o livro da revelação do apóstolo, e caí uma vez
mais, como na noite anterior, sobre a página da mulier amicta sole. Mas não era o
mesmo livro, a iluminura era diferente, aqui o artista tinha insistido mais longamente
sobre as feições da mulher. Comparei-lhe o rosto, o seio, as ancas flexuosas à estátua da
Virgem que tinha visto com libertino. O traço era diferente, mas esta mulier também me
pareceu belíssima. Pensei que não devia insistir nestes pensamentos, e voltei algumas
páginas. Encontrei outra mulher, mas desta vez era a meretriz da Babilônia. As suas
feições não me impressionaram tanto como o pensamento que também ela era uma
mulher como a outra, e, no entanto, esta era baixel de todo o vício, aquela era
receptáculo de toda a virtude. Mas as feições eram femininas em ambos os casos, e a
certa altura já não fui capaz de compreender o que as distinguia. De novo senti uma
agitação interior, a imagem da Virgem da igreja sobrepôs-se à da bela Margarida. «Estou
condenado!», disse para comigo. Ou «Estou louco.» E decidi que não podia ficar mais
tempo na biblioteca.

Por sorte estava próximo da escada. Precipitei-me por ela abaixo com risco de
tropeçar e apagar a candeia. Achei-me de novo sob as amplas abóbadas do scriptorium,
mas nem ali me detive, e lancei-me pela escada que levava ao refeitório.
Ali parei ofegante. Pelas vidraças penetrava a luz da Lua, naquela noite
resplandecente, e quase já não tinha necessidade da candeia, indispensável, porém,
pelas células e cubículos da biblioteca. Todavia, mantive-a acesa, como a procurar
conforto. Mas ainda ofegava, e pensei que devia beber água para acalmar a tensão. Pois
que a cozinha era ao lado, atravessei o refeitório e abri lentamente uma das portas que
dava para a segunda metade do rés-do-chão do Edifício.
E, nesse instante, o meu terror, em vez de diminuir, aumentou. Porque me apercebi
imediatamente que alguém estava na cozinha, junto ao forno do pão; ou pelo menos,
apercebi-me de que naquele canto brilhava uma candeia e, cheio de medo, apaguei a
minha. Assustado como estava, incuti medo, e, de fato, o outro (ou os outros) apagaram
rapidamente a sua. Mas em vão, porque a luz da noite iluminava o bastante a cozinha
para desenhar diante de mim, no pavimento, uma ou mais sombras confusas.
Eu, enregelado, já não ousava nem retroceder nem avançar. Ouvi um balbucio e
pareceu-me ouvir, submissa, uma voz de mulher. Depois, do grupo informe que se
desenhava obscuramente junto do forno, uma sombra escura e tosca destacou-se e fugiu
para a porta exterior, que evidentemente estava entreaberta, voltando a fechá-la atrás
de si.
Fiquei eu, no limiar entre refeitório e cozinha, e qualquer coisa de impreciso junto ao
forno. Qualquer coisa de impreciso e - como dizer? - de gemebundo. De fato provinha da
sombra um gemido, quase um pranto submisso, um soluçar rítmico, de medo.
Nada infunde mais coragem ao medroso que o medo alheio. Mas não me movi para a
sombra impelido pela coragem; antes, diria, impelido por uma embriaguez não diferente
daquela que me tinha dominado quando tinha tido as visões. Havia na cozinha qualquer
coisa de afim dos sufumígios que me tinham surpreendido na biblioteca no dia anterior.
Ou talvez não se tratasse das mesmas substancias, mas aos meus sentidos superexcitados
elas fizeram o mesmo efeito. Sentia um odor de traganta, alúmen e tártaro, que os
cozinheiros usavam para aromatizar o vinho. Ou talvez, como soube depois, se estivesse
naqueles dias preparando a cerveja (que naquela plaga a norte da península era tida
num certo apreço), e produzia-se segundo a moda do meu país, com urze, mirto dos
pauis e rosmaninho de pântano selvagem. Todos eles aromas que, mais do que as minhas
narinas, inebriaram a minha mente.
E, enquanto o meu instinto racional era gritar «vade retro!» e afastar-me da coisa
gemente que certamente era um súcubo que me fora evocado pelo maligno, qualquer
coisa na minha vis apetitiva me impeliu para a frente, como se quisesse participar de um
prodígio.
Assim, aproximei-me da sombra, até que, à luz da noite, que caía das altas janelas,
me apercebi que era uma mulher, a tremer, que com uma mão apertava contra o peito
um embrulho e que se retraía chorando para a boca do forno.
Deus, a Santíssima Virgem e todos os santos do paraíso me assistam agora ao dizer o
que me aconteceu. O pudor, a dignidade do meu estado (agora velho monge neste belo
mosteiro de Melk, lugar de paz e serena meditação) aconselhar-me-iam as mais piedosas
cautelas. Deveria dizer simplesmente que qualquer coisa de mal aconteceu, mas que não
é honesto repetir o que foi e não me perturbaria a mim próprio nem ao meu leitor.
Mas propus-me contar, sobre aqueles fatos remotos, toda a verdade, e a verdade é
indivisível, brilha pela sua própria evidência, e não consente ser diminuída pelos nossos
interesses e pela nossa vergonha. O problema é, sobretudo, dizer que aconteceu não
como agora o vejo e o recordo (mesmo se agora recordo tudo com impiedosa vivacidade,
e nem sei se é o arrependimento que se seguiu a fixar de modo tão vivo casos e
pensamentos da minha memória ou a insuficiência daquele mesmo arrependimento que
ainda me atormenta dando vida, na minha mente angustiada, a cada um dos mais
pequenos pormenores da minha vergonha), mas como o vi e o senti então. E posso fazêlo,
com fidelidade de cronista, porque, se fechar os olhos posso repetir não só tudo
quanto fiz como quanto pensei naqueles instantes, como se copiasse um pergaminho
escrito então. Devo portanto prosseguir deste modo, e São Miguel Arcanjo me proteja:
porque, para edificação dos leitores futuros e para flagelação da minha culpa, quero
agora contar como um jovem pode incorrer nas tramas do demônio, a fim de que elas
possam ser conhecidas e evidentes, e quem ainda nelas incorrer possa vencê-las.

