SEGUNDO DIA
MATINAS
Onde poucas horas de mística felicidade são interrompidas por um ato sumamente
sangrento.
Símbolo ora do demônio ora de Cristo ressuscitado, nenhum animal é mais falso que o
galo. A nossa ordem conheceu-os preguiçosos, que não cantavam ao nascer do Sol. E por
outro lado, especialmente nos dias de Inverno, o ofício de matinas tem lugar quando é
ainda noite plena e a natureza está toda adormecida, pelo que o monge deve levantar-se
na obscuridade e longamente na obscuridade rezar, esperando o dia e iluminando as
trevas com a chama da devoção. Por isso, sabiamente, o costume predispôs vigilantes
que não se deitam com os seus irmãos, mas passam a noite recitando ritmicamente um
número exato de salmos que lhes dá a medida do tempo decorrido, de modo que, ao fim
das horas votadas ao sono dos outros, aos outros dão o sinal da vigília.
Portanto, naquela noite fomos acordados por aqueles que percorriam o dormitório e a
casa dos peregrinos tocando uma campainha, enquanto um ia de cela em cela gritando o
Benedicamus Domino, a que cada um respondia Deo gratias.
Guilherme e eu ativemo-nos ao uso beneditino: em menos de meia hora preparamonos
para afrontar o novo dia. a seguir descemos ao coro, onde os monges esperavam
prostrados por terra, recitando os primeiros quinze salmos, até que entraram os noviços
conduzidos pelo seu mestre. Em seguida cada um se sentou na sua própria estala e o coro
entoou Domine labia mea aperies et os meum annuntiabit laudem tuam. O grito subiu
até às abóbadas da igreja como a súplica de uma criança. Dois monges subiram ao
púlpito e deram voz ao salmo noventa e quatro, Venite exultemus, a que se seguiram os
outros prescritos. E eu senti o ardor de uma fé renovada.
Os monges estavam nas estalas, sessenta figuras igualadas pelo saio e pelo capucho,
sessenta sombras mal iluminadas pelo fogo do grande tripé, sessenta vozes unidas em
louvor do Altíssimo. E ouvindo este comovente concerto, vestíbulo das delícias do
paraíso, perguntei-me se na verdade a abadia era lugar de mistérios ocultos, de ilícitas
tentativas de os revelar e de obscuras ameaças. Porque agora, pelo contrário, ela
aparecia-me como refúgio de santos, cenáculo de virtudes, relicário de sapiência, arca
de prudência, torre de sabedoria, recinto de mansidão, bastião de fortaleza, turíbulo de
santidade.
Depois de seis salmos começou a leitura da sagrada escritura. Alguns monges
cabeceavam de sono, e um dos vigilantes da noite girava por entre as estalas com uma
pequena lâmpada para despertar quem tivesse adormecido. Se alguém era surpreendido
em plena modorra, como penitência pegava na lâmpada e continuava a ronda de
controle. Em seguida recomeçou o canto de mais seis salmos. Depois, o Abade deu a sua
benção, o hebdomadário disse as orações, todos se inclinaram para o altar num minuto
de recolhimento, de que ninguém que não tenha vivido estas horas de místico ardor e de
intensíssima paz interior pode compreender a doçura. Finalmente, de capucho de novo
sobre o rosto, todos se sentaram e entoaram solenemente o de Deum. Também eu louvei
o Senhor, porque me tinha libertado das minhas dúvidas livrando-me da sensação de malestar
em que o primeiro dia na abadia me tinha lançado. Somos seres frágeis, disse para
comigo, também entre estes monges doutos e devotos o maligno faz circular pequenas
invejas, sutis inimizades, mas trata-se de fumo que se dissipa ao vento impetuoso da fé,
logo que todos se reúnem em nome do Pai, Cristo desce ainda entre eles.
Entre matinas e laudas, o monge não volta à cela, mesmo que a noite seja ainda
profunda. Os noviços seguiram o seu mestre para a sala capitular para estudarem os
salmos, alguns dos monges ficaram na igreja a arrumar os utensílios sagrados, a maioria
passeava meditando em silêncio no claustro, e assim fizemos Guilherme e eu. Os servos
dormiam ainda e continuavam a dormir quando, com o céu ainda escuro, voltamos ao
coro para laudas.
Recomeçou o canto dos salmos, e um em particular, entre os previstos para segundafeira,
mergulhou-me de novo nos meus primitivos temores: «A culpa apoderou-se do
ímpio, do intimo do seu coração – não há temor de Deus nos seus olhos – age em fraude
na sua presença - de modo que a sua língua se torne odiosa.» Esclareceu-me de mau
presságio que a regra tivesse prescrito precisamente para aquele dia uma advertência
tão terrível. Também não acalmou as minhas palpitações de inquietação, depois dos
salmos de louvor a habitual leitura do apocalipse, e voltaram-me à mente as figuras do
portal que tanto me tinham subjugado o coração e o olhar no dia anterior. Mas depois do
responsório, o hino e o versículo, quando estava a começar o cântico do evangelho,
surgiu por detrás das janelas do coro, precisamente sobre o altar, um clarão pálido que
já fazia resplandecer os vitrais nas suas diversas cores, até então mortificadas pela
treva. Não era ainda a aurora, que triunfaria durante prima, precisamente enquanto
cantávamos Deur qui est sanctorum splendor mirabilis e lam lucis orto sidere. Era apenas
o primeiro débil anúncio da alba invernal, mas foi o bastante, e foi bastante para me
sossegar o coração a leve penumbra que na nave ia agora substituindo a obscuridade
noturna.
Cantávamos as palavras do livro divino e, enquanto testemunhávamos o Verbo que
tinha vindo iluminar as gentes, pareceu-me que o astro diurno em todo o seu fulgor
estava invadindo o templo. A luz, ainda ausente, pareceu-me resplandecer nas palavras
do cântico, lírio místico que se entreabria odoroso entre os cruzeiros das abóbadas.
«Graças, ó Senhor, por este momento de gáudio inenarrável», rezei silenciosamente, e
disse ao meu coração «e tu, estúpido, que temes?»
De repente, levantaram-se alguns clamores do lado do portal setentrional. Pergunteime
como é que os servos, preparando-se para o trabalho, perturbavam assim as sagradas
funções. Naquele instante entraram três porqueiros, com o terror no rosto, e
aproximaram-se do Abade, sussurrando-lhe qualquer coisa. O Abade primeiro acalmou-os
com um gesto, como se não quisesse interromper o ofício: mas outros servos entraram,
os gritos tornaram-se mais fortes: «E um homem, um homem morto!», dizia alguém; e
outros: «Um monge, não viste o calçado?»
Os que oravam calaram-se, o Abade saiu precipitadamente, fazendo sinal ao
despenseiro que o seguisse. Guilherme foi atrás deles, mas então também os outros
monges abandonavam as suas estalas e se precipitavam para fora.
O céu estava agora claro, e a neve no chão tornava ainda mais luminoso o planalto.
Por detrás do coro, diante dos estábulos, onde desde o dia anterior dominava o grande
recipiente com o sangue dos porcos, um estranho objeto de forma quase cruciforme saía
do bordo da talha, como se fossem dois paus espetados no solo para cobrir de trapos para
espantar os pássaros.
Eram ao invés duas pernas humanas, as pernas de um homem enfiado de cabeça para
baixo no vaso de sangue.
O Abade ordenou que se retirasse o cadáver do líquido infame (porque infelizmente
nenhuma pessoa viva poderia ficar naquela posição obscena). Os porqueiros, hesitantes,
aproximaram–se do bordo e, sujando-se de sangue, retiraram de lá a pobre coisa
sanguinolenta. Como me tinha sido dito, remexido devidamente logo depois de ter sido
vertido e deixado ao frio, o sangue não tinha coagulado, mas a camada que recobria o
cadáver tendia agora a solidificar-se, ensopava-lhe as vestes, tornava-lhe o rosto
irreconhecível. Aproximou-se um servo com um balde de água e atirou-a sobre o rosto
daquele mísero despojo. Um outro inclinou-se com um pano para lhe limpar as feições. E
apareceu aos nossos olhos o rosto branco de Venancio de Salvamec, o sabedor de coisas
gregas com quem tínhamos discorrido de tarde diante dos códices de Adelmo.
- Talvez Adelmo se tenha suicidado - disse Guilherme, fixando aquele rosto -, mas este
não, decerto, nem se pode pensar que se tenha içado por acidente até ao bordo da talha
e tenha caído por engano.
O Abade aproximou-se dele:
- Frade Guilherme, como vedes alguma coisa acontece na abadia, alguma coisa que
requer toda a vossa sabedoria. Mas, esconjuro-vos, agi depressa!
- Estava presente no coro durante o oficio? – perguntou Guilherme, indicando o
cadáver.
- Não - disse o Abade. - Notei que a sua estala estava vazia.
- Nenhum outro estava ausente?
- Não me parece. Não notei nada.
Guilherme hesitou antes de formular a nova pergunta, e fê-la num sussurro, atento a
que os outros não ouvissem:
- Berengário estava no seu lugar?
O Abade olhou-o com inquieta admiração, como a significar que tinha ficado
impressionado ao ver o meu mestre nutrir uma suspeita que ele próprio tinha por um
instante nutrido, mas por mais compreensíveis razões. Depois disse, rápido:
- Estava, está na primeira fila, quase à minha direita.
- Naturalmente - disse Guilherme -, tudo isto não significa nada. Não creio que
ninguém para entrar no coro tenha passado por trás da abside, e por isso o cadáver podia
já estar aqui há várias horas, pelo menos desde que todos tinham ido dormir.
- Decerto, os primeiros servos levantam-se com a alba, e por isso o descobriram só
agora.
Guilherme inclinou-se sobre o cadáver, como se estivesse habituado a tratar corpos
mortos. Molhou o pano que estava ao lado na água do balde e limpou melhor o rosto de
Venancio. Entretanto, os outros monges apinhavam-se assustados, formando um circulo
vozeante a que o Abade estava impondo silêncio. Entre eles abriu caminho Severino, a
quem estava confiado cuidar dos corpos da abadia, e inclinou-se perto do meu mestre.
Eu, para ouvir o seu diálogo e para ajudar Guilherme, que tinha necessidade de ter um
novo pano limpo molhado na água, uni-me a eles, superando o meu terror e a minha
repugnância.
- Nunca viste um afogado? - perguntou Guilherme.
- Muitas vezes - disse Severino. - E, se adivinho o que queres dizer, não tem este
aspecto, e as suas feições ficam inchadas.
- Então o homem já estava morto quando alguém o atirou para a jarra.
- Porque é que havia de fazer isso?
- Porque é que havia de o matar? Estamos diante da obra de uma mente perversa. Mas
agora é preciso ver se há feridas ou contusões pelo corpo. Proponho levá-lo para os
balnea, despi-lo, lavá-lo e examiná-lo. Vou já ter contigo.
E enquanto Severino, recebida licença do Abade, mandava transportar o corpo pelos
porqueiros, o meu mestre pediu que mandassem entrar os monges de novo no coro
seguindo o caminho por onde tinham vindo, e que os servos se retirassem da mesma
maneira, de modo que o espaço ficasse deserto. O Abade não lhe perguntou o porquê
deste seu desejo e satisfez-lho. Ficamos assim sozinhos, ao lado da talha donde o sangue
tinha transbordado durante a macabra operação de retirar o corpo, a neve em torno
toda vermelha, derretida em vários pontos pela água que tinha sido espalhada, e uma
grande mancha escura onde o cadáver tinha sido estendido.
- Um belo sarilho – disse Guilherme, referindo-se ao jogo complexo de marcas deixado
em volta pelos monges e pelos servos. - A neve, querido Adso, é um admirável
pergaminho sobre o qual os corpos dos homens deixam escritas facílimas de ler. Mas este
é um palimpsesto mal raspado, e talvez não leiamos nele nada de interessante. Daqui à
igreja, foi uma grande corrida de monges apressados, daqui à estrumeira e aos estábulos
vieram os servos em tropel. O único espaço intacto é aquele que vai das estrumeiras ao
edifício. Vejamos se encontramos alguma coisa de interessante.
- Mas que coisa quereis encontrar? - perguntei.
- Se não se lançou sozinho no recipiente, alguém o levou para lá, já morto, imagino. E
quem transporta o corpo de outro deixa pegadas profundas na neve. E agora procura
encontrar aqui em redor pegadas que te pareçam diferentes das que deixaram estes
monges vociferadores que nos estragaram o nosso pergaminho.
Assim fizemos. E digo já que fui eu, Deus me salve da vaidade, que descobri qualquer
coisa entre o recipiente e o Edifício. Eram marcas de pés humanos, bastante fundas,
numa zona em que ninguém tinha ainda passado e, como logo notou o meu mestre, mais
ligeiras do que as deixadas pelos monges e pelos servos, sinal de que mais neve ali tinha
caído, e portanto tinham sido deixadas há mais tempo. Mas aquilo que nos pareceu mais
digno de interesse era que entre aquelas marcas se mesclava uma pegada mais contínua,
como de qualquer coisa arrastada por quem tinha deixado as marcas. Em resumo, um
sulco que ia da jarra à porta do refeitório, do lado do Edifício que ficava entre a torre
meridional e a oriental.
- Refeitório, scriptorium, biblioteca - disse Guilherme. – Mais uma vez a biblioteca.
Venancio morreu no Edifício, e mais provavelmente na biblioteca.
- E porquê precisamente na biblioteca?
- Procuro meter-me na pele do assassino. Se Venancio morreu, foi morto, no
refeitório, na cozinha ou no scriptorium, porque não deixá-lo lá? Mas se morreu na
biblioteca era preciso transportá-lo para outro lugar, seja porque na biblioteca jamais
seria descoberto (e talvez ao assassino interessasse precisamente que fosse descoberto)
seja porque o assassino provavelmente não quer que a atenção se concentre sobre a
biblioteca.
- E porque é que ao assassino podia interessar que fosse descoberto?
- Não sei, ponho hipóteses. Quem te diz que o assassino matou Venancio porque
odiava Venâncio? Podia tê-lo morto, no lugar de qualquer outro, para deixar um sinal,
para significar alguma outra coisa.
- Omnis mundi creatura, quasi liber et scriptura... - murmurei. - Mas de que sinal se
trataria?
- É isso que eu não sei. Mas não esqueçamos que existem sinais que o parecem e, pelo
contrário, são desprovidos de sentido, como blitiri ou bu-ba-baff...
- Seria atroz – disse - matar um homem por dizer bu-ba-baff!
- Seria atroz - comentou Guilherme - matar um homem até por dizer Credo in unum
Deum...
Naquele momento chegou junto de nós Severino. O cadáver tinha sido lavado e
examinado com cuidado. Nenhuma ferida, nenhuma contusão na cabeça. Morto como por
encanto.
- Como por castigo divino? - perguntou Guilherme.
- Talvez - disse Severino.
- Ou por veneno?
Severino hesitou.
- Talvez, também.
- Tens venenos no laboratório? - perguntou Guilherme enquanto nos encaminhávamos
para o hospital.
- Também. Mais depende do que entendes por veneno. Há substancias que em
pequenas doses são salutares e em doses excessivas provocam morte. Como todo o bom
ervanário, conservo-as, e uso-as com discrição. No meu horto cultivo, por exemplo, a
valeriana. Poucas gotas numa infusão de outras ervas acalmam o coração que bate
desordenadamente. Uma dose exagerada provoca torpor e morte.
- E não notaste no cadáver sinais de um veneno particular?
- Nenhum. Mas muitos venenos não deixam marcas.
Tínhamos chegado ao hospital. O corpo de Venancio, lavado nos balnea, tinha sido
para ali transportado e jazia na grande mesa do laboratório de Severino: alambiques e
outros instrumentos de vidro e barro fizeram-me pensar mas sabia disso só por relatos
indiretos) na botica de um alquimista. Sobre uma grande estante ao longo da parede
externa, espalhava-se uma vasta série de ampolas, jarros, vasos, cheios de substancias
de diversas cores.
- Uma bela coleção de simples - disse Guilherme. - Todos os produtos vem do vosso
jardim?
- Não - disse Severino -, muitas substancias, raras e que não crescem nestas zonas,
foram-me trazidas ao longo dos anos por monges provenientes de todas as partes do
mundo. Tenho ainda coisas preciosas e raríssimas, misturadas com substancias que é fácil
obter da vegetação destes lugares. Olha... aghalingho pisado, provém de Catay, e deumo
um sábio árabe. Aloés suco-trino, vem das Índias, ótimo cicatrizante. Mercúrio,
ressuscita os mortos, ou, para melhor dizer, acorda aqueles que perderam os sentidos.
Arsênico, perigosíssimo, veneno mortal para quem o ingerir. Boracie, planta boa para os
pulmões doentes. Betônica, boa para as faturas do crânio. Mastigue, refreia os fluxos
pulmonares e os catarros molestos. Mirra...
- A dos magos? - perguntei.
- A dos magos, mas aqui boa para prevenir os abortos, colhida duma árvore que se
chama Balsamodendron myrra. E esta é múmia, raríssima, produzida pela decomposição
dos cadáveres mumificados, serve para preparar muitos medicamentos quase milagrosos.
Mandrágora officinalis, boa para o sono...
- E para suscitar o desejo da carne - comentou o meu mestre.
- Dizem, mas aqui não se usa nesse sentido, como podeis imaginar - sorriu Severino. -
E olhai esta - disse, pegando numa ampola - tutia, milagrosa para os olhos.
- E o que é esta? - perguntou vivamente Guilherme, tocando numa pedra que estava
sobre uma estante.
- Esta? Foi-me doada há tempos. Creio que é lopris amatiti ou lapis ematitis. Parece
que tem várias virtudes terapêuticas, mas ainda não descobri quais. Conhece-la?
- Sim - disse Guilherme -, mas não como medicamento.
Tirou do saio um canivete e aproximou-o lentamente da pedra. Quando o canivete,
movido pela sua mão com extrema delicadeza, chegou a pouca distância da pedra, vi que
a lamina executava um movimento brusco, como se Guilherme tivesse movido o pulso,
que pelo contrário tinha completamente imóvel. E a lamina aderiu à pedra com um leve
ruído de metal.
- Olha - disse-me Guilherme -, é um magnete.
- E para que serve? - perguntei.
- Para várias coisas, que te direi. Mas por agora queria saber, Severino, se não há aqui
nada que possa matar um homem.
Severino refletiu um instante, demasiado diria, dada a limpidez da sua resposta:
- Muitas coisas. Já te disse, o limite entre o veneno e o medicamento é bastante
tênue, os Gregos chamavam a ambos pharmacon.
- E não há nada que vos tenha sido tirado recentemente?
Severino refletiu ainda; depois, quase pesando as palavras:
- Nada, recentemente.
- E no passado?
- Quem sabe. Não me recordo. Estou nesta abadia há trinta anos, e estou no hospital
há vinte e cinco.
- Demasiado para uma memória humana - admitiu Guilherme. Depois, de repente: -
Falávamos ontem de plantas que podem provocar visões. Quais são?
Severino manifestou com os gestos e com a expressão do rosto o seu vivo desejo de
evitar aquele assunto:
- Tenho de pensar nisso, sabes, tenho tantas substancias milagrosas aqui. Mas falemos
antes de Venancio. Que dizes?
- Tenho de pensar nisso - respondeu Guilherme.
SEGUNDO DIA
PRIMA
Onde Bêncio de Upsala confia algumas coisas, outras confia-as a Berengário de
Arundel, e Adro aprende o que é a verdadeira penitencia.
O desgraçado acidente tinha transtornado a vida da comunidade. O tumulto devido a
descoberta do cadáver tinha interrompido o ofício sacro. O Abade tinha imediatamente
impelido de novo os monges para o coro, para que rezassem pela alma do seu irmão.
As vozes dos monges eram entrecortadas. Pusemo-nos numa situação adequada para
estudar a sua fisionomia quando, segundo a liturgia, o capucho não estava posto. Vimos
logo o rosto de Berengário. Pálido, contraído, luzidio de suor. No dia anterior tínhamos
ouvido por duas vezes murmurar a seu respeito como duma pessoa que tivesse que ver de
modo particular com Adelmo; e não era o fato que os dois, coetâneos, fossem amigos,
mas o tom evasivo daqueles que tinham aludido a essa amizade.
Notamos, a seu lado, Malaquias. Sombrio, crispado, impenetrável. Ao lado de
Malaquias, igualmente impenetrável, o rosto do cego Jorge. Observamos, pelo contrário,
os movimentos nervosos de Bêncio de Upsala, o estudioso de retórica conhecido no dia
anterior no scriptorium, e surpreendemos um rápido olhar que este lançava na direção
de Malaquias.
- Bêncio está nervoso, Berengário está assustado – observou Guilherme. - É preciso
interrogá-los imediatamente.
- Porquê? - perguntei ingenuamente.
- O nosso é um duro ofício - disse Guilherme. - Duro ofício o do inquisidor, é preciso
bater nos mais fracos e no momento da sua maior fraqueza.
De fato, mal acabou o ofício, alcançamos Bêncio, que se dirigia para a biblioteca. O
jovem pareceu contrariado por se sentir chamado por Guilherme, e alegou qualquer
débil pretexto de trabalho. Parecia ter pressa de se dirigir ao scriptorium. Mas o meu
mestre recordou-lhe que estava fazendo um inquérito por mandado do Abade e
conduziu-o para o claustro. Sentamo-nos no parapeito interno, entre duas colunas.
Bêncio esperava que Guilherme falasse, olhando a espaços para o Edifício.
- Então - perguntou Guilherme -, que se disse naquele dia em que estiveste a discutir
sobre os marginalia de Adelmo, tu, Berengário, Venancio, Malaquias e Jorge?
- Ouviste-lho ontem. Jorge observava que não é lícito ornar de imagens ridículas os
livros que contêm a verdade. E Venancio observou que o próprio Aristóteles tinha falado
de argúcias e jogos de palavras, como instrumentos para melhor descobrir a verdade, e
que, portanto, o riso não devia ser coisa má, se podia fazer-se um veículo de verdade.
Jorge observou que, pelo que recordava, Aristóteles tinha falado destas coisas no livro da
Poética e a propósito das metáforas. Que já se tratava de duas circunstancias
inquietantes, primeiro porque o livro da Poética, tendo permanecido ignorado do mundo
cristão por tanto tempo e talvez por decreto divino, nos chegou através dos mouros
infiéis...
- Mas foi traduzido em latim por um amigo do angélico doutor de Aquino - observou
Guilherme.
- Foi o que eu lhe disse - disse Bêncio de súbito reanimado. - Eu...amo grego e pude
anotar aquele grande livro precisamente através da tradução de Guilherme de Moerbeke.
Aí está, foi o que eu lhe disse. Mas Jorge acrescentou que o segundo motivo de
inquietação é que o Estagirita falava aí da poesia, que é ínfima doutrina e que vive de
figmenta. E Venancio disse que também os salmos são obra de poesia e usam metáforas,
e Jorge irou-se porque disse que os salmos são obra de inspiração divina e usam
metáforas para transmitir a verdade enquanto as obras dos poetas pagãos usam
metáforas para transmitir a mentira e com fins de mero deleite, coisa que muito me
ofendeu...
- Porquê?
- Porque eu ocupo-me de retórica, e leio muitos poetas pagãos, e sei... ou melhor,
creio que através da sua palavra também foram transmitidas verdades naturaliter
cristãs... Em suma, naquele ponto, se me recordo bem, Venancio falou de outros livros,
e Jorge zangou-se muito.
- Que livros?
Bêncio hesitou:
- Não me recordo. Que importa de que livros se falou?
- Importa muito, porque aqui estamos procurando compreender o que terá acontecido
entre homens que vivem entre os livros, com os livros, dos livros, e portanto também as
suas palavras sobre os livros são importantes.
- É verdade - disse Bêncio, sorrindo pela primeira vez e quase com o rosto iluminado. -
Nós vivemos para os livros. Doce missão neste mundo dominado pela desordem e pela
decadência. Então talvez compreendais o que aconteceu naquele dia. Venancio, que
sabe... que sabia muito bem o grego, disse que Aristóteles tinha dedicado especialmente
ao riso o segundo livro da Poética e que, se um filósofo daquela grandeza tinha
consagrado um livro inteiro ao riso, o riso devia ser uma coisa importante. Jorge disse
que muitos padres tinham dedicado livros inteiros ao pecado, que é uma coisa
importante mas má, e Venancio disse que, pelo que ele sabia, Aristóteles tinha falado do
riso como coisa boa e instrumento de verdade, e então Jorge perguntou-lhe com escárnio
se por acaso ele tinha lido esse livro de Aristóteles, e Venancio disse ainda que ninguém
podia tê-lo lido, porque jamais se tinha encontrado e talvez se tivesse perdido. E de fato
nunca ninguém pôde ler o segundo livro da Poética, Guilherme de Moerbeke nunca o teve
nas mãos. Então Jorge disse que se não se tinha encontrado era porque nunca tinha sido
escrito, porque a Providência não queria que fossem glorificadas as coisas fúteis. Eu
queria acalmar os ânimos, porque Jorge facilmente se irrita e Venancio falava de modo a
provocá-lo, e disse que na parte da Poética que conhecemos, e na Retórica, se
encontram muitas observações sábias sobre os enigmas argutos, e Venancio esteve de
acordo comigo. Ora estava conosco Pacífico de Tivoli, que conhece bastante bem os
poetas pagãos, e disse que quanto a enigmas argutos ninguém supera os poetas
africanos. Citou mesmo o enigma do peixe, o de Sinfósio:
Est domus in terris, clara quae voce resultat. Ipsa domus resonat, tacitus sed non
sonat hospes. Ambo lamen currunt, hospes simul et domus una.
Nessa altura, Jorge disse que Jesus tinha recomendado que o nosso falar fosse sim ou
não e que o mais vinha do maligno; e que bastava dizer peixe para nomear o peixe, sem
lhe ocultar o conceito sob sons mentirosos. E acrescentou que não lhe parecia sábio
tomar como modelo os africanos... E então...
- Então?
- Então aconteceu uma coisa que não compreendi. Berengário pôs-se a rir, Jorge
repreendeu-o, e ele disse que ria porque lhe tinha vindo à mente que procurando bem
entre os africanos se encontrariam enigmas bem diversos e não tão fáceis como o do
peixe. Malaquias, que estava presente, ficou furibundo, quase agarrou Berengário pelo
capucho, mandando-o ocupar-se dos seus assuntos... Berengário, como sabeis, é o seu
ajudante...
- E depois?
- Depois Jorge pôs fim à discussão afastando-se. Todos nos fomos embora tratar das
nossas coisas, mas enquanto trabalhava vi que primeiro Venancio e depois Adelmo se
aproximaram de Berengário para lhe pedir qualquer coisa. Vi de longe que se esquivava,
mas eles durante o dia voltaram ambos junto dele. E depois, naquela tarde, vi
Berengário e Adelmo a confabular no claustro, antes de irem para o refeitório. Pronto, é
tudo o que sei.
- Isto é, sabes que as duas pessoas que recentemente morreram em circunstancias
misteriosas tinham pedido qualquer coisa a Berengário - disse Guilherme.
Bêncio respondeu embaraçado:
- Não disse isso! Disse aquilo que aconteceu naquele dia e como vós me haveis
perguntado... - Refletiu um pouco, depois acrescentou à pressa: - Mas se quereis saber a
minha opinião, Berengário falou-lhes de qualquer coisa que está na biblioteca, e é lá que
deveis procurar.
- Porque pensas na biblioteca? Que queria dizer Berengário com as palavras «procurar
entre os africanos»? Não queria dizer que era preciso ler melhor os poetas africanos?
- Talvez, assim parecia, mas então porque é que Malaquias havia de se enfurecer? No
fundo, depende dele decidir se deve dar para leitura um livro de poetas africanos ou
não. Mas eu sei uma coisa: quem folhear o catálogo dos livros encontrará, entre as
indicações que só o bibliotecário conhece, uma que diz freqüentemente «África», e até
encontrei uma que dizia «finis Africae». Uma vez pedi um livro que trazia aquele sinal,
não me recordo qual, o titulo tinha-me despertado a curiosidade; e Malaquias disse-me
que os livros com aquele sinal se tinham perdido. Eis aquilo que sei. Por isso vos digo: é
certo, vigiai Berengário, e vigiai-o quando sobe à biblioteca. Nunca se sabe.
- Nunca se sabe - concluiu Guilherme, despedindo-o.
Depois pôs-se a passear comigo no claustro e observou que: em primeiro lugar, uma
vez mais, Berengário era alvo das murmurações pelos seus irmãos; em segundo lugar,
Bêncio parecia ansioso por nos impelir para a biblioteca. Observei que talvez quisesse
que nós descobríssemos ali coisas que ele também queria saber, e Guilherme disse que
provavelmente era assim, mas que podia também dar-se que, impelindo-nos para a
biblioteca, quisesse afastar-nos de algum outro lugar. Qual?, perguntei. E Guilherme
disse que não sabia, talvez o scriptorium, talvez a cozinha, ou o coro, ou o dormitório,
ou o hospital. Observei que no dia anterior era ele, Guilherme, a ser fascinado pela
biblioteca, e ele respondeu que queria ser fascinado pelas coisas que lhe agradavam e
não por aquelas que os outros lhe aconselhavam. Que, porém, a biblioteca estava
debaixo de olho, e que, nesse caso, também não seria mal procurar penetrar lá de
qualquer modo. As circunstancias já o autorizavam a ser curioso nos limites da cortesia e
do respeito pelos usos e pelas leis da abadia.
Estávamos a afastar-nos do claustro. Servos e noviços saíam da igreja depois da missa.
E, ao dobrarmos o lado ocidental do templo, avistamos Berengário, que saía do portal do
transepto e atravessava o cemitério em direção ao Edifício. Guilherme chamou-o, ele
parou e alcançamo-lo. Estava ainda mais perturbado do que quando o tínhamos visto no
coro, e Guilherme decidiu evidentemente aproveitar, como tinha feito com Bêncio, do
seu estado de animo.
- Então parece que foste tu o último a ver Adelmo vivo - disse-lhe.
Berengário vacilou, como se estivesse para cair desmaiado:
- Eu? - perguntou num fio de voz.
Guilherme tinha lançado a sua pergunta quase ao acaso, provavelmente porque Bêncio
lhe tinha dito que tinha visto os dois a confabular no claustro depois de vésperas.
Mas devia ter acertado em cheio, e Berengário estava, claramente, pensando num outro e verdadeiramente último encontro, porque começou a falar com voz entrecortada.
- Como podeis dizer isso, eu vi-o antes de ir repousar, como todos os outros.
Então Guilherme decidiu que valia a pena não o deixar respirar:
- Não, tu voltaste a vê-lo, e sabes mais coisas do que queres crer. Mas aqui estão
agora em jogo dois mortos e já não podes calar-te. Sabes muito bem que há muitos
modos para fazer falar uma pessoa!
Guilherme tinha-me dito várias vezes que, mesmo como inquisidor, sempre lhe tinha
repugnado a tortura, mas Berengário interpretou-o mal (ou Guilherme queria ser mal
interpretado); de qualquer maneira, o seu jogo resultou eficaz.
- Sim, sim - disse Berengário, rompendo num pranto copioso -, eu vi Adelmo naquela
noite, mas vi-o já morto!
- Como? - interrogou Guilherme -, aos pés da escarpa?
- Não, não, vi-o aqui no cemitério, avançava entre os túmulos, espectro entre os
espectros. Encontrei-o, e súbito me apercebi que não tinha diante de mim um vivo, o seu
rosto era o de um cadáver, os seus olhos olhavam já para as penas eternas.
Naturalmente, só na manhã seguinte, sabendo da sua morte, eu compreendi que tinha
encontrado o seu fantasma, mas já naquele momento me dei conta que estava a ter uma
visão e que diante de mim estava uma alma danada, um lêmure... Oh, Senhor, com que
voz de túmulo me falou!
- E que disse?
«Estou condenado!», assim me disse. «Tal como me vês, tens diante de ti um
retornado do inferno, que ao inferno deve tornar», assim me disse. E eu gritei-lhe:
«Adelmo, vens na verdade do inferno? Como são as penas do inferno?» E tremia, porque
há pouco tinha saído do ofício de completas, onde tinha ouvido ler páginas tremendas
sobre a ira do Senhor. E ele disse-me: «As penas do inferno são infinitamente maiores do
que a nossa língua pode dizer. Vês tu», disse, «esta capa de sofismas com a qual tenho
estado vestido até hoje. Ela me pesa e esmaga, como se tivesse a maior torre de Paris ou
a maior montanha do mundo sobre os ombros, e jamais a poderei tirar. E esta pena foime
dada pela divina justiça pela minha vanglória, por ter considerado o meu corpo um
lugar de delicias, e por ter suposto que sabia mais do que os outros, e por me ter
deleitado com coisas monstruosas, que, acalentadas na minha imaginação, produziram
coisas bem mais monstruosas no interior da minha alma - e agora com elas terei de viver
eternamente. Vês tu? O forro desta capa é como se fosse todo de brasas e fogo ardente,
e é o jogo em que arde o meu corpo, e esta pena é-me dada pelo pecado desonesto da
carne, na qual me viciei, e este fogo agora sem cessar me inflama e me queima!
Estende-me a tua mão, meu belo mestre», disse-me ainda, «ainda que o meu encontro te
sirva de útil ensinamento, dando-te em troca muitos dos ensinamentos que me deste,
estende-me a tua mão, meu belo mestre!» E sacudiu o dedo da sua mão, que ardia, e
caiu-me sobre a mão uma pequena gota do seu suor, e pareceu-me que me furava a mão,
que por muitos dias fiquei com a marca só que a escondi de todos. Depois desapareceu
entre os túmulos, e na manhã seguinte soube que aquele corpo, que tanto me tinha
aterrado, estava já morto aos pés da rocha.
Berengário arquejava e chorava. Guilherme perguntou-lhe:
- E porque é que te chamava seu belo mestre? Tínheis a mesma idade. Tinhas-lhe
acaso ensinado alguma coisa?
Berengário escondeu a cabeça, puxando o capucho sobre o rosto, e caiu de joelhos,
abraçando as pernas de Guilherme:
- Não sei, não sei porque me chamava assim, eu não lhe ensinei nada! - e rebentou em
soluços. - Tenho medo, padre, quero confessar -me a vós! Misericórdia, um diabo comeme
as entranhas!
Guilherme afastou-o de si e estendeu-lhe a mão para o levantar.
- Não, Berengário - disse-lhe -, não me peças que te confesse! Não feches os meus
lábios abrindo os teus. Aquilo que quero saber de ti dir-mo-ás de outro modo. E, se não
mo disseres, descobri-lo-ei por minha conta. Pede-me misericórdia, se queres, não me
peças o silêncio. São demasiados os que se calam nesta abadia. Diz-me, antes, como
viste o seu rosto pálido se era noite cerrada, e como pudeste queimar a mão se era uma
noite de chuva e de granizo e de neve ligeira? Que fazias no cemitério? Vamos - sacudiu-o
com brutalidade pelos ombros -, diz-me ao menos isto!