Era, pois uma mulher. Que digo, uma rapariga. Tendo tido até então (e a partir de
então, sejam dadas graças a Deus) pouca familiaridade com os seres daquele sexo, não
sei dizer que idade podia ter. Sei que era jovem, quase adolescente, talvez tivesse
dezesseis ou dezoito primaveras, ou talvez vinte, e fui atingido pela impressão de
humana realidade que emanava daquela figura. Não era uma visão, e pareceu-me em
todo o caso valde bona. Talvez porque tremia como um passarinho no Inverno, e
chorava, e tinha medo de mim.
Assim, pensando que o dever de todo o bom cristão é socorrer o seu próximo,
aproximei-me dela com grande doçura e em bom latim disse-lhe que não devia ter medo,
porque era um amigo, em todo o caso não um inimigo, certamente não o inimigo como
ela, talvez, receava.
Talvez devido à suavidade que emanava do meu olhar, a criatura acalmou-se e
aproximou-se de mim. Apercebi-me que não compreendia o meu latim e, por instinto,
dirigi-me a ela na minha língua vulgar alemã, e isto assustou-a muitíssimo, não sei se por
causa dos sons ásperos, insólitos para a gente daquela plaga, ou porque estes sons lhe
recordavam alguma outra experiência com soldados da minha terra. Então sorri,
considerando que a linguagem dos gestos e do rosto é mais universal que a das palavras,
e ela aquietou-se. Sorriu-me também e disse-me algumas palavras.
Conhecia pouquíssimo a sua língua vulgar, e em todo o caso era diferente da que em
parte tinha aprendido em Pisa, mas apercebi-me pelo tom que ela me dizia palavras
doces, e pareceu-me que dizia qualquer coisa como: «Tu és jovem, tu és belo...»
Raramente acontece a um noviço, que tenha passado toda a sua infância num mosteiro,
ouvir afirmações acerca da sua própria beleza, e, pelo contrário, é costume avisarem-nos
que a beleza corporal é fugaz e é de ter em bastante vil conta: mas as tramas do inimigo
são infinitas, e confesso que aquela alusão à minha venustidade, por mais enganadora
que fosse, desceu docemente aos meus ouvidos e deu-me uma irreprimível emoção.
Tanto mais que a rapariga, ao dizer isto, tinha estendido a mão e com as pontas dos
dedos tinha aflorado a minha face, então completamente imberbe. Senti como uma
impressão de desfalecimento, mas naquele momento não conseguia divisar sombra de
pecado no meu coração. Tanto pode o demônio quando quer pôr-nos à prova e apagar do
nosso espírito as marcas da graça.
Que senti? Que vi? Eu recordo apenas que as emoções do primeiro instante foram
privadas de toda a expressão, porque a minha língua e a minha mente não tinham sido
educadas para nomearem sensações daquele tipo. Enquanto não me lembraram outras
palavras interiores, ouvidas noutro tempo e noutros lugares, certamente ditas com
outros fins, mas que me pareceram harmonizar-se admiravelmente com o meu gáudio
daquele momento, como se tivessem nascido consubstancialmente para o exprimir.
Palavras que se tinham recalcado nas cavernas da minha memória subiram à superfície
(muda) dos meus lábios, e esqueci que elas tinham servido nas escrituras ou nas páginas
dos santos para exprimir bem mais fúlgidas realidades. Mas havia pois verdadeira
diferença entre as delícias de que tinham falado os santos e as que o meu espírito
exagitado experimentava naquele instante? Naquele instante anulou-se em mim o
sentido vigilante da diferença. Que é precisamente, parece-me, o sinal do
arrebatamento nos abismos da identidade.