Berengário tremia por todos os lados:
- Não sei o que fazia no cemitério, não me recordo. Não sei porque vi o seu rosto...
talvez eu tivesse uma luz, não, ele tinha uma luz, trazia uma candeia... talvez tenha
visto o seu rosto à luz da chama...
- Como podia trazer uma luz se chovia e nevava?
- Era depois de completas, logo depois de completas não nevava ainda, começou
depois... Recordo que começavam a descer as primeiras rajadas enquanto fugia para o
dormitório. Fugi para o dormitório, na direção oposta àquela em que ia o fantasma...
E
depois não sei mais nada, peço-vos, não me interrogueis mais se não quereis confessarme.
- Está bem - disse Guilherme -, agora vai, vai para o coro, vai falar com o Senhor, visto
que não queres falar com os homens, ou vai procurar um monge que queira escutar a tua
confissão, porque se desde então não confessas os teus pecados aproximaste-te como
sacrílego dos sacramentos. Vai. Voltaremos a ver-nos.
Berengário desapareceu a correr. E Guilherme esfregou as mãos, como o tinha visto
fazer em muitos outros casos em que estava satisfeito com alguma coisa.
- Bem – disse -, agora muitas coisas se tornam claras.
- Claras, mestre? - perguntei-lhe. - Claras agora que temos também o fantasma de
Adelmo?
- Caro Adso - disse Guilherme -, aquele fantasma parece-me muito pouco fantasma, e
de qualquer modo recitava uma página que já li em algum livro para uso dos pregadores.
Estes monges lêem talvez demasiado, e quando estão excitados revivem as visões que
tiveram nos livros. Não sei se Adelmo terá dito na verdade aquelas coisas ou se
Berengário as terá ouvido porque tinha necessidade de as ouvir. É um fato que esta
história confirma uma série de suposições minhas. Por exemplo: Adelmo morreu suicida,
e a história de Berengário diz-nos que, antes de morrer, ele vagueava presa de uma
grande excitação e um grande remorso por alguma coisa que tinha cometido. Estava
excitado e amedrontado pelo seu pecado porque alguém o tinha amedrontado, e talvez
lhe tenha contado precisamente o episódio da aparição infernal que ele recitou a
Berengário com tanta e tão alucinada mestria. E passava pelo cemitério porque vinha do
coro, onde se tinha confiado (ou confessado) a alguém que lhe tinha incutido terror e
remorso. E do cemitério encaminhava-se, como nos fez compreender Berengário, na
direção oposta ao dormitório, para o Edifício, portanto, mas também (é possível ) para o
muro da cerca por trás das estrumeiras, de onde eu deduzi que se deve ter atirado no
precipício. E atirou-se antes que sobreviesse a tempestade, morreu aos pés do muro, e
só depois o desmoronamento arrastou o seu cadáver entre a torre setentrional e a
oriental.
- Mas e a gota de suor inflamado?
- Já estava na história que ele ouviu e repetiu ou que Berengário imaginou na sua
excitação e no seu remorso. Porque há, em antístrofe ao remorso de Adelmo, um
remorso de Berengário, tu ouviste-o. E se Adelmo vinha do coro trazia talvez um círio, e
a gota sobre a mão do amigo era apenas uma gota de cera. Mas Berengário sentiu-se
arder muito mais porque Adelmo certamente lhe chamou seu mestre. Sinal, portanto, de
que Adelmo o reprovava por ele lhe ter ensinado qualquer coisa pela qual ele sentia
então um desespero de morte. E Berengário sabe-o, ele sofre porque sabe que impeliu
Adelmo para a morte levando-o a fazer algo que não devia. E não é difícil imaginar o
quê, meu pobre Adso, depois daquilo que ouvimos sobre o nosso ajudante-bibliotecário.
- Creio ter compreendido o que sucedeu entre os dois - disse, envergonhando-me da
minha sagacidade -, mas não acreditamos todos num Deus de misericórdia? Adelmo,
dizeis, provavelmente tinha-se confessado: porque procurou punir o seu primeiro pecado
com um pecado decerto maior ainda, ou pelo menos de igual gravidade?
- Porque alguém lhe disse palavras de desespero. Eu disse que certa página de
pregador dos nossos dias deve ter sugerido a alguém as palavras que amedrontaram
Adelmo e com que Adelmo amedrontou Berengário. Nunca como nestes últimos anos os
pregadores ofereceram ao povo, para lhe estimular a piedade e o terror (e o fervor, e o
respeito pela lei humana e divina), palavras tão truculentas, perturbadoras e macabras.
Nunca como nos nossos dias, no meio de procissões de flagelantes, se ouviram laudes
sacras inspiradoras nas dores de Cristo e da Virgem, nunca como hoje se insistiu tanto em
estimular a fé dos simples através da evocação dos tormentos infernais.
- Talvez seja necessidade de penitência - disse.
- Adso, nunca ouvi tantos apelos à penitência como hoje, num período em que já nem
pregadores nem bispos e nem sequer os meus irmãos espirituais estão em condições de
promover uma verdadeira penitência...
- Mas a terceira idade, o papa angélico, o capitulo de Perugia... - disse, confundido.
- Nostalgias. A grande época da penitência acabou, e por isso até o capítulo geral da
ordem pode falar de penitência. Houve, há cem, duzentos anos, uma grande vaga de
renovação. Era ainda quando quem falava dela era queimado, fosse santo ou herege.
Agora todos falam dela. Num certo sentido, discute sobre ela até o papa. Não te fies nas
renovações do gênero humano quando delas falam as cúrias e as cortes.
- Mas frei Dolcino - ousei, curioso por saber mais sobre aquele nome que tinha ouvido
pronunciar várias vezes no dia anterior.
- Morreu, e mal, tal como viveu, porque também ele veio demasiado tarde. E depois
que sabes tu dele?
- Nada, por isso vos pergunto...
- Prefiro nunca falar dele. Deram-me que fazer alguns dos chamados apóstolos, e
observei-os de perto. Uma história triste. Perturbar-te-ia. De qualquer modo, perturboume
a mim, e ainda mais te perturbaria a minha própria incapacidade de julgar. É a
história de um homem que fez coisas insensatas porque tinha posto em prática aquilo
que lhe tinham pregado muitos santos. A certa altura eu já não compreendia de quem
era a culpa, fiquei como... como obnubilado por um ar de família que soprava nos dois
campos adversos, santos que pregavam a penitência e pecadores que a punham em
prática, freqüentemente à custa dos outros... Mas estava a falar de outra coisa. Ou
talvez não, falava ainda disto finda a época da penitência para os penitentes, a
necessidade de penitência tornou-se necessidade de morte. E aqueles que mataram os
penitentes enlouquecidos, restituindo morte à morte, para derrotar a verdadeira
penitência, que provocava morte, substituíram à penitência da alma uma penitência da
imaginação, um apelo a visões sobrenaturais de sofrimento e de sangue, chamando-lhes
«espelho» da verdadeira penitência. Um espelho que faz viver em vida, à imaginação dos
simples, e por vezes também dos doutos, os tormentos do interno. A fim de que, diz-se,
ninguém peque. Esperando apartar as almas do pecado por meio do medo e confiando
em substituir à rebelião o medo.
- Mas na verdade depois não pecarão? - perguntei ansiosamente.
- Depende do que entendas por pecar, Adso - disse-me o mestre. - Eu não quero ser
injusto para com a gente deste país, em que vivo há alguns anos, mas parece-me que é
típico da pouca virtude das populações italianas não pecar por medo de algum ídolo, por
mais que lhe chamem santo. Têm mais medo de São Sebastião ou Santo Antônio do que
de Cristo. Se uma pessoa aqui quer conservar limpo um sítio, para que não mijem aí,
como fazem os italianos à maneira dos cães, pinta-se-lhe em cima uma imagem de Santo
Antônio com a ponta de madeira, e esta enxotará aqueles que estão para mijar. Assim,
os italianos, e por obra dos seus pregadores, arriscam-se a voltar às antigas superstições
e já não crêem na ressurreição da carne; têm só um grande medo das feridas corporais e
das desgraças, e por isso têm mais medo de Santo Antônio do que de Cristo.
- Mas Berengário não é italiano - observei.
- Não importa, estou falando do clima que a Igreja e as ordens pregadoras difundiram
nesta península e que daqui se difunde por toda a parte. E atinge até uma venerável
abadia de monges doutos, como estes.
- Mas ao menos que não pecassem - insisti, porque estava disposto a contentar-me só
com isto.
- Se esta abadia fosse um speculum mundi, terias já a resposta.
- Mas é-o? - perguntei.
- Para que haja espelho do mundo é preciso que o mundo tenha uma forma - concluiu
Guilherme, que era demasiado filósofo para a minha mente adolescente.
SEGUNDO DIA
TERÇA
Onde se assiste a uma rixa entre pessoas vulgares, Amaro de Alexandria faz algumas
alusões e Adso medita sobre a santidade e sobre o esterco do demônio. Depois,
Guilherme e Adso voltam ao scriptorium, Guilherme vê qualquer coisa de interessante,
tem a terceira conversa sobre a legitimidade do riso, mas em definitivo, não pode olhar para onde queria.
Antes de subir ao scriptorium passamos pela cozinha para nos restaurarmos, porque
não tínhamos ainda tomado nada desde que nos tínhamos levantado. Revigorei-me logo
bebendo uma tigela de leite quente. A grande chaminé meridional já ardia como uma
forja, enquanto no forno se estava preparando o pão do dia. Dois cabreiros estavam
depositando os restos de uma ovelha que acabavam de matar. Entre os cozinheiros vi
Salvador, que me sorriu com a sua boca de lobo. E vi que tirava de uma mesa um resto
do frango da noite anterior e o passava às escondidas aos cabreiros, que o ocultavam nas
suas jaquetas de pele com um risinho de satisfação. Mas o cozinheiro-chefe apercebeu-se
disso e repreendeu Salvador:
- Despenseiro, despenseiro – disse -, tu deves administrar os bens da abadia, não
dissipá-los!
- Filii Dei son - disse Salvador. - Jesus disse que facite por ele aquilo que facite a um
destes pueri!
- Fraticello das minhas bragas, piedoso menorita! - gritou-lhe então o cozinheiro. - Já
não estas entre os teus frades pedintes! Em dar aos filhos de Deus pensará a misericórdia
do Abade!
O rosto de Salvador escureceu, e ele voltou-se irritadíssimo:
-Não sou um fraticello menorita! Sou um monge Sancti Benedicti! Merdre á toy,
bogomilo de merda!
- Bogomila é a rameira que tu fodes à noite, com a tua verga herética, porquê gritou o
cozinheiro.
Salvador mandou sair à pressa os cabreiros e ao passar perto de nós olhou-nos com
preocupação:
- Frade - disse a Guilherme -, defende tu a tua ordem, que não é a minha, diz-lhe que
os filios Francisci não heréticos esse! - Depois sussurrou-me ao ouvido: - Ule menteur,
pufff - e cuspiu para o chão.
O cozinheiro veio empurrá-lo para fora com mau modo e fechou-lhe a porta nas
costas.
- Frade - disse a Guilherme com respeito -, eu não falava mal da vossa ordem e dos
homens santíssimos que nela estão. Falava com aquele falso menorita e falso beneditino
que não é carne nem peixe.
- Sei donde vem - disse Guilherme conciliador. - Mas agora monges como tu, e deveslhe
respeito fraterno.
- Mas ele mete o nariz onde não deve metê-lo, porque é protegido pelo despenseiro, e
julga-se ele o despenseiro. Usa da abadia como se fosse coisa sua, de dia e de noite!
- Porquê de noite? - perguntou Guilherme.
O cozinheiro fez um gesto como para dizer que não queria falar de coisas pouco
virtuosas. Guilherme não lhe perguntou mais nada e acabou de beber o seu leite.
A minha curiosidade estava cada vez mais excitada. O encontro com Ubertino, as
murmurações sobre o passado de Salvador e do despenseiro, as alusões cada vez mais
freqüentes aos fraticelli e aos menoritas heréticos que ouvia fazer naqueles dias, a
reticência do mestre em falar-me de frei Dolcino... Uma série de imagens começava a
recompor-se na minha mente. Por exemplo, enquanto cumpríamos a nossa viagem
tínhamos encontrado pelo menos duas vezes uma procissão de flagelantes. Duma vez a
população do lugar olhava-os como santos, doutra vez começava a murmurar que eram
hereges. E no entanto tratava-se sempre da mesma gente. Iam em procissão dois a dois,
pelas estradas da cidade, cobrindo só as pudenta, tendo superado qualquer sentimento
de vergonha. Cada um tinha na mão um açoite de couro, e feriam-se nas costas até
fazerem sangue, derramavam abundantes lágrimas como se vissem com os seus olhos a
paixão do Salvador, imploravam com um canto lamentoso a misericórdia do Senhor e a
ajuda da Mãe de Deus. Não só de dia, mas também de noite, com os círios acesos, no
rigor do Inverno, iam em grande multidão pelas igrejas em redor, prostravam-se
humildemente diante dos altares, precedidos por sacerdotes com círios e estandartes, e
não só homens e mulheres do povo mas também nobres matronas e mercadores... E
então assistia-se a grandes atos de penitência, aqueles que tinham roubado restituíam o
produto do roubo, outros confessavam os seus crimes...
Mas Guilherme tinha-os olhado com frieza e tinha-me dito que aquela não era
verdadeira penitência... Melhor, tinha falado como ainda há pouco o fizera, naquela
mesma manhã: o período da grande lavagem penitencial tinha findado, e aqueles eram
os modos como os próprios pregadores organizavam as devoções das multidões,
precisamente para que não caíssem na pena de um outro desejo de penitência que – esse
- era herético e fazia medo a todos. Mas não conseguia compreender a diferença, se
acaso a havia. Parecia-me que a diferença não vinha dos gestos de um ou de outro, mas
do olhar com que a Igreja julgava um e outro gesto.
Recordava-me da discussão com Ubertino. Guilherme tinha sido indubitavelmente
insinuante, tinha procurado dizer-lhe que havia pouca diferença entre a sua fé mística (e
ortodoxa) e a fé distorcida dos hereges. Ubertino tinha-se melindrado, como quem visse
bem a diferença. A impressão com que tinha ficado foi que ele era diverso precisamente
porque era aquele que sabia ver a diversidade. Guilherme subtraiu-se aos deveres da
Inquisição porque já não sabia vê-la. Por isso não conseguia falar-me daquele misterioso
frei Dolcino. Mas então, evidentemente (dizia para comigo), Guilherme perdeu a
assistência do Senhor, que não só ensina a ver a diferença mas, por assim dizer, investe
os seus diletos desta capacidade de discernimento. Ubertino e Clara de Montefalco (que
no entanto escava rodeada de pecadores) tinham permanecido santos precisamente
porque sabiam discriminar. A santidade é isto, e nada mais.
Mas porque é que Guilherme não sabia discriminar? No entanto, era um homem muito
arguto, e pelo que respeitava aos fatos da natureza sabia distinguir a menor
desigualdade e o menor parentesco entre as coisas...
Estava imerso nestes pensamentos, e Guilherme acabava de beber o seu leite, quando
ouvimos alguém que nos cumprimentava. Era Aymaro de Alexandria, que já tínhamos
conhecido no scriptorium e de quem me tinha impressionado a expressão do rosto,
inspirada num perpétuo riso de escárnio, como se jamais conseguisse capacitar-se da
fatuidade de todos os seres humanos e todavia não atribuísse grande importância a esta
tragédia cósmica.
- Então, frade Guilherme, já vos habituastes a esta espelunca de dementes?
- Parece-me um lugar de homens admiráveis de santidade e doutrina - disse
cautamente Guilherme.
- Era. Quando os abades faziam de abades e os bibliotecários de bibliotecários. Agora,
como vistes, lá em cima - e apontava para o andar superior -, aquele alemão meio morto
com olhos de cego está a ouvir devotamente os devaneios daquele espanhol cego com
olhos de morto; parece que está para chegar o Anticristo todas as manhãs, raspam-se os
pergaminhos, mas livros novos entram pouquíssimos... Nós estamos aqui, e lá em baixo,
nas cidades, age-se... Outrora, das nossas abadias governava-se o mundo. Hoje, bem
vedes, o imperador usa-nos para enviar aqui os seus amigos ao encontro dos seus inimigos
(sei alguma coisa da vossa missão, os monges falam, falam, nada mais têm a fazer), mas
se queres controlar as coisas deste país fica nas cidades. Nós estamos a colher trigo e a
criar galinhas, e lá em baixo trocam braças de seda por peças de linho, e peças de linho
por sacos de especiarias, e tudo isso por bom dinheiro. Nós conservamos o nosso tesouro,
mas lá em baixo acumulam-se tesouros. E livros também. E mais belos que os nossos.
- No mundo acontecem decerto muitas coisas novas. Mas porque pensais que a culpa é
do Abade?
- Porque passou a biblioteca para as mãos dos estrangeiros e conduz a abadia como
uma cidadela erguida em defesa da biblioteca. Uma abadia beneditina nesta plaga
italiana deveria ser um lugar onde italianos decidissem por coisas italianas. Que fazem os
italianos, hoje que já nem sequer têm um papa? Comerciam, fabricam, são mais ricos
que o rei de França. E então, façamos também nós o mesmo; se sabemos fazer belos
livros, fabriquemo-los para as universidades; e ocupemo-nos de quanto acontece lá em
baixo, nos vales, não digo do imperador, com todo o respeito pela vossa missão, frade
Guilherme, mas do que fazem os bolonheses ou os florentinos. Podemos controlar daqui a
passagem dos peregrinos e dos mercadores que vão da Itália à Provença e vice-versa.
Abramos a biblioteca aos textos em língua vulgar, e subirão cá acima também aqueles
que já não escrevem em latim. Mas, ao invés, somos controlados por um grupo de
estrangeiros que continuam a conduzir a biblioteca como se em Cluny fosse ainda abade
o bom Odillone...
- Mas o Abade é italiano - disse Guilherme.
- O Abade aqui não conta nada - disse Aymaro, sempre escarnecendo. - No lugar da
cabeça tem um armário da biblioteca. Está carunchoso. Para fazer arreliar o papa, deixa
que a abadia seja invadida por fraticelli... quero dizer, os heréticos, frade, os transtugas
da vossa ordem santíssima... e para fazer o que agrada ao imperador chama aqui monges
de todos os mosteiros do Norte, como se entre nós não houvesse excelentes copistas e
homens que sabem grego e árabe, e não houvesse em Florença ou em Pisa filhos de
mercadores, ricos e generosos, que entrariam voluntariamente na ordem se a ordem
oferecesse a possibilidade de incrementar a potência e o prestígio do pai. Mas aqui, a
indulgência pelas coisas do século reconhece-se apenas quando se trata de permitir aos
alemães... Oh, bom Senhor, fulminai a minha língua, que estou para dizer coisas pouco
convenientes!
- Na abadia acontecem coisas pouco convenientes? – perguntou distraidamente
Guilherme, servindo-se de um pouco mais de leite.
- Também o monge é um homem - sentenciou Aymaro. Depois acrescentou: - Mas aqui
são menos homens que noutros lugares. E aquilo que disse fique claro que não o disse.
- Muito interessante - disse Guilherme. - E essas são opiniões vossas ou de muitos que
pensam como vós?
- De muitos, de muitos. De muitos que agora se lamentam pela desventura do pobre
Adelmo, mas se no precipício tivesse caído qualquer outro, que anda pela biblioteca mais
do que devia, não ficariam descontentes.
-Que quereis dizer?
- Falei de mais. Aqui falamos de mais, já o tereis notado. Aqui o silêncio já ninguém o
respeita, por um lado. Por outro lado, respeita-se demasiado. Aqui, em vez de se falar
ou de se ficar calado, dever-se-ia agir. Na época de ouro da nossa ordem, se um abade
não tivesse uma têmpera de abade, uma bela taça de vinho envenenado e estava aberta
a sucessão. Disse-vos estas coisas, entenda-se, frade Guilherme, não para murmurar
acerca do Abade ou de outros irmãos. Deus me livre disso, felizmente não tenho o feio
vício da murmuração. Mas não queria que o Abade vos tivesse pedido para investigardes
sobre mim ou sobre qualquer outro como Pacífico de Tivoli ou Pedro de Sant'Albano.
Nós
não temos nada a ver com as histórias da biblioteca. Mas queríamos ter a ver um pouco
mais. Então agora destapai este ninho de serpentes, vós que haveis queimado tantos
hereges.
- Eu nunca queimei ninguém - respondeu secamente Guilherme.
- Dizia isso por dizer - admitiu Aymaro com um grande sorriso. - Boa caça, frade
Guilherme, mas prestai atenção de noite.
- Porque não de dia?
- Porque de dia aqui trata-se o corpo com as ervas boas e de noite adoece-se a mente
com as ervas más. Não acrediteis que Adelmo tenha sido precipitado no abismo pelas
mãos de alguém ou que as mãos de alguém tenham metido Veneno no sangue. Aqui
alguém não quer que os monges decidam sozinhos onde ir, que fazer e que coisa ler. E
usam-se forças do inferno, ou dos necromantes amigos do inferno, para transtornar as
mentes dos curiosos...
- Falais do padre ervanário?
- Severino de Sant'Emmerano é boa pessoa. Naturalmente, alemão ele, alemão
Malaquias...
E depois de ter demonstrado uma vez mais que não estava disposto à murmuração,
Aymaro saiu para trabalhar.
- Que terá querido dizer-nos? - perguntei.
- Tudo e nada. Uma abadia é sempre um lugar onde os monges estão em luta entre si
para conseguirem o governo da comunidade. Também em Melk, mas talvez como noviço
não tenhas tidos ocasião de dar conta disso. Mas, no teu país, conquistar o governo de
uma abadia significa conquistar um lugar de onde se trata diretamente com o imperador.
Neste país, pelo contrário, a situação é diversa, o imperador está longe, mesmo quando
desce até Roma. Não há uma corte, nem sequer a papal, hoje em dia. Há as cidades, têlo-
ás percebido.
- Decerto, e fiquei impressionado. A cidade em Itália é diversa da dos meus lados...
Não é só um lugar para habitar: é um lugar para decidir, estão sempre todos na praça,
contam mais os magistrados citadinos que o imperador ou o papa. São... como tantos
reinos...
- E os reis são os mercadores. E a sua arma é o dinheiro. O dinheiro tem, na Itália,
uma função diversa da do teu país, ou do meu. Por toda a parte circula dinheiro, mas
grande parte da vida é ainda dominada e regulada pela troca de bens, frangos ou gabelas
de trigo, ou uma podoa, ou um carro, e o dinheiro serve para arranjar estes bens. Terás
notado que na cidade italiana, pelo contrário, os bens servem para arranjar dinheiro. E
mesmo os padres e os bispos, e até as ordens religiosas, devem fazer as contas com
dinheiro. É por isso, naturalmente, que a rebelião contra o poder se manifesta como
apelo à pobreza, e se rebelam contra o poder aqueles que são excluídos da relação com
o dinheiro, e qualquer apelo à pobreza suscita tanta tensão e tantos debates, e a cidade
inteira, do bispo ao magistrado, sente como seu inimigo quem prega demasiado a
pobreza. Os inquisidores sentem fedor do demônio onde alguém reagiu ao fedor do
esterco do demônio. E então compreenderás também em que está pensando Aymaro.
Uma abadia beneditina, nos tempos áureos da ordem, era o lugar de onde os pastores
controlavam o rebanho dos fiéis. Aymaro quer que se volte à tradição. Só que a vida do
rebanho mudou, e a abadia só pode voltar à tradição (à sua glória, ao seu poder de
outros tempos) se aceitar os novos costumes do rebanho, tornando-se diversa. E como
hoje aqui se domina o rebanho não com as armas ou com o esplendor dos ritos mas com o
controle do dinheiro, Aymaro quer que toda a fábrica da abadia, e a própria biblioteca,
se tornem oficina e fábrica de dinheiro.
- E que tem isso a ver com os delitos, ou com o delito?
- Ainda não sei. Mas agora queria subir. Vem.
Os monges já estavam a trabalhar. No scriptorium reinava o silêncio, mas não era o
silêncio que se segue à paz operosa dos corações. Berengário, que nos tinha precedido
havia pouco, acolheu-nos com embaraço. Os outros monges levantaram a cabeça do seu
trabalho. Sabiam que estávamos ali para descobrir alguma coisa acerca de Venancio, e a
própria direção dos seus olhares fixou a nossa atenção sobre um lugar vazio, sob uma
janela que se abria para o interior do octógono central.
Embora fosse um dia muito frio, a temperatura no scriptorium era bastante suave. Não
fora por acaso que tinha sido disposto sobre as cozinhas, de onde provinha bastante
calor, ainda porque os canos das chaminés dos dois tornos situados por baixo passavam
por dentro das pilastras que sustentavam as duas escadas de caracol postas nos torreões
ocidental e meridional. Quanto ao torreão setentrional, do lado oposto da grande sala,
não tinha escada, mas uma grande lareira que ardia difundindo um agradável calor.
Além
disso, o pavimento tinha sido coberto de palha, o que tornava os nossos passos
silenciosos. Em suma, o angulo menos aquecido era o do torreão oriental, e de fato
notei, pois permaneciam lugares vagos em relação ao número de monges no trabalho,
que todos tendiam a evitar as mesas colocadas naquela direção. Quando mais tarde me
dei conta de que a escada de caracol do torreão oriental era a única que conduzia não só
para baixo, ao refeitório, mas também para cima, à biblioteca, perguntei-me se um
cálculo sapiente não teria regulado o aquecimento da sala de modo que os monges
fossem dissuadidos de espreitar para aquele lado e fosse mais fácil ao bibliotecário
controlar o acesso à biblioteca. Mas talvez exagerasse nas minhas suspeitas, tornando-me
uma pobre imitação do meu mestre, porque logo pensei que este cálculo não teria dado
grandes frutos de Verão - a não ser (disse para comigo) que de Verão aquele não fosse
precisamente o lado mais assoalhado, e por isso, outra vez, o mais evitado.
A mesa do pobre Venancio ficava de costas para a grande chaminé, e era
provavelmente uma das mais cobiçadas. Eu tinha passado então uma pequena parte da
minha vida num scriptorium, mas muitas aí passei em seguida, e sei quanto sofrimento
custa ao escriba, ao rubricador e ao estudioso passar à sua mesa as longas horas
invernais, com os dedos que se entorpecem sobre o estilete (quando até com uma
temperatura normal, depois de seis horas de escrita, prende os dedos a terrível cãibra do
monge e o polegar dói como se tivesse sido pisado). E isto explica porque
freqüentemente encontramos à margem dos manuscritos frases deixadas pelo escriba
como testemunho de sofrimento (e de insoirimento), tais como «Graças a Deus cedo
escurece», ou «Oh, se tivesse um bom copo de vinho!», ou ainda «Hoje está frio, a luz é
tênue, este velo tem pêlos, algo não está certo.» Como diz um antigo provérbio, três
dedos seguram a pena, mas o corpo inteiro labora. E adolora.
Mas falava da mesa de Venancio. Mais pequena do que outras, como de resto as que
estavam colocadas à volta do pátio octogonal, destinadas a estudiosos, enquanto eram
mais amplas as que ficavam sob as janelas das paredes externas, destinadas a
miniaturistas e copistas. Por outro lado, também Venancio trabalhava com uma estante,
porque provavelmente consultava manuscritos emprestados à abadia, dos quais fazia a
cópia. Por baixo da mesa estava disposta uma prateleira baixa, onde estavam
amontoadas folhas não encadernadas, e como eram todas em latim deduzi que eram as
suas traduções mais recentes. Estavam escritas de modo apressado, não constituíam
páginas de livro e deveriam ser confiadas depois a um copista e a um miniaturista.
Por
isso, dificilmente se podiam ler. Entre as folhas, alguns livros, em grego. Um outro livro
grego estava aberro sobre a estante, a obra sobre a qual Venancio estava executando nos
últimos dias o seu trabalho de tradutor. Eu então não conhecia ainda o grego, mas o meu
mestre disse que era de um tal Luciano e narrava a história de um homem transformado
em burro. Recordei então uma fábula análoga de Apuleio, que de costume era
severamente desaconselhada aos noviços.
- Porque é que Venancio fazia esta tradução – perguntou Guilherme a Berengário, que
eslava ao nosso lado.
- Foi pedida à abadia pelo senhor de Milão, e a abadia ganhará um direito de preleção
sobre a produção de vinho de algumas propriedades que ficam a oriente. - Berengário
apontou para longe com a mão, mas logo acrescentou: - Não é que a abadia se preste a
trabalhos venais para os leigos. Mas a comitente empenhou-se em que este precioso
manuscrito grego nos fosse emprestado pelo doge de Veneza, a quem o deu o imperador
de Bizâncio, e quando Venancio tivesse terminado o seu trabalho teríamos feito duas
cópias, uma para o comitente e outra para a nossa biblioteca.
- Que portanto não desdenha recolher também fábulas pagãs - disse Guilherme.
-A biblioteca é testemunho da verdade e do erro - disse então uma voz atrás de nós.
Era Jorge. Uma vez mais me espantei (mas muito havia ainda de me espantar nos dias
seguintes) pelo modo inopinado como aquele velho aparecia de improviso, como se nós
não o víssemos e ele nos visse a nós. Perguntei-me ainda que coisa andaria a fazer um
cego no scriptorium, mas dei-me conta em seguida que Jorge era onipresente em todos
os lugares da abadia. E freqüentemente estava no scriptorium, sentado num escano
junto à lareira, e parecia que seguia tudo aquilo que acontecia na sala. Uma vez ouvi-o
do seu lugar perguntar em voz alta: «Quem sobe?», e dirigia-se a Malaquias, que, em
passos abafados pela palha, se encaminhava para a biblioteca. Todos os monges o tinham
em grande estima e dirigiam-se freqüentemente a ele lendo-lhe textos de difícil
compreensão, consultando-o para um escólio ou pedindo-lhe luzes sobre o modo de
representar um animal ou um santo. E ele olhava para o vácuo com os seus olhos
extintos, como se fixasse páginas que tinha vívidas na memória, e respondia que os falsos
profetas estão vestidos como bispos e que da sua boca saem rãs, ou quais eram as pedras
que deviam adornar os muros da Jerusalém celeste, ou que os arimaspos devem ser
representados nos mapas junto da terra do Preste João - recomendando que não
exagerassem ao torná-los sedutores na sua monstruosidade, que bastava que fossem
representados de modo emblemático, reconhecíveis mas não concupiscíveis ou
repelentes até ao riso.
Uma vez ouvi-o aconselhar um escoliasta sobre o modo de interpretar a recapitulatio
nos textos de Ticónio segundo o espírito de Santo Agostinho, para que se evitasse a
heresia donatista. Doutra vez ouvi-o dar conselhos sobre o modo de, comentando,
distinguir os hereges dos cismáticos. Ou ainda dizer a um estudioso perplexo que livro
deveria procurar no catálogo da biblioteca, e quase em que folha encontraria a
referência, assegurando-lhe que o bibliotecário decerto lho entregaria, porque se tratava
de obra inspirada por Deus. Enfim, uma outra vez ouvi-o dizer que um certo livro não era
procurado, porque existia, é verdade, no catálogo, mas tinha sido arruinado pelos ratos
cinqüenta anos antes e pulverizava-se sob os dedos de quem agora lhe tocasse. Ele era,
em suma, a própria memória da biblioteca e a alma do scriptorium. Às vezes repreendia
os monges que ouvia conversar entre si: «Apressai-vos em deixar testemunho da verdade,
que o tempo está próximo!», e aludia à vinda do Anticristo.
- A biblioteca é testemunho da verdade e do erro - disse portanto Jorge.
- Decerto, Apuleio e Luciano eram culpados de muitos erros - disse Guilherme. - Mas
esta fábula contém sob o véu das suas próprias ficções também uma boa moral, porque
ensina como se pagam caro os próprios erros, e além disso creio que a história do homem
transformado em burro alude à metamorfose da alma que cai no pecado.
- Pode ser - disse Jorge.
- Porém, agora compreendo porque é que Venancio, durante aquela conversa de que
me falou ontem, estava tão interessado nos problemas da comédia; de fato também as
fábulas deste tipo podem ser comparadas às comédias dos antigos. Nenhuma delas narra
a história de homens que tenham existido verdadeiramente, como as tragédias, mas, diz
Isidoro, são ficções: «Fabulae poetae a fando nominaverunt quia non sunt res factue sed
tantum loquendo fsctae...»
À primeira não compreendi porque é que Guilherme se tinha entranhado naquela
douta discussão, e precisamente com um homem que parecia não amar semelhantes
assuntos, mas a resposta de Jorge disse-me como o meu mestre tinha sido subtil.
- Naquele dia não se discutia de comédias, mas apenas da legitimidade do riso - disse
Jorge, sombrio.
E eu recordava-me muito bem que quando Venancio se tinha referido àquela
discussão, precisamente no dia anterior, Jorge tinha afirmado que não se recordava.
- Ah - disse Guilherme com negligência -, julgava que tivésseis falado das mentiras dos
poetas e dos enigmas argutos...
- Falava-se do riso - disse secamente Jorge. - As comédias eram escritas pelos pagãos
para mover os espectadores ao riso, e faziam mal. Jesus Nosso Senhor nunca contou
comédias nem fábulas, mas apenas límpidas parábolas que alegoricamente nos instruem
sobre o modo de ganhar o paraíso, e assim seja.
- Pergunto-me - disse Guilherme - porque sois tão contrário à idéia de que Jesus tenha
porventura rido. Eu creio que o riso é um bom remédio, como os banhos, para curar os
humores e as outras afecções do corpo, em particular a melancolia.
- Os banhos são uma coisa boa - disse Jorge -, e o próprio Aquinate os aconselha para
remover a tristeza, que pode ser paixão nociva quando não se dirige a um mal que possa
ser removido através da audácia. Os banhos restituem o equilíbrio dos humores. O riso
sacode o corpo, deforma as linhas do rosto, torna o homem semelhante ao macaco.
- Os macacos não riem, o riso é próprio do homem, é sinal da sua racionalidade - disse
Guilherme.
- Também a palavra é sinal da racionalidade humana e com a palavra pode-se
blasfemar contra Deus. Nem tudo o que é próprio do homem é necessariamente bom. O
riso é sinal de estultícia. Quem ri não crê naquilo de que se ri, mas também não o odeia.
E portanto rir do mal significa não se dispor a combatê-lo, e rir do bem significa
desconhecer a força pela qual o bem se difunde por si. Por isto a regra diz: «Decimus
humilitatis gradus est si non sit facilis ac promptus in risu, quia scriptum est: stultus in
risu exaltat vocem suam.»
- Quintiliano - interrompeu o meu mestre - diz que o riso é de reprimir no panegírico,
por dignidade, mas é de encorajar em muitos outros casos. Tácito louva a ironia de
Calpúrnio Pisão, Plínio o jovem escreveu: «Aliquando praeterea rideo, jocor, ludo, homo
sum.»
- Eram pagãos – replicou Jorge. - A regra diz: «Scurrilitates vero vel verba otiosa et
risum moventia aeterna clausura in omnibus locis damnamus, et ad talia eloquia
discipulum aperire os non permittimus.»
- Porém, quando o verbo de Cristo já tinha triunfado sobre a terra, Sinésio de Cirene
diz que a divindade soube combinar harmoniosamente cômico e trágico, e Élio Spaziano
diz do imperador Adriano, homem de elevados costumes e de animo naturaliter cristão,
que ele soube misturar momentos de alegria e momentos de gravidade. E, enfim,
Ausónio recomenda que se deve dosear com moderação o sério e o jocoso.
- Mas Paulino de Nola e Clemente de Alexandria puseram-nos em guarda contra estas
estultícias, e Sulpicio Severo diz que São Martinho nunca foi visto por ninguém nem presa
da ira nem presa da hilaridade.
- Porém recorda o santo algumas respostas spiritualiter salsa - disse Guilherme.
- Eram prontas e sapientes, não ridículas. São Efraim escreveu um parêntese contra o
riso dos monges, e no De habitu et conversatione monachorum recomenda-se que se
evitem obscenidades e facécias como se fossem o veneno das áspides!
- Mas Hildeberto disse: « Admittenda tibi joca sunt post seria quaedam, sed tamen et
dignis ipsa gerenda modis.» E João de Salisbury autorizou uma modesta hilaridade. E,
enfim, o Eclesiastes, de onde citastes o passo a que se refere a vossa regra, onde se diz
que o riso é próprio do estulto, admite pelo menos um riso silencioso, o do animo sereno.
- O animo é sereno apenas quando contempla a verdade e quando se deleita com o
bem cumprido, e da verdade e do bem não se ri. Eis porque Cristo não ria. O riso é fonte
de dúvida.
- Mas às vezes é justo duvidar.
- Não vejo a razão. Quando se duvida é preciso dirigir-se a uma autoridade, às
palavras de um padre ou de um doutor, e cessa qualquer razão de dúvida. Pareceis-me
embebido de doutrinas discutíveis, como as dos lógicos de Paris. Mas São Bernardo soube
intervir bem contra o castrado Abelardo, que queria submeter todos os problemas ao
exame frio e sem vida de uma razão não iluminada pelas escrituras, pronunciando o seu
é assim e não é assim. Decerto que aquele que aceitar estas idéias perigosíssimas pode
também apreciar o jogo do insipiente que ri daquilo de que só se deve saber a única
verdade, que já foi dita uma vez por todas. Assim, rindo, o insipiente diz
implicitamente: «Deus non est.»
- Venerável Jorge, pareceis-me injusto quando tratais Abelardo de castrado, porque
sabeis que incorreu em tão triste condição pela iniqüidade de outrem...
- Pelos seus pecados. Pela altivez da sua confiança na razão do homem. Assim, a fé
dos simples foi escarnecida, os mistérios de Deus foram desentranhados (ou tentou-se,
estultos aqueles que o tentaram), questões que se relacionavam com as coisas altíssimas
foram tratadas temerariamente, escarneceu-se dos padres porque tinham considerado
que tais questões estavam mais sopitas do que expostas.
- Não estou de acordo, venerável Jorge. Deus quer de nós que exercitemos a nossa
razão sobre muitas coisas obscuras sobre as quais a escritura nos deixou livres de decidir.
E, quando alguém vos propõe acreditar numa proposição, vós deveis primeiro examinar
se ela é aceitável, porque a nossa razão foi criada por Deus, e aquilo que agrada à nossa
razão não pode deixar de agradar à razão divina, sobre a qual, por outro lado, sabemos
só aquilo que, por analogia e freqüentemente por negação, inferimos dos procedimentos
da nossa razão. E então vedes que, por vezes, para minar a falsa autoridade de uma
proposição absurda que repugna à razão, também o riso pode ser um instrumento justo.
Freqüentemente, o riso serve também para confundir os malvados e para fazer refulgir a
sua estultícia. Conta-se de São Mauro que os pagãos o puseram em água a ferver e ele se
lamentou que o banho estava demasiado frio; o governador pagão meteu estupidamente
a mão na água, para verificar, e queimou-se. Bela ação daquele santo mártir que
ridicularizou os inimigos da fé.
Jorge escarneceu:
- Mesmo nos episódios que contam os pregadores se encontram muitas petas. Um santo
imerso em água a ferver sofre por Cristo e retém os seus gritos, não prega partidas de
crianças aos pagãos!
- Vedes? - disse Guilherme -, esta história parece-vos que repugna à razão, e acusai-la
de ser ridícula! Seja embora tacitamente e controlando os vossos lábios, vós estais rindo
de alguma coisa e quereis que eu também não a tome a sério. Rides do riso, mas rides.
Jorge teve um gesto de enfado:
- Jogando com o riso arrastais-me para discursos vãos. Mas vós sabeis que Cristo não
ria.
- Não tenho a certeza disso. Quando convida os fariseus a atirar a primeira pedra,
quando pergunta de quem é a efígie da moeda a pagar em tributo, quando joga com as
palavras e diz: «Tu es petrus», eu creio que Ele dizia coisas argutas, para confundir os
pecadores, para sustentar o animo dos seus. Também fala com argúcia quando diz a
Caifás: «Tu o disseste.» E Jeronimo quando comenta Jeremias, onde Deus diz a
Jerusalém: «nudavi femora contra fa-ciem tuam», explica: «Sive nudabo et relevabo
femora et posteriora tua.» Até Deus se exprime portanto por argúcias para confundir
aqueles que quer punir. E sabeis muito bem que no momento mais aceso da luta entre
clunicenses e cistercenses os primeiros acusaram os segundos, para os tornar ridículos,
de não usarem bragas. E no Speculum stultorum conta-se do burro Brunello que se
pergunta o que aconteceria se de noite o vento levantasse os cobertores e o monge visse
as suas pudenta...
Os monges em volta riram, e Jorge enfureceu-se:
- Estais-me arrastando estes irmãos para uma festa de doidos. Sei que é uso entre os
franciscanos cativar as simpatias do povo com estultícias deste gênero, mas destes jogos
vos direi aquilo que diz um verso que ouvi a um dos vossos pregadores: «Tum podex
carmen extulit horridulum.»
A reprimenda era um pouco forte de mais, Guilherme tinha sido impertinente, mas
agora Jorge acusava-o de emitir peidos pela boca. Perguntei-me se esta resposta severa
não devia significar um convite, por parte do monge ancião, a sair do scriptorium. Mas vi
Guilherme, tão combativo pouco antes, tornar-se manso como um cordeiro.
- Peço-vos perdão, venerável Jorge - disse. - A minha boca traiu os meus pensamentos,
não queria faltar-vos ao respeito. Talvez aquilo que dizeis seja justo e eu me enganasse.
Jorge, diante deste ato de delicada humildade, emitiu um grunhido que tanto podia
exprimir satisfação como perdão, e não pôde fazer outra coisa senão voltar ao seu lugar,
enquanto os monges, que durante a discussão se tinham próxima do pouco a pouco,
refluíam às suas mesas de trabalho. Guilherme voltou-se de novo diante da mesa de
Venancio e recomeçou a buscar entre os papéis. Com a sua resposta humilíssima,
Guilherme tinha ganho alguns segundos de tranqüilidade. E aquilo que viu naqueles
poucos segundos inspirou as suas investigações da noite que estava para vir.
Foram porém verdadeiramente, poucos segundos. Bêncio aproximou-se de súbito,
fingindo ter esquecido o seu estilete sobre a mesa, quando se aproximara para ouvir a
conversa com Jorge, e sussurrou a Guilherme que tinha urgência em falar-lhe, marcandolhe
encontro por trás dos balnea. Disse-lhe ainda que se afastasse primeiro, que ele o
alcançaria dali a pouco.
Guilherme hesitou alguns instantes, depois chamou Malaquias, que da sua mesa de
bibliotecário, junto do catálogo, tinha seguido tudo quanto tinha acontecido, e pediulhe,
em virtude do mandato recebido do Abade (e frisou muito este seu privilégio), que
pusesse alguém de guarda à mesa de Venancio, porque reputava útil ao seu inquérito que
ninguém se aproximasse dela durante todo o dia. até que ele pudesse voltar. Disse-o em
voz alta, porque nesse sentido empenhava não só Malaquias em vigiar os monges, mas os
próprios monges em vigiar Malaquias. O bibliotecário não pôde senão consentir, e
Guilherme afastou-se comigo.
Enquanto atravessávamos o horto e nos púnhamos mais perto dos balnea, que ficavam
encostados à construção do hospital, Guilherme observou:
- Parece que a muitos desagrada que eu ponha as mãos sobre alguma coisa que está
por cima ou por baixo da mesa de Venancio.
- E que será?
- Tenho a impressão que aqueles a quem desagrada também não o sabem.
- Então Bêncio não tem nada a dizer-nos e está somente a atrair-nos para longe do
scriptorium?
- Isso vamos já sabê-lo - disse Guilherme.
De fato, pouco depois, Bêncio veio ter conosco.
SEGUNDO DIA
SEXTA
Onde Bêncio conta uma estranha história, por onde se ficam a saber coisas pouco
edificantes sobre a vida da abadia.
Aquilo que Bêncio nos disse foi um tanto confuso. Parecia verdadeiramente que ele
nos tinha atraído ali só para nos afastar do scriptorium, mas também parecia que,
incapaz de inventar um pretexto convincente, dizia-nos também fragmentos de uma
verdade mais vasta que ele conhecia.
Ele disse-nos que de manhã tinha sido reticente, mas que agora, depois de madura
reflexão, achava que Guilherme devia saber toda a verdade. Durante a famosa conversa
sobre o riso, Berengário tinha-se referido ao «finis Africae». O que era? A biblioteca
estava cheia de segredos, e especialmente de livros que nunca tinham sido dados a ler
aos monges. Bêncio tinha sido atingido pelas palavras de Guilherme sobre o exame
racional das proposições. Ele achava que um monge estudioso tinha o direito de conhecer
tudo aquilo que a biblioteca encerrava, disse palavras inflamadas contra o concílio de
Soissons que tinha condenado Abelardo, e, enquanto falava, demo-nos conta que este
monge ainda jovem, que se deleitava com a retórica, era agitado por frêmitos de
independência e que lhe custava a aceitar os vínculos que a disciplina da abadia punha à
curiosidade do seu intelecto. Eu aprendi sempre a desconfiar de tal curiosidade, mas sei
bem que esta atitude não desagradava ao meu mestre, e apercebi-me que ele
simpatizava com Bêncio e que lhe dava crédito. Em resumo, Bêncio disse-nos que não
sabia de que segredos Adelmo, Venancio e Berengário tinham falado, mas que não lhe
desagradaria que daquela triste história adviesse um pouco de luz sobre o modo como a
biblioteca era administrada, e que não desesperava que o meu mestre, fosse qual fosse o
modo como deslindasse a meada do inquérito, retirasse daí elementos para estimular o
Abade a abrandar a disciplina intelectual que pesava sobre os monges - vindos de tão
longe, como ele, acrescentou, precisamente para nutrir a sua mente com as maravilhas
ocultas no amplo ventre da biblioteca.
Eu creio que Bêncio era sincero ao esperar do inquérito aquilo que dizia.
Provavelmente, porém, queria ao mesmo tempo, como Guilherme tinha previsto,
reservar-se o direito de ser o primeiro a revistar a mesa de Venancio, devorado como era
pela curiosidade, e, para nos manter afastados dela, estava disposto a dar-nos em troca
outras informações. E eis quais elas foram.
Berengário era consumido, já muitos entre os monges o sabiam, por uma insana paixão
por Adelmo, a mesma paixão cujos efeitos nefastos a cólera divina tinha castigado em
Sodoma e Gomorra. Assim se exprimiu Bêncio, talvez por respeito à minha jovem idade.
Mas quem viveu a sua adolescência num mosteiro sabe que, ainda que se tenha mantido
casto, de tais paixões decerto ouviu falar, e por vezes teve de se guardar das insídias de
quem era escravo delas. Jovem monge como era, não tinha já recebido eu próprio, em
Melk, da parte de um monge idoso, cartelas com versos que de costume um leigo dedica
a uma mulher. Os votos monacais mantêm-nos longe daquele antro de vícios que é o
corpo da fêmea mas freqüentemente conduzem-nos à beira de outros erros. Posso enfim
esconder-me que a minha própria velhice é ainda hoje agitada pelo demônio meridiano,
quando me acontece demorar o meu olhar, no coro, sobre o rosto imberbe de um noviço,
puro e fresco como uma menina?
Digo estas coisas não para pôr em dúvida a escolha que fiz de me dedicar à vida
monástica, mas para justificar o erro de muitos para quem este santo fardo se revela
pesado. Talvez para justificar o delito horrível de Berengário. Mas parece-me, segundo
Bêncio, que este monge cultivava o seu vício de modo ainda mais ignóbil, isto é, usando
as armas da chantagem para obter de outros aquilo que a virtude e o decoro lhes
deveriam desaconselhar de doar.
Portanto, há algum tempo que os monges ironizavam sobre os olhares ternos que
Berengário lançava a Adelmo, que parece que eram de uma grande beleza. Enquanto
Adelmo, totalmente enamorado do seu trabalho, do qual somente parecia tirar deleite,
pouco cuidava da paixão de Berengário. Mas talvez, quem sabe, ele ignorasse que o seu
animo, no fundo, o inclinava à mesma ignomínia. O fato é que Bêncio disse que tinha
surpreendido um diálogo entre Adelmo e Berengário em que este, aludindo a um segredo
que Adelmo pedia que lhe revelasse, lhe propunha o torpe mercado que até o leitor mais
inocente pode imaginar. E parece que Bêncio ouviu dos lábios de Adelmo palavras de
consenso, quase ditas com alívio. Como se, aventurava Bêncio, Adelmo no fundo não
desejasse outra coisa e lhe tivesse bastado encontrar uma razão diversa do desejo carnal
para consentir. Sinal, argumentava Bêncio, de que o segredo de Berengário devia dizer
respeito a arcanos da sapiência, de modo que Adelmo pudesse nutrir a ilusão de ceder a
um pecado da carne para contentar um apetite do intelecto. E, acrescentou Bêncio com
um sorriso, quantas vezes ele próprio não era agitado por apetites do intelecto tão
violentos que, para contentá-los, teria consentido em secundar apetites carnais não
seus, mesmo contra a sua própria vontade carnal.
- Não há momentos - perguntou a Guilherme - em que vós faríeis até coisas
reprováveis para ter nas mãos um livro que procurais há anos?
- O sábio e virtuosíssimo Silvestre II, há séculos, deu como oferta uma esfera armilar
preciosíssima por um manuscrito, creio, de Estácio ou Lucano - disse Guilherme.
Acrescentou depois, prudentemente: - Mas tratava-se de uma esfera armilar, não da sua
própria virtude.
Bêncio admitiu que o seu entusiasmo o tinha arrastado longe e retomou a narrativa.
Na noite antes de Adelmo morrer, ele tinha seguido os dois, movido pela curiosidade. E
tinha-os visto, depois de completas, encaminharem-se juntos para o dormitório. Tinha
esperado longo tempo, conservando entreaberta a porta da sua cela, não longe da deles,
e tinha visto claramente Adelmo deslizar, quando o silêncio tinha descido sobre o sono
dos monges, para a cela de Berengário. Tinha continuado a velar, sem poder conciliar o
sono, até que ouvira a porta da cela de Berengário que se abria e Adelmo que fugia de lá
quase a correr, com o amigo procurando retê-lo. Berengário tinha-o seguido enquanto
Adelmo descia ao andar inferior. Bêncio tinha-os seguido cautamente, e à entrada do
corredor inferior tinha visto Berengário, quase a tremer, que, esmagado num canto,
fixava a porta da cela de Jorge. Bêncio tinha intuído que Adelmo se tinha lançado aos
pés do velho irmão para lhe confessar o seu pecado. E Berengário tremia, sabendo que o
seu segredo era revelado, fosse embora sob o sigilo do sacramento.
Depois Adelmo tinha saído, de rosto extremamente pálido, tinha afastado de si
Berengário, que procurava falar-lhe, e tinha-se precipitado para fora do dormitório,
girando em torno da abside da igreja e entrando no coro pelo portal setentrional (que de
noite fica sempre aberto). Provavelmente queria rezar. Berengário tinha-o seguido, mas
sem entrar na igreja, e vagueava entre os túmulos do cemitério torcendo as mãos.
Bêncio não sabia que fazer quando se apercebera que uma quarta pessoa se movia ali
perto. Também ela tinha seguido os dois e decerto não tinha reparado na presença de
Bêncio, que se mantinha rígido contra o tronco de um carvalho plantado nos limites do
cemitério. Era Venancio. Ao vê-lo, Berengário tinha-se agachado entre os túmulos, e
Venancio tinha entrado também ele no coro. Nessa altura, Bêncio, temendo ser
descoberto, tinha regressado ao dormitório. Na manhã seguinte, o cadáver de Adelmo
tinha sido encontrado aos pés da escarpa. E mais Bêncio não sabia.
Aproximava-se então a hora de almoçar. Bêncio deixou-nos, e o meu mestre não lhe
perguntou mais nada. Nós ficamos por algum tempo atrás dos balnea, depois passeamos
por alguns minutos no horto, meditando sobre aquelas singulares revelações.
- Frangula - disse de repente Guilherme, inclinando-se a observar uma planta que
naquele dia de Inverno reconheceu no arbusto. – A infusão da casca é boa para as
hemorróidas. E aquilo é arctium lappa; uma boa cataplasma de raízes frescas cicatriza os
eczemas da pele.
- Sois mais esperto do que Severino - disse-lhe -, mas agora dizei-me o que pensais
daquilo que ouvimos!
- Caro Adso, devias aprender a raciocinar com a tua cabeça. Provavelmente, Bêncio
disse-nos a verdade. A sua narrativa coincide com a que fez Berengário, aliás tão
mesclada de alucinações, hoje de manhã cedo. Tenta reconstruir. Berengário e Adelmo
fazem juntos uma coisa muito feia, já o tínhamos intuído. E Berengário deve ter revelado
a Adelmo aquele segredo que permanece, ai de mim, um segredo. Adelmo, depois de ter
cometido o seu delito contra a castidade e as regras da natureza, pensa apenas em
confiar-se a alguém que possa absolvê-lo, e corre junto de Jorge. Este tem um caráter
muito austero, tivemos provas disso, e decerto acomete Adelmo com angustiantes
reprimendas. Talvez não lhe dê a absolvição, talvez lhe imponha uma penitência
impossível, não sabemos, nem Jorge no-lo dirá jamais. O fato é que Adelmo corre à
igreja a prostrar-se diante do altar, mas não aplaca o seu remorso. Neste ponto é
abordado por Venancio. Não sabemos o que dizem um ao outro. Provavelmente, Adelmo
confia a Venancio o segredo recebido como presente (ou em paga) de Berengário, e que
agora já nada lhe importa, pois que ele tem agora um segredo seu bem mais terrível e
escaldante. Que acontece a Venancio? Provavelmente, tomado pela mesma curiosidade
ardente que hoje também movia o nosso Bêncio, pago por aquilo que soube, deixa
Adelmo entregue aos seus remorsos. Adelmo vê-se abandonado, projeta matar-se, sai
desesperado para o cemitério e ai encontra Berengário. Diz-lhe palavras tremendas,
lança-lhe à cara a sua responsabilidade, chama-lhe seu mestre de turpitude. Creio
mesmo que a narrativa de Berengário, despojada de toda a alucinação, era exata.
Adelmo repete-lhe as mesmas palavras de desespero que deve ter ouvido a Jorge. E eis
que Berengário se vai transtornado, por um lado, e Adelmo vai matar-se pelo outro.
Depois vem o resto, de que fomos quase testemunhas. Todos crêem que Adelmo foi
morto. Venancio fica com a impressão que o segredo da biblioteca é ainda mais
importante do que julgava e continua a busca por sua conta. Até que alguém o faz parar,
antes ou depois de ele ter descoberto aquilo que queria.
- Quem o mata? Berengário?
- Pode ser ou Malaquias, que deve guardar o Edifício. Ou um outro. Berengário é
suspeito precisamente porque está assustado, e sabia que agora Venancio possuía o seu
segredo. Malaquias é suspeito: guarda da integridade da biblioteca, descobre que alguém
a violou e mata. Jorge sabe tudo de todos, possui o segredo de Adelmo, não quer que eu
descubra o que Venancio poderia ter encontrado... Muitos fatos aconselhariam a
suspeitar dele. Mas diz-me tu como é que um homem cego pode matar outro na
plenitude das forças, e como é que um velho, embora robusto, terá podido transportar o
cadáver para a jarra. Mas enfim, porque é que o assassino não poderia ser o próprio
Bêncio? Poderia ter-nos mentido, ser movido por fins inconfessáveis. E porquê limitar os
suspeitos apenas aos que participaram na conversa sobre o riso? Provavelmente, o delito
teve outros móbeis que nada têm a ver com a biblioteca. Em todo o caso, são precisas
duas coisas: saber como se entra na biblioteca de noite e ter uma candeia. Na candeia
pensa tu. Passa pela cozinha à hora do almoço, pega uma...
- Um furto?
- Um empréstimo, para maior glória do Senhor.
- Se é assim, contai comigo.
- Ótimo. Quanto a entrar no Edifício, vimos de onde apareceu Malaquias ontem à
noite. Hoje farei uma visita à igreja e àquela capela em particular. Dentro de uma hora
iremos para a mesa. Depois temos uma reunião com o Abade. Serás admitido nela,
porque pedi para ter um secretário que tome nota de quanto dissermos.
SEGUNDO DIA
NONA
Onde o Abade se mostra orgulhoso das riquezas da sua abadia e temeroso dos hereges
e no fim Adso receia ter feito mal em andar pelo mundo.
Encontramos o Abade na igreja, diante do altar-mor. Estava seguindo o trabalho de
alguns noviços que tinham tirado de alguns penetrais uma série de vasos sagrados,
cálices, patenas, ostensórios, e um crucifixo que não tinha visto durante a função da
manhã. Não pude conter uma exclamação de admiração diante da fulgurante beleza
daquelas alfaias sagradas. Era em pleno meio-dia, e a luz entrava a jorros pelas janelas
do coro e mais ainda pelas das fachadas, formando brancas cascatas que, como místicas
torrentes de divina substancia, iam cruzar-se em vários pontos da igreja, inundando o
próprio altar.
Os vasos, os cálices, tudo revelava a sua matéria preciosa: entre o amarelo do ouro, a
brancura imaculada dos marfins e a transparência do cristal, vi reluzir gemas de todas as
cores e dimensões, e reconheci o jacinto, o topázio, o rubi, a safira, a esmeralda, o
crisólico, o ônix, o carbúnculo e o jaspe e a ágata. E ao mesmo tempo apercebi-me de
tudo quanto, de manhã, arrebatado primeiro na oração e depois perturbado pelo terror,
não tinha notado: o frontal do altar e mais três painéis que lhe faziam de coroa eram
inteiramente de ouro, e enfim o altar parecia de ouro de qualquer parte que se olhasse
pare ele.
O abade sorriu ao meu espanto.
- Estas riquezas que vedes - disse, voltando-se pare mim e pare o meu mestre - e
outras que ainda vereis são a herança de séculos de piedade e devoção e testemunho do
poder e santidade desta abadia. Príncipes e poderosos da terra, arcebispos e bispos
sacrificaram a este altar e aos objetos que lhe são destinados os anéis das suas
investiduras, os ouros e as pedras que eram sinal da sua grandeza, e quiseram refundi-los
aqui pare a maior glória do Senhor e deste seu lugar. Mau grado a abadia tenha sido hoje
fustigada por um outro evento lutuoso, não podemos esquecer diante da nossa
fragilidade a força e a potência do Altíssimo. Aproximam-se as festividades do Santo
Natal, e estamos começando a limpar as alfaias sagradas, de modo que o nascimento do
Salvador seja pois festejado com todo o fasto e a magnificência que merece e requer.
Tudo deverá aparecer no seu pleno fulgor... - acrescentou, olhando fixamente para
Guilherme, e compreendi depois porque insistia tão orgulhosamente em justificar o seu
comportamento - porque pensamos que é útil e conveniente não esconder mas, pelo
contrário, proclamar as divinas liberalidades.
- Decerto - disse Guilherme com cortesia -, se a vossa sublimidade acha que o Senhor
deve ser assim glorificado, a vossa abadia atingiu a maior excelência nesse contributo de
louvores.
- E assim é devido - disse o Abade. - Se ânforas e frascos de ouro e pequenos
almofarizes áureos era uso que servissem, por vontade de Deus ou ordem dos profetas,
para recolher o sangue de cabras ou de vitelos ou da novilha no templo de Salomão,
tantos mais vasos de ouro e pedras preciosas, e tudo aquilo que tem mais valor entre as
coisas criadas, devem ser usados com contínua reverência e plena devoção para acolher
o sangue de Cristo! Se por uma segunda criação a nossa substancia viesse a ser a mesma
dos querubins e dos serafins, seria ainda indigno o serviço que ela poderia prestar a uma
vítima tão inefável...
- Assim seja - disse.
- Muitos objetam que uma mente santamente inspirada, um coração puro, uma
intenção cheia de fé deveriam bastar para esta sagrada função. Nós somos os primeiros a
afirmar explicita e resolutamente que esta é a coisa essencial: mas estamos convencidos
que também se deve render a homenagem através do ornamento exterior da sagrada
alfaia, porque é sumamente justo e conveniente que nós sirvamos o nosso Salvador em
todas as coisas, integralmente, Ele que não se recusou a prover-nos a nós em todas as
coisas integralmente e sem exceções.
- Essa sempre foi a opinião dos grandes da vossa ordem – assentiu Guilherme -, e
recordo coisas belíssimas escritas sobre os ornamentos das igrejas pelo grandíssimo e
venerável abade Sugero.
- Assim é - disse o Abade. - Vede este crucifixo. Não está ainda completo... - Tomou-o
nas mãos com infinito amor e considerou-o com o rosto iluminado de beatitude. - Faltam
aqui algumas pérolas, e ainda não as encontrei da medida justa. Em tempos, Santo André
dirigiu-se à cruz da Gólgota dizendo que era adornada pelos membros de Cristo como de
pérolas. E de pérolas deve ser adornado este humilde simulacro daquele grande prodígio.
Mesmo se considerei oportuno mandar-lhe encastoar, neste ponto, sobre a própria
cabeça do Salvador, o mais belo diamante que jamais vistes. - Acariciou com mãos
devotas, com os seus longos dedos brancos, as partes mais preciosas do sagrado lenho, ou
melhor do sagrado marfim, que desta esplêndida matéria eram feitos os braços da cruz. -
Quando, enquanto me deleito com todas as belezas desta casa de Deus, o encanto das
pedras multicolores me arrancou aos cuidados externos, e uma digna meditação me
levou a refletir, transferindo aquilo que é material para aquilo que é imaterial, sobre a
diversidade das sagradas virtudes, então parece-me que me encontro, por assim dizer,
numa estranha região do universo que já não está de todo fechada na lama da terra nem
de todo liberta na pureza do céu. E parece-me que, pela graça de Deus, eu posso ser
transportado deste mundo inferior ao superior por via anagógica...
Falava, e tinha voltado o rosto para a nave. Um jorro de luz que penetrava do alto
estava, por uma particular benevolência do astro diurno, iluminando o seu rosto e as
mãos, que tinha abertas em forma de cruz, arrebatado como estava pelo seu próprio
fervor.
- Toda a criatura – disse -, seja ela visível ou invisível, é uma luz, levada ao ser pelo
pai das luzes. Este marfim, este ônix, mas também a pedra que nos circunda são uma
luz, porque eu percebo que são bons e belos, que existem segundo as próprias regras de
proporção, que diferem em gênero e espécie de todos os outros gêneros e espécies, que
são definidos pelo seu próprio número, que não se afastam da sua ordem, que procuram
o seu lugar específico conformemente à sua gravidade. E estas coisas são-me reveladas
tanto melhor quanto mais a matéria que eu olho for preciosa por natureza e quanto
melhor ela se fizer luz da potência criadora divina, na medida em que devo remontar à
sublimidade da causa, inacessível na sua plenitude, a partir da sublimidade do efeito;
quanto melhor não me falará da divina causalidade um efeito admirável como o ouro ou
o diamante, se já conseguem falar-me dela até mesmo o esterco e o inseto! E então,
quando nestas pedras percebo essas coisas superiores, a alma chora comovida de alegria,
e não por vaidade terrena ou amor das riquezas, mas por amor puríssimo da causa
primeira não causada.
- Na verdade, esta é a mais doce das teologias - disse Guilherme com perfeita
humildade.
E pensei que usava aquela insidiosa figura de pensamento a que os retóricos chamam
ironia; a qual se deve usar fazendo-a preceder sempre da pronunciatio, que constitui o
seu sinal e a sua justificação; coisa que Guilherme nunca fazia. Razão pela qual o Abade,
mais propenso ao uso das figuras do discurso, tomou Guilherme à letra e acrescentou,
ainda presa do seu místico arrebatamento:
- E a mais imediata das vias que nos põem em contato com o Altíssimo, teofania
material.
Guilherme tossiu educadamente:
- Eh... oh... - disse.
Assim fazia quando queria introduzir um outro argumento. Conseguiu fazê-lo com boa
graça, porque era seu costume - e creio que é típico dos homens da sua terra - iniciar
cada uma das suas intervenções com longos gemidos preliminares, como se encaminhar a
exposição de um pensamento completo lhe custasse um grande esforço da mente. Então,
já me tinha convencido, quantos mais gemidos antepunha à sua asserção tanto mais
estava seguro da bondade da proposição que ela exprimia.
- Eh... oh... - disse pois Guilherme. - Devemos falar do encontro e do debate sobre a
pobreza...
- A pobreza... - disse ainda absorto o Abade, como se lhe custasse a descer daquela
região do universo para onde o tinham arrebatado as suas gemas. - É verdade, o
encontro...
E começaram a discutir afincadamente sobre coisas que eu, em parte, já sabia e em
parte consegui compreender escutando o seu colóquio. Tratava-se, como já disse desde o
início desta minha crônica fiel, da dupla querela que opunha, por um lado, o imperador
ao papa, e, por outro, o papa aos franciscanos que, no capítulo da Perugia, embora com
muitos anos de atraso, tinham feito suas as teses dos espirituais sobre a pobreza de
Cristo; e do enredo que se tinha formado unindo os franciscanos ao império, enredo que
- de triângulo de oposições e de alianças - agora se tinha transformado num quadrado
pela intervenção, ainda muito obscura para mim, dos abades da ordem de São Bento.
Eu nunca atingi com clareza a razão por que os abades beneditinos tinham dado
proteção e refúgio aos franciscanos espirituais, ainda antes que a sua própria ordem
partilhasse de certo modo as suas opiniões. Porque, se os espirituais pregavam a
renúncia a todos os bens terrenos, os abades da minha ordem - tinha dito naquele mesmo
dia a luminosa confirmação disso - seguiam uma via não menos virtuosa mas de todo
oposta. Mas creio que os abades consideravam que um excessivo poder do papa
significava um poder dos bispos e das cidades, enquanto a minha ordem tinha conservado
intacto o seu poder através dos séculos, precisamente em luta com o clero secular e os
mercadores citadinos, colocando-se como direta medianeira entre o céu e a terra e
conselheira dos soberanos.
Tinha ouvido repetir muitas vezes a frase segundo a qual o povo de Deus se dividia em
pastores (ou seja, os clérigos), cães (ou seja, os guerreiros) e ovelhas do povo. Mas
aprendi em seguida que essa frase pode ser repetida de vários modos. Os beneditinos
haviam freqüentemente falado não de três ordens, mas de duas grandes divisões, uma
que dizia respeito à administração das coisas terrenas e outra que dizia respeito à
administração das coisas celestes. Pelo que dizia respeito às coisas terrenas, valia a
divisão entre clero, senhores laicos e povo, mas sobre esta tripartição dominava a
presença da ordo monachorum, ligação direta entre o povo de Deus e o céu, e os monges
não tinham nada que ver com os pastores seculares, que eram os padres e os bispos,
ignorantes e corruptos, propensos então aos interesses das cidades, onde as ovelhas
agora já não eram tanto os bons e fiéis camponeses mas sim os mercadores e os artesãos.
À ordem beneditina não desagradava que o governo dos simples fosse confiado aos
clérigos seculares, contando que o estabelecimento da regra definitiva desta relação
coubesse aos monges, em contato direto com a fonte de todo o poder terrestre, o
império, tal como estavam com a fonte de todo o poder celeste. Eis porque, creio,
muitos abades beneditinos, para restituir dignidade ao império contra o governo das
cidades (bispos e mercadores unidos), aceitaram também proteger os franciscanos
espirituais, cujas idéias não partilhavam, mas cuja presença lhes era cômoda, na medida
em que oferecia ao império bons silogismos contra o poder excessivo do papa.
Eram estas as razões, argüi, pelas quais Abone se dispunha agora a colaborar com
Guilherme, enviado do imperador, para servir de medianeiro entre a ordem franciscana e
a sede pontifícia. De fato, mesmo na violência da disputa que fazia periclitar tanto a
unidade da Igreja, Miguel de Cesena, várias vezes chamado a Avinhão pelo papa João,
tinha-se finalmente disposto a aceitar o convite, porque não queria que a sua ordem
ficasse definitivamente de relações cortadas com o pontífice. Como geral dos
franciscanos, queria ao mesmo tempo fazer triunfar as suas posições e obter o consenso
papal, também porque intuía que sem o consenso do papa não poderia permanecer
muito tempo à testa da ordem.
Mas muitos tinham-lhe feito observar que o papa o esperaria em França para lhe armar
uma cilada, acusá-lo de heresia e processá-lo. E por isso aconselhavam que a ida de
Miguel a Avinhão fosse precedida de algumas negociações. Marsílio tinha tido uma idéia
melhor: enviar com Miguel também um legado imperial que apresentasse ao papa o
ponto de vista dos detensores do imperador. Não tanto para convencer o velho Cahors
mas para reforçar a posição de Miguel, que, fazendo parte de uma delegação imperial,
não poderia cair tão facilmente como presa da vingança pontifícia.
Também esta idéia apresentava todavia numerosos inconvenientes e não era realizável
imediatamente. Daí viera a idéia de um encontro preliminar entre os membros da
delegação imperial e alguns enviados do papa, para provar as respectivas posições e
redigir os acordos para um encontro em que a segurança dos visitantes italianos fosse
garantida. Da organização deste primeiro encontro tinha sido encarregado precisamente
Guilherme de Baskerville, o qual deveria depois representar o ponto de vista dos teólogos
imperiais em Avinhão, se considerasse que a viagem era possível sem perigo. Empresa
pouco fácil, porque se supunha que o papa, que queria Miguel sozinho para o poder
reduzir mais facilmente à obediência, enviaria à Itália uma delegação instruída de modo
a fazer fracassar, na medida do possível, a viagem dos enviados imperiais à sua corte.
Guilherme tinha-se movimentado até então com grande habilidade. Depois de longas
consultas com vários abades beneditinos (eis a razão das muitas etapas da nossa viagem),
tinha escolhido a abadia onde estávamos, precisamente porque sabia que o Abade era
devotadíssimo ao império e todavia, pela sua grande habilidade diplomática, nada
malvisto na corte pontifícia. Território neutro, portanto, a abadia, onde os dois grupos
poderiam encontrar-se.