De repente, a rapariga surgiu-me como a virgem negra mas bela de que fala o Cântico.
Ela trazia um pobre vestido coçado de tecido cru que se abria de modo bastante
impudico sobre o peito, e tinha ao pescoço um colar feito de pedrinhas coloridas e,
creio, de nenhum valor. Mas a cabeça erguia-se altivamente sobre um pescoço branco
como torre de marfim, os seus olhos eram claros como as piscinas de Hesebon, o seu
nariz era uma torre do Líbano, as madeiras da sua cabeça como púrpura. Sim, a sua
cabeleira surgiu-me como um rebanho de cabras, os seus dentes como rebanhos de
ovelhas que saem do banho, todas aos pares, de modo que nenhuma delas estava antes
da companheira. «Como és bela, minha amada, como és bela», pus-me a murmurar, «a
tua cabeleira é como um rebanho de cabras que desce das montanhas de Galaad, como
fitas de púrpura são os teus lábios, gomo de romã é a tua face, o teu pescoço é como a
torre de David a que estão suspensos mil broqueis.» E perguntava-me, deslumbrado e
aturdido, quem era aquela que se elevava diante de mim como a aurora, bela como a
Lua, fúlgida como o Sol, terribilis ut castrorum acies ordinata.
Então a criatura aproximou-se de mim ainda mais, atirando para um canto o embrulho
escuro que até ai tinha mantido apertado contra o peito, e levantou outra vez a mão
para me acariciar o rosto, e repetiu mais uma vez as palavras que eu já tinha ouvido. E
enquanto não sabia se fugir dela ou aproximar-me ainda mais, enquanto a minha cabeça
pulsava como se as trombetas de Josué estivessem para fazer derrubar as muralhas de
Jericó, e ao mesmo tempo desejava e receava tocar-lhe, ela teve um sorriso de grande
alegria, emitiu um gemido submisso de cabra enternecida, e desfez os laços que lhe
apertavam o vestido sobre o peito, e fez deslizar o vestido do corpo como uma túnica, e
ficou diante de mim como Eva devia ter aparecido a Adão no jardim do Éden. «Pulchra
sunt ubera quae paululum supere-minent et tument modice», murmurei, repetindo a
frase que tinha ouvido a Ubertino, porque os seus seios me surgiram como dois veados,
gêmeos de uma gazela que pastavam entre os lírios, o seu umbigo foi uma taça redonda
onde nunca falta vinho drogado, o seu ventre um montão de trigo contornado de flores
dos vales.
«O sidus clarum puellarum», gritei-lhe, «o porta clausa, fons hortorum, celia cusios
unguentorum, celia pigmentaria!», e achei-me sem querer encostado ao seu corpo,
sentindo-lhe o calor e o perfume acre de ungüentos jamais conhecidos. Lembrei-me:
«Filhos, quando vem o amor louco, nada pode o homem!», e compreendi que, fosse
quanto sentia trama do inimigo ou dom celeste, já nada podia fazer para contrariar o
impulso que me movia, e: «Oh, langueo», gritei, e: «Causam languoris video nec caveo!»,
também porque um odor róseo emanava dos seus lábios e eram belos os seus pés nas
sandálias, e as pernas eram como colunas e como colunas as curvas dos seus flancos,
obra de mão de artista. Ó amor, filha de delícias, um rei ficou preso à tua trança,
murmurava dentro de mim, e fiquei entre os seus braços, e caímos juntos sobre o
pavimento nu da cozinha e, não sei se por minha iniciativa ou por artes dela, achei-me
livre do meu saio de noviço, e não tivemos vergonha dos nossos corpos et cuneta erant
bona.