Mas as resistências do pontífice não acabavam ali. Ele sabia que, uma vez no terreno
da abadia, a sua delegação ficaria submetida à jurisdição do Abade: e, como dela
também fariam parte membros do clero secular, não aceitava esta cláusula, alegando
temores de uma cilada imperial. Assim, tinha posto a condição de que a incolumidade
dos seus enviados fosse confiada a uma companhia de archeiros do rei de França às
ordens de pessoa da sua confiança. Tinha ouvido vagamente Guilherme discorrer acerca
disto com um embaixador do papa em Bobbio: tinha-se tratado de definir a fórmula com
a qual designar os deveres desta companhia, ou seja, que coisa se entendia pela
salvaguarda da incolumidade dos legados pontifícios. Tinha-se finalmente aceitado uma
fórmula proposta pelos avinhonenses e que tinha parecido razoável: os homens armados
e quem os comandava teriam jurisdição «sobre todos aqueles que de qualquer modo
procurassem atentar contra a vida dos membros da delegação pontifícia e influenciar o
seu comportamento e juízo com atos violentos». Então, o pacto parecera inspirado por
puras preocupações formais. Agora, depois dos fatos recentes acontecidos na abadia, o
Abade estava inquieto e manifestou as suas dúvidas a Guilherme. Se a delegação
chegasse à abadia enquanto era ainda desconhecido o autor de dois delitos (no dia
seguinte as preocupações do Abade deveriam aumentar, porque os delitos seriam três),
dever-se-ia admitir que circulava dentro daquelas muralhas alguém capaz de influenciar
com atos violentos o juízo e o comportamento dos legados pontifícios.
De nada valia procurar ocultar os crimes que tinham sido cometidos, porque se ainda
acontecesse mais alguma coisa os legados pontifícios pensariam num conluio contra eles.
E portanto as soluções eram apenas duas. Ou Guilherme descobria o assassino antes da
chegada da delegação (e aqui o Abade olhou-o fixamente como a repreendê-lo
tacitamente por ainda não ter chegado a nenhuma conclusão sobre o assunto), ou então
era necessário avisar lealmente o representante do papa sobre aquilo que estava
acontecendo e pedir a sua colaboração para que a abadia fosse posta sob atenta
vigilância durante o curso dos trabalhos. Coisa que desagradava ao Abade, porque
significava renunciar a parte da sua soberania e pôr os seus próprios monges sob o
controle dos franceses. Mas não se podia arriscar. Guilherme e o Abade estavam ambos
contrariados pelo rumo que as coisas levavam, mas tinham poucas alternativas. Voltaram
a prometer, por isso, que tomariam uma decisão definitiva até ao dia seguinte.
Entretanto, não restava senão confiar na misericórdia divina e na sagacidade de
Guilherme.
- Farei o possível, Vossa Sublimidade - disse Guilherme. - Mas, por outro lado, não vejo
como a coisa possa comprometer deveras o encontro. Mesmo o representante pontifício
terá de compreender que há diferença entre a obra de um louco, ou de um sanguinário,
ou talvez apenas de uma alma perdida, e os graves problemas que homens probos virão
discutir.
- Acreditais? - perguntou o Abade, olhando fixamente para Guilherme. - Não esqueçais
que os avinhonenses sabem que vêm encontrar-se com menoritas, e portanto com
pessoas perigosamente próximas dos fraticelli e de outros ainda mais desvairados que os
fraticelli, de hereges perigosos que se mancharam com delitos - e aqui o Abade baixou a
voz – em confronto com os quais os fatos, aliás horríveis, que aqui aconteceram
empalidecem como névoa ao sol.
- Não se trata da mesma coisa! - exclamou Guilherme com vivacidade. - Não podeis
colocar no mesmo plano os menoritas do capítulo de Perugia e alguns bandos de hereges
que interpretaram mal a mensagem do Evangelho, transformando a luta contra as
riquezas numa série de vinganças privadas ou de loucuras sanguinárias...
- Ainda não há muitos anos que, a poucas milhas daqui, um desses bandos, como vós
lhe chamais, pôs a ferro e fogo as terras do bispo de Vercelli e as montanhas da província
de Novara - disse secamente o Abade.
- Falais de frei Dolcino e dos apostólicos...
- Dos pseudo-apóstolos - corrigiu o Abade.
E mais uma vez ouvia citar frei Dolcino e os pseudo-apóstolos, e mais uma vez em tom
circunspecto e quase com um leve aceno de terror.
- Dos pseudo-apóstolos - admitiu de boa vontade Guilherme. – Mas esses não tinham
nada a ver com os menoritas...
- Professavam a mesma reverência que eles por Joaquim de Calábria - instou o Abade -
, e podeis perguntá-lo ao vosso irmão Ubertino.
- Faço notar a Vossa Sublimidade que agora é irmão vosso – disse Guilherme com um
sorriso e uma espécie de reverência, como para cumprimentar o Abade pela aquisição
que a sua ordem tinha feito acolhendo um homem de tal reputação.
- Eu sei, eu sei - sorriu o Abade. - E vós sabeis com que fraterna solicitude a nossa
ordem acolheu os espirituais quando incorreram na ira do papa. Não falo só de Ubertino
mas também de muitos outros frades mais humildes, dos quais pouco se sabe, e dos quais
talvez se devesse saber mais. Porque aconteceu que nós acolhemos trânsfugas que se
apresentaram com o saio dos menoritas, e depois vim a saber que as várias vicissitudes
da sua vida os tinham levado, por um certo tempo, bastante perto dos dolcinianos...
- Mesmo aqui? - perguntou Guilherme.
- Mesmo aqui. Estou a revelar-vos alguma coisa de que na verdade sei muito pouco, e,
em todo o caso, não o bastante para formular acusações. Mas, visto que estais indagando
sobre a vida desta abadia, é bom que também vós conheçais estas coisas. Dir-vos-ei
então que suspeito, reparai, suspeito, com base em coisas que tenho ouvido ou
adivinhado, que houve um momento muito obscuro na vida do nosso despenseiro, que
precisamente chegou aqui há anos seguindo o êxodo dos menoritas.
- O despenseiro? Remígio de Varagine um dolciano? Parece-me o ser mais manso e em
todo o caso menos preocupado com a dona pobreza que eu jamais vi... - disse
Guilherme.
- E de fato não posso dizer nada dele, e valho-me dos seus bons serviços, pelos quais
toda a comunidade lhe está reconhecida. Mas digo isto para vos fazer compreender como
é fácil encontrar conexões entre um frade e um fraticello.
- Mais uma vez a vossa magnitude é injusta, se assim posso dizer - interveio
Guilherme. - Estávamos a falar dos dolcinianos, não dos fraticelli. Dos quais muito se
poderá dizer, sem sequer saber de quem se fala, porque deles há muitas espécies, mas
não que sejam sanguinários. Poder-se-á no máximo censurar-lhes que ponham em prática
sem demasiado bom senso coisas que os espirituais pregaram com maior medida e
animados de verdadeiro amor de Deus, e nisto concordo que existam fronteiras bastante
tênues entre uns e outros...
- Mas os fraticelli são hereges! - interrompeu secamente o Abade. - Não se limitam a
defender a pobreza de Cristo e dos apóstolos, doutrina que, mesmo que não possa
compartilhá-la, pode ser oposta utilmente à arrogância avinhonense. Os fraticelli
extraem dessa doutrina um silogismo prático, inferem um direito à revolta, ao saque, à
perversão dos costumes.
- Mas que fraticelli?
- Todos em geral. Sabeis que se mancharam com delitos abomináveis, que não
reconhecem o matrimônio, que negam o inferno, que cometem sodomia, que abraçam a
heresia bogomila do ordo Bulgarie e do ordo Drygonthie...
- Por favor - disse Guilherme -, não confundais coisas diversas! Vós falais como se
fraticelli, patarinos, valdenses, cátaros e esses bogomilos da Bulgária e hereges da
Dragovitsa fossem todos a mesma coisa!
- São - disse secamente o Abade -, são porque são hereges e são porque põem em risco
a própria ordem do mundo civil, até a ordem do império que vós me pareceis auspiciar.
Há mais de cem anos os sequazes de Arnaldo de Brescia incendiaram as casas dos nobres
e dos cardeais, e foram estes os frutos da heresia lombarda dos patarinos. Sei de
histórias terríveis sobre estes hereges, e li-as em Cesário de Eisterbach. Em Verona, o
canônico de São Gedeão, Everardo, notou uma vez que aquele que o hospedava todas as
noites saía de casa com a mulher e a filha. Interrogou não sei qual dos três para saber
onde iam e que faziam. «Vem e verás», foi a resposta, e ele seguiu-os até uma casa
subterrânea, muito ampla, onde estavam reunidas pessoas de ambos os sexos. Um
heresiarca, enquanto todos estavam em silêncio, fez um discurso cheio de blasfêmias,
com o propósito de corromper a sua vida e os seus costumes. Depois, apagada a vela,
cada um se lançou sobre a sua vizinha, sem fazer diferença entre a esposa legítima e a
mulher solteira, entre viúva e virgem, entre senhora e serva, nem (o que era pior, o
Senhor me perdoe enquanto digo coisas tão horríveis) entre filha e irmã. Everardo, vendo
tudo isto, como jovem leviano e luxurioso que era, fingindo-se um discípulo, aproximouse
não sei se da filha do seu hospedeiro ou de uma outra rapariga e, logo que apagaram a
vela, pecou com ela. Infelizmente fez isto, por mais de um ano, e no fim o mestre disse
que aquele jovem freqüentava com tanto proveito as suas sessões que em breve estaria
em condições de instruir os neófitos. Nessa altura, Everardo compreendeu o abismo em
que tinha caído e conseguiu fugir à sua sedução, dizendo que tinha freqüentado aquela
casa não porque fosse atraído pela heresia mas porque era atraído pelas raparigas.
Aqueles expulsaram-no. Mas esta, bem vedes, é a lei e a vida dos hereges, patarinos,
cátaros, joaquimitas, espirituais de qualquer seita. Nem há de que se admirar: não
crêem na ressurreição da carne, nem no inferno como castigo dos malvados, e
consideram que podem fazer impunemente seja o que for. Eles, de fato, dizem-se
catharoi, isto é, puros.
- Abbone - disse Guilherme -, vós viveis isolado nesta esplêndida e santa abadia, longe
das malícias do mundo. A vida nas cidades é muito mais complexa do que julgais, e
existem gradações, bem sabeis, também no erro e no mal. Lot foi muito menos pecador
que os seus concidadãos, que conceberam pensamentos imundos até sobre os anjos
enviados por Deus, e a traição de Pedro não foi nada comparada com a traição de Judas;
de fato, um foi perdoado e o outro não. Não podeis considerar patarinos e cátaros a
mesma coisa. Os patarinos são um movimento de reforma dos costumes no interior das
leis de Santa Madre Igreja. Eles sempre quiseram melhorar o modo de vida dos
eclesiásticos.
- Defendendo que não se deviam receber os sacramentos dos sacerdotes impuros...
- E erraram, mas foi o seu único erro de doutrina. Nunca se propuseram alterar a lei
de Deus...
- Mas a pregação patarina de Arnaldo de Brescia, em Roma, há mais de duzentos anos,
impeliu a turba dos rústicos a incendiar as casas dos nobres e dos cardeais.
- Arnaldo procurou arrastar para o seu movimento de reforma os magistrados da
cidade. Aqueles não o seguiram, mas encontrou consenso entre as turbas dos pobres e
dos deserdados. Não foi responsável pela energia e pela raiva com que aqueles
responderam aos seus apelos por uma cidade menos corrupta.
- A cidade é sempre corrupta.
- A cidade é o lugar onde hoje vive o povo de Deus, de que vós, de que nós somos os
pastores. É o lugar do escândalo, onde o prelado rico prega a virtude ao povo pobre e
esfomeado. As desordens dos patarinos nascem desta situação. São tristes, não são
incompreensíveis. Os cátaros são outra coisa. É uma heresia oriental, fora da doutrina da
Igreja. Eu não sei se verdadeiramente cometem ou cometeram os delitos que lhes são
imputados. Sei que recusam o matrimônio, que negam o inferno. Pergunto-me se muitos
dos atos que não cometeram não lhes foram atribuídos apenas em virtude das idéias
(decerto nefandas) que defenderam.
- E vós dizeis-me que os cátaros não se misturaram aos patarinos, e que ambos não são
mais que duas das faces, inumeráveis, da mesma manifestação demoníaca?
- Digo que muitas destas heresias, independentemente das doutrinas que defendem,
obtêm sucesso entre os simples, porque lhes sugerem a possibilidade de uma vida
diversa. Digo que, freqüentemente, os simples não sabem muito de doutrina. Digo que
aconteceu muitas vezes que turbas de simples confundiram a pregação cátara com a dos
patarinos, e esta em geral com a dos espirituais. A vida dos simples, Abbone, não é
iluminada pela sapiência e pelo sentido vigilante das distinções que nos faz sábios. É
obcecada pela doença, pela pobreza, feita balbuciante pela ignorância.
Freqüentemente, para muitos deles, a adesão a um grupo herético é apenas um modo
como qualquer outro de gritar o seu desespero. Pode-se queimar a casa de um cardeal
seja porque se quer aperfeiçoar a vida do clero seja porque se considera que o inferno,
que ele prega, não existe. Isso faz-se sempre porque existe o inferno terreno, em que
vive o rebanho de que nós somos pastores. Mas vós sabeis muito bem que, como eles não
distinguem entre igreja búlgara e sequazes do padre Liprando, freqüentemente cambem
as autoridades imperiais e os seus defensores não distinguiram entre espirituais e
hereges. Não raro, grupos gibelinos, para baterem o seu adversário, defenderam entre o
povo tendências cátaras. Na minha opinião fizeram mal. Mas aquilo que agora sei é que
os mesmos grupos, muitas vezes, para se desembaraçarem destes inquietos e perigosos
adversários demasiado «simples», atribuíram a uns as heresias dos outros e empurraramnos
todos para a fogueira. Eu vi juro-vos Abbone, vi com os meus olhos, homens de vida
virtuosa, sinceramente partidários da pobreza e da castidade, mas inimigos dos bispos,
que os bispos entregaram ao braço secular, quer ele estivesse ao serviço do império ou
das cidades livres, acusando-os de promiscuidade sexual, sodomia, práticas nefandas...
de que talvez outros, mas não eles, se tinham tornado culpados. Os simples são carne
para o talho, para usar quando servem para pôr em crise o poder adverso e para
sacrificar quando já não servem.
- Então - disse o Abade com evidente malícia -, frei Dolcino e os seus desatinados, e
Gerardo Segalelli e aqueles torpes assassinos foram cátaros malvados ou fraticelli
virtuosos, bogomilos sodomitas ou patarinos reformadores? Quereis dizer-me então,
Guilherme, vós que sabeis tudo dos hereges, a ponto de parecerdes um deles onde está a
verdade?
- Em parte nenhuma, por vezes - disse com tristeza Guilherme.
- Vedes que até vós já não sabeis distinguir entre herege e herege? Eu tenho pelo
menos uma regra. Sei que hereges são aqueles que põem em risco a ordem com que se
rege o povo de Deus. E defendo o império porque ele me garante esta ordem. Combato o
papa porque está entregando o poder espiritual aos bispos das cidades, que se aliam aos
mercadores e às corporações e não saberão manter esta ordem. Nós mantivemo-la
durante séculos. E, quanto aos hereges, também tenho uma regra, e ela resume-se na
resposta que deu Arnaldo Amalrico, abade de Citeaux, a quem lhe perguntava que fazer
dos citadinos de Béziers, cidade suspeita de heresia: «Matai-os todos, Deus reconhecerá
os seus.»
Guilherme baixou os olhos e ficou um certo tempo em silêncio. Depois disse:
- A cidade de Béziers foi tomada, e os nossos não olharam nem à dignidade nem ao
sexo nem à idade, e quase vinte mil homens morreram ao fio da espada. Feito assim o
massacre, a cidade foi saqueada e queimada.
- Mesmo uma guerra santa é uma guerra.
- Mesmo uma guerra santa é uma guerra. Por isso talvez não devesse haver guerras
santas. Mas que digo, estou aqui a defender os direitos de Luís, que no entanto está
pondo a ferro e fogo a Itália. Também eu me encontro preso num jogo de estranhas
alianças. Estranha a aliança dos espirituais com o império; estranha a do império com
Marsílio, que pede a soberania para o povo; e estranha a de nós os dois, tão diversos por
propósitos e tradição. Mas temos duas tarefas em comum. O êxito do encontro e a
descoberta de um assassino. Esforcemo-nos por proceder em paz.
O Abade abriu os braços.
- Dai-me o beijo da paz, frade Guilherme. Com um homem do vosso saber podemos
discutir longamente sobre sutis questões de teologia e de moral. Mas não devemos ceder
ao gosto da disputa como fazem os mestres de Paris. E verdade, temos uma tarefa
importante que nos espera, e devemos proceder de comum acordo. Mas falei destas
coisas porque creio que há uma relação, compreendeis?, uma relação possível, ou seja,
que outros podem encontrar uma ligação entre os delitos que aqui aconteceram e as
teses dos vossos irmãos. Por isso vos avisei, por isso devemos prevenir qualquer suspeita
ou insinuação por parte dos avinhonenses.
- Não deverei supor que a vossa Sublimidade me sugeriu também uma pista para a
minha investigação? Considerais que na origem dos eventos recentes possa existir alguma
obscura história que remonta ao passado herético de algum monge?
O Abade calou-se por alguns instantes, olhando para Guilherme sem que nenhuma
expressão transparecesse do seu rosto. Depois disse:
- Neste triste caso, o inquisidor sois vós. A vós compete ser suspeitoso e até arriscar
uma suspeita injusta. Eu sou aqui apenas o pai comum. E, acrescento, se soubesse que o
passado de um dos meus monges se presta a suspeitas verídicas, procederia eu já para
arrancar a planta má. Aquilo que sei, sabei-lo. Aquilo que não sei, é justo que venha à
luz graças à vossa sagacidade. Mas, em todo o caso, informai-vos sempre, e em primeiro
lugar a mim.
Saudou e saiu da igreja.
- A história torna-se mais complicada, caro Adso – disse Guilherme de rosto sombrio. -
Nós corremos atrás de um manuscrito, interessamo-nos pelas diatribes de alguns monges
demasiado curiosos e pelo caso de outros monges demasiado luxuriosos, e eis que se
perfila cada vez com mais insistência também uma outra pista, totalmente diversa. O
despenseiro, portanto... E com o despenseiro veio para aqui aquele estranho animal do
Salvador... Mas agora temos de ir repousar, porque projetamos ficar acordados durante a
noite.
- Mas então projetais ainda penetrar na biblioteca esta noite? Não abandonais essa
primeira pista?
- De modo nenhum. E, depois, quem disse que se trata de duas pistas diversas? Enfim,
esta história do despenseiro poderia ser apenas uma suspeita do Abade.
Dirigiu-se para o albergue dos peregrinos, chegando à soleira parou e falou como se
continuasse o discurso anterior.
- No fundo, o Abade pediu-me que indagasse sobre a morte de Adelmo quando pensava
que acontecia algo de suspeito entre os seus jovens monges. Mas agora a morte de
Venancio faz nascer outras suspeitas, talvez o Abade tenha intuído que a chave do
mistério está na biblioteca, e sobre isso não quer que eu indague. E eis que agora me
oferece a pista do despenseiro para desviar a minha atenção do Edifício...
- Mas porque é que não havia de querer que...
- Não faças demasiadas perguntas. O Abade disse-me desde o início que na biblioteca
não se toca. Lá terá as suas razões. Pode ser que também ele esteja envolvido nalgum
caso que ele não pensava que pudesse ter relação com a morte de Adelmo, e agora dá-se
conta que o escândalo se alarga e pode envolvê-lo também a ele. E não quer que se
descubra a verdade, ou pelo menos não quer que a descubra eu...
- Mas então vivemos num lugar abandonado por Deus - disse desconsolado.
- Encontraste-os, esses lugares onde Deus se sentiria à vontade? - perguntou-me
Guilherme, olhando-me do alto da sua estatura.
Depois mandou-me repousar. Enquanto me deitava concluí que meu pai não deveria
ter-me mandado pelo mundo, que era mais complicado do que eu pensava. Estava a
aprender coisas de mais.
- Salva me ab ore leonis - rezei, adormecendo.
SEGUNDO DIA
DEPOIS DE VÉSPERAS
Onde, apesar do capítulo ser breve, o velho Alinardo diz coisas bastante interessantes
sobre o labirinto e sobre o modo de lá entrar.
Acordei pouco antes de soar a hora da refeição da noite. Sentia-me entorpecido pelo
sono, porque o sono diurno é como o pecado da carne: quanto mais se teve mais se
queria ter, e no entanto sentimo-nos infelizes, saciados e insaciados ao mesmo tempo.
Guilherme não estava na sua cela, evidentemente tinha-se levantado muito antes.
Encontrei-o, depois de uma breve deambulação, quando saía do Edifício. Disse-me que
tinha estado no scriptorium, folheando o catálogo e observando o trabalho dos monges,
na tentativa de se aproximar da mesa de Venancio para retomar a inspeção. Mas que,
por um motivo ou por outro, todos pareciam apostados em não o deixar remexer
naqueles papéis. Primeiro aproximara-se dele Malaquias, para lhe mostrar algumas
miniaturas de valor. Depois Bêncio tinha-o mantido ocupado com pretextos de nenhum
valor. Depois ainda, quando se tinha inclinado para retomar a sua inspeção, Berengário
tinha-se posto a andar à sua volta, oferecendo a sua colaboração.
Enfim Malaquias, vendo que o meu mestre parecia seriamente apostado em ocupar-se
das coisas de Venancio, tinha-lhe dito clara e nitidamente que talvez, antes de rebuscar
entre os papéis do morto, fosse melhor obter a autorização do Abade; que ele próprio,
apesar de ser o bibliotecário, se tinha abstido disso, por respeito e disciplina; e que, em
todo o caso, ninguém se tinha aproximado daquela mesa, como Guilherme lhe tinha
pedido, e que ninguém se aproximaria dela enquanto o Abade não interviesse. Guilherme
tinha-lhe feito notar que o Abade lhe tinha dado licença para indagar por toda a abadia;
Malaquias tinha perguntado, não sem malícia, se o Abade também lhe tinha dado licença
para se mover livremente pelo scriptorium ou, não o quisesse Deus, pela biblioteca.
Guilherme tinha compreendido que não era o caso de se empenhar numa prova de força
com Malaquias, embora todos aqueles movimentos e aqueles temores em torno dos
papéis de Venancio lhe tivessem naturalmente fortificado o desejo de tomar
conhecimento deles. Mas a sua determinação de voltar lá de noite, ainda não sabia
como, era tal que tinha decidido não criar incidentes. Alimentava, porém, evidentes
pensamentos de desforra que, se não fossem inspirados, como eram, pela sede de
verdade, teriam parecido muito obstinados e talvez reprováveis.
Antes de entrar no refeitório, demos ainda um pequeno passeio no claustro, para
dissipar os fumos do sono ao ar frio da noite. Por ali giravam ainda alguns monges em
meditação. No jardim que dava para o claustro distinguimos o velhíssimo Alinardo de
Grottaferrata, que agora, imbecil de corpo, passava grande parte do seu dia entre as
plantas, quando não estava a rezar na igreja. Parecia não sentir frio e estava sentado ao
longo da parte externa das arcadas.
Guilherme dirigiu-lhe algumas palavras de saudação, e o velho pareceu alegre por
alguém conversar com ele.
- Dia sereno - disse Guilherme.
- Pela graça de Deus - respondeu o velho.
- Sereno no céu, mas escuro na terra. Conhecíeis bem Venancio?
- Que Venancio? - disse o velho. Depois uma luz se acendeu nos seus olhos. - Ah, o
rapaz morto. A besta gira pela abadia...
- Qual besta?
- A grande besta que vem do mar... Sete cabeças e dez cornos, e nos cornos dez
diademas, e nas cabeças três nomes de blasfêmia. A besta que parece um leopardo, com
pés como os do urso e a boca como a do leão... Eu vi-a.
- Onde a vistes? Na biblioteca?
- Biblioteca? Porquê? Há anos que já não vou ao scriptorium e nunca vi a biblioteca.
Ninguém vai à biblioteca. Eu conheci aqueles que subiam à biblioteca...
- Quem, Malaquias, Berengário?
- Oh, não... - O velho riu com voz rouca. - Antes. O bibliotecário que veio antes de
Malaquias, há muitos anos...
- Quem era?
- Não me recordo, morreu quando Malaquias era ainda jovem. E aquele que veio antes
do mestre de Malaquias e era ajudante-bibliotecário jovem quando eu era jovem... Mas
na biblioteca eu nunca pus os pés. Labirinto...
- A biblioteca é um labirinto?
- Hunc mundum tipice laberinthus denotat Ule - recitou absorto o velho. - Intranti
largus, redeunti sed nimis artus. A biblioteca é um grande labirinto, sinal do labirinto do
mundo. Entras e não sabes se sairás. Não se devem violar as colunas de Hércules...
- Então não sabeis como se entra na biblioteca quando as portas do Edifício estão
fechadas?
- Oh, sim - riu o velho -, muitos o sabem. Passas pelo ossário. Podes passar pelo
ossário, mas não queres passar pelo ossário. Os monges mortos velam.
- São esses, os monges mortos, que velam, não aqueles que giram de noite com uma
candeia pela biblioteca?
- Com uma candeia? - O velho pareceu espantado. - Nunca ouvi essa história. Os
monges mortos estão no ossário, os ossos descem pouco a pouco do cemitério e juntamse
ali a guardar a passagem. Nunca viste o altar da capela que leva ao ossário?
- E a terceira à esquerda depois do transepto, não é?
- A terceira? Talvez. É a da pedra do altar esculpida com mil esqueletos. O quarto
crânio à direita, carregas nos olhos... e estás no ossário . Mas não vais lá, eu nunca lá
fui. O Abade não quer.
- E a besta, onde a viste a besta?
- A besta? Ah, o Anticristo... Ele está para vir, o milênio foi cumprido, esperamo-lo...
- Mas o milênio foi cumprido há trezentos anos, e então não veio...
- O Anticristo não vem depois de se terem cumprido os mil anos. Cumpridos os mil
anos, inicia-se o reino dos justos, depois vem o Anticristo para confundir os justos, e
depois será a batalha final...
- Mas os justos reinarão por mil anos - disse Guilherme – Ou reinaram desde a morte de
Cristo até ao fim do primeiro milênio, e portanto é então que devia vir o Anticristo, ou
ainda não reinaram, e o Anticristo está longe.
- O milênio não se calcula a partir da morte de Cristo mas a partir da doação de
Constantino. Cumprem-se agora os mil anos...
- E então acaba o reino dos justos?
- Não sei, já não sei... Estou cansado. O cálculo é difícil. Beato de Liébana fê-lo,
pergunta a Jorge, ele é jovem, recorda-se bem... Mas os tempos estão maduros. Não
ouviste as sete trombetas?
- Porquê as sete trombetas?
- Não ouviste como morreu o outro rapaz, o miniaturista? O primeiro anjo soprou a
primeira trombeta e dela veio granizo e fogo misturado com sangue. E o segundo anjo
soprou a segunda trombeta e a terça parte do mar tornou-se sangue... Não morreu no
mar de sangue o segundo rapaz? Atenção à terceira trombeta! Morrerá a terça parte das
criaturas vivendo no mar. Deus castiga-nos. O mundo todo em torno da abadia está
infestado pela heresia, disseram-me que está no trono de Roma um papa perverso que
usa hóstias para práticas de necromancia e com elas nutre as suas moréias... E entre nós
alguém violou o interdito, quebrou os selos do labirinto...
- Quem vo-lo disse?
- Ouvi-o, todos murmuram que o pecado entrou na abadia. Tens grãos-de-bico?
A pergunta, dirigida a mim, surpreendeu-me.
- Não, não tenho grãos-de-bico - disse confuso.
- Para a próxima traz-me grãos-de-bico. Mantenho-os na boca, vês a minha pobre boca
sem dentes, até que amoleçam todos. Estimulam a saliva, aqua fons vitae. Amanhã
trazes-me grãos-de-bico?
- Amanhã trago-vos grãos-de-bico - disse-lhe.
Mas ele tinha adormecido. Deixamo-lo para ir para o refeitório.
- Que pensais do que disse? - perguntei ao meu mestre.
- Ele goza da divina loucura dos centenários. Difícil distinguir o verdadeiro do falso nas
suas palavras. Mas creio que nos disse alguma coisa sobre o modo de penetrar no
Edifício. Vi a capela de onde saiu Malaquias a noite passada. Ali há na verdade um altar
de pedra, e na base estão esculpidos crânios, esta noite tentaremos.
SEGUNDO DIA
COMPLETAS
Onde se entra no Edifício, se descobre um visitante misterioso, se encontra uma
mensagem secreta com sinais de necromante, e desaparece, mal é encontrado, um livro
que depois será procurado por muitos outros capítulos sem olvidar o furto das preciosas
lentes de Guilherme.
A ceia foi triste e silenciosa. Tinham passado pouco mais de doze horas desde que se
tinha descoberto o cadáver de Venancio. Todos olhavam de soslaio para o seu lugar vazio
à mesa. Quando foi a hora de completas, o cortejo que se dirigiu ao coro parecia um
desfile fúnebre. Participamos no ofício ficando na nave e não perdendo de vista a
terceira capela. A luz era pouca, e quando vimos Malaquias emergir do escuro para
atingir a sua estala não pudemos compreender de onde saia exatamente. Pelo sim pelo
não deslizamos para a sombra, escondendo-nos na nave lateral, para que ninguém visse
que ficávamos ali, terminado o ofício. Eu tinha no meu escapulário a candeia que tinha
subtraído na cozinha durante a ceia. Acendê-la-iamos depois na grande trípode de
bronze que ficava acesa toda a noite. Tinha um pavio novo, e muito azeite. Teríamos luz
para muito tempo.
Estava demasiado excitado pelo que nos aprestamos a fazer para prestar atenção ao
rito, que acabou sem que quase me apercebesse. Os monges baixaram os capuchos sobre
o rosto e saíram em lenta fila para se dirigirem às suas celas. A igreja ficou deserta,
iluminada pelo clarão da trípode.
- Vamos - disse Guilherme. - Ao trabalho.
Aproximamo-nos da terceira capela. A base do altar era verdadeiramente semelhante
a um ossário ; uma série de crânios de órbitas vazias e profundas incutiam temor aos que
olhavam para eles, pousados como apareciam no admirável relevo sobre um amontoado
de tíbias. Guilherme repetiu em voz baixa as palavras que ouvira a Alinardo (o quarto
crânio à direita, carregas nos olhos). Introduziu os dedos nas órbitas daquele rosto
descarnado, e de súbito ouvimos como um rangido rouco. O altar moveu-se, girando
sobre um eixo oculto, deixando entrever uma abertura escura. Iluminando-a com a
minha candeia levantada, distinguimos uns degraus úmidos. Decidimos descê-los, depois
de termos discutido se devíamos voltar a fechar a passagem atrás de nós. Era melhor
não, disse Guilherme, não sabíamos se depois poderíamos reabri-la. E, quanto ao risco de
sermos descobertos, se alguém chegasse àquela hora a manobrar o mesmo mecanismo
era porque sabia como entrar e não ficaria preso por uma passagem fechada.
Descemos mais de uma dezena de degraus e penetramos num corredor em cujos lados
se abriam nichos horizontais, como mais tarde me aconteceu ver em muitas catacumbas.
Mas era a primeira vez que penetrava num ossário , e tive muito medo. Os ossos dos
monges tinham sido recolhidos ali no curso dos séculos, exumados da terra e amontoados
nos nichos sem tentarem recompor a figura dos seus corpos. Porém, alguns nichos tinham
apenas ossos miúdos outros apenas crânios, bem dispostos quase em pirâmide, de modo a
não se precipitarem uns sobre os outros, e era espetáculo deveras aterrorizador,
especialmente com o jogo de sombras e de luzes que a candeia criava ao longo do nosso
caminho. Num nicho vi apenas mãos, muitas mãos, agora irremediavelmente
entrelaçadas umas nas outras, num emaranhado de dedos mortos. Soltei um grito,
naquele lugar de mortos, sentindo por um momento a impressão que ali houvesse alguma
coisa de vivo, um chio, e um rápido movimento na sombra.
- Ratos - tranqüilizou-me Guilherme.
- Que fazem os ratos aqui?
- Passam, como nós, porque o ossário conduz ao Edifício, e portanto à cozinha. E aos
bons livros da biblioteca. E agora compreendes porque é que Malaquias tem um rosto tão
austero. O seu ofício obriga-o a passar por aqui duas vezes por dia, à noite e de manhã.
Ele, sim, não tem de que se rir.
- Mas porque é que o Evangelho nunca diz que Cristo ria? - perguntei sem uma boa
razão. - É deveras como diz Jorge?
- Foram legiões os que se perguntaram se Cristo riu. A coisa não me interessa
grandemente. Creio que nunca riu, porque, onisciente como devia ser o filho de Deus,
sabia que coisa faríamos nós, os cristãos. Mas eis que chegamos.
E de fato, graças a Deus, o corredor tinha acabado; começava uma nova série de
degraus e, depois de percorridos estes, não tivemos senão que empurrar uma porta de
madeira rija reforçada de ferro e encontramo-nos por trás da chaminé da cozinha,
precisamente debaixo da escada de caracol que levava ao scriptorium.
Enquanto subíamos, pareceu-nos ouvir um ruído que vinha de cima.
Ficamos um instante em silêncio, depois disse.
- E impossível. Não entrou ninguém antes de nós...
- Admitindo que esta fosse a única via de acesso ao Edifício. Nos séculos passados, isto
era uma fortaleza, e deve ter mais acessos secretos do que nós imaginamos. Vamos subir
devagar. Mas temos pouco por onde escolher. Se apagamos a candeia não sabemos por
onde vamos, se a mantemos acesa damos o alarme a quem se encontra em cima. A única
esperança é que, se está lá alguém, tenha mais medo do que nós.
Chegamos ao scriptorium, emergindo do torreão meridional. A mesa de Venancio
estava precisamente do lado oposto. Movendo-nos, não iluminávamos mais que algumas
braças de parede de cada vez, porque a sala era demasiado ampla. Esperamos que
ninguém estivesse no pátio e visse a luz transparecer pelas janelas. A mesa parecia em
ordem, mas Guilherme inclinou-se logo a examinar as folhas da estante por baixo e teve
uma exclamação de desapontamento.
- Falta alguma coisa? - perguntei.
- Hoje vi aqui dois livros, e um era em grego. E é este último que falta. Alguém o
tirou, e a toda a pressa, porque um pergaminho caiu aqui ao chão.
- Mas a mesa estava guardada...