E ela beijou-me com os beijos da sua boca, e os seus amores foram mais deliciosos que
o vinho e ao odor eram deliciosos os seus perfumes, e era belo o seu pescoço entre as
pérolas e as suas faces entre os brincos, como és bela, minha amada, como és bela, os
teus olhos são pombas (dizia), e deixa-me ver a tua face, deixa-me sentir a tua voz, que
a tua voz é harmoniosa e a tua face encantadora, fiquei louco de amor, minha irmã,
fiquei louco com um só olhar teu, com uma só gema do teu pescoço, favo que goteja são
os teus lábios, mel e leite sob a tua língua, o perfume da tua respiração é como o dos
pomos, os teus seios em cachos, os teus seios como cachos de uva, o teu palato um vinho
delicioso que vai direito ao meu amor e flui sobre os lábios e sobre os dentes. Fonte de
jardim, nardo e açafrão, canela e cinamomo, mirra e aloés, eu comia o meu favo e o
meu mel, bebia o meu vinho e o meu leite, quem era, quem era afinal esta que se
elevava como a aurora, bela como a Lua, fúlgida como o Sol, terrível como tropas em
fileiras?
Oh, Senhor, quando a alma é arrebatada, então a única virtude está em amar aquilo
que vês (não é verdade?), a suma felicidade em ter aquilo que tens, então a vida bemaventurada
bebe-se na sua fonte (não foi dito?) então saboreia-se a verdadeira vida que
depois desta morte nos tocará viver junto dos anjos na eternidade... Isto pensava, e
parecia-me que as profecias se verificavam, enfim, enquanto a rapariga me acumulava
de doçuras indescritíveis, e era como se o meu corpo fosse todo ele um olho de frente e
de trás e visse as coisas circundantes num relance. E compreendia que disso, que é o
amor, se produzem a um tempo a unidade e a suavidade e o bem e o beijo e o amplexo,
como já tinha ouvido dizer julgando que me falassem de outra coisa. E só por um
instante, enquanto a minha alegria estava prestes a tocar o zênite, lembrei-me que
estava talvez experimentando, e de noite, a possessão do demônio meridiano condenado
enfim a mostrar-se na sua mesma natureza de demônio à alma que no êxtase pergunta
«quem és?», ele que sabe arrebatar a alma e iludir o corpo. Mas súbito me convenci que
diabólicas eram decerto as minhas hesitações, porque nada podia ser mais justo, mais
delicioso, mais santo que aquilo que estava sentindo e cuja doçura crescia momento a
momento. Como uma pequena gota de água infusa numa certa quantidade de vinho toda
se dispersa para tomar cor e sabor de vinho, como o ferro incandescente e inflamado se
torna quase igual ao fogo perdendo a sua forma primitiva, como o ar inundado pela luz
do Sol é transformado no máximo esplendor e na mesma claridade, a ponto de já não
parecer iluminado mas de ser ele mesmo luz, assim eu me sentia morrer de terna
liquefação, de modo que me restou apenas força para murmurar as palavras do salmo:
«Eis que o meu peito é como o vinho novo, sem abertura, que rompe odres novos», e de
súbito vi uma fulgidíssima luz e nela uma forma cor de safira que se abrasava toda num
fogo rutilante e suavíssimo, e aquela luz esplêndida difundiu-se por todo o fogo
resplendente e aquela luz fulgidíssima e aquele fogo rutilante pela forma inteira.
Enquanto, quase esvaído, caía sobre o corpo a que me tinha unido, compreendi, num
último sopro de vitalidade, que a chama consiste numa esplêndida claridade, num inato
vigor e num ígneo ardor, mas a esplêndida claridade possui-a para reluzir e o ígneo ardor
a fim de queimar. Depois compreendi o abismo, e os abismos ulteriores que ele invocava.

Agora que, com a mão trêmula (e não sei se pelo horror do pecado de que falo ou pela
culpável nostalgia do fato que rememoro), escrevo estas linhas, apercebo-me de ter
usado para descrever o meu hediondo êxtase daquele instante as mesmas palavras que
usei, não muitas páginas atrás, para descrever o fogo que queimava o corpo mártir do
fraticello Miguel. E não foi por acaso que a minha mão, submissa executora da alma,
traçou as mesmas expressões pare duas experiências tão diferentes, porque
provavelmente as vivi do mesmo modo, então, quando as apreendi, e há pouco, quando
procurava fazê-las reviver a ambas no pergaminho.
Há uma misteriosa sabedoria pela qual fenômenos dispares entre si podem ser
nomeados com palavras análogas, a mesma pela qual as coisas divinas podem ser
designadas com nomes terrenos, e por símbolos equívocos Deus pode ser dito leão ou
leopardo, e a morte, ferida, e a alegria, chama, e a chama, morte, e a morte, abismo, e
o abismo, perdição, e a perdição, delíquio, e o delíquio, paixão.
Porque é que eu, jovem, nomeava o êxtase de morte que me tinha impressionado no
mártir Miguel com as palavras com que a santa tinha nomeado o êxtase de vida (divine)
mas com as mesmas palavras não podia nomear o êxtase (culpável e passageiro) de gozo
terreno, que, por seu lado, logo depois me tinha parecido sensação de morte e
anulamento? Eu procuro agora raciocinar sobre o modo como apreendi, a poucos meses
de distância, duas experiências igualmente exaltantes e dolorosas, e sobre o modo como
naquela noite na abadia rememorei uma e apreendi sensivelmente a outra, a poucas
horas de distância e ainda o modo como ao mesmo tempo as revivi agora, traçando estas
linhas, e como nos três caves as recitei a mim mesmo com as palavras da diversa
experiência de uma alma santa que se anulava na visão da divindade. Acaso terei
blasfemado (então, agora)? Que havia de símile no desejo de morte de Miguel, no
arrebatamento que senti à vista da chama que o consumia, no desejo de conjunção
carnal que senti com a rapariga, no místico pudor com que o traduzia alegoricamente, e
no mesmo desejo de anulamento jubiloso que movia a santa a morrer do seu próprio
amor pare viver mais e eternamente? É possível que coisas tão equivocal possam dizer-se
de modo tão unívoco? E, no entanto, é isto, parece, o ensinamento que nos deixaram os
maiores entre os doutores: omnos ergo figura tanto evidentius veritatem demonstrat
quanto apertius per dissimilem similitudinem figuram se esse et nom veritatem probat.
Mas, se o amor da chama e do abismo são figura do amor de Deus, podem ser figura do
amor da morte e do amor do pecado? Sim, tal como o leão e a serpente são a um tempo
figura de Cristo e do demônio. É que a justeza da interpretação não pode ser fixada
senão pela autoridade dos padres, e no cave que me aflige não tenho autorictas a que a
minha mente obediente posse referir-se, e ardo na dúvida (e de novo a figura do povo
intervém para definir o vazio de verdade e a plenitude de erro que me anulam!). Que se
passa, ó Senhor, na minha alma, agora que me deixo prender pelo vórtice das
recordações e suscito a conflagração de tempos diversos, como se estivesse para alterar
a ordem dos astros e a seqüência dos seus movimentos celestes? Certamente supero os
limites da minha inteligência pecadora e doente. Vamos, voltemos à tarefa que
humildemente me tinha proposto. Estava falando daquele dia e do total esmorecimento
dos sentidos em que abismei. Eis que disse aquilo de que me recordei naquela ocasião, e
que a isto se limite a minha débil pena de fiel e verídico cronista.