- Decerto. Talvez alguém lhe tenha posto as mãos só há pouco. Talvez esteja ainda
aqui. - Voltou-se para as sombras, e a sua voz ressoou entre as colunas: - Se estás aqui,
tem cuidado!
Pareceu-me uma boa idéia: como Guilherme já tinha dito, é sempre melhor que quem
nos incute medo tenha mais medo que nós.
Guilherme pousou a folha que tinha encontrado aos pés da mesa e aproximou o rosto.
Pediu-me que lhe desse luz. Aproximei a candeia e distingui uma página em branco na
primeira metade, e na segunda coberta de caracteres pequeníssimos cuja origem a custo
reconheci.
- É grego? - perguntei.
- Sim, mas não percebo bem. - Tirou do saio as suas lentes e pô-las solidamente em
cima do nariz, depois aproximou ainda mais o rosto. - É grego, escrito muito pequeno, e
todavia desordenadamente. Mesmo com as lentes me custa a ler, seria precisa mais luz.
Aproxima-te...
Tinha pegado na folha segurando-a diante do rosto, e eu, estupidamente, em vez de
lhe passar por trás, mantendo a candeia alta sobre a sua cabeça, pus-me precisamente
diante dele. Ele pediu-me para me desviar para o lado, e, ao fazê-lo, rocei com a chama
o verso da folha. Guilherme afastou-me com um empurrão, perguntando-me se lhe
queria queimar o manuscrito, depois soltou uma exclamação. Vi claramente que na parte
superior da página tinham aparecido alguns sinais imprecisos de cor amarelo-escura.
Guilherme mandou-me dar-lhe a candeia, e moveu-a por trás da folha, mantendo a
chama bastante próxima da superfície do pergaminho, de modo a aquecê-lo sem lhe
tocar. Lentamente, como se uma mão invisível estivesse traçando «Mane, Tekel, Fares»,
vi desenhar-se, sobre o verso branco da folha, um a um, à medida que Guilherme movia
a candeia e enquanto o fumo que provinha da ponta da chama enegrecia o resto, traços
que não se assemelhavam aos de nenhum alfabeto, a não ser ao dos necromantes.
- Fantástico! - disse Guilherme. - Cada vez mais interessante! - Olhou em seu redor: -
Mas será melhor não expor esta descoberta às insídias do nosso hóspede misterioso, se
ainda está aqui... - Tirou as lentes e pousou-as sobre a mesa, depois enrolou com
cuidado o pergaminho e escondeu-o no saio. Ainda aturdido por aquela seqüência de
eventos pelo menos miraculosos, estava para lhe pedir outras explicações, quando um
ruído imprevisto e seco nos distraiu. Provinha dos pés da escada oriental que levava à
biblioteca. - O nosso homem está ali, apanha-o! - gritou Guilherme, e lançamo-nos
naquela direção, ele mais rápido, eu mais lento, porque levava a candeia. Ouvi um
estrondo de pessoa que tropeça e cai, acorri, encontrei Guilherme aos pés da escada
observando um pesado volume de capa reforçada por brochas metálicas. No mesmo
instante, ouvimos um outro barulho da direção de onde tínhamos vindo. - Estúpido que
eu sou! – gritou Guilherme. - Depressa, à mesa de Venancio!
Compreendi: alguém que estava na sombra, por trás de nós, tinha atirado o volume
para nos atrair para longe.
Uma vez mais Guilherme foi mais rápido que eu e alcançou a mesa. Eu, ao segui-lo,
entrevi entre as colunas uma sombra que fugia, enfiando pela escada do torreão
ocidental.
Possuído de ardor guerreiro, meti a candeia na mão de Guilherme e atirei-me às cegas
pela escada por onde tinha descido o fugitivo. Naquele momento sentia-me como um
soldado de Cristo em luta com todas as legiões infernais e ardia com o desejo de pôr as
mãos sobre o desconhecido para o entregar ao meu mestre. Quase rolei pela escada de
caracol abaixo, tropecei nas abas do meu hábito (foi aquele o único momento da minha
vida, juro, que lamentei ter entrado numa ordem monástica!), mas naquele mesmo
instante, e foi pensamento de um relâmpago, consolei-me à idéia de que também o meu
adversário devia sofrer do mesmo embaraço. E, além disso, se tinha tirado o livro, devia
ter as mãos ocupadas. Precipitei-me quase na cozinha por trás do forno do pão e, à luz
da noite estrelada que iluminava palidamente o vasto átrio, vi a sombra que perseguia e
que enfiava pela porta do refeitório, puxando-a atrás de si. Precipitei-me para ela,
custou-me uns segundos a abri-la, entrei, olhei em redor e já não vi ninguém. A porta
que dava para o exterior estava ainda trancada. Voltei-me. Sombra e silêncio.
Distingui
um clarão que vinha da cozinha e encostei-me a uma parede. Na soleira da passagem
entre as duas salas apareceu uma figura iluminada por uma candeia. Gritei. Era
Guilherme.
- Já não está ninguém, como eu previa. Aquele não saiu por uma porta. Não enfiou
pela passagem do ossário ?
- Não, saiu daqui. Mas não sei por onde!
- Eu disse-to, há outras passagens, e é inútil procurá-las. Provavelmente, o nosso
homem está emergindo de novo nalgum sítio longe daqui. E, com ele, as minhas lentes.
- As vossas lentes?
- Precisamente. O nosso amigo não pôde tirar-me a folha mas, com grande presença
de espírito, ao passar pela mesa agarrou as minhas lentes.
- E porquê?
- Porque não é parvo. Ouviu-lhe falar destas notas, compreendeu que eram
importantes, pensou que sem as lentes não sou capaz de as decifrar e tem como certo
que não me fiarei em ninguém a ninguém. De fato, agora é como se as não tivesse.
- Mas como sabia da existência das vossas lentes?
- Vamos! À parte o fato de ontem termos falado delas com o mestre vidreiro, esta
manhã no scriptorium pousei-as para rebuscar entre os papéis de Venancio. Por isso, há
muitas pessoas que poderiam saber como aqueles objetos eram preciosos. E de fato
poderia mesmo ler um manuscrito normal, mas este não – e ia desenrolando de novo o
misterioso pergaminho -, onde a parte em grego é demasiado pequena e a parte superior
demasiado incerta... - Mostrou-me os sinais misteriosos que tinham aparecido como por
encanto ao calor da chama: - Venancio queria ocultar um segredo importante e usou uma
daquelas tintas que escrevem sem deixar marcas e reaparecem com o calor. Ou então
usou sumo de limão. Mas, como não sei que substancia terá usado e os sinais podem
voltar a desaparecer, depressa, tu que tens bons olhos, copia-os já do modo mais fiel que
puderes e talvez um pouco maiores.
E assim fiz, sem saber que coisa copiava. Tratava-se de uma série de quatro ou cinco
linhas deveras parecidas com bruxaria, e agora reproduzo apenas os primeiros sinais,
para dar ao leitor uma idéia do enigma que tínhamos diante dos olhos:
Quando acabei de copiar, Guilherme pegou o papel e, apesar de estar sem as lentes,
as manteve perto de seus olhos para examinar.
- Sim, sem dúvida se trata de um alfabeto secreto, que teremos que decifrar – disse. –
Os traços não são muito firmes, e é provável que a sua cópia não os tenha melhorado,
mas é evidente que os sinos pertencem a um alfabeto zodiacal. Vês? Na primeira linha
temos... – trouxe o papel para mais perto, entrecerrou os olhos em um esforço de
concentração e disse: - Sagitário, Sol, Mercúrio, Escorpião...
- Que significam?
- Se Venancio tivesse sido ingênuo, teria usado o alfabeto zodiacal mas conhecido: A
igual a Sol, B igual a Júpiter... Então a primeira linha se leria assim... tente transcrevela:
RAIOASVAL... – Interrompeu-se. – Não. Não quer dizer nada, e Venancio não era
ingênuo Se valeu de outra chave para transformar o alfabeto. Temos que descobri-la.
- E podemos? – perguntei admirado.
— Sim, quando se conhece um pouco a sabedoria árabe. Os melhores tratados de
criptografia são obra de sábios infiéis, e em Oxford pude me inteirar de alguns deles.
Bacon tinha razão quando dizia que a conquista do saber para pelo conhecimento das
línguas. Há séculos Abu Bakr Ahmad ben Ali ben Washiyya an-Nabati escreveu um Livro
do frenético desejo do devoto em aprender os enigmas das escrituras antigas, donde
expus muitas regras para compor e decifrar alfabetos misteriosos, úteis para práticas
mágicas, mas também para a correspondência entre os exércitos ou entre um rei e seus
embaixadores. E vi outros livros árabes onde se enumera uma série de artifícios bastante
engenhosos. Por exemplo, podes reencobrir uma letra por outra, podes escrever uma
palavra ao contrário, podes inverte a ordem das letras, mas colocando uma sim e outra
não, e voltando a empregar logo desde o princípio, podes, como neste caso, reencobrir
as letras por signos zodiacais, mas atribuindo as letras ocultas seu valor numérico, para
depois, seguir um outro alfabeto, transformar os números em outras letras...
- E qual desses sistemas terá utilizado Venancio?
- Teríamos que provar todos estes, e também outros. Mas a primeira regra para
decifrar uma mensagem consiste em adivinhar o que se quer dizer.
- Mas então não é preciso decifrá-lo! Exclamei rindo.
- Não quis dizer isso. O que se pode fazer é formular hipóteses sobre quais poderiam
ser as primeiras palavras da mensagem, e depois ver se a regra que ali se infere vale
para o resto do texto. Por exemplo, Venancio anotou aqui certamente a chave para
penetrar no finis Africae. Se eu tento pensar que a mensagem fala disto, eis que sou
iluminado de repente por um ritmo... Tenta olhar para as primeiras três palavras, não
consideres as letras, considera só o número dos sinais... IIIIIIII IIIII IIIIIII... Agora tenta
dividir os grupos em sílabas de pelo menos dois sinais cada uma e recita em voz alta: tata-
ta, ta-ta, ta-ta-ta... Não te vem nada em mente?
- A mim não.
- E a mim sim. Secretum finis Africae... Mas, se assim fosse, a última palavra devia ter
a primeira e a sexta letras iguais, e fato assim é, eis duas vezes o símbolo da Terra. E a
primeira letra da primeira palavra, o S devia ser igual à última da segunda, e de fato eis
repetido o signo da Virgem. Talvez seja o bom caminho. Porém, poderia tratar-se apenas
de uma série de coincidências. É preciso encontrar uma regra de correspondência...
- Encontrá-la onde?
- Na cabeça. Inventá-la. E depois ver se é a verdadeira. Mas entre uma prova e outra o
jogo poderia levar-me um dia inteiro. Não mais, porque (recorda-te) não há escritura
secreta que não possa ser decifrada com um pouco de paciência. Mas agora arriscamonos
a atrasar-nos e queremos visitar a biblioteca. Tanto mais que sem as lentes nunca
conseguirei ler a segunda parte da mensagem, e tu não me podes ajudar, porque estes
sinais para os teus olhos...
- Graecum est, non legitur - completei humilhado.
- Exatamente, e vês que Bacon tinha razão. Estuda! Mas não desanimemos. Deixemos o
pergaminho e as tuas notas e subamos à biblioteca. Porque esta noite nem dez legiões
internais conseguirão deter-nos.
Persignei-me.
- Mas quem pode ter-nos precedido aqui? Bêncio?
- Bêncio ardia com desejo de saber que coisa havia entre os papéis de Venancio, mas
não me parecia na disposição de nos pregar partidas tão maliciosas. No fundo, tinha-nos
proposto uma aliança, e depois tinha ar de quem não tem coragem de entrar de noite no
Edifício.
- Então, Berengário? Ou Malaquias?
- Berengário parece-me que tem animo para lazer coisas deste gênero. No fundo, e coresponsável
pela biblioteca, é roído pelo remorso de ter traído algum dos seus segredos,
julgava que Venancio tinha tirado aquele livro e queria talvez repô-lo no lugar de onde
veio. Não conseguiu subir, agora está escondendo o volume em qualquer parte, e
poderemos apanhá-lo em flagrante, se Deus nos assistir, quando tentar repô-lo no seu
lugar.
- Mas também poderia ser Malaquias, movido pelas mesmas intenções.
- Diria que não. Malaquias tinha tido todo o tempo que queria para rebuscar na mesa
de Venancio quando ficou sozinho para fechar o Edifício. Eu sabia-o muito bem e não
tinha meios de o evitar. Agora sabemos que não o fez. E, se refletires bem, não temos
motivo para suspeitar que Malaquias soubesse que Venancio tinha entrado na biblioteca
tirando de lá alguma coisa. Isto, sabem-no Berengário e Bêncio e sabemo-lo tu e eu. A
seguir à confissão de Adelmo poderia sabê-lo Jorge, mas não era ele decerto o homem
que se precipitava com tanto ímpeto pela escada de caracol...
- Então, ou Berengário ou Bêncio...
- E porque não Pacífico de Tivoli ou outro dos monges que aqui vimos hoje? Ou
Nicolau, o vidreiro, que sabe dos meus óculos? Ou aquela bizarra personagem que é
Salvador, que nos disseram que anda de noite sabe-se lá por que afazeres? Devemos
prestar atenção em não restringir o campo dos suspeitos simplesmente porque as
revelações de Bêncio nos orientaram numa única direção. Bêncio talvez quisesse
contundir-nos.
- Mas pareceu-vos sincero.
- Decerto. Mas recorda-te que o primeiro dever de um bom inquisidor é o de suspeitar
em primeiro lugar daqueles que te parecem sinceros.
- Péssimo trabalho o do inquisidor - disse eu.
- Por isso o abandonei. E, como vês, cabe-me retomá-lo. Mas vamos à biblioteca.
SEGUNDO DIA
NOITE
Onde se penetra finalmente no labirinto, se tem estranhas visões e, como acontece
nos labirinto, aí a gente se perde.
Voltamos ao scriptorium, desta vez pela escada oriental, que também subia ao andar
proibido, com a candeia ao alto diante de nós. Eu pensava nas palavras de Alinardo sobre
o labirinto e esperava coisas pavorosas.
Fiquei surpreendido, quando emergimos no lugar onde não deveríamos ter entrado, ao
encontrar-me numa sala de sete lados, não muito ampla, privada de janelas, em que
reinava, como de resto em todo o andar, um forte odor a fechado ou a mofo. Nada de
terrificante.
A sala, como disse, tinha sete paredes, mas só em quatro delas se abria entre duas
colunazinhas encaixadas na parede, uma abertura, uma passagem bastante ampla
encimada por um arco de volta inteira. Ao longo das paredes fechadas encostavam-se
enormes armários, carregados de livros dispostos com regularidade. Os armários tinham
uma etiqueta numerada, assim como cada uma das prateleiras: claramente, os mesmos
números que tínhamos visto no catálogo. No meio da sala uma mesa, também ela repleta
de livros. Sobre todos os volumes um véu bastante fino de poeira sinal de que os livros
eram limpos com uma certa freqüência. Pelo chão também havia qualquer sujidade. Por
cima do arco de uma das portas, uma grande inscrição, pintada na parede, apresentava
as palavras: Apocalypsis lesu Christi. Não parecia esbatida, embora os caracteres fossem
antigos. Apercebemo-nos depois que, também nas outras salas, estas inscrições eram na
verdade gravadas na pedra, e bastante profundamente e depois as cavidades tinham sido
preenchidas com tinta, como se usa para pintar a fresco as igrejas.
Passamos por uma das aberturas. Encontramo-nos numa outra sala onde se abria uma
janela, que no lugar dos vidros apresentava placas de alabastro, com duas paredes
plenas e uma abertura, do mesmo tipo daquela por onde tínhamos acabado de passar,
que dava para outra sala, a qual tinha, também ela, duas paredes plenas com uma
janela, e uma outra porta que se abria diante de nós. Nas suas salas duas inscrições
semelhantes na forma à primeira que tínhamos visto, mas com outras palavras. A
inscrição da primeira dizia: Super thronos viginti quatuor, e a da segunda: Nomen illi
mors. Quanto ao resto, embora as suas salas fossem mais pequenas do que aquela por
onde tínhamos entrado na biblioteca (de fato, aquela era heptagonal e estas duas
retangulares), o mobiliário era o mesmo: armários com livros e mesa central.
Acedemos à terceira sala. Esta não tinha livros nem inscrição. Sob a janela, um altar
de pedra. Havia três portas, uma por onde tínhamos entrado, outra que dava para a sala
heptagonal já visitada, uma terceira que nos introduziu numa nova sala, não diferente
das outras, salvo pela inscrição, que dizia: Obscuratus est sol et aer. Daqui passava-se a
uma nova sala, cuja inscrição dizia: Facía est grando et ignis: era privada de outras
portas, ou melhor, chegados àquela sala não se podia avançar e era preciso voltar para
trás.
- Raciocinemos - disse Guilherme. - Cinco salas quadrangulares ou vagamente
trapezoidais, com uma janela cada uma, que giram em torno de uma sala heptagonal
sem janelas, a que é servida pela
escada. Parece-me elementar. Estamos no torreão oriental: cada torreão do exterior
apresenta cinco janelas e cinco lados. A conta está certa. A sala vazia é precisamente a
que está voltada a oriente, na mesma direção do coro da igreja; a luz do Sol ao
amanhecer ilumina o altar, o que me parece justo e piedoso. A única idéia astuta
parece-me a das placas de alabastro. De dia filtram uma bela luz, de noite não deixam
transparecer sequer os raios lunares. Não é pois um grande labirinto. Agora vejamos
onde levam as outras duas portas da sala heptagonal. Creio que nos orientaremos
facilmente.
O meu mestre enganava-se, e os construtores da biblioteca tinham sido mais hábeis do
que julgávamos. Não sei bem explicar o que aconteceu, mas ao abandonarmos o torreão
a ordem das salas tornou-se mais confusa. Umas tinham duas portas, outras três. Todas
tinham uma janela, mesmo aquelas por onde entrávamos partindo de uma sala com
janela e pensando que íamos para o interior do Edifício. Cada uma delas tinha sempre o
mesmo tipo de armários e de mesas, os volumes empilhados em boa ordem pareciam
todos iguais e não nos ajudavam decerto a reconhecer o lugar num golpe de vista.
Tentamos orientar-nos com as inscrições. Uma vez tínhamos atravessado uma sala em
que estava escrito In diebus illis e depois de algumas voltas pareceu-nos que tínhamos ali
voltado. Mas recordávamos que a porta em frente à janela introduzia uma sala em que
estava escrito Primogeni-tus mortuorum, enquanto encontrávamos agora uma outra que
dizia de novo Apocalypsis lesu Christi, e não era a sala heptagonal de onde tínhamos
partido. Este fato convenceu-nos que, por vezes, as inscrições se repetiam, eram iguais
em salas diferentes. Encontramos duas salas com inscrição Apocalypsis uma a seguir à
outra, e logo depois uma com Cecidit de coelo stella magna.
De onde provinham as frases das inscrições era evidente, tratava-se de versículos do
Apocalipse de João, mas não era nada claro nem por que razão estavam pintadas nas
paredes nem qual a lógica por que estavam dispostas. Para aumentar a nossa confusão,
reparamos que algumas inscrições, não muitas, eram de cor vermelha em vez de negra.
A certa altura encontramo-nos de novo na sala heptagonal do ponto de partida (aquela
era reconhecível, porque aí se abria a entrada da escada) e recomeçamos a mover-nos
para a nossa direita, procurando seguir em frente de sala em sala. Passamos por três
salas e depois achamo-nos diante de uma parede fechada. A única passagem introduzia
numa única sala que só tinha uma outra porta, pela qual saímos, percorrendo mais
quatro salas, e achamo-nos de novo diante de uma parede. Voltamos à sala precedente
que tinha duas saídas, metemos por aquela que ainda não tínhamos tentado, passamos a
uma nova sala e encontramo-nos na sala heptagonal do ponto de partida.
- Como se chamava a última sala onde voltamos para trás? - perguntou Guilherme.
Fiz um esforço de memória:
- Equus albus.
- Bem, é preciso encontrá-la de novo.
E foi fácil. Dali, se não se queria andar para trás, não havia senão que passar à sala
dita Gratia vobis et pax, e dali, à direita, pareceu-nos encontrar uma nova passagem que
não nos fizesse voltar para trás. Com efeito, encontramos outra vez In diebus illis y
Primogenitus mortuorum (porém não eram as mesmas salas de pouco antes?), mas
finalmente chegamos a uma sala que nos parecia que ainda não tínhamos visitado: Tenia
pars terrae combusta est. Mas, naquele momento, já não sabíamos onde estávamos em
relação ao torreão oriental.
Estendendo a candeia para a frente, aventurei-me até às salas seguintes, um gigante
de proporções ameaçadoras, de corpo ondulado e flutuante como o de um fantasma,
veio ao meu encontro.
- Um diabo! - gritei, e pouco faltou para me cair a candeia enquanto me voltava de
repente e me refugiava nos braços de Guilherme.
Este tirou-me a candeia das mãos e, afastando-me, avançou com uma decisão que me
pareceu sublime. Também ele viu qualquer coisa, porque recuou bruscamente. Depois
avançou de novo e levantou a candeia. Desatou a rir.
- Verdadeiramente engenhoso. Um espelho!
- Um espelho?
- Sim, meu valente guerreiro. Lançaste-te com tanta coragem sobre um inimigo
verdadeiro, a pouco no scriptorium, e agora assustas-te diante da tua imagem. Um
espelho que te devolve a tua imagem aumentada e deformada.
Tomou-me pela mão e conduziu-me diante da parede fronteira à entrada da sala.
Numa placa de vidro ondulada, agora que a candeia a iluminava mais de perto, vi as
nossas duas imagens, grotescamente deformadas, que mudava nossa forma e altura
conforme nos aproximávamos ou nos afastávamos dele.
- Deves ler algum tratado de óptica - disse Guilherme divertido -, como decerto leram
os fundadores da biblioteca. Os melhores são os dos árabes. Alhazen compôs um tratado
De aspectibus que com demonstrações geométricas precisas, falou da força dos espelhos.
Alguns deles, segundo o modo como é modulada a sua superfície, podemos aumentar as
coisas mais minúsculas (e que outra coisa faz as minhas lentes?), outros fazem aparecer
as imagens invertidas ou obliquas. Ou mostram dois objetos em vez de um, e quatro em
vez de dois. Outros ainda, como este, fazem de um anão um gigante ou de um gigante
num anão.
- Jesus Senhor! - disse. - Então são estas as visões que alguém diz ter tido na
biblioteca?
- Talvez. Uma idéia deveras engenhosa. - Leu as inscrições na parede, por cima do
espelho: Super thronos viginti quator. – ali a encontramos, mas era uma sala sem
espelho. E esta além do mais, não tem janelas nem é heptagonal. Onde estamos? - Olhou
em seu redor e aproximou-se de um armário: - Adso, sem aqueles benditos oculi ad
legendum não consigo compreender o que está escrito nestes livros. Lê-me alguns
títulos.
Peguei num livro ao acaso:
- Mestre, não está escrito!
- Como? Veja o que está escrito, que lês?
- Não leio. Não são letras do alfabeto e não é grego, reconhecê-lo-ia. Parecem
vermes, serpentezinhas, caganitas de moscas...
- Ah, é árabe. Há mais desses?
- Sim, alguns. Mas cá está um em latim, se Deus quiser. Al... Al Kuwarizmi, Tabúlete.
- As tábuas astronômicas de Al Kuwarizmi, traduzidas por Abelardo de Bath! Obra
raríssima! Continua.
- Isa ibn Ali, De oculis, Alkindi, De radiies stellatis...
- Olha agora sobre a mesa.
Abri um grande volume que estava sobre a mesa, um De bes-tiis. Calhou-me uma
página finamente iluminada, onde estava representado um belíssimo unicórnio.
- Bela obra - comentou Guilherme, que conseguia ver bem as imagens. - E aquilo?
- Líber monstruorum de diversis generibus. Também este com belas imagens, mas
parecem-me mais antigas.
Guilherme inclinou o rosto sobre o texto:
- Iluminado por monges irlandeses, há pelo menos cinco séculos. O livro do unicórnio
é, pelo contrário, mais recente, parece-me feito à maneira dos franceses.
Mais uma vez admirei a sabedoria do meu mestre. Entramos na sala a seguir e
percorremos as quatro salas seguintes, todas com janelas e todas cheias de volumes em
línguas desconhecidas e mais alguns textos de ciências ocultas, e chegamos a uma
parede que nos obrigou a voltar para trás, porque as últimas cinco salas penetravam
umas nas outras sem consentir outras saídas.
- Pela inclinação das paredes, devemos estar no pentágono de outro torreão - disse
Guilherme - talvez nos enganemos.
- Mas as janelas? - disse. - Como podem existir tantas janelas? Impossível que todas as
salas dêem para o exterior.
- Esqueces o poço central, muitas daquelas que vimos são janelas que dão para o
octógono do poço. Se fosse de dia, a diferença da luz dir-nos-ia quais são as janelas
exteriores e quais as interiores, e talvez até nos revelasse a posição da sala em relação
ao Sol. Mas de noite não se percebe nenhuma diferença. Voltemos para trás.
Voltamos de novo à sala do espelho e viramos para a terceira porta, pela qual nos
parecia que ainda não tínhamos passado. Vimos diante de nós uma fileira de três ou
quatro salas, e perto da última avistamos um clarão.
- Está aqui alguém! - exclamei com voz sufocada.
- Se está, já se apercebeu da nossa candeia - disse Guilherme cobrindo todavia a
chama com a mão.
Detivemo-nos por um ou dois minutos. O clarão continuava a oscilar levemente, mas
sem se tornar mais forte ou mais fraco.
- Talvez seja apenas uma lâmpada - disse Guilherme -, daquelas que se põem para
convencer os monges de que a biblioteca é habitada -, mas não há a sala heptagonal
central, pelas almas dos defuntos. Mas é preciso saber. Tu fica aqui cobrindo a candeia,
eu vou à frente com cautela.
Ainda envergonhado pela triste figura que fizera diante do espelho, quis redimir-me
aos olhos de Guilherme:
- Não vou eu – disse - e vós ficais aqui. Avançarei com cautela, sou mais pequeno e
mais leve. Mal dê conta que não há perigo, chamo-vos.
Eu disse. Avancei através de três salas caminhando rente às paredes ágil como um
gato (ou como um noviço que desce à cozinha a roubar queijo na despensa, empresa em
que era perito em Melk). Cheguei à soleira da sala de onde provinha o clarão, bastante
fraco, rastejando ao longo da parede atrás da coluna que servia de pé direito e espreitei
para a sala. Não havia ninguém. Uma espécie de lâmpada estava pousada sobre a mesa
acesa, e fumegava quase apagada. Não era uma candeia como a nossa parecia antes um
turíbulo destapado, não tinha chama, mas uma cinza ligeira ardia queimando alguma
coisa. Enchi-me de coragem e entrei. Sobre a mesa ao lado do turíbulo estava aberto um
livro de cores vivas. Aproximei-me e distingui sobre a página quatro riscas de diversas
cores, amarelo, vermelho, azul-turquesa e terra-queimada. Apresentava um animal,
horrível de ver, um grande dragão de dez cabeças que arrastava com a causa as estrelas
do céu e as fazia precipitar sobre a terra. E repentinamente vi que o dragão se
multiplicava, e as escamas da sua pele se tornavam como uma selva de estilhaços
rutilantes que se soltaram da folha e vieram rodopiar à solta da minha cabeça. Inclineime
para trás e vi o teto da sala que se inclinava e descia sobre mim, depois ouvi como
um sibilo de mil serpentes, mas não medonho, quase sedutor, e apareceu uma mulher
circundada de luz que aproximou o seu rosto do meu respirando-me para a cara. Afasteia
com as mãos estendidas, e pareceu-me que as minhas mãos tocavam os livros do
armário em frente, ou que eles cresciam desmesuradamente. Já não me dava conta do
lugar onde estava, e onde estava a terra e onde o céu. Vi no centro da sala Berengário,
que me fixava com um sorriso odioso, transpirando luxúria. Cobri o rosto com as mãos, e
as minhas mãos pareceram-me os membros de um sapo, viscosas e espalmadas. Gritei,
creio, senti um sabor acidulado na boca, depois afundei-me numa escuridão infinita, que
parecia abrir-se cada vez mais debaixo de mim, e não soube mais nada.
Acordei após um período que me pareceu de séculos, sentindo pancadas que me
ressoavam na cabeça. Estava estendido no chão, e Guilherme dava-me bofetadas nas
faces. Já não estava naquela sala, e os meus olhos distinguiram uma inscrição que dizia:
Requiescant a laboribus suis.
- Vá, vá, Adso - sussurrava-me Guilherme. - Não é nada...
- As coisas... - disse ainda delirando. – Além, a besta...
- Não há besta nenhuma. Encontrei-te a delirar aos pés de uma mesa onde se
encontrava uma belo apocalipse moçárabe, aberto na página da mulier amicta sole que
enfrenta o dragão. Mas apercebi-me, pelo cheiro, que tu tinhas respirado alguma coisa
de nocivo e tirei-te logo dali. Também a mim me dói a cabeça.
- Mas o que é que eu vi?
- Não viste nada. É que, ali, ardiam substancias capazes de provocar visões, reconheci
o cheiro, é uma coisa dos árabes, talvez a mesma que o velho da montanha dava a
cheirar aos seus assassinos antes de os impelir para as suas empresas. E assim explicamos
o mistério das visões. Alguém põe ervas mágicas durante a noite para convencer os
visitantes importunos que a biblioteca está protegida por presenças diabólicas. Que
sentiste, afinal?
Confusamente, por aquilo que recordava, contei-lhe a minha visão e Guilherme riu:
- Metade era a ampliação daquilo que tinhas distinguido no livro e na outra metade
deixavas falar os teus desejos e os teus receios. Esses são os efeitos que ativam tais
ervas. Amanhã é preciso falar disso com Severino, creio que sabe mais do que quer fazernos
crer. São ervas, apenas ervas, sem necessidade daquelas preparações necromanticas
de que nos falava o vidreiro. Ervas, espelhos... Este lugar da sapiência interdita é
defendido por muitas e sapientíssimas invenções. A ciência usada para ocultar em vez de
iluminar. Não me agrada. Uma mente perversa preside à Santa defesa da biblioteca. Mas
foi uma noitada pesada, temos de sair, por agora. Tu estás atordoado e tens necessidade
de água e de ar fresco. Inútil tentar abrir estas janelas, demasiado altas e fechadas
talvez há dezenas de anos. Como puderam pensar que Adelmo se tenha atirado daqui?
Sair, disse Guilherme. Como se fosse fácil. Sabíamos que a biblioteca era acessível de
um único torreão, o oriental. Mas onde estávamos naquele momento? Tínhamos perdido
completamente a orientação. A volta que demos, errando com o temor de nunca mais
sairmos daquele lugar, eu sempre vacilante e acometido por acessos de vômitos,
Guilherme bastante preocupado comigo e despeitado com a pequenez da sua ciência,
deu-nos, ou melhor, deu-lhe a ele, uma idéia para o dia seguinte. Deveríamos voltar à
biblioteca, admitindo que alguma vez dela saíssemos, com um tição de madeira
queimada, ou outra substancia capaz de deixar sinais nas paredes.
- Para encontrar a saída de um labirinto - recitou de fato Guilherme - não há senão um
meio. Ao chegar a cada novo nó, ou seja, nunca visitado antes, o percurso de chegada
será distinguido com três sinais. Se se observar sinais em algum dos caminhos do nó, sele
indicará que o mesmo já foi visitado, e então só marcará um único sinal no percurso de
chegada. Se todas as passagens já tiverem sido marcadas então será preciso refazer o
caminho, voltando para trás. Mas, se uma ou duas passagens do nó ainda não tiverem
sinais, escolher-se-á uma qualquer, aplicando-lhe dois sinais. Encaminhando-se por uma
passagem que tem um único sinal, aplicar-lhe-emos outros dois, de modo que, agora,
aquela passagem tenha três. Todas as partes do labirinto deveriam ter sido percorridas
se, chegando a um nó, nunca se seguir a passagem com três sinais, a menos que já
nenhuma das outras passagens esteja privada de sinais...
- Como sabeis? Sois perito em labirintos?
- Não, recito de um texto antigo que uma vez li.
- E, segundo essa regra, sai-se?
- Quase nunca, que eu saiba. Mas tentaremos na mesma. E depois, nos próximos dias,
terei lentes e terei tempo para me deter melhor sobre os livros. Pode ser que lá onde o
percurso das inscrições nos confunde, o dos livros nos dê uma regra.
- Tereis as lentes? Como fareis para as encontrar?
- Eu disse que terei lentes. Farei outras. Creio que o vidreiro não espera senão uma
ocasião desse gênero para fazer uma nova experiência. Se tiver os utensílios adequados
para lapidar cacos. Quanto aos cacos, naquela oficina há muitos.
Enquanto vagueávamos procurando caminho, de repente, no centro de uma sala, senti
acariciarem-me o rosto com uma mão invisível, enquanto um gemido, que não era
humano nem era
animal, ecoava naquele espaço e no seguinte, como se um espectro vagueasse de sala
em sala. Devia estar preparado para as surpresas da biblioteca, mas, uma vez mais,
aterrorizei-me e dei um salto para trás. Também Guilherme devia ter tido uma
experiência semelhante à minha, porque tocava a face, levantando a candeia e olhando
em seu redor.
Ele ergueu uma mão, depois examinou a chama que parecia agora mais viva, depois
umedeceu um dedo e manteve-o direito diante de si.
- É claro - disse depois, e mostrou-me dois pontos, em duas paredes opostas, à altura
de um homem. Abriam-se aí duas seteiras estreitas, e, aproximando delas a mão, podia
sentir-se o ar frio que provinha do exterior. Aproximando depois o ouvido sentia-se um
zumbido, como se de fora agora soprasse vento. - A biblioteca devia ter também um
sistema de ventilação - disse Guilherme -, de contrário a atmosfera seria irrespirável,
especialmente no Verão. Além disso, estas seteiras também fornecem uma justa dose de
umidade, a fim de que os pergaminhos não sequem. Mas a habilidade dos fundadores não
ficou por aqui. Dispondo as seteiras segundo certos ângulos, asseguraram que, nas noites
de vento, a aragem que penetra por estas aberturas se cruze com outra aragem e se
adense pela fileira das salas, produzindo os sons que ouvimos. Os quais, unidos aos
espelhos e às ervas, aumentam o temor dos incautos que aqui penetram, como nós sem
conhecer bem o lugar. E nós próprios pensamos por um momento que eram fantasmas
que respiravam para a cara. Só nos demos conta agora, porque só agora se levantou o
vento. E também este mistério está resolvido. Mas com tudo isto não sabemos ainda
como sair!
Assim falando vagueávamos no vazio, já perdidos, sem o cuidado de ler as inscrições
que apareciam todas iguais. Caímos numa nova sala heptagonal, giramos pelas salas
vizinhas, não encontramos qualquer saída. Voltamos para trás, caminhamos durante
quase uma hora, renunciando a saber onde estávamos. A certa altura, Guilherme decidiu
que estávamos derrotados, não nos restava senão pormo-nos a dormir nalguma sala e
esperar que no dia seguinte Malaquias nos encontrasse. Enquanto nos lamentávamos pelo
miserável fim da nossa bela empresa, encontramos inopinadamente a sala de onde partia
a escada. Agradecemos com fervor ao céu e descemos com grande alegria.
Uma vez na cozinha, lançamo-nos para a chaminé, entramos no corredor do ossário , e
juro que o esgar mortífero daquelas cabeças nuas me pareceu o sorriso de pessoas
queridas. Reentramos na igreja e saímos pelo portal setentrional, sentando-nos enfim
felizes sobre as lajes de pedra dos túmulos. O ar belíssimo da noite pareceu-me um
bálsamo divino. As estrelas brilhavam à nossa volta, e as visões da biblioteca pareceramme
bastante longínquas.
- Como é belo o mundo e como são feios os labirintos! - disse aliviado.
- Como seria belo o mundo se houvesse uma regra para andar nos labirintos -
respondeu o meu mestre.
- Que horas serão? - perguntei.
- Perdi a noção do tempo. Mas será bom encontrarmo-nos nas nossas celas antes que
toquem a matinas.
Costeamos o lado esquerdo da igreja, passamos diante do portal (voltei-me para o
outro lado para não ver os velhos do Apocalipse, super thronos viginti quatuor!) e
atravessamos o claustro para chegar ao albergue dos peregrinos.
Na soleira da construção estava o Abade, que nos olhou com severidade.
- Procurei-vos toda a noite - disse a Guilherme. - Não vos encontrei na cela, não vos
encontrei na igreja...
- Seguíamos uma pista... - disse vagamente Guilherme, com visível embaraço.
O Abade fixou-o longamente, depois disse com voz lenta e severa:
- Procurei-vos logo depois de completas. Berengário não estava no coro.
- Que coisa me estais dizendo? - fez Guilherme com ar hilário. De fato tornava-se-lhe
agora claro quem se tinha aninhado no scriptorium.
- Não estava no coro a completas - repetiu o Abade -, e não voltou pare a sua cela.
Vão tocar a matinal, e veremos agora se reaparece. De contrário, temo alguma nova
desgraça.
A matinal, Berengário não estava.
MATINAS
Onde poucas horas de mística felicidade são interrompidas por um ato sumamente
sangrento.
Símbolo ora do demônio ora de Cristo ressuscitado, nenhum animal é mais falso que o
galo. A nossa ordem conheceu-os preguiçosos, que não cantavam ao nascer do Sol. E por
outro lado, especialmente nos dias de Inverno, o ofício de matinas tem lugar quando é
ainda noite plena e a natureza está toda adormecida, pelo que o monge deve levantar-se
na obscuridade e longamente na obscuridade rezar, esperando o dia e iluminando as
trevas com a chama da devoção. Por isso, sabiamente, o costume predispôs vigilantes
que não se deitam com os seus irmãos, mas passam a noite recitando ritmicamente um
número exato de salmos que lhes dá a medida do tempo decorrido, de modo que, ao fim
das horas votadas ao sono dos outros, aos outros dão o sinal da vigília.
Portanto, naquela noite fomos acordados por aqueles que percorriam o dormitório e a
casa dos peregrinos tocando uma campainha, enquanto um ia de cela em cela gritando o
Benedicamus Domino, a que cada um respondia Deo gratias.
Guilherme e eu ativemo-nos ao uso beneditino: em menos de meia hora preparamonos
para afrontar o novo dia. a seguir descemos ao coro, onde os monges esperavam
prostrados por terra, recitando os primeiros quinze salmos, até que entraram os noviços
conduzidos pelo seu mestre. Em seguida cada um se sentou na sua própria estala e o coro
entoou Domine labia mea aperies et os meum annuntiabit laudem tuam. O grito subiu
até às abóbadas da igreja como a súplica de uma criança. Dois monges subiram ao
púlpito e deram voz ao salmo noventa e quatro, Venite exultemus, a que se seguiram os
outros prescritos. E eu senti o ardor de uma fé renovada.
Os monges estavam nas estalas, sessenta figuras igualadas pelo saio e pelo capucho,
sessenta sombras mal iluminadas pelo fogo do grande tripé, sessenta vozes unidas em
louvor do Altíssimo. E ouvindo este comovente concerto, vestíbulo das delícias do
paraíso, perguntei-me se na verdade a abadia era lugar de mistérios ocultos, de ilícitas
tentativas de os revelar e de obscuras ameaças. Porque agora, pelo contrário, ela
aparecia-me como refúgio de santos, cenáculo de virtudes, relicário de sapiência, arca
de prudência, torre de sabedoria, recinto de mansidão, bastião de fortaleza, turíbulo de
santidade.
Depois de seis salmos começou a leitura da sagrada escritura. Alguns monges
cabeceavam de sono, e um dos vigilantes da noite girava por entre as estalas com uma
pequena lâmpada para despertar quem tivesse adormecido. Se alguém era surpreendido
em plena modorra, como penitência pegava na lâmpada e continuava a ronda de
controle. Em seguida recomeçou o canto de mais seis salmos. Depois, o Abade deu a sua
benção, o hebdomadário disse as orações, todos se inclinaram para o altar num minuto
de recolhimento, de que ninguém que não tenha vivido estas horas de místico ardor e de
intensíssima paz interior pode compreender a doçura. Finalmente, de capucho de novo
sobre o rosto, todos se sentaram e entoaram solenemente o de Deum. Também eu louvei
o Senhor, porque me tinha libertado das minhas dúvidas livrando-me da sensação de malestar
em que o primeiro dia na abadia me tinha lançado. Somos seres frágeis, disse para
comigo, também entre estes monges doutos e devotos o maligno faz circular pequenas
invejas, sutis inimizades, mas trata-se de fumo que se dissipa ao vento impetuoso da fé,
logo que todos se reúnem em nome do Pai, Cristo desce ainda entre eles.
Entre matinas e laudas, o monge não volta à cela, mesmo que a noite seja ainda
profunda. Os noviços seguiram o seu mestre para a sala capitular para estudarem os
salmos, alguns dos monges ficaram na igreja a arrumar os utensílios sagrados, a maioria
passeava meditando em silêncio no claustro, e assim fizemos Guilherme e eu. Os servos
dormiam ainda e continuavam a dormir quando, com o céu ainda escuro, voltamos ao
coro para laudas.
Recomeçou o canto dos salmos, e um em particular, entre os previstos para segundafeira,
mergulhou-me de novo nos meus primitivos temores: «A culpa apoderou-se do
ímpio, do intimo do seu coração – não há temor de Deus nos seus olhos – age em fraude
na sua presença - de modo que a sua língua se torne odiosa.» Esclareceu-me de mau
presságio que a regra tivesse prescrito precisamente para aquele dia uma advertência
tão terrível. Também não acalmou as minhas palpitações de inquietação, depois dos
salmos de louvor a habitual leitura do apocalipse, e voltaram-me à mente as figuras do
portal que tanto me tinham subjugado o coração e o olhar no dia anterior. Mas depois do
responsório, o hino e o versículo, quando estava a começar o cântico do evangelho,
surgiu por detrás das janelas do coro, precisamente sobre o altar, um clarão pálido que
já fazia resplandecer os vitrais nas suas diversas cores, até então mortificadas pela
treva. Não era ainda a aurora, que triunfaria durante prima, precisamente enquanto
cantávamos Deur qui est sanctorum splendor mirabilis e lam lucis orto sidere. Era apenas
o primeiro débil anúncio da alba invernal, mas foi o bastante, e foi bastante para me
sossegar o coração a leve penumbra que na nave ia agora substituindo a obscuridade
noturna.
Cantávamos as palavras do livro divino e, enquanto testemunhávamos o Verbo que
tinha vindo iluminar as gentes, pareceu-me que o astro diurno em todo o seu fulgor
estava invadindo o templo. A luz, ainda ausente, pareceu-me resplandecer nas palavras
do cântico, lírio místico que se entreabria odoroso entre os cruzeiros das abóbadas.
«Graças, ó Senhor, por este momento de gáudio inenarrável», rezei silenciosamente, e
disse ao meu coração «e tu, estúpido, que temes?»
De repente, levantaram-se alguns clamores do lado do portal setentrional. Pergunteime
como é que os servos, preparando-se para o trabalho, perturbavam assim as sagradas
funções. Naquele instante entraram três porqueiros, com o terror no rosto, e
aproximaram-se do Abade, sussurrando-lhe qualquer coisa. O Abade primeiro acalmou-os
com um gesto, como se não quisesse interromper o ofício: mas outros servos entraram,
os gritos tornaram-se mais fortes: «E um homem, um homem morto!», dizia alguém; e
outros: «Um monge, não viste o calçado?»
Os que oravam calaram-se, o Abade saiu precipitadamente, fazendo sinal ao
despenseiro que o seguisse. Guilherme foi atrás deles, mas então também os outros
monges abandonavam as suas estalas e se precipitavam para fora.
O céu estava agora claro, e a neve no chão tornava ainda mais luminoso o planalto.
Por detrás do coro, diante dos estábulos, onde desde o dia anterior dominava o grande
recipiente com o sangue dos porcos, um estranho objeto de forma quase cruciforme saía
do bordo da talha, como se fossem dois paus espetados no solo para cobrir de trapos para
espantar os pássaros.
Eram ao invés duas pernas humanas, as pernas de um homem enfiado de cabeça para
baixo no vaso de sangue.
O Abade ordenou que se retirasse o cadáver do líquido infame (porque infelizmente
nenhuma pessoa viva poderia ficar naquela posição obscena). Os porqueiros, hesitantes,
aproximaram–se do bordo e, sujando-se de sangue, retiraram de lá a pobre coisa
sanguinolenta. Como me tinha sido dito, remexido devidamente logo depois de ter sido
vertido e deixado ao frio, o sangue não tinha coagulado, mas a camada que recobria o
cadáver tendia agora a solidificar-se, ensopava-lhe as vestes, tornava-lhe o rosto
irreconhecível. Aproximou-se um servo com um balde de água e atirou-a sobre o rosto
daquele mísero despojo. Um outro inclinou-se com um pano para lhe limpar as feições. E
apareceu aos nossos olhos o rosto branco de Venancio de Salvamec, o sabedor de coisas
gregas com quem tínhamos discorrido de tarde diante dos códices de Adelmo.
- Talvez Adelmo se tenha suicidado - disse Guilherme, fixando aquele rosto -, mas este
não, decerto, nem se pode pensar que se tenha içado por acidente até ao bordo da talha
e tenha caído por engano.
O Abade aproximou-se dele:
- Frade Guilherme, como vedes alguma coisa acontece na abadia, alguma coisa que
requer toda a vossa sabedoria. Mas, esconjuro-vos, agi depressa!
- Estava presente no coro durante o oficio? – perguntou Guilherme, indicando o
cadáver.
- Não - disse o Abade. - Notei que a sua estala estava vazia.
- Nenhum outro estava ausente?
- Não me parece. Não notei nada.
Guilherme hesitou antes de formular a nova pergunta, e fê-la num sussurro, atento a
que os outros não ouvissem:
- Berengário estava no seu lugar?
O Abade olhou-o com inquieta admiração, como a significar que tinha ficado
impressionado ao ver o meu mestre nutrir uma suspeita que ele próprio tinha por um
instante nutrido, mas por mais compreensíveis razões. Depois disse, rápido:
- Estava, está na primeira fila, quase à minha direita.
- Naturalmente - disse Guilherme -, tudo isto não significa nada. Não creio que
ninguém para entrar no coro tenha passado por trás da abside, e por isso o cadáver podia
já estar aqui há várias horas, pelo menos desde que todos tinham ido dormir.
- Decerto, os primeiros servos levantam-se com a alba, e por isso o descobriram só
agora.
Guilherme inclinou-se sobre o cadáver, como se estivesse habituado a tratar corpos
mortos. Molhou o pano que estava ao lado na água do balde e limpou melhor o rosto de
Venancio. Entretanto, os outros monges apinhavam-se assustados, formando um circulo
vozeante a que o Abade estava impondo silêncio. Entre eles abriu caminho Severino, a
quem estava confiado cuidar dos corpos da abadia, e inclinou-se perto do meu mestre.
Eu, para ouvir o seu diálogo e para ajudar Guilherme, que tinha necessidade de ter um
novo pano limpo molhado na água, uni-me a eles, superando o meu terror e a minha
repugnância.
- Nunca viste um afogado? - perguntou Guilherme.
- Muitas vezes - disse Severino. - E, se adivinho o que queres dizer, não tem este
aspecto, e as suas feições ficam inchadas.
- Então o homem já estava morto quando alguém o atirou para a jarra.
- Porque é que havia de fazer isso?
- Porque é que havia de o matar? Estamos diante da obra de uma mente perversa. Mas
agora é preciso ver se há feridas ou contusões pelo corpo. Proponho levá-lo para os
balnea, despi-lo, lavá-lo e examiná-lo. Vou já ter contigo.
E enquanto Severino, recebida licença do Abade, mandava transportar o corpo pelos
porqueiros, o meu mestre pediu que mandassem entrar os monges de novo no coro
seguindo o caminho por onde tinham vindo, e que os servos se retirassem da mesma
maneira, de modo que o espaço ficasse deserto. O Abade não lhe perguntou o porquê
deste seu desejo e satisfez-lho. Ficamos assim sozinhos, ao lado da talha donde o sangue
tinha transbordado durante a macabra operação de retirar o corpo, a neve em torno
toda vermelha, derretida em vários pontos pela água que tinha sido espalhada, e uma
grande mancha escura onde o cadáver tinha sido estendido.
- Um belo sarilho – disse Guilherme, referindo-se ao jogo complexo de marcas deixado
em volta pelos monges e pelos servos. - A neve, querido Adso, é um admirável
pergaminho sobre o qual os corpos dos homens deixam escritas facílimas de ler. Mas este
é um palimpsesto mal raspado, e talvez não leiamos nele nada de interessante. Daqui à
igreja, foi uma grande corrida de monges apressados, daqui à estrumeira e aos estábulos
vieram os servos em tropel. O único espaço intacto é aquele que vai das estrumeiras ao
edifício. Vejamos se encontramos alguma coisa de interessante.
- Mas que coisa quereis encontrar? - perguntei.
- Se não se lançou sozinho no recipiente, alguém o levou para lá, já morto, imagino. E
quem transporta o corpo de outro deixa pegadas profundas na neve. E agora procura
encontrar aqui em redor pegadas que te pareçam diferentes das que deixaram estes
monges vociferadores que nos estragaram o nosso pergaminho.
Assim fizemos. E digo já que fui eu, Deus me salve da vaidade, que descobri qualquer
coisa entre o recipiente e o Edifício. Eram marcas de pés humanos, bastante fundas,
numa zona em que ninguém tinha ainda passado e, como logo notou o meu mestre, mais
ligeiras do que as deixadas pelos monges e pelos servos, sinal de que mais neve ali tinha
caído, e portanto tinham sido deixadas há mais tempo. Mas aquilo que nos pareceu mais
digno de interesse era que entre aquelas marcas se mesclava uma pegada mais contínua,
como de qualquer coisa arrastada por quem tinha deixado as marcas. Em resumo, um
sulco que ia da jarra à porta do refeitório, do lado do Edifício que ficava entre a torre
meridional e a oriental.
- Refeitório, scriptorium, biblioteca - disse Guilherme. – Mais uma vez a biblioteca.
Venancio morreu no Edifício, e mais provavelmente na biblioteca.
- E porquê precisamente na biblioteca?
- Procuro meter-me na pele do assassino. Se Venancio morreu, foi morto, no
refeitório, na cozinha ou no scriptorium, porque não deixá-lo lá? Mas se morreu na
biblioteca era preciso transportá-lo para outro lugar, seja porque na biblioteca jamais
seria descoberto (e talvez ao assassino interessasse precisamente que fosse descoberto)
seja porque o assassino provavelmente não quer que a atenção se concentre sobre a
biblioteca.
- E porque é que ao assassino podia interessar que fosse descoberto?
- Não sei, ponho hipóteses. Quem te diz que o assassino matou Venancio porque
odiava Venâncio? Podia tê-lo morto, no lugar de qualquer outro, para deixar um sinal,
para significar alguma outra coisa.
- Omnis mundi creatura, quasi liber et scriptura... - murmurei. - Mas de que sinal se
trataria?
- É isso que eu não sei. Mas não esqueçamos que existem sinais que o parecem e, pelo
contrário, são desprovidos de sentido, como blitiri ou bu-ba-baff...
- Seria atroz – disse - matar um homem por dizer bu-ba-baff!
- Seria atroz - comentou Guilherme - matar um homem até por dizer Credo in unum
Deum...
Naquele momento chegou junto de nós Severino. O cadáver tinha sido lavado e
examinado com cuidado. Nenhuma ferida, nenhuma contusão na cabeça. Morto como por
encanto.
- Como por castigo divino? - perguntou Guilherme.
- Talvez - disse Severino.
- Ou por veneno?
Severino hesitou.
- Talvez, também.
- Tens venenos no laboratório? - perguntou Guilherme enquanto nos encaminhávamos
para o hospital.
- Também. Mais depende do que entendes por veneno. Há substancias que em
pequenas doses são salutares e em doses excessivas provocam morte. Como todo o bom
ervanário, conservo-as, e uso-as com discrição. No meu horto cultivo, por exemplo, a
valeriana. Poucas gotas numa infusão de outras ervas acalmam o coração que bate
desordenadamente. Uma dose exagerada provoca torpor e morte.
- E não notaste no cadáver sinais de um veneno particular?
- Nenhum. Mas muitos venenos não deixam marcas.
Tínhamos chegado ao hospital. O corpo de Venancio, lavado nos balnea, tinha sido
para ali transportado e jazia na grande mesa do laboratório de Severino: alambiques e
outros instrumentos de vidro e barro fizeram-me pensar mas sabia disso só por relatos
indiretos) na botica de um alquimista. Sobre uma grande estante ao longo da parede
externa, espalhava-se uma vasta série de ampolas, jarros, vasos, cheios de substancias
de diversas cores.
- Uma bela coleção de simples - disse Guilherme. - Todos os produtos vem do vosso
jardim?
- Não - disse Severino -, muitas substancias, raras e que não crescem nestas zonas,
foram-me trazidas ao longo dos anos por monges provenientes de todas as partes do
mundo. Tenho ainda coisas preciosas e raríssimas, misturadas com substancias que é fácil
obter da vegetação destes lugares. Olha... aghalingho pisado, provém de Catay, e deumo
um sábio árabe. Aloés suco-trino, vem das Índias, ótimo cicatrizante. Mercúrio,
ressuscita os mortos, ou, para melhor dizer, acorda aqueles que perderam os sentidos.
Arsênico, perigosíssimo, veneno mortal para quem o ingerir. Boracie, planta boa para os
pulmões doentes. Betônica, boa para as faturas do crânio. Mastigue, refreia os fluxos
pulmonares e os catarros molestos. Mirra...
- A dos magos? - perguntei.
- A dos magos, mas aqui boa para prevenir os abortos, colhida duma árvore que se
chama Balsamodendron myrra. E esta é múmia, raríssima, produzida pela decomposição
dos cadáveres mumificados, serve para preparar muitos medicamentos quase milagrosos.
Mandrágora officinalis, boa para o sono...
- E para suscitar o desejo da carne - comentou o meu mestre.
- Dizem, mas aqui não se usa nesse sentido, como podeis imaginar - sorriu Severino. -
E olhai esta - disse, pegando numa ampola - tutia, milagrosa para os olhos.
- E o que é esta? - perguntou vivamente Guilherme, tocando numa pedra que estava
sobre uma estante.
- Esta? Foi-me doada há tempos. Creio que é lopris amatiti ou lapis ematitis. Parece
que tem várias virtudes terapêuticas, mas ainda não descobri quais. Conhece-la?
- Sim - disse Guilherme -, mas não como medicamento.
Tirou do saio um canivete e aproximou-o lentamente da pedra. Quando o canivete,
movido pela sua mão com extrema delicadeza, chegou a pouca distância da pedra, vi que
a lamina executava um movimento brusco, como se Guilherme tivesse movido o pulso,
que pelo contrário tinha completamente imóvel. E a lamina aderiu à pedra com um leve
ruído de metal.
- Olha - disse-me Guilherme -, é um magnete.
- E para que serve? - perguntei.
- Para várias coisas, que te direi. Mas por agora queria saber, Severino, se não há aqui
nada que possa matar um homem.
Severino refletiu um instante, demasiado diria, dada a limpidez da sua resposta:
- Muitas coisas. Já te disse, o limite entre o veneno e o medicamento é bastante
tênue, os Gregos chamavam a ambos pharmacon.
- E não há nada que vos tenha sido tirado recentemente?
Severino refletiu ainda; depois, quase pesando as palavras:
- Nada, recentemente.
- E no passado?
- Quem sabe. Não me recordo. Estou nesta abadia há trinta anos, e estou no hospital
há vinte e cinco.
- Demasiado para uma memória humana - admitiu Guilherme. Depois, de repente: -
Falávamos ontem de plantas que podem provocar visões. Quais são?
Severino manifestou com os gestos e com a expressão do rosto o seu vivo desejo de
evitar aquele assunto:
- Tenho de pensar nisso, sabes, tenho tantas substancias milagrosas aqui. Mas falemos
antes de Venancio. Que dizes?
- Tenho de pensar nisso - respondeu Guilherme.
SEGUNDO DIA
PRIMA
Onde Bêncio de Upsala confia algumas coisas, outras confia-as a Berengário de
Arundel, e Adro aprende o que é a verdadeira penitencia.
O desgraçado acidente tinha transtornado a vida da comunidade. O tumulto devido a
descoberta do cadáver tinha interrompido o ofício sacro. O Abade tinha imediatamente
impelido de novo os monges para o coro, para que rezassem pela alma do seu irmão.
As vozes dos monges eram entrecortadas. Pusemo-nos numa situação adequada para
estudar a sua fisionomia quando, segundo a liturgia, o capucho não estava posto. Vimos
logo o rosto de Berengário. Pálido, contraído, luzidio de suor. No dia anterior tínhamos
ouvido por duas vezes murmurar a seu respeito como duma pessoa que tivesse que ver de
modo particular com Adelmo; e não era o fato que os dois, coetâneos, fossem amigos,
mas o tom evasivo daqueles que tinham aludido a essa amizade.
Notamos, a seu lado, Malaquias. Sombrio, crispado, impenetrável. Ao lado de
Malaquias, igualmente impenetrável, o rosto do cego Jorge. Observamos, pelo contrário,
os movimentos nervosos de Bêncio de Upsala, o estudioso de retórica conhecido no dia
anterior no scriptorium, e surpreendemos um rápido olhar que este lançava na direção
de Malaquias.
- Bêncio está nervoso, Berengário está assustado – observou Guilherme. - É preciso
interrogá-los imediatamente.
- Porquê? - perguntei ingenuamente.
- O nosso é um duro ofício - disse Guilherme. - Duro ofício o do inquisidor, é preciso
bater nos mais fracos e no momento da sua maior fraqueza.
De fato, mal acabou o ofício, alcançamos Bêncio, que se dirigia para a biblioteca. O
jovem pareceu contrariado por se sentir chamado por Guilherme, e alegou qualquer
débil pretexto de trabalho. Parecia ter pressa de se dirigir ao scriptorium. Mas o meu
mestre recordou-lhe que estava fazendo um inquérito por mandado do Abade e
conduziu-o para o claustro. Sentamo-nos no parapeito interno, entre duas colunas.
Bêncio esperava que Guilherme falasse, olhando a espaços para o Edifício.
- Então - perguntou Guilherme -, que se disse naquele dia em que estiveste a discutir
sobre os marginalia de Adelmo, tu, Berengário, Venancio, Malaquias e Jorge?
- Ouviste-lho ontem. Jorge observava que não é lícito ornar de imagens ridículas os
livros que contêm a verdade. E Venancio observou que o próprio Aristóteles tinha falado
de argúcias e jogos de palavras, como instrumentos para melhor descobrir a verdade, e
que, portanto, o riso não devia ser coisa má, se podia fazer-se um veículo de verdade.
Jorge observou que, pelo que recordava, Aristóteles tinha falado destas coisas no livro da
Poética e a propósito das metáforas. Que já se tratava de duas circunstancias
inquietantes, primeiro porque o livro da Poética, tendo permanecido ignorado do mundo
cristão por tanto tempo e talvez por decreto divino, nos chegou através dos mouros
infiéis...
- Mas foi traduzido em latim por um amigo do angélico doutor de Aquino - observou
Guilherme.
- Foi o que eu lhe disse - disse Bêncio de súbito reanimado. - Eu...amo grego e pude
anotar aquele grande livro precisamente através da tradução de Guilherme de Moerbeke.
Aí está, foi o que eu lhe disse. Mas Jorge acrescentou que o segundo motivo de
inquietação é que o Estagirita falava aí da poesia, que é ínfima doutrina e que vive de
figmenta. E Venancio disse que também os salmos são obra de poesia e usam metáforas,
e Jorge irou-se porque disse que os salmos são obra de inspiração divina e usam
metáforas para transmitir a verdade enquanto as obras dos poetas pagãos usam
metáforas para transmitir a mentira e com fins de mero deleite, coisa que muito me
ofendeu...
- Porquê?
- Porque eu ocupo-me de retórica, e leio muitos poetas pagãos, e sei... ou melhor,
creio que através da sua palavra também foram transmitidas verdades naturaliter
cristãs... Em suma, naquele ponto, se me recordo bem, Venancio falou de outros livros,
e Jorge zangou-se muito.
- Que livros?
Bêncio hesitou:
- Não me recordo. Que importa de que livros se falou?
- Importa muito, porque aqui estamos procurando compreender o que terá acontecido
entre homens que vivem entre os livros, com os livros, dos livros, e portanto também as
suas palavras sobre os livros são importantes.
- É verdade - disse Bêncio, sorrindo pela primeira vez e quase com o rosto iluminado. -
Nós vivemos para os livros. Doce missão neste mundo dominado pela desordem e pela
decadência. Então talvez compreendais o que aconteceu naquele dia. Venancio, que
sabe... que sabia muito bem o grego, disse que Aristóteles tinha dedicado especialmente
ao riso o segundo livro da Poética e que, se um filósofo daquela grandeza tinha
consagrado um livro inteiro ao riso, o riso devia ser uma coisa importante. Jorge disse
que muitos padres tinham dedicado livros inteiros ao pecado, que é uma coisa
importante mas má, e Venancio disse que, pelo que ele sabia, Aristóteles tinha falado do
riso como coisa boa e instrumento de verdade, e então Jorge perguntou-lhe com escárnio
se por acaso ele tinha lido esse livro de Aristóteles, e Venancio disse ainda que ninguém
podia tê-lo lido, porque jamais se tinha encontrado e talvez se tivesse perdido. E de fato
nunca ninguém pôde ler o segundo livro da Poética, Guilherme de Moerbeke nunca o teve
nas mãos. Então Jorge disse que se não se tinha encontrado era porque nunca tinha sido
escrito, porque a Providência não queria que fossem glorificadas as coisas fúteis. Eu
queria acalmar os ânimos, porque Jorge facilmente se irrita e Venancio falava de modo a
provocá-lo, e disse que na parte da Poética que conhecemos, e na Retórica, se
encontram muitas observações sábias sobre os enigmas argutos, e Venancio esteve de
acordo comigo. Ora estava conosco Pacífico de Tivoli, que conhece bastante bem os
poetas pagãos, e disse que quanto a enigmas argutos ninguém supera os poetas
africanos. Citou mesmo o enigma do peixe, o de Sinfósio:
Est domus in terris, clara quae voce resultat. Ipsa domus resonat, tacitus sed non
sonat hospes. Ambo lamen currunt, hospes simul et domus una.
Nessa altura, Jorge disse que Jesus tinha recomendado que o nosso falar fosse sim ou
não e que o mais vinha do maligno; e que bastava dizer peixe para nomear o peixe, sem
lhe ocultar o conceito sob sons mentirosos. E acrescentou que não lhe parecia sábio
tomar como modelo os africanos... E então...
- Então?
- Então aconteceu uma coisa que não compreendi. Berengário pôs-se a rir, Jorge
repreendeu-o, e ele disse que ria porque lhe tinha vindo à mente que procurando bem
entre os africanos se encontrariam enigmas bem diversos e não tão fáceis como o do
peixe. Malaquias, que estava presente, ficou furibundo, quase agarrou Berengário pelo
capucho, mandando-o ocupar-se dos seus assuntos... Berengário, como sabeis, é o seu
ajudante...
- E depois?
- Depois Jorge pôs fim à discussão afastando-se. Todos nos fomos embora tratar das
nossas coisas, mas enquanto trabalhava vi que primeiro Venancio e depois Adelmo se
aproximaram de Berengário para lhe pedir qualquer coisa. Vi de longe que se esquivava,
mas eles durante o dia voltaram ambos junto dele. E depois, naquela tarde, vi
Berengário e Adelmo a confabular no claustro, antes de irem para o refeitório. Pronto, é
tudo o que sei.
- Isto é, sabes que as duas pessoas que recentemente morreram em circunstancias
misteriosas tinham pedido qualquer coisa a Berengário - disse Guilherme.
Bêncio respondeu embaraçado:
- Não disse isso! Disse aquilo que aconteceu naquele dia e como vós me haveis
perguntado... - Refletiu um pouco, depois acrescentou à pressa: - Mas se quereis saber a
minha opinião, Berengário falou-lhes de qualquer coisa que está na biblioteca, e é lá que
deveis procurar.
- Porque pensas na biblioteca? Que queria dizer Berengário com as palavras «procurar
entre os africanos»? Não queria dizer que era preciso ler melhor os poetas africanos?
- Talvez, assim parecia, mas então porque é que Malaquias havia de se enfurecer? No
fundo, depende dele decidir se deve dar para leitura um livro de poetas africanos ou
não. Mas eu sei uma coisa: quem folhear o catálogo dos livros encontrará, entre as
indicações que só o bibliotecário conhece, uma que diz freqüentemente «África», e até
encontrei uma que dizia «finis Africae». Uma vez pedi um livro que trazia aquele sinal,
não me recordo qual, o titulo tinha-me despertado a curiosidade; e Malaquias disse-me
que os livros com aquele sinal se tinham perdido. Eis aquilo que sei. Por isso vos digo: é
certo, vigiai Berengário, e vigiai-o quando sobe à biblioteca. Nunca se sabe.
- Nunca se sabe - concluiu Guilherme, despedindo-o.
Depois pôs-se a passear comigo no claustro e observou que: em primeiro lugar, uma
vez mais, Berengário era alvo das murmurações pelos seus irmãos; em segundo lugar,
Bêncio parecia ansioso por nos impelir para a biblioteca. Observei que talvez quisesse
que nós descobríssemos ali coisas que ele também queria saber, e Guilherme disse que
provavelmente era assim, mas que podia também dar-se que, impelindo-nos para a
biblioteca, quisesse afastar-nos de algum outro lugar. Qual?, perguntei. E Guilherme
disse que não sabia, talvez o scriptorium, talvez a cozinha, ou o coro, ou o dormitório,
ou o hospital. Observei que no dia anterior era ele, Guilherme, a ser fascinado pela
biblioteca, e ele respondeu que queria ser fascinado pelas coisas que lhe agradavam e
não por aquelas que os outros lhe aconselhavam. Que, porém, a biblioteca estava
debaixo de olho, e que, nesse caso, também não seria mal procurar penetrar lá de
qualquer modo. As circunstancias já o autorizavam a ser curioso nos limites da cortesia e
do respeito pelos usos e pelas leis da abadia.
Estávamos a afastar-nos do claustro. Servos e noviços saíam da igreja depois da missa.
E, ao dobrarmos o lado ocidental do templo, avistamos Berengário, que saía do portal do
transepto e atravessava o cemitério em direção ao Edifício. Guilherme chamou-o, ele
parou e alcançamo-lo. Estava ainda mais perturbado do que quando o tínhamos visto no
coro, e Guilherme decidiu evidentemente aproveitar, como tinha feito com Bêncio, do
seu estado de animo.
- Então parece que foste tu o último a ver Adelmo vivo - disse-lhe.
Berengário vacilou, como se estivesse para cair desmaiado:
- Eu? - perguntou num fio de voz.
Guilherme tinha lançado a sua pergunta quase ao acaso, provavelmente porque Bêncio
lhe tinha dito que tinha visto os dois a confabular no claustro depois de vésperas.
Mas devia ter acertado em cheio, e Berengário estava, claramente, pensando num outro e verdadeiramente último encontro, porque começou a falar com voz entrecortada.
- Como podeis dizer isso, eu vi-o antes de ir repousar, como todos os outros.
Então Guilherme decidiu que valia a pena não o deixar respirar:
- Não, tu voltaste a vê-lo, e sabes mais coisas do que queres crer. Mas aqui estão
agora em jogo dois mortos e já não podes calar-te. Sabes muito bem que há muitos
modos para fazer falar uma pessoa!
Guilherme tinha-me dito várias vezes que, mesmo como inquisidor, sempre lhe tinha
repugnado a tortura, mas Berengário interpretou-o mal (ou Guilherme queria ser mal
interpretado); de qualquer maneira, o seu jogo resultou eficaz.
- Sim, sim - disse Berengário, rompendo num pranto copioso -, eu vi Adelmo naquela
noite, mas vi-o já morto!
- Como? - interrogou Guilherme -, aos pés da escarpa?
- Não, não, vi-o aqui no cemitério, avançava entre os túmulos, espectro entre os
espectros. Encontrei-o, e súbito me apercebi que não tinha diante de mim um vivo, o seu
rosto era o de um cadáver, os seus olhos olhavam já para as penas eternas.
Naturalmente, só na manhã seguinte, sabendo da sua morte, eu compreendi que tinha
encontrado o seu fantasma, mas já naquele momento me dei conta que estava a ter uma
visão e que diante de mim estava uma alma danada, um lêmure... Oh, Senhor, com que
voz de túmulo me falou!
- E que disse?
«Estou condenado!», assim me disse. «Tal como me vês, tens diante de ti um
retornado do inferno, que ao inferno deve tornar», assim me disse. E eu gritei-lhe:
«Adelmo, vens na verdade do inferno? Como são as penas do inferno?» E tremia, porque
há pouco tinha saído do ofício de completas, onde tinha ouvido ler páginas tremendas
sobre a ira do Senhor. E ele disse-me: «As penas do inferno são infinitamente maiores do
que a nossa língua pode dizer. Vês tu», disse, «esta capa de sofismas com a qual tenho
estado vestido até hoje. Ela me pesa e esmaga, como se tivesse a maior torre de Paris ou
a maior montanha do mundo sobre os ombros, e jamais a poderei tirar. E esta pena foime
dada pela divina justiça pela minha vanglória, por ter considerado o meu corpo um
lugar de delicias, e por ter suposto que sabia mais do que os outros, e por me ter
deleitado com coisas monstruosas, que, acalentadas na minha imaginação, produziram
coisas bem mais monstruosas no interior da minha alma - e agora com elas terei de viver
eternamente. Vês tu? O forro desta capa é como se fosse todo de brasas e fogo ardente,
e é o jogo em que arde o meu corpo, e esta pena é-me dada pelo pecado desonesto da
carne, na qual me viciei, e este fogo agora sem cessar me inflama e me queima!