Fiquei estendido, não sei por quanto tempo, com a rapariga a meu lado. Com um
movimento leve, apenas a sua mão continuava a tocar o meu corpo, agora úmido de
suor. Sentia uma exaltação interior, que não era paz, mas como o último ardor abafado
de um fogo tardasse a extinguir-se sob a cinza quando a chama é já morta. Não hesitaria
em chamar bem-aventurado àquele a quem fosse concedido sentir algo de semelhante
(murmurava como no sono), ainda que raramente, nesta vida (e de fato só o senti aquela
vez, e apenas rapidamente, e pelo espaço de um só instante). Como se já não se
existisse, não se sentir por completo a si mesmo, ser abatido, quase aniquilado, e se
algum dos mortais (dizia para comigo) pudesse por um só instante e rapidamente
saborear o que eu saboreei logo veria com maus olhos este mundo perverso, seria
perturbado pela malícia do viver quotidiano, sentiria o peso do seu corpo de morte...
Não era isto o que me tinham ensinado? Aquele convite de todo o meu espírito a perder a
memória na beatitude era decerto (agora o compreendia) a irradiação do sol eterno, e a
alegria que ele produz abre, distende, engrandece o homem, e a garganta
completamente aberta que o homem traz em si mesmo já não se fecha com tanta
facilidade, é a ferida aberta pelo golpe de espada do amor, e não há aqui em baixo nada
que seja mais doce e mais terrível. Mas tal é o direito do Sol, ele seteia o ferido com os
seus raios e todas as pregas se alargam, o homem abre-se e dilata-se, as suas próprias
veias são completamente abertas, as suas forças já não são capazes de executar as
ordens que recebem mas são unicamente movidas pelo desejo, o espírito arde abismado
no abismo do que agora toca, vendo o seu próprio desejo e a sua própria verdade
superados pela realidade que viveu e que vive. E assiste-se estupefato ao seu próprio
delíquio.
Foi imerso em tais sensações de inenarrável júbilo interior que adormeci.
Reabri os olhos algum tempo depois, e a luz da noite, talvez por causa de uma nuvem,
era muito mais débil. Estendi a mão de lado e já não senti o corpo da rapariga. Voltei a
cabeça: já não estava.
A ausência do objeto que tinha desencadeado o meu desejo e saciado a minha sede
fez-me apreender de repente a sanidade daquele desejo e a perversidade daquela sede.
Omne animal triste post coitum. Tomei consciência do fato de ter pecado. Agora, a anos
e anos de distância, quando ainda choro amargamente a minha falta, não posso esquecer
que naquela noite eu tinha sentido um grande júbilo, e ofenderia o Altíssimo, que criou
todas as coisas em bondade e beleza, se não admitisse que naquela história de dois
pecadores sucedeu alguma coisa que em si, naturaliter, era bom e belo. Mas,
provavelmente, é a minha velhice atual que me faz sentir culpavelmente como belo e
bom tudo o que foi da minha juventude. Agora que deveria voltar o meu pensamento
para a morte, que se aproxima. Então, jovem, não pensei na morte, mas sentida e
sinceramente chorei pelo meu pecado.
Levantei-me tremendo, também porque tinha estado longo tempo sobre as pedras
gélidas da cozinha e tinha o corpo entorpecido. Voltei a vestir-me, quase febrilmente.

Então distingui num canto o embrulho que a rapariga tinha abandonado ao fugir. Inclineime
para examinar o objeto: era uma espécie de pacote feito de tecido enrolado, que
parecia provir das cozinhas. Desdobrei-o, e no momento não compreendo o que tinha
dentro, tanto por causa da pouca luz como da forma informe do seu conteúdo. Depois
compreendi: entre coágulos de sangue e bocados de carne mais flácida e esbranquiçada,
estava diante dos meus olhos, morto mas ainda palpitante da vida gelatinosa das vísceras
mortas, sulcado de nervos ávidos, um coração, de grandes dimensões.
Um véu escuro desceu-me sobre os olhos, uma saliva acídula subiu-me à boca. Lancei
um urro e caí como cai um corpo morto.

TERCEIRO DIA

NOITE

Onde Adso, transtornado, se confessa a Guilherme e medita sobre a função da mulher
no plano da criação, porém, descobre depois o cadáver de um homem.

Voltei a mim quando alguém me banhava o rosto. Era frade Guilherme, que trazia uma
candeia e me tinha posto alguma coisa debaixo da cabeça.
- Que sucedeu, Adso - perguntou-me -, que andas de noite a roubar fressuras pela
cozinha?
Em resumo, Guilherme tinha acordado, tinha-me procurado já não sei por que razão,
e, não me encontrando, tinha suspeitado que tivesse ido fazer alguma bravata à
biblioteca. Aproximando-se do Edifício pelo lado da cozinha, tinha visto uma sobra que
saía pela porta para o horto (era a rapariga que se afastava, talvez por ter ouvido alguém
que se aproximava). Tinha procurado compreender quem era e segui-la, mas ela (ou
melhor, aquilo que para ele era uma sombra) tinha-se afastado para o muro da cerca e
depois tinha desaparecido. Então, Guilherme - depois de uma exploração nos arredores -
tinha entrado na cozinha e, ali, tinha-me encontrado desmaiado.
Quando lhe apontei, ainda aterrorizado, para o embrulho com o coração, balbuciando
qualquer coisa sobre um novo delito, pôs-se a rir:
- Adso, mas que homem poderia ter um coração tão grande? É um coração de vaca, ou
de boi, mataram justamente hoje um animal! Melhor, como se encontra nas tuas mãos?
Naquela altura, oprimido pelos remorsos, além de aturdido pelo terror, desatei num
pranto violento e pedi que me administrasse o sacramento da confissão. O que ele fez, e
eu contei-lhe tudo sem lhe ocultar nada.
Frade Guilherme escutou-me com grande seriedade, mas com uma sombra de
indulgência. Quando acabei, tomou um ar sério e disse-me:
- Adso, tu pecaste, é certo, e contra o mandamento que te impõe não fornicar, e
contra os teus deveres de noviço. Para tua desculpa, conta o fato que te encontraste
numa daquelas situações em que se teria condenado até um padre no deserto. E sobre a
mulher como fonte de tentação já falaram o bastante as escrituras. Da mulher diz o
Eclesiastes que a sua conversação é como fogo ardente, e os Provérbios dizem que ela se
apodera da alma preciosa do homem e que os mais fortes foram arruinados por ela. E diz
ainda o Eclesiastes: descobri que mais amarga que a morte é a mulher, que é como o
laço dos caçadores, o seu coração é como uma rede, as suas mãos são cadeias. E outros
disseram que ela é baixel do demônio. Apurado isto, querido Adso, eu não consigo
convencer-me que Deus tenha querido introduzir na criação um ser tão imundo sem o
dotar de alguma virtude. E não posso deixar de refletir sobre o fato que Ele lhe concedeu
muitos privilégios e motivos de apreço, dos quais pelo menos três, muito grandes. De
fato, criou o homem neste mundo vil, e da lama, e a mulher num segundo tempo, no
paraíso e da nobre matéria humana. E não a formou dos pés ou das entranhas do corpo
de Adão, mas da costela. Em segundo lugar, o Senhor, que pode tudo, poderia ter
encarnado diretamente num homem de algum modo miraculoso, e escolheu, pelo
contrário, habitar no ventre de uma mulher, sinal de que não era tão imunda como isso.