Estende-me a tua mão, meu belo mestre», disse-me ainda, «ainda que o meu encontro te
sirva de útil ensinamento, dando-te em troca muitos dos ensinamentos que me deste,
estende-me a tua mão, meu belo mestre!» E sacudiu o dedo da sua mão, que ardia, e
caiu-me sobre a mão uma pequena gota do seu suor, e pareceu-me que me furava a mão,
que por muitos dias fiquei com a marca só que a escondi de todos. Depois desapareceu
entre os túmulos, e na manhã seguinte soube que aquele corpo, que tanto me tinha
aterrado, estava já morto aos pés da rocha.
Berengário arquejava e chorava. Guilherme perguntou-lhe:
- E porque é que te chamava seu belo mestre? Tínheis a mesma idade. Tinhas-lhe
acaso ensinado alguma coisa?
Berengário escondeu a cabeça, puxando o capucho sobre o rosto, e caiu de joelhos,
abraçando as pernas de Guilherme:
- Não sei, não sei porque me chamava assim, eu não lhe ensinei nada! - e rebentou em
soluços. - Tenho medo, padre, quero confessar -me a vós! Misericórdia, um diabo comeme
as entranhas!
Guilherme afastou-o de si e estendeu-lhe a mão para o levantar.
- Não, Berengário - disse-lhe -, não me peças que te confesse! Não feches os meus
lábios abrindo os teus. Aquilo que quero saber de ti dir-mo-ás de outro modo. E, se não
mo disseres, descobri-lo-ei por minha conta. Pede-me misericórdia, se queres, não me
peças o silêncio. São demasiados os que se calam nesta abadia. Diz-me, antes, como
viste o seu rosto pálido se era noite cerrada, e como pudeste queimar a mão se era uma
noite de chuva e de granizo e de neve ligeira? Que fazias no cemitério? Vamos - sacudiu-o
com brutalidade pelos ombros -, diz-me ao menos isto!
Berengário tremia por todos os lados:
- Não sei o que fazia no cemitério, não me recordo. Não sei porque vi o seu rosto...
talvez eu tivesse uma luz, não, ele tinha uma luz, trazia uma candeia... talvez tenha
visto o seu rosto à luz da chama...
- Como podia trazer uma luz se chovia e nevava?
- Era depois de completas, logo depois de completas não nevava ainda, começou
depois... Recordo que começavam a descer as primeiras rajadas enquanto fugia para o
dormitório. Fugi para o dormitório, na direção oposta àquela em que ia o fantasma...
E
depois não sei mais nada, peço-vos, não me interrogueis mais se não quereis confessarme.
- Está bem - disse Guilherme -, agora vai, vai para o coro, vai falar com o Senhor, visto
que não queres falar com os homens, ou vai procurar um monge que queira escutar a tua
confissão, porque se desde então não confessas os teus pecados aproximaste-te como
sacrílego dos sacramentos. Vai. Voltaremos a ver-nos.
Berengário desapareceu a correr. E Guilherme esfregou as mãos, como o tinha visto
fazer em muitos outros casos em que estava satisfeito com alguma coisa.
- Bem – disse -, agora muitas coisas se tornam claras.
- Claras, mestre? - perguntei-lhe. - Claras agora que temos também o fantasma de
Adelmo?
- Caro Adso - disse Guilherme -, aquele fantasma parece-me muito pouco fantasma, e
de qualquer modo recitava uma página que já li em algum livro para uso dos pregadores.
Estes monges lêem talvez demasiado, e quando estão excitados revivem as visões que
tiveram nos livros. Não sei se Adelmo terá dito na verdade aquelas coisas ou se
Berengário as terá ouvido porque tinha necessidade de as ouvir. É um fato que esta
história confirma uma série de suposições minhas. Por exemplo: Adelmo morreu suicida,
e a história de Berengário diz-nos que, antes de morrer, ele vagueava presa de uma
grande excitação e um grande remorso por alguma coisa que tinha cometido. Estava
excitado e amedrontado pelo seu pecado porque alguém o tinha amedrontado, e talvez
lhe tenha contado precisamente o episódio da aparição infernal que ele recitou a
Berengário com tanta e tão alucinada mestria. E passava pelo cemitério porque vinha do
coro, onde se tinha confiado (ou confessado) a alguém que lhe tinha incutido terror e
remorso. E do cemitério encaminhava-se, como nos fez compreender Berengário, na
direção oposta ao dormitório, para o Edifício, portanto, mas também (é possível ) para o
muro da cerca por trás das estrumeiras, de onde eu deduzi que se deve ter atirado no
precipício. E atirou-se antes que sobreviesse a tempestade, morreu aos pés do muro, e
só depois o desmoronamento arrastou o seu cadáver entre a torre setentrional e a
oriental.
- Mas e a gota de suor inflamado?
- Já estava na história que ele ouviu e repetiu ou que Berengário imaginou na sua
excitação e no seu remorso. Porque há, em antístrofe ao remorso de Adelmo, um
remorso de Berengário, tu ouviste-o. E se Adelmo vinha do coro trazia talvez um círio, e
a gota sobre a mão do amigo era apenas uma gota de cera. Mas Berengário sentiu-se
arder muito mais porque Adelmo certamente lhe chamou seu mestre. Sinal, portanto, de
que Adelmo o reprovava por ele lhe ter ensinado qualquer coisa pela qual ele sentia
então um desespero de morte. E Berengário sabe-o, ele sofre porque sabe que impeliu
Adelmo para a morte levando-o a fazer algo que não devia. E não é difícil imaginar o
quê, meu pobre Adso, depois daquilo que ouvimos sobre o nosso ajudante-bibliotecário.
- Creio ter compreendido o que sucedeu entre os dois - disse, envergonhando-me da
minha sagacidade -, mas não acreditamos todos num Deus de misericórdia? Adelmo,
dizeis, provavelmente tinha-se confessado: porque procurou punir o seu primeiro pecado
com um pecado decerto maior ainda, ou pelo menos de igual gravidade?
- Porque alguém lhe disse palavras de desespero. Eu disse que certa página de
pregador dos nossos dias deve ter sugerido a alguém as palavras que amedrontaram
Adelmo e com que Adelmo amedrontou Berengário. Nunca como nestes últimos anos os
pregadores ofereceram ao povo, para lhe estimular a piedade e o terror (e o fervor, e o
respeito pela lei humana e divina), palavras tão truculentas, perturbadoras e macabras.
Nunca como nos nossos dias, no meio de procissões de flagelantes, se ouviram laudes
sacras inspiradoras nas dores de Cristo e da Virgem, nunca como hoje se insistiu tanto em
estimular a fé dos simples através da evocação dos tormentos infernais.
- Talvez seja necessidade de penitência - disse.
- Adso, nunca ouvi tantos apelos à penitência como hoje, num período em que já nem
pregadores nem bispos e nem sequer os meus irmãos espirituais estão em condições de
promover uma verdadeira penitência...
- Mas a terceira idade, o papa angélico, o capitulo de Perugia... - disse, confundido.
- Nostalgias. A grande época da penitência acabou, e por isso até o capítulo geral da
ordem pode falar de penitência. Houve, há cem, duzentos anos, uma grande vaga de
renovação. Era ainda quando quem falava dela era queimado, fosse santo ou herege.
Agora todos falam dela. Num certo sentido, discute sobre ela até o papa. Não te fies nas
renovações do gênero humano quando delas falam as cúrias e as cortes.
- Mas frei Dolcino - ousei, curioso por saber mais sobre aquele nome que tinha ouvido
pronunciar várias vezes no dia anterior.
- Morreu, e mal, tal como viveu, porque também ele veio demasiado tarde. E depois
que sabes tu dele?
- Nada, por isso vos pergunto...
- Prefiro nunca falar dele. Deram-me que fazer alguns dos chamados apóstolos, e
observei-os de perto. Uma história triste. Perturbar-te-ia. De qualquer modo, perturboume
a mim, e ainda mais te perturbaria a minha própria incapacidade de julgar. É a
história de um homem que fez coisas insensatas porque tinha posto em prática aquilo
que lhe tinham pregado muitos santos. A certa altura eu já não compreendia de quem
era a culpa, fiquei como... como obnubilado por um ar de família que soprava nos dois
campos adversos, santos que pregavam a penitência e pecadores que a punham em
prática, freqüentemente à custa dos outros... Mas estava a falar de outra coisa. Ou
talvez não, falava ainda disto finda a época da penitência para os penitentes, a
necessidade de penitência tornou-se necessidade de morte. E aqueles que mataram os
penitentes enlouquecidos, restituindo morte à morte, para derrotar a verdadeira
penitência, que provocava morte, substituíram à penitência da alma uma penitência da
imaginação, um apelo a visões sobrenaturais de sofrimento e de sangue, chamando-lhes
«espelho» da verdadeira penitência. Um espelho que faz viver em vida, à imaginação dos
simples, e por vezes também dos doutos, os tormentos do interno. A fim de que, diz-se,
ninguém peque. Esperando apartar as almas do pecado por meio do medo e confiando
em substituir à rebelião o medo.
- Mas na verdade depois não pecarão? - perguntei ansiosamente.
- Depende do que entendas por pecar, Adso - disse-me o mestre. - Eu não quero ser
injusto para com a gente deste país, em que vivo há alguns anos, mas parece-me que é
típico da pouca virtude das populações italianas não pecar por medo de algum ídolo, por
mais que lhe chamem santo. Têm mais medo de São Sebastião ou Santo Antônio do que
de Cristo. Se uma pessoa aqui quer conservar limpo um sítio, para que não mijem aí,
como fazem os italianos à maneira dos cães, pinta-se-lhe em cima uma imagem de Santo
Antônio com a ponta de madeira, e esta enxotará aqueles que estão para mijar. Assim,
os italianos, e por obra dos seus pregadores, arriscam-se a voltar às antigas superstições
e já não crêem na ressurreição da carne; têm só um grande medo das feridas corporais e
das desgraças, e por isso têm mais medo de Santo Antônio do que de Cristo.
- Mas Berengário não é italiano - observei.
- Não importa, estou falando do clima que a Igreja e as ordens pregadoras difundiram
nesta península e que daqui se difunde por toda a parte. E atinge até uma venerável
abadia de monges doutos, como estes.
- Mas ao menos que não pecassem - insisti, porque estava disposto a contentar-me só
com isto.
- Se esta abadia fosse um speculum mundi, terias já a resposta.
- Mas é-o? - perguntei.
- Para que haja espelho do mundo é preciso que o mundo tenha uma forma - concluiu
Guilherme, que era demasiado filósofo para a minha mente adolescente.
SEGUNDO DIA
TERÇA
Onde se assiste a uma rixa entre pessoas vulgares, Amaro de Alexandria faz algumas
alusões e Adso medita sobre a santidade e sobre o esterco do demônio. Depois,
Guilherme e Adso voltam ao scriptorium, Guilherme vê qualquer coisa de interessante,
tem a terceira conversa sobre a legitimidade do riso, mas em definitivo, não pode olhar para onde queria.
Antes de subir ao scriptorium passamos pela cozinha para nos restaurarmos, porque
não tínhamos ainda tomado nada desde que nos tínhamos levantado. Revigorei-me logo
bebendo uma tigela de leite quente. A grande chaminé meridional já ardia como uma
forja, enquanto no forno se estava preparando o pão do dia. Dois cabreiros estavam
depositando os restos de uma ovelha que acabavam de matar. Entre os cozinheiros vi
Salvador, que me sorriu com a sua boca de lobo. E vi que tirava de uma mesa um resto
do frango da noite anterior e o passava às escondidas aos cabreiros, que o ocultavam nas
suas jaquetas de pele com um risinho de satisfação. Mas o cozinheiro-chefe apercebeu-se
disso e repreendeu Salvador:
- Despenseiro, despenseiro – disse -, tu deves administrar os bens da abadia, não
dissipá-los!
- Filii Dei son - disse Salvador. - Jesus disse que facite por ele aquilo que facite a um
destes pueri!
- Fraticello das minhas bragas, piedoso menorita! - gritou-lhe então o cozinheiro. - Já
não estas entre os teus frades pedintes! Em dar aos filhos de Deus pensará a misericórdia
do Abade!
O rosto de Salvador escureceu, e ele voltou-se irritadíssimo:
-Não sou um fraticello menorita! Sou um monge Sancti Benedicti! Merdre á toy,
bogomilo de merda!
- Bogomila é a rameira que tu fodes à noite, com a tua verga herética, porquê gritou o
cozinheiro.
Salvador mandou sair à pressa os cabreiros e ao passar perto de nós olhou-nos com
preocupação:
- Frade - disse a Guilherme -, defende tu a tua ordem, que não é a minha, diz-lhe que
os filios Francisci não heréticos esse! - Depois sussurrou-me ao ouvido: - Ule menteur,
pufff - e cuspiu para o chão.
O cozinheiro veio empurrá-lo para fora com mau modo e fechou-lhe a porta nas
costas.
- Frade - disse a Guilherme com respeito -, eu não falava mal da vossa ordem e dos
homens santíssimos que nela estão. Falava com aquele falso menorita e falso beneditino
que não é carne nem peixe.
- Sei donde vem - disse Guilherme conciliador. - Mas agora monges como tu, e deveslhe
respeito fraterno.
- Mas ele mete o nariz onde não deve metê-lo, porque é protegido pelo despenseiro, e
julga-se ele o despenseiro. Usa da abadia como se fosse coisa sua, de dia e de noite!
- Porquê de noite? - perguntou Guilherme.
O cozinheiro fez um gesto como para dizer que não queria falar de coisas pouco
virtuosas. Guilherme não lhe perguntou mais nada e acabou de beber o seu leite.
A minha curiosidade estava cada vez mais excitada. O encontro com Ubertino, as
murmurações sobre o passado de Salvador e do despenseiro, as alusões cada vez mais
freqüentes aos fraticelli e aos menoritas heréticos que ouvia fazer naqueles dias, a
reticência do mestre em falar-me de frei Dolcino... Uma série de imagens começava a
recompor-se na minha mente. Por exemplo, enquanto cumpríamos a nossa viagem
tínhamos encontrado pelo menos duas vezes uma procissão de flagelantes. Duma vez a
população do lugar olhava-os como santos, doutra vez começava a murmurar que eram
hereges. E no entanto tratava-se sempre da mesma gente. Iam em procissão dois a dois,
pelas estradas da cidade, cobrindo só as pudenta, tendo superado qualquer sentimento
de vergonha. Cada um tinha na mão um açoite de couro, e feriam-se nas costas até
fazerem sangue, derramavam abundantes lágrimas como se vissem com os seus olhos a
paixão do Salvador, imploravam com um canto lamentoso a misericórdia do Senhor e a
ajuda da Mãe de Deus. Não só de dia, mas também de noite, com os círios acesos, no
rigor do Inverno, iam em grande multidão pelas igrejas em redor, prostravam-se
humildemente diante dos altares, precedidos por sacerdotes com círios e estandartes, e
não só homens e mulheres do povo mas também nobres matronas e mercadores... E
então assistia-se a grandes atos de penitência, aqueles que tinham roubado restituíam o
produto do roubo, outros confessavam os seus crimes...
Mas Guilherme tinha-os olhado com frieza e tinha-me dito que aquela não era
verdadeira penitência... Melhor, tinha falado como ainda há pouco o fizera, naquela
mesma manhã: o período da grande lavagem penitencial tinha findado, e aqueles eram
os modos como os próprios pregadores organizavam as devoções das multidões,
precisamente para que não caíssem na pena de um outro desejo de penitência que – esse
- era herético e fazia medo a todos. Mas não conseguia compreender a diferença, se
acaso a havia. Parecia-me que a diferença não vinha dos gestos de um ou de outro, mas
do olhar com que a Igreja julgava um e outro gesto.
Recordava-me da discussão com Ubertino. Guilherme tinha sido indubitavelmente
insinuante, tinha procurado dizer-lhe que havia pouca diferença entre a sua fé mística (e
ortodoxa) e a fé distorcida dos hereges. Ubertino tinha-se melindrado, como quem visse
bem a diferença. A impressão com que tinha ficado foi que ele era diverso precisamente
porque era aquele que sabia ver a diversidade. Guilherme subtraiu-se aos deveres da
Inquisição porque já não sabia vê-la. Por isso não conseguia falar-me daquele misterioso
frei Dolcino. Mas então, evidentemente (dizia para comigo), Guilherme perdeu a
assistência do Senhor, que não só ensina a ver a diferença mas, por assim dizer, investe
os seus diletos desta capacidade de discernimento. Ubertino e Clara de Montefalco (que
no entanto escava rodeada de pecadores) tinham permanecido santos precisamente
porque sabiam discriminar. A santidade é isto, e nada mais.
Mas porque é que Guilherme não sabia discriminar? No entanto, era um homem muito
arguto, e pelo que respeitava aos fatos da natureza sabia distinguir a menor
desigualdade e o menor parentesco entre as coisas...
Estava imerso nestes pensamentos, e Guilherme acabava de beber o seu leite, quando
ouvimos alguém que nos cumprimentava. Era Aymaro de Alexandria, que já tínhamos
conhecido no scriptorium e de quem me tinha impressionado a expressão do rosto,
inspirada num perpétuo riso de escárnio, como se jamais conseguisse capacitar-se da
fatuidade de todos os seres humanos e todavia não atribuísse grande importância a esta
tragédia cósmica.
- Então, frade Guilherme, já vos habituastes a esta espelunca de dementes?
- Parece-me um lugar de homens admiráveis de santidade e doutrina - disse
cautamente Guilherme.
- Era. Quando os abades faziam de abades e os bibliotecários de bibliotecários. Agora,
como vistes, lá em cima - e apontava para o andar superior -, aquele alemão meio morto
com olhos de cego está a ouvir devotamente os devaneios daquele espanhol cego com
olhos de morto; parece que está para chegar o Anticristo todas as manhãs, raspam-se os
pergaminhos, mas livros novos entram pouquíssimos... Nós estamos aqui, e lá em baixo,
nas cidades, age-se... Outrora, das nossas abadias governava-se o mundo. Hoje, bem
vedes, o imperador usa-nos para enviar aqui os seus amigos ao encontro dos seus inimigos
(sei alguma coisa da vossa missão, os monges falam, falam, nada mais têm a fazer), mas
se queres controlar as coisas deste país fica nas cidades. Nós estamos a colher trigo e a
criar galinhas, e lá em baixo trocam braças de seda por peças de linho, e peças de linho
por sacos de especiarias, e tudo isso por bom dinheiro. Nós conservamos o nosso tesouro,
mas lá em baixo acumulam-se tesouros. E livros também. E mais belos que os nossos.
- No mundo acontecem decerto muitas coisas novas. Mas porque pensais que a culpa é
do Abade?
- Porque passou a biblioteca para as mãos dos estrangeiros e conduz a abadia como
uma cidadela erguida em defesa da biblioteca. Uma abadia beneditina nesta plaga
italiana deveria ser um lugar onde italianos decidissem por coisas italianas. Que fazem os
italianos, hoje que já nem sequer têm um papa? Comerciam, fabricam, são mais ricos
que o rei de França. E então, façamos também nós o mesmo; se sabemos fazer belos
livros, fabriquemo-los para as universidades; e ocupemo-nos de quanto acontece lá em
baixo, nos vales, não digo do imperador, com todo o respeito pela vossa missão, frade
Guilherme, mas do que fazem os bolonheses ou os florentinos. Podemos controlar daqui a
passagem dos peregrinos e dos mercadores que vão da Itália à Provença e vice-versa.
Abramos a biblioteca aos textos em língua vulgar, e subirão cá acima também aqueles
que já não escrevem em latim. Mas, ao invés, somos controlados por um grupo de
estrangeiros que continuam a conduzir a biblioteca como se em Cluny fosse ainda abade
o bom Odillone...
- Mas o Abade é italiano - disse Guilherme.
- O Abade aqui não conta nada - disse Aymaro, sempre escarnecendo. - No lugar da
cabeça tem um armário da biblioteca. Está carunchoso. Para fazer arreliar o papa, deixa
que a abadia seja invadida por fraticelli... quero dizer, os heréticos, frade, os transtugas
da vossa ordem santíssima... e para fazer o que agrada ao imperador chama aqui monges
de todos os mosteiros do Norte, como se entre nós não houvesse excelentes copistas e
homens que sabem grego e árabe, e não houvesse em Florença ou em Pisa filhos de
mercadores, ricos e generosos, que entrariam voluntariamente na ordem se a ordem
oferecesse a possibilidade de incrementar a potência e o prestígio do pai. Mas aqui, a
indulgência pelas coisas do século reconhece-se apenas quando se trata de permitir aos
alemães... Oh, bom Senhor, fulminai a minha língua, que estou para dizer coisas pouco
convenientes!
- Na abadia acontecem coisas pouco convenientes? – perguntou distraidamente
Guilherme, servindo-se de um pouco mais de leite.
- Também o monge é um homem - sentenciou Aymaro. Depois acrescentou: - Mas aqui
são menos homens que noutros lugares. E aquilo que disse fique claro que não o disse.
- Muito interessante - disse Guilherme. - E essas são opiniões vossas ou de muitos que
pensam como vós?
- De muitos, de muitos. De muitos que agora se lamentam pela desventura do pobre
Adelmo, mas se no precipício tivesse caído qualquer outro, que anda pela biblioteca mais
do que devia, não ficariam descontentes.
-Que quereis dizer?
- Falei de mais. Aqui falamos de mais, já o tereis notado. Aqui o silêncio já ninguém o
respeita, por um lado. Por outro lado, respeita-se demasiado. Aqui, em vez de se falar
ou de se ficar calado, dever-se-ia agir. Na época de ouro da nossa ordem, se um abade
não tivesse uma têmpera de abade, uma bela taça de vinho envenenado e estava aberta
a sucessão. Disse-vos estas coisas, entenda-se, frade Guilherme, não para murmurar
acerca do Abade ou de outros irmãos. Deus me livre disso, felizmente não tenho o feio
vício da murmuração. Mas não queria que o Abade vos tivesse pedido para investigardes
sobre mim ou sobre qualquer outro como Pacífico de Tivoli ou Pedro de Sant'Albano.
Nós
não temos nada a ver com as histórias da biblioteca. Mas queríamos ter a ver um pouco
mais. Então agora destapai este ninho de serpentes, vós que haveis queimado tantos
hereges.
- Eu nunca queimei ninguém - respondeu secamente Guilherme.
- Dizia isso por dizer - admitiu Aymaro com um grande sorriso. - Boa caça, frade
Guilherme, mas prestai atenção de noite.
- Porque não de dia?
- Porque de dia aqui trata-se o corpo com as ervas boas e de noite adoece-se a mente
com as ervas más. Não acrediteis que Adelmo tenha sido precipitado no abismo pelas
mãos de alguém ou que as mãos de alguém tenham metido Veneno no sangue. Aqui
alguém não quer que os monges decidam sozinhos onde ir, que fazer e que coisa ler. E
usam-se forças do inferno, ou dos necromantes amigos do inferno, para transtornar as
mentes dos curiosos...
- Falais do padre ervanário?
- Severino de Sant'Emmerano é boa pessoa. Naturalmente, alemão ele, alemão
Malaquias...
E depois de ter demonstrado uma vez mais que não estava disposto à murmuração,
Aymaro saiu para trabalhar.
- Que terá querido dizer-nos? - perguntei.
- Tudo e nada. Uma abadia é sempre um lugar onde os monges estão em luta entre si
para conseguirem o governo da comunidade. Também em Melk, mas talvez como noviço
não tenhas tidos ocasião de dar conta disso. Mas, no teu país, conquistar o governo de
uma abadia significa conquistar um lugar de onde se trata diretamente com o imperador.
Neste país, pelo contrário, a situação é diversa, o imperador está longe, mesmo quando
desce até Roma. Não há uma corte, nem sequer a papal, hoje em dia. Há as cidades, têlo-
ás percebido.
- Decerto, e fiquei impressionado. A cidade em Itália é diversa da dos meus lados...
Não é só um lugar para habitar: é um lugar para decidir, estão sempre todos na praça,
contam mais os magistrados citadinos que o imperador ou o papa. São... como tantos
reinos...
- E os reis são os mercadores. E a sua arma é o dinheiro. O dinheiro tem, na Itália,
uma função diversa da do teu país, ou do meu. Por toda a parte circula dinheiro, mas
grande parte da vida é ainda dominada e regulada pela troca de bens, frangos ou gabelas
de trigo, ou uma podoa, ou um carro, e o dinheiro serve para arranjar estes bens. Terás
notado que na cidade italiana, pelo contrário, os bens servem para arranjar dinheiro. E
mesmo os padres e os bispos, e até as ordens religiosas, devem fazer as contas com
dinheiro. É por isso, naturalmente, que a rebelião contra o poder se manifesta como
apelo à pobreza, e se rebelam contra o poder aqueles que são excluídos da relação com
o dinheiro, e qualquer apelo à pobreza suscita tanta tensão e tantos debates, e a cidade
inteira, do bispo ao magistrado, sente como seu inimigo quem prega demasiado a
pobreza. Os inquisidores sentem fedor do demônio onde alguém reagiu ao fedor do
esterco do demônio. E então compreenderás também em que está pensando Aymaro.
Uma abadia beneditina, nos tempos áureos da ordem, era o lugar de onde os pastores
controlavam o rebanho dos fiéis. Aymaro quer que se volte à tradição. Só que a vida do
rebanho mudou, e a abadia só pode voltar à tradição (à sua glória, ao seu poder de
outros tempos) se aceitar os novos costumes do rebanho, tornando-se diversa. E como
hoje aqui se domina o rebanho não com as armas ou com o esplendor dos ritos mas com o
controle do dinheiro, Aymaro quer que toda a fábrica da abadia, e a própria biblioteca,
se tornem oficina e fábrica de dinheiro.
- E que tem isso a ver com os delitos, ou com o delito?
- Ainda não sei. Mas agora queria subir. Vem.
Os monges já estavam a trabalhar. No scriptorium reinava o silêncio, mas não era o
silêncio que se segue à paz operosa dos corações. Berengário, que nos tinha precedido
havia pouco, acolheu-nos com embaraço. Os outros monges levantaram a cabeça do seu
trabalho. Sabiam que estávamos ali para descobrir alguma coisa acerca de Venancio, e a
própria direção dos seus olhares fixou a nossa atenção sobre um lugar vazio, sob uma
janela que se abria para o interior do octógono central.
Embora fosse um dia muito frio, a temperatura no scriptorium era bastante suave. Não
fora por acaso que tinha sido disposto sobre as cozinhas, de onde provinha bastante
calor, ainda porque os canos das chaminés dos dois tornos situados por baixo passavam
por dentro das pilastras que sustentavam as duas escadas de caracol postas nos torreões
ocidental e meridional. Quanto ao torreão setentrional, do lado oposto da grande sala,
não tinha escada, mas uma grande lareira que ardia difundindo um agradável calor.
Além
disso, o pavimento tinha sido coberto de palha, o que tornava os nossos passos
silenciosos. Em suma, o angulo menos aquecido era o do torreão oriental, e de fato
notei, pois permaneciam lugares vagos em relação ao número de monges no trabalho,
que todos tendiam a evitar as mesas colocadas naquela direção. Quando mais tarde me
dei conta de que a escada de caracol do torreão oriental era a única que conduzia não só
para baixo, ao refeitório, mas também para cima, à biblioteca, perguntei-me se um
cálculo sapiente não teria regulado o aquecimento da sala de modo que os monges
fossem dissuadidos de espreitar para aquele lado e fosse mais fácil ao bibliotecário
controlar o acesso à biblioteca. Mas talvez exagerasse nas minhas suspeitas, tornando-me
uma pobre imitação do meu mestre, porque logo pensei que este cálculo não teria dado
grandes frutos de Verão - a não ser (disse para comigo) que de Verão aquele não fosse
precisamente o lado mais assoalhado, e por isso, outra vez, o mais evitado.
A mesa do pobre Venancio ficava de costas para a grande chaminé, e era
provavelmente uma das mais cobiçadas. Eu tinha passado então uma pequena parte da
minha vida num scriptorium, mas muitas aí passei em seguida, e sei quanto sofrimento
custa ao escriba, ao rubricador e ao estudioso passar à sua mesa as longas horas
invernais, com os dedos que se entorpecem sobre o estilete (quando até com uma
temperatura normal, depois de seis horas de escrita, prende os dedos a terrível cãibra do
monge e o polegar dói como se tivesse sido pisado). E isto explica porque
freqüentemente encontramos à margem dos manuscritos frases deixadas pelo escriba
como testemunho de sofrimento (e de insoirimento), tais como «Graças a Deus cedo
escurece», ou «Oh, se tivesse um bom copo de vinho!», ou ainda «Hoje está frio, a luz é
tênue, este velo tem pêlos, algo não está certo.» Como diz um antigo provérbio, três
dedos seguram a pena, mas o corpo inteiro labora. E adolora.
Mas falava da mesa de Venancio. Mais pequena do que outras, como de resto as que
estavam colocadas à volta do pátio octogonal, destinadas a estudiosos, enquanto eram
mais amplas as que ficavam sob as janelas das paredes externas, destinadas a
miniaturistas e copistas. Por outro lado, também Venancio trabalhava com uma estante,
porque provavelmente consultava manuscritos emprestados à abadia, dos quais fazia a
cópia. Por baixo da mesa estava disposta uma prateleira baixa, onde estavam
amontoadas folhas não encadernadas, e como eram todas em latim deduzi que eram as
suas traduções mais recentes. Estavam escritas de modo apressado, não constituíam
páginas de livro e deveriam ser confiadas depois a um copista e a um miniaturista.
Por
isso, dificilmente se podiam ler. Entre as folhas, alguns livros, em grego. Um outro livro
grego estava aberro sobre a estante, a obra sobre a qual Venancio estava executando nos
últimos dias o seu trabalho de tradutor. Eu então não conhecia ainda o grego, mas o meu
mestre disse que era de um tal Luciano e narrava a história de um homem transformado
em burro. Recordei então uma fábula análoga de Apuleio, que de costume era
severamente desaconselhada aos noviços.
- Porque é que Venancio fazia esta tradução – perguntou Guilherme a Berengário, que
eslava ao nosso lado.
- Foi pedida à abadia pelo senhor de Milão, e a abadia ganhará um direito de preleção
sobre a produção de vinho de algumas propriedades que ficam a oriente. - Berengário
apontou para longe com a mão, mas logo acrescentou: - Não é que a abadia se preste a
trabalhos venais para os leigos. Mas a comitente empenhou-se em que este precioso
manuscrito grego nos fosse emprestado pelo doge de Veneza, a quem o deu o imperador
de Bizâncio, e quando Venancio tivesse terminado o seu trabalho teríamos feito duas
cópias, uma para o comitente e outra para a nossa biblioteca.
- Que portanto não desdenha recolher também fábulas pagãs - disse Guilherme.
-A biblioteca é testemunho da verdade e do erro - disse então uma voz atrás de nós.
Era Jorge. Uma vez mais me espantei (mas muito havia ainda de me espantar nos dias
seguintes) pelo modo inopinado como aquele velho aparecia de improviso, como se nós
não o víssemos e ele nos visse a nós. Perguntei-me ainda que coisa andaria a fazer um
cego no scriptorium, mas dei-me conta em seguida que Jorge era onipresente em todos
os lugares da abadia. E freqüentemente estava no scriptorium, sentado num escano
junto à lareira, e parecia que seguia tudo aquilo que acontecia na sala. Uma vez ouvi-o
do seu lugar perguntar em voz alta: «Quem sobe?», e dirigia-se a Malaquias, que, em
passos abafados pela palha, se encaminhava para a biblioteca. Todos os monges o tinham
em grande estima e dirigiam-se freqüentemente a ele lendo-lhe textos de difícil
compreensão, consultando-o para um escólio ou pedindo-lhe luzes sobre o modo de
representar um animal ou um santo. E ele olhava para o vácuo com os seus olhos
extintos, como se fixasse páginas que tinha vívidas na memória, e respondia que os falsos
profetas estão vestidos como bispos e que da sua boca saem rãs, ou quais eram as pedras
que deviam adornar os muros da Jerusalém celeste, ou que os arimaspos devem ser
representados nos mapas junto da terra do Preste João - recomendando que não
exagerassem ao torná-los sedutores na sua monstruosidade, que bastava que fossem
representados de modo emblemático, reconhecíveis mas não concupiscíveis ou
repelentes até ao riso.
Uma vez ouvi-o aconselhar um escoliasta sobre o modo de interpretar a recapitulatio
nos textos de Ticónio segundo o espírito de Santo Agostinho, para que se evitasse a
heresia donatista. Doutra vez ouvi-o dar conselhos sobre o modo de, comentando,
distinguir os hereges dos cismáticos. Ou ainda dizer a um estudioso perplexo que livro
deveria procurar no catálogo da biblioteca, e quase em que folha encontraria a
referência, assegurando-lhe que o bibliotecário decerto lho entregaria, porque se tratava
de obra inspirada por Deus. Enfim, uma outra vez ouvi-o dizer que um certo livro não era
procurado, porque existia, é verdade, no catálogo, mas tinha sido arruinado pelos ratos
cinqüenta anos antes e pulverizava-se sob os dedos de quem agora lhe tocasse. Ele era,
em suma, a própria memória da biblioteca e a alma do scriptorium. Às vezes repreendia
os monges que ouvia conversar entre si: «Apressai-vos em deixar testemunho da verdade,
que o tempo está próximo!», e aludia à vinda do Anticristo.
- A biblioteca é testemunho da verdade e do erro - disse portanto Jorge.
- Decerto, Apuleio e Luciano eram culpados de muitos erros - disse Guilherme. - Mas
esta fábula contém sob o véu das suas próprias ficções também uma boa moral, porque
ensina como se pagam caro os próprios erros, e além disso creio que a história do homem
transformado em burro alude à metamorfose da alma que cai no pecado.
- Pode ser - disse Jorge.
- Porém, agora compreendo porque é que Venancio, durante aquela conversa de que
me falou ontem, estava tão interessado nos problemas da comédia; de fato também as
fábulas deste tipo podem ser comparadas às comédias dos antigos. Nenhuma delas narra
a história de homens que tenham existido verdadeiramente, como as tragédias, mas, diz
Isidoro, são ficções: «Fabulae poetae a fando nominaverunt quia non sunt res factue sed
tantum loquendo fsctae...»
À primeira não compreendi porque é que Guilherme se tinha entranhado naquela
douta discussão, e precisamente com um homem que parecia não amar semelhantes
assuntos, mas a resposta de Jorge disse-me como o meu mestre tinha sido subtil.
- Naquele dia não se discutia de comédias, mas apenas da legitimidade do riso - disse
Jorge, sombrio.
E eu recordava-me muito bem que quando Venancio se tinha referido àquela
discussão, precisamente no dia anterior, Jorge tinha afirmado que não se recordava.
- Ah - disse Guilherme com negligência -, julgava que tivésseis falado das mentiras dos
poetas e dos enigmas argutos...