E, quando apareceu depois da ressurreição, apareceu a uma mulher. E, enfim, na glória
celeste nenhum homem será rei naquela pátria, pelo contrário, aí será rainha uma
mulher que nunca pecou. Se portanto o Senhor teve tantas atenções para com a própria
Eva e para com as suas filhas, é assim tão anormal que também nós nos sintamos atraídos
pelas graças e pela nobreza daquele sexo? Aquilo que quero dizer-te, Adso, é que de
certeza não deves voltar a fazê-lo, mas que não é assim tão monstruoso que tu tenhas
sido tentado a fazê-lo. E, por outro lado, que um monge, ao menos uma vez na vida,
tenha tido experiência da paixão carnal, de modo a um dia poder ser indulgente e
compreensivo com os pecadores a quem dará conselho e conforto... Pois bem, querido
Adso, é coisa para não auspiciar antes que aconteça, mas nem sequer para vituperar
demasiado depois de ter acontecido. E portanto vai com Deus e não falemos mais nisso.

Mas, em vez disso, para não estar a medicar demasiado sobre alguma coisa que será
melhor esquecer, se o conseguires - e pareceu-me que nesta altura a sua voz
enfraqueceu como por alguma comoção interior -, perguntemo-nos antes o sentido de
quanto aconteceu esta noite. Quem era essa rapariga e com quem tinha encontro?
- Isso é que eu não sei, e não vi o homem que estava com ela - disse.
- Bem, mas podemos deduzir quem era por muitos indícios absolutamente seguros.
Antes de mais nada, era um homem feio e velho, com quem uma rapariga não vai de boa
vontade, especialmente se é bela como tu dizes, mesmo que me pareça, meu querido
lobato, que estavas Dronenso a achar delicado qualquer alimento.
- Porquê feio e velho?
- Porque a rapariga não ia ter com ele por amor, mas por um pacote de rojões.
Certamente era uma
rapariga da aldeia que, talvez não pela primeira vez, se entrega por fome a algum
monge luxurioso e obtém como recompensa alguma coisa para meter à boca, ela e a sua
família.
- Uma meretriz! – exclamei horrorizado.
- Uma camponesa pobre, Adso. Talvez com os irmãozinhos para sustentar. E que,
podendo, se daria
por amor e não por lucro. Como fez esta noite. De fato, dizes-me que te achou jovem
e belo e te deu grátis e por amor tudo o que a outros daria, ao invés, por um coração de
boi e algum pedaço de pulmão. E sentiu-se tão virtuosa pelo dom gratuito que fez de si,
e consolada, que fugiu sem levar nada em troca. Eis porque penso que o outro, ao qual
te comparou, não era nem jovem nem belo.

Confesso que, embora o meu arrependimento fosse vivíssimo, aquela explicação me
encheu de dulcíssimo orgulho, mas calei-me e deixei continuar o meu mestre.
- Esse velhote feio devia ter a possibilidade de descer à aldeia e ter contatos com os
camponeses, por algum motivo ligado ao seu ofício. Devia conhecer o modo de fazer
entrar e sair gente da cerca, e saber que na cozinha havia aquelas fressuras (e talvez
amanhã se dissesse que, ficando a porta aberta, um cão tinha entrado e as tinha
comido). E, enfim, devia ter um certo sentido da economia, e um certo interesse em que
a cozinha não fosse privada de vitualhas mais preciosas, senão ter-lhe-ia dado um bife ou
outra parte mais saborosa. E vês agora que a imagem do nosso desconhecido se desenha
com muita clareza e que todas estas propriedades, ou acidentes, bem convêm a uma
substancia que não teria receio em definir como o nosso despenseiro, Remígio de
Varagine. Ou, se me enganasse, como o nosso misterioso Salvador. O qual, entre outras
coisas, sendo destas paragens sabe falar bastante bem com as gentes do lugar e sabe
como convencer uma rapariga a fazer aquilo que queria fazê-la fazer, se tu não tivesses
chegado.

- É decerto assim - disse convencido - mas que nos serve agora?
- Nada. E tudo - disse Guilherme. - A história pode estar relacionada ou não com os
delitos de que nos ocupamos. Por outro lado, se o despenseiro foi dolciniano, isto explica
aquilo e vice-versa. E sabemos agora enfim que esta abadia, de noite, é lugar de muitas
e errantes vicissitudes. E quem sabe se o nosso despenseiro, ou Salvador, que a
percorrem no escuro com tanta desenvoltura, não sabem em todo o caso mais do que
aquilo que dizem.
- Mas di-lo-ão a nós?
- Não, se nos comportarmos de modo compassivo, ignorando os seus pecados. Mas, se
tivéssemos mesmo de saber alguma coisa, teríamos na mão um modo de os persuadir a
falar. Por outras palavras, se houver necessidade disso, o despenseiro ou Salvador são
nossos, e Deus nos perdoará esta prevaricação, visto que perdoa tantas outras coisas -
disse, olhando-me com malícia, e eu não tive animo para fazer observações sobre o
caráter lícito dos seus propósitos. – E agora deveríamos ir para a cama, porque daqui a
uma hora são matinas. Mas vejo-te ainda agitado, meu pobre Adso, ainda temeroso do
teu pecado... Não há nada como uma boa pausa na igreja para nos distender o animo. Eu
absolvi-te, mas nunca se sabe. Vai pedir confirmação ao Senhor.
E deu-me uma palmada bastante enérgica na cabeça, talvez como prova de paternal e
viril afeto, talvez como indulgente penitência. Ou talvez (como culpavelmente pensei
naquele momento) por uma espécie de benigna inveja, de homem sedento de
experiências novas e ardentes como era.

Encaminhamo-nos para a igreja, saindo pela nossa via habitual, que percorri depressa
fechando os olhos, porque todos aqueles ossos me recordavam com demasiada evidência,
naquela noite, como também eu era pó e quão insensato tinha sido o orgulho da minha
carne.
Ao chegar à nave vimos uma sombra diante do altar-mor. Julgava que era ainda
Ubertino. Mas era Alinardo, que à primeira vista não nos reconheceu. Disse que já era
incapaz de dormir, e tinha decidido passar a noite a rezar por aquele jovem monge
desaparecido (não recordava sequer o seu nome). Rezava pela sua alma se estivesse
morto, pelo seu corpo se jazesse enfermo e só em qualquer sítio.
- Demasiados mortos – disse -, demasiados mortos... Mas estava escrito no livro do
apóstolo. Com a primeira trombeta veio o granizo, com a segunda, a terça parte do mar
tornou-se sangue, e um encontraste-lo no granizo, o outro no sangue... A terceira
trombeta adverte que uma estrela ardente cairá na terça parte dos rios e das fontes.
Assim, digo-vos, desapareceu o nosso terceiro irmão. E temei pelo quarto, porque será
atingida a terça parte do Sol, e da Lua e das estrelas, de modo que a obscuridade será
quase completa...

Enquanto saíamos pelo transepto, Guilherme perguntou-se se nas palavras do velho
não haveria algo de verdadeiro.
- Mas - fi-lo observar - isso pressuporia que uma única mente diabólica, usando o
Apocalipse como guia, tivesse predisposto os três desaparecimentos, admitindo que
Berengário também esteja morto. Pelo contrário, sabemos que o de Adelmo foi devido à
sua vontade...
- É verdade - disse Guilherme -, mas a mesma mente diabólica, ou doente, poderia ter
tirado inspiração da morte de Adelmo para organizar de modo simbólico as outras duas.
E, se assim fosse, Berengário deveria encontrar-se num rio ou numa fonte. E não há rios
e fontes na abadia, pelo menos não tais que alguém se possa afogar ou aí possa ser
afogado...
- Há apenas os banhos - observei quase por acaso.
- Adso! - disse Guilherme -, sabes que essa pode ser uma idéia? Os balnea!
- Mas aí já devem ter olhado...
- Vi os servos esta manhã quando faziam as suas buscas, abriram a porta da construção
dos balnea e deram uma olhadela em torno, sem revistar, não esperavam ainda ter de
procurar algo de bem escondido, esperavam um cadáver que jazesse teatralmente em
qualquer parte, como o cadáver de Venancio na talha... Vamos dar uma olhadela,
entretanto ainda está escuro e parece-me que a nossa candeia arde ainda com gosto.
Assim fizemos, e abrimos sem dificuldade a porta da construção dos balnea, encostada
ao hospital.
Resguardadas umas das outras mediante amplas cortinas, estavam as banheiras, não
recordo quantas. Os monges usavam-nas para a sua higiene, quando a regra lhes fixava o
dia, e Severino usava-as por razões terapêuticas, porque nada melhor que um banho para
acalmar o corpo e a mente. Uma chaminé num canto permitia facilmente aquecer a
água. Encontramo-la suja de cinza fresca, e diante dela estava um grande caldeirão
entornado. A água tirava-se de uma fonte num canto.

Olhamos nas primeiras banheiras, que estavam vazias. Só a última, dissimulada por
uma cortina estendida, estava cheia, e a seu lado jazia, um monte, uma veste. À
primeira vista, à luz da nossa lâmpada, a superfície do líquido pareceu-nos calma: mas,
como a luz lhe bateu de cima, entrevimos no fundo, inanimado, um corpo humano, nu.
Tiramo-lo lentamente para fora: era Berengário. «E este», disse Guilherme, «tinha
verdadeiramente o aspecto de um afogado.» As feições do rosto estavam inchadas. O
corpo, branco e mole, privado de pêlos, parecia o de uma mulher, salvo o espetáculo
obsceno das flácidas pudenta. Corei, depois tive um arrepio. Benzi-me, enquanto
Guilherme abençoava o cadáver.


5ª parte »»»