- Falava-se do riso - disse secamente Jorge. - As comédias eram escritas pelos pagãos
para mover os espectadores ao riso, e faziam mal. Jesus Nosso Senhor nunca contou
comédias nem fábulas, mas apenas límpidas parábolas que alegoricamente nos instruem
sobre o modo de ganhar o paraíso, e assim seja.
- Pergunto-me - disse Guilherme - porque sois tão contrário à idéia de que Jesus tenha
porventura rido. Eu creio que o riso é um bom remédio, como os banhos, para curar os
humores e as outras afecções do corpo, em particular a melancolia.
- Os banhos são uma coisa boa - disse Jorge -, e o próprio Aquinate os aconselha para
remover a tristeza, que pode ser paixão nociva quando não se dirige a um mal que possa
ser removido através da audácia. Os banhos restituem o equilíbrio dos humores. O riso
sacode o corpo, deforma as linhas do rosto, torna o homem semelhante ao macaco.
- Os macacos não riem, o riso é próprio do homem, é sinal da sua racionalidade - disse
Guilherme.
- Também a palavra é sinal da racionalidade humana e com a palavra pode-se
blasfemar contra Deus. Nem tudo o que é próprio do homem é necessariamente bom. O
riso é sinal de estultícia. Quem ri não crê naquilo de que se ri, mas também não o odeia.
E portanto rir do mal significa não se dispor a combatê-lo, e rir do bem significa
desconhecer a força pela qual o bem se difunde por si. Por isto a regra diz: «Decimus
humilitatis gradus est si non sit facilis ac promptus in risu, quia scriptum est: stultus in
risu exaltat vocem suam.»
- Quintiliano - interrompeu o meu mestre - diz que o riso é de reprimir no panegírico,
por dignidade, mas é de encorajar em muitos outros casos. Tácito louva a ironia de
Calpúrnio Pisão, Plínio o jovem escreveu: «Aliquando praeterea rideo, jocor, ludo, homo
sum.»
- Eram pagãos – replicou Jorge. - A regra diz: «Scurrilitates vero vel verba otiosa et
risum moventia aeterna clausura in omnibus locis damnamus, et ad talia eloquia
discipulum aperire os non permittimus.»
- Porém, quando o verbo de Cristo já tinha triunfado sobre a terra, Sinésio de Cirene
diz que a divindade soube combinar harmoniosamente cômico e trágico, e Élio Spaziano
diz do imperador Adriano, homem de elevados costumes e de animo naturaliter cristão,
que ele soube misturar momentos de alegria e momentos de gravidade. E, enfim,
Ausónio recomenda que se deve dosear com moderação o sério e o jocoso.
- Mas Paulino de Nola e Clemente de Alexandria puseram-nos em guarda contra estas
estultícias, e Sulpicio Severo diz que São Martinho nunca foi visto por ninguém nem presa
da ira nem presa da hilaridade.
- Porém recorda o santo algumas respostas spiritualiter salsa - disse Guilherme.
- Eram prontas e sapientes, não ridículas. São Efraim escreveu um parêntese contra o
riso dos monges, e no De habitu et conversatione monachorum recomenda-se que se
evitem obscenidades e facécias como se fossem o veneno das áspides!
- Mas Hildeberto disse: « Admittenda tibi joca sunt post seria quaedam, sed tamen et
dignis ipsa gerenda modis.» E João de Salisbury autorizou uma modesta hilaridade. E,
enfim, o Eclesiastes, de onde citastes o passo a que se refere a vossa regra, onde se diz
que o riso é próprio do estulto, admite pelo menos um riso silencioso, o do animo sereno.
- O animo é sereno apenas quando contempla a verdade e quando se deleita com o
bem cumprido, e da verdade e do bem não se ri. Eis porque Cristo não ria. O riso é fonte
de dúvida.
- Mas às vezes é justo duvidar.
- Não vejo a razão. Quando se duvida é preciso dirigir-se a uma autoridade, às
palavras de um padre ou de um doutor, e cessa qualquer razão de dúvida. Pareceis-me
embebido de doutrinas discutíveis, como as dos lógicos de Paris. Mas São Bernardo soube
intervir bem contra o castrado Abelardo, que queria submeter todos os problemas ao
exame frio e sem vida de uma razão não iluminada pelas escrituras, pronunciando o seu
é assim e não é assim. Decerto que aquele que aceitar estas idéias perigosíssimas pode
também apreciar o jogo do insipiente que ri daquilo de que só se deve saber a única
verdade, que já foi dita uma vez por todas. Assim, rindo, o insipiente diz
implicitamente: «Deus non est.»
- Venerável Jorge, pareceis-me injusto quando tratais Abelardo de castrado, porque
sabeis que incorreu em tão triste condição pela iniqüidade de outrem...
- Pelos seus pecados. Pela altivez da sua confiança na razão do homem. Assim, a fé
dos simples foi escarnecida, os mistérios de Deus foram desentranhados (ou tentou-se,
estultos aqueles que o tentaram), questões que se relacionavam com as coisas altíssimas
foram tratadas temerariamente, escarneceu-se dos padres porque tinham considerado
que tais questões estavam mais sopitas do que expostas.
- Não estou de acordo, venerável Jorge. Deus quer de nós que exercitemos a nossa
razão sobre muitas coisas obscuras sobre as quais a escritura nos deixou livres de decidir.
E, quando alguém vos propõe acreditar numa proposição, vós deveis primeiro examinar
se ela é aceitável, porque a nossa razão foi criada por Deus, e aquilo que agrada à nossa
razão não pode deixar de agradar à razão divina, sobre a qual, por outro lado, sabemos
só aquilo que, por analogia e freqüentemente por negação, inferimos dos procedimentos
da nossa razão. E então vedes que, por vezes, para minar a falsa autoridade de uma
proposição absurda que repugna à razão, também o riso pode ser um instrumento justo.
Freqüentemente, o riso serve também para confundir os malvados e para fazer refulgir a
sua estultícia. Conta-se de São Mauro que os pagãos o puseram em água a ferver e ele se
lamentou que o banho estava demasiado frio; o governador pagão meteu estupidamente
a mão na água, para verificar, e queimou-se. Bela ação daquele santo mártir que
ridicularizou os inimigos da fé.
Jorge escarneceu:
- Mesmo nos episódios que contam os pregadores se encontram muitas petas. Um santo
imerso em água a ferver sofre por Cristo e retém os seus gritos, não prega partidas de
crianças aos pagãos!
- Vedes? - disse Guilherme -, esta história parece-vos que repugna à razão, e acusai-la
de ser ridícula! Seja embora tacitamente e controlando os vossos lábios, vós estais rindo
de alguma coisa e quereis que eu também não a tome a sério. Rides do riso, mas rides.
Jorge teve um gesto de enfado:
- Jogando com o riso arrastais-me para discursos vãos. Mas vós sabeis que Cristo não
ria.
- Não tenho a certeza disso. Quando convida os fariseus a atirar a primeira pedra,
quando pergunta de quem é a efígie da moeda a pagar em tributo, quando joga com as
palavras e diz: «Tu es petrus», eu creio que Ele dizia coisas argutas, para confundir os
pecadores, para sustentar o animo dos seus. Também fala com argúcia quando diz a
Caifás: «Tu o disseste.» E Jeronimo quando comenta Jeremias, onde Deus diz a
Jerusalém: «nudavi femora contra fa-ciem tuam», explica: «Sive nudabo et relevabo
femora et posteriora tua.» Até Deus se exprime portanto por argúcias para confundir
aqueles que quer punir. E sabeis muito bem que no momento mais aceso da luta entre
clunicenses e cistercenses os primeiros acusaram os segundos, para os tornar ridículos,
de não usarem bragas. E no Speculum stultorum conta-se do burro Brunello que se
pergunta o que aconteceria se de noite o vento levantasse os cobertores e o monge visse
as suas pudenta...
Os monges em volta riram, e Jorge enfureceu-se:
- Estais-me arrastando estes irmãos para uma festa de doidos. Sei que é uso entre os
franciscanos cativar as simpatias do povo com estultícias deste gênero, mas destes jogos
vos direi aquilo que diz um verso que ouvi a um dos vossos pregadores: «Tum podex
carmen extulit horridulum.»
A reprimenda era um pouco forte de mais, Guilherme tinha sido impertinente, mas
agora Jorge acusava-o de emitir peidos pela boca. Perguntei-me se esta resposta severa
não devia significar um convite, por parte do monge ancião, a sair do scriptorium. Mas vi
Guilherme, tão combativo pouco antes, tornar-se manso como um cordeiro.
- Peço-vos perdão, venerável Jorge - disse. - A minha boca traiu os meus pensamentos,
não queria faltar-vos ao respeito. Talvez aquilo que dizeis seja justo e eu me enganasse.
Jorge, diante deste ato de delicada humildade, emitiu um grunhido que tanto podia
exprimir satisfação como perdão, e não pôde fazer outra coisa senão voltar ao seu lugar,
enquanto os monges, que durante a discussão se tinham próxima do pouco a pouco,
refluíam às suas mesas de trabalho. Guilherme voltou-se de novo diante da mesa de
Venancio e recomeçou a buscar entre os papéis. Com a sua resposta humilíssima,
Guilherme tinha ganho alguns segundos de tranqüilidade. E aquilo que viu naqueles
poucos segundos inspirou as suas investigações da noite que estava para vir.
Foram porém verdadeiramente, poucos segundos. Bêncio aproximou-se de súbito,
fingindo ter esquecido o seu estilete sobre a mesa, quando se aproximara para ouvir a
conversa com Jorge, e sussurrou a Guilherme que tinha urgência em falar-lhe, marcandolhe
encontro por trás dos balnea. Disse-lhe ainda que se afastasse primeiro, que ele o
alcançaria dali a pouco.
Guilherme hesitou alguns instantes, depois chamou Malaquias, que da sua mesa de
bibliotecário, junto do catálogo, tinha seguido tudo quanto tinha acontecido, e pediulhe,
em virtude do mandato recebido do Abade (e frisou muito este seu privilégio), que
pusesse alguém de guarda à mesa de Venancio, porque reputava útil ao seu inquérito que
ninguém se aproximasse dela durante todo o dia. até que ele pudesse voltar. Disse-o em
voz alta, porque nesse sentido empenhava não só Malaquias em vigiar os monges, mas os
próprios monges em vigiar Malaquias. O bibliotecário não pôde senão consentir, e
Guilherme afastou-se comigo.
Enquanto atravessávamos o horto e nos púnhamos mais perto dos balnea, que ficavam
encostados à construção do hospital, Guilherme observou:
- Parece que a muitos desagrada que eu ponha as mãos sobre alguma coisa que está
por cima ou por baixo da mesa de Venancio.
- E que será?
- Tenho a impressão que aqueles a quem desagrada também não o sabem.
- Então Bêncio não tem nada a dizer-nos e está somente a atrair-nos para longe do
scriptorium?
- Isso vamos já sabê-lo - disse Guilherme.
De fato, pouco depois, Bêncio veio ter conosco.
SEGUNDO DIA
SEXTA
Onde Bêncio conta uma estranha história, por onde se ficam a saber coisas pouco
edificantes sobre a vida da abadia.
Aquilo que Bêncio nos disse foi um tanto confuso. Parecia verdadeiramente que ele
nos tinha atraído ali só para nos afastar do scriptorium, mas também parecia que,
incapaz de inventar um pretexto convincente, dizia-nos também fragmentos de uma
verdade mais vasta que ele conhecia.
Ele disse-nos que de manhã tinha sido reticente, mas que agora, depois de madura
reflexão, achava que Guilherme devia saber toda a verdade. Durante a famosa conversa
sobre o riso, Berengário tinha-se referido ao «finis Africae». O que era? A biblioteca
estava cheia de segredos, e especialmente de livros que nunca tinham sido dados a ler
aos monges. Bêncio tinha sido atingido pelas palavras de Guilherme sobre o exame
racional das proposições. Ele achava que um monge estudioso tinha o direito de conhecer
tudo aquilo que a biblioteca encerrava, disse palavras inflamadas contra o concílio de
Soissons que tinha condenado Abelardo, e, enquanto falava, demo-nos conta que este
monge ainda jovem, que se deleitava com a retórica, era agitado por frêmitos de
independência e que lhe custava a aceitar os vínculos que a disciplina da abadia punha à
curiosidade do seu intelecto. Eu aprendi sempre a desconfiar de tal curiosidade, mas sei
bem que esta atitude não desagradava ao meu mestre, e apercebi-me que ele
simpatizava com Bêncio e que lhe dava crédito. Em resumo, Bêncio disse-nos que não
sabia de que segredos Adelmo, Venancio e Berengário tinham falado, mas que não lhe
desagradaria que daquela triste história adviesse um pouco de luz sobre o modo como a
biblioteca era administrada, e que não desesperava que o meu mestre, fosse qual fosse o
modo como deslindasse a meada do inquérito, retirasse daí elementos para estimular o
Abade a abrandar a disciplina intelectual que pesava sobre os monges - vindos de tão
longe, como ele, acrescentou, precisamente para nutrir a sua mente com as maravilhas
ocultas no amplo ventre da biblioteca.
Eu creio que Bêncio era sincero ao esperar do inquérito aquilo que dizia.
Provavelmente, porém, queria ao mesmo tempo, como Guilherme tinha previsto,
reservar-se o direito de ser o primeiro a revistar a mesa de Venancio, devorado como era
pela curiosidade, e, para nos manter afastados dela, estava disposto a dar-nos em troca
outras informações. E eis quais elas foram.
Berengário era consumido, já muitos entre os monges o sabiam, por uma insana paixão
por Adelmo, a mesma paixão cujos efeitos nefastos a cólera divina tinha castigado em
Sodoma e Gomorra. Assim se exprimiu Bêncio, talvez por respeito à minha jovem idade.
Mas quem viveu a sua adolescência num mosteiro sabe que, ainda que se tenha mantido
casto, de tais paixões decerto ouviu falar, e por vezes teve de se guardar das insídias de
quem era escravo delas. Jovem monge como era, não tinha já recebido eu próprio, em
Melk, da parte de um monge idoso, cartelas com versos que de costume um leigo dedica
a uma mulher. Os votos monacais mantêm-nos longe daquele antro de vícios que é o
corpo da fêmea mas freqüentemente conduzem-nos à beira de outros erros. Posso enfim
esconder-me que a minha própria velhice é ainda hoje agitada pelo demônio meridiano,
quando me acontece demorar o meu olhar, no coro, sobre o rosto imberbe de um noviço,
puro e fresco como uma menina?
Digo estas coisas não para pôr em dúvida a escolha que fiz de me dedicar à vida
monástica, mas para justificar o erro de muitos para quem este santo fardo se revela
pesado. Talvez para justificar o delito horrível de Berengário. Mas parece-me, segundo
Bêncio, que este monge cultivava o seu vício de modo ainda mais ignóbil, isto é, usando
as armas da chantagem para obter de outros aquilo que a virtude e o decoro lhes
deveriam desaconselhar de doar.
Portanto, há algum tempo que os monges ironizavam sobre os olhares ternos que
Berengário lançava a Adelmo, que parece que eram de uma grande beleza. Enquanto
Adelmo, totalmente enamorado do seu trabalho, do qual somente parecia tirar deleite,
pouco cuidava da paixão de Berengário. Mas talvez, quem sabe, ele ignorasse que o seu
animo, no fundo, o inclinava à mesma ignomínia. O fato é que Bêncio disse que tinha
surpreendido um diálogo entre Adelmo e Berengário em que este, aludindo a um segredo
que Adelmo pedia que lhe revelasse, lhe propunha o torpe mercado que até o leitor mais
inocente pode imaginar. E parece que Bêncio ouviu dos lábios de Adelmo palavras de
consenso, quase ditas com alívio. Como se, aventurava Bêncio, Adelmo no fundo não
desejasse outra coisa e lhe tivesse bastado encontrar uma razão diversa do desejo carnal
para consentir. Sinal, argumentava Bêncio, de que o segredo de Berengário devia dizer
respeito a arcanos da sapiência, de modo que Adelmo pudesse nutrir a ilusão de ceder a
um pecado da carne para contentar um apetite do intelecto. E, acrescentou Bêncio com
um sorriso, quantas vezes ele próprio não era agitado por apetites do intelecto tão
violentos que, para contentá-los, teria consentido em secundar apetites carnais não
seus, mesmo contra a sua própria vontade carnal.
- Não há momentos - perguntou a Guilherme - em que vós faríeis até coisas
reprováveis para ter nas mãos um livro que procurais há anos?
- O sábio e virtuosíssimo Silvestre II, há séculos, deu como oferta uma esfera armilar
preciosíssima por um manuscrito, creio, de Estácio ou Lucano - disse Guilherme.
Acrescentou depois, prudentemente: - Mas tratava-se de uma esfera armilar, não da sua
própria virtude.
Bêncio admitiu que o seu entusiasmo o tinha arrastado longe e retomou a narrativa.
Na noite antes de Adelmo morrer, ele tinha seguido os dois, movido pela curiosidade. E
tinha-os visto, depois de completas, encaminharem-se juntos para o dormitório. Tinha
esperado longo tempo, conservando entreaberta a porta da sua cela, não longe da deles,
e tinha visto claramente Adelmo deslizar, quando o silêncio tinha descido sobre o sono
dos monges, para a cela de Berengário. Tinha continuado a velar, sem poder conciliar o
sono, até que ouvira a porta da cela de Berengário que se abria e Adelmo que fugia de lá
quase a correr, com o amigo procurando retê-lo. Berengário tinha-o seguido enquanto
Adelmo descia ao andar inferior. Bêncio tinha-os seguido cautamente, e à entrada do
corredor inferior tinha visto Berengário, quase a tremer, que, esmagado num canto,
fixava a porta da cela de Jorge. Bêncio tinha intuído que Adelmo se tinha lançado aos
pés do velho irmão para lhe confessar o seu pecado. E Berengário tremia, sabendo que o
seu segredo era revelado, fosse embora sob o sigilo do sacramento.
Depois Adelmo tinha saído, de rosto extremamente pálido, tinha afastado de si
Berengário, que procurava falar-lhe, e tinha-se precipitado para fora do dormitório,
girando em torno da abside da igreja e entrando no coro pelo portal setentrional (que de
noite fica sempre aberto). Provavelmente queria rezar. Berengário tinha-o seguido, mas
sem entrar na igreja, e vagueava entre os túmulos do cemitério torcendo as mãos.
Bêncio não sabia que fazer quando se apercebera que uma quarta pessoa se movia ali
perto. Também ela tinha seguido os dois e decerto não tinha reparado na presença de
Bêncio, que se mantinha rígido contra o tronco de um carvalho plantado nos limites do
cemitério. Era Venancio. Ao vê-lo, Berengário tinha-se agachado entre os túmulos, e
Venancio tinha entrado também ele no coro. Nessa altura, Bêncio, temendo ser
descoberto, tinha regressado ao dormitório. Na manhã seguinte, o cadáver de Adelmo
tinha sido encontrado aos pés da escarpa. E mais Bêncio não sabia.
Aproximava-se então a hora de almoçar. Bêncio deixou-nos, e o meu mestre não lhe
perguntou mais nada. Nós ficamos por algum tempo atrás dos balnea, depois passeamos
por alguns minutos no horto, meditando sobre aquelas singulares revelações.
- Frangula - disse de repente Guilherme, inclinando-se a observar uma planta que
naquele dia de Inverno reconheceu no arbusto. – A infusão da casca é boa para as
hemorróidas. E aquilo é arctium lappa; uma boa cataplasma de raízes frescas cicatriza os
eczemas da pele.
- Sois mais esperto do que Severino - disse-lhe -, mas agora dizei-me o que pensais
daquilo que ouvimos!
- Caro Adso, devias aprender a raciocinar com a tua cabeça. Provavelmente, Bêncio
disse-nos a verdade. A sua narrativa coincide com a que fez Berengário, aliás tão
mesclada de alucinações, hoje de manhã cedo. Tenta reconstruir. Berengário e Adelmo
fazem juntos uma coisa muito feia, já o tínhamos intuído. E Berengário deve ter revelado
a Adelmo aquele segredo que permanece, ai de mim, um segredo. Adelmo, depois de ter
cometido o seu delito contra a castidade e as regras da natureza, pensa apenas em
confiar-se a alguém que possa absolvê-lo, e corre junto de Jorge. Este tem um caráter
muito austero, tivemos provas disso, e decerto acomete Adelmo com angustiantes
reprimendas. Talvez não lhe dê a absolvição, talvez lhe imponha uma penitência
impossível, não sabemos, nem Jorge no-lo dirá jamais. O fato é que Adelmo corre à
igreja a prostrar-se diante do altar, mas não aplaca o seu remorso. Neste ponto é
abordado por Venancio. Não sabemos o que dizem um ao outro. Provavelmente, Adelmo
confia a Venancio o segredo recebido como presente (ou em paga) de Berengário, e que
agora já nada lhe importa, pois que ele tem agora um segredo seu bem mais terrível e
escaldante. Que acontece a Venancio? Provavelmente, tomado pela mesma curiosidade
ardente que hoje também movia o nosso Bêncio, pago por aquilo que soube, deixa
Adelmo entregue aos seus remorsos. Adelmo vê-se abandonado, projeta matar-se, sai
desesperado para o cemitério e ai encontra Berengário. Diz-lhe palavras tremendas,
lança-lhe à cara a sua responsabilidade, chama-lhe seu mestre de turpitude. Creio
mesmo que a narrativa de Berengário, despojada de toda a alucinação, era exata.
Adelmo repete-lhe as mesmas palavras de desespero que deve ter ouvido a Jorge. E eis
que Berengário se vai transtornado, por um lado, e Adelmo vai matar-se pelo outro.
Depois vem o resto, de que fomos quase testemunhas. Todos crêem que Adelmo foi
morto. Venancio fica com a impressão que o segredo da biblioteca é ainda mais
importante do que julgava e continua a busca por sua conta. Até que alguém o faz parar,
antes ou depois de ele ter descoberto aquilo que queria.
- Quem o mata? Berengário?
- Pode ser ou Malaquias, que deve guardar o Edifício. Ou um outro. Berengário é
suspeito precisamente porque está assustado, e sabia que agora Venancio possuía o seu
segredo. Malaquias é suspeito: guarda da integridade da biblioteca, descobre que alguém
a violou e mata. Jorge sabe tudo de todos, possui o segredo de Adelmo, não quer que eu
descubra o que Venancio poderia ter encontrado... Muitos fatos aconselhariam a
suspeitar dele. Mas diz-me tu como é que um homem cego pode matar outro na
plenitude das forças, e como é que um velho, embora robusto, terá podido transportar o
cadáver para a jarra. Mas enfim, porque é que o assassino não poderia ser o próprio
Bêncio? Poderia ter-nos mentido, ser movido por fins inconfessáveis. E porquê limitar os
suspeitos apenas aos que participaram na conversa sobre o riso? Provavelmente, o delito
teve outros móbeis que nada têm a ver com a biblioteca. Em todo o caso, são precisas
duas coisas: saber como se entra na biblioteca de noite e ter uma candeia. Na candeia
pensa tu. Passa pela cozinha à hora do almoço, pega uma...
- Um furto?
- Um empréstimo, para maior glória do Senhor.
- Se é assim, contai comigo.
- Ótimo. Quanto a entrar no Edifício, vimos de onde apareceu Malaquias ontem à
noite. Hoje farei uma visita à igreja e àquela capela em particular. Dentro de uma hora
iremos para a mesa. Depois temos uma reunião com o Abade. Serás admitido nela,
porque pedi para ter um secretário que tome nota de quanto dissermos.
SEGUNDO DIA
NONA
Onde o Abade se mostra orgulhoso das riquezas da sua abadia e temeroso dos hereges
e no fim Adso receia ter feito mal em andar pelo mundo.
Encontramos o Abade na igreja, diante do altar-mor. Estava seguindo o trabalho de
alguns noviços que tinham tirado de alguns penetrais uma série de vasos sagrados,
cálices, patenas, ostensórios, e um crucifixo que não tinha visto durante a função da
manhã. Não pude conter uma exclamação de admiração diante da fulgurante beleza
daquelas alfaias sagradas. Era em pleno meio-dia, e a luz entrava a jorros pelas janelas
do coro e mais ainda pelas das fachadas, formando brancas cascatas que, como místicas
torrentes de divina substancia, iam cruzar-se em vários pontos da igreja, inundando o
próprio altar.
Os vasos, os cálices, tudo revelava a sua matéria preciosa: entre o amarelo do ouro, a
brancura imaculada dos marfins e a transparência do cristal, vi reluzir gemas de todas as
cores e dimensões, e reconheci o jacinto, o topázio, o rubi, a safira, a esmeralda, o
crisólico, o ônix, o carbúnculo e o jaspe e a ágata. E ao mesmo tempo apercebi-me de
tudo quanto, de manhã, arrebatado primeiro na oração e depois perturbado pelo terror,
não tinha notado: o frontal do altar e mais três painéis que lhe faziam de coroa eram
inteiramente de ouro, e enfim o altar parecia de ouro de qualquer parte que se olhasse
pare ele.
O abade sorriu ao meu espanto.
- Estas riquezas que vedes - disse, voltando-se pare mim e pare o meu mestre - e
outras que ainda vereis são a herança de séculos de piedade e devoção e testemunho do
poder e santidade desta abadia. Príncipes e poderosos da terra, arcebispos e bispos
sacrificaram a este altar e aos objetos que lhe são destinados os anéis das suas
investiduras, os ouros e as pedras que eram sinal da sua grandeza, e quiseram refundi-los
aqui pare a maior glória do Senhor e deste seu lugar. Mau grado a abadia tenha sido hoje
fustigada por um outro evento lutuoso, não podemos esquecer diante da nossa
fragilidade a força e a potência do Altíssimo. Aproximam-se as festividades do Santo
Natal, e estamos começando a limpar as alfaias sagradas, de modo que o nascimento do
Salvador seja pois festejado com todo o fasto e a magnificência que merece e requer.
Tudo deverá aparecer no seu pleno fulgor... - acrescentou, olhando fixamente para
Guilherme, e compreendi depois porque insistia tão orgulhosamente em justificar o seu
comportamento - porque pensamos que é útil e conveniente não esconder mas, pelo
contrário, proclamar as divinas liberalidades.
- Decerto - disse Guilherme com cortesia -, se a vossa sublimidade acha que o Senhor
deve ser assim glorificado, a vossa abadia atingiu a maior excelência nesse contributo de
louvores.
- E assim é devido - disse o Abade. - Se ânforas e frascos de ouro e pequenos
almofarizes áureos era uso que servissem, por vontade de Deus ou ordem dos profetas,
para recolher o sangue de cabras ou de vitelos ou da novilha no templo de Salomão,
tantos mais vasos de ouro e pedras preciosas, e tudo aquilo que tem mais valor entre as
coisas criadas, devem ser usados com contínua reverência e plena devoção para acolher
o sangue de Cristo! Se por uma segunda criação a nossa substancia viesse a ser a mesma
dos querubins e dos serafins, seria ainda indigno o serviço que ela poderia prestar a uma
vítima tão inefável...
- Assim seja - disse.
- Muitos objetam que uma mente santamente inspirada, um coração puro, uma
intenção cheia de fé deveriam bastar para esta sagrada função. Nós somos os primeiros a
afirmar explicita e resolutamente que esta é a coisa essencial: mas estamos convencidos
que também se deve render a homenagem através do ornamento exterior da sagrada
alfaia, porque é sumamente justo e conveniente que nós sirvamos o nosso Salvador em
todas as coisas, integralmente, Ele que não se recusou a prover-nos a nós em todas as
coisas integralmente e sem exceções.
- Essa sempre foi a opinião dos grandes da vossa ordem – assentiu Guilherme -, e
recordo coisas belíssimas escritas sobre os ornamentos das igrejas pelo grandíssimo e
venerável abade Sugero.
- Assim é - disse o Abade. - Vede este crucifixo. Não está ainda completo... - Tomou-o
nas mãos com infinito amor e considerou-o com o rosto iluminado de beatitude. - Faltam
aqui algumas pérolas, e ainda não as encontrei da medida justa. Em tempos, Santo André
dirigiu-se à cruz da Gólgota dizendo que era adornada pelos membros de Cristo como de
pérolas. E de pérolas deve ser adornado este humilde simulacro daquele grande prodígio.
Mesmo se considerei oportuno mandar-lhe encastoar, neste ponto, sobre a própria
cabeça do Salvador, o mais belo diamante que jamais vistes. - Acariciou com mãos
devotas, com os seus longos dedos brancos, as partes mais preciosas do sagrado lenho, ou
melhor do sagrado marfim, que desta esplêndida matéria eram feitos os braços da cruz. -
Quando, enquanto me deleito com todas as belezas desta casa de Deus, o encanto das
pedras multicolores me arrancou aos cuidados externos, e uma digna meditação me
levou a refletir, transferindo aquilo que é material para aquilo que é imaterial, sobre a
diversidade das sagradas virtudes, então parece-me que me encontro, por assim dizer,
numa estranha região do universo que já não está de todo fechada na lama da terra nem
de todo liberta na pureza do céu. E parece-me que, pela graça de Deus, eu posso ser
transportado deste mundo inferior ao superior por via anagógica...
Falava, e tinha voltado o rosto para a nave. Um jorro de luz que penetrava do alto
estava, por uma particular benevolência do astro diurno, iluminando o seu rosto e as
mãos, que tinha abertas em forma de cruz, arrebatado como estava pelo seu próprio
fervor.
- Toda a criatura – disse -, seja ela visível ou invisível, é uma luz, levada ao ser pelo
pai das luzes. Este marfim, este ônix, mas também a pedra que nos circunda são uma
luz, porque eu percebo que são bons e belos, que existem segundo as próprias regras de
proporção, que diferem em gênero e espécie de todos os outros gêneros e espécies, que
são definidos pelo seu próprio número, que não se afastam da sua ordem, que procuram
o seu lugar específico conformemente à sua gravidade. E estas coisas são-me reveladas
tanto melhor quanto mais a matéria que eu olho for preciosa por natureza e quanto
melhor ela se fizer luz da potência criadora divina, na medida em que devo remontar à
sublimidade da causa, inacessível na sua plenitude, a partir da sublimidade do efeito;
quanto melhor não me falará da divina causalidade um efeito admirável como o ouro ou
o diamante, se já conseguem falar-me dela até mesmo o esterco e o inseto! E então,
quando nestas pedras percebo essas coisas superiores, a alma chora comovida de alegria,
e não por vaidade terrena ou amor das riquezas, mas por amor puríssimo da causa
primeira não causada.
- Na verdade, esta é a mais doce das teologias - disse Guilherme com perfeita
humildade.
E pensei que usava aquela insidiosa figura de pensamento a que os retóricos chamam
ironia; a qual se deve usar fazendo-a preceder sempre da pronunciatio, que constitui o
seu sinal e a sua justificação; coisa que Guilherme nunca fazia. Razão pela qual o Abade,
mais propenso ao uso das figuras do discurso, tomou Guilherme à letra e acrescentou,
ainda presa do seu místico arrebatamento:
- E a mais imediata das vias que nos põem em contato com o Altíssimo, teofania
material.
Guilherme tossiu educadamente:
- Eh... oh... - disse.
Assim fazia quando queria introduzir um outro argumento. Conseguiu fazê-lo com boa
graça, porque era seu costume - e creio que é típico dos homens da sua terra - iniciar
cada uma das suas intervenções com longos gemidos preliminares, como se encaminhar a
exposição de um pensamento completo lhe custasse um grande esforço da mente. Então,
já me tinha convencido, quantos mais gemidos antepunha à sua asserção tanto mais
estava seguro da bondade da proposição que ela exprimia.
- Eh... oh... - disse pois Guilherme. - Devemos falar do encontro e do debate sobre a
pobreza...
- A pobreza... - disse ainda absorto o Abade, como se lhe custasse a descer daquela
região do universo para onde o tinham arrebatado as suas gemas. - É verdade, o
encontro...
E começaram a discutir afincadamente sobre coisas que eu, em parte, já sabia e em
parte consegui compreender escutando o seu colóquio. Tratava-se, como já disse desde o
início desta minha crônica fiel, da dupla querela que opunha, por um lado, o imperador
ao papa, e, por outro, o papa aos franciscanos que, no capítulo da Perugia, embora com
muitos anos de atraso, tinham feito suas as teses dos espirituais sobre a pobreza de
Cristo; e do enredo que se tinha formado unindo os franciscanos ao império, enredo que
- de triângulo de oposições e de alianças - agora se tinha transformado num quadrado
pela intervenção, ainda muito obscura para mim, dos abades da ordem de São Bento.
Eu nunca atingi com clareza a razão por que os abades beneditinos tinham dado
proteção e refúgio aos franciscanos espirituais, ainda antes que a sua própria ordem
partilhasse de certo modo as suas opiniões. Porque, se os espirituais pregavam a
renúncia a todos os bens terrenos, os abades da minha ordem - tinha dito naquele mesmo
dia a luminosa confirmação disso - seguiam uma via não menos virtuosa mas de todo
oposta. Mas creio que os abades consideravam que um excessivo poder do papa
significava um poder dos bispos e das cidades, enquanto a minha ordem tinha conservado
intacto o seu poder através dos séculos, precisamente em luta com o clero secular e os
mercadores citadinos, colocando-se como direta medianeira entre o céu e a terra e
conselheira dos soberanos.
Tinha ouvido repetir muitas vezes a frase segundo a qual o povo de Deus se dividia em
pastores (ou seja, os clérigos), cães (ou seja, os guerreiros) e ovelhas do povo. Mas
aprendi em seguida que essa frase pode ser repetida de vários modos. Os beneditinos
haviam freqüentemente falado não de três ordens, mas de duas grandes divisões, uma
que dizia respeito à administração das coisas terrenas e outra que dizia respeito à
administração das coisas celestes. Pelo que dizia respeito às coisas terrenas, valia a
divisão entre clero, senhores laicos e povo, mas sobre esta tripartição dominava a
presença da ordo monachorum, ligação direta entre o povo de Deus e o céu, e os monges
não tinham nada que ver com os pastores seculares, que eram os padres e os bispos,
ignorantes e corruptos, propensos então aos interesses das cidades, onde as ovelhas
agora já não eram tanto os bons e fiéis camponeses mas sim os mercadores e os artesãos.
À ordem beneditina não desagradava que o governo dos simples fosse confiado aos
clérigos seculares, contando que o estabelecimento da regra definitiva desta relação
coubesse aos monges, em contato direto com a fonte de todo o poder terrestre, o
império, tal como estavam com a fonte de todo o poder celeste. Eis porque, creio,
muitos abades beneditinos, para restituir dignidade ao império contra o governo das
cidades (bispos e mercadores unidos), aceitaram também proteger os franciscanos
espirituais, cujas idéias não partilhavam, mas cuja presença lhes era cômoda, na medida
em que oferecia ao império bons silogismos contra o poder excessivo do papa.
Eram estas as razões, argüi, pelas quais Abone se dispunha agora a colaborar com
Guilherme, enviado do imperador, para servir de medianeiro entre a ordem franciscana e
a sede pontifícia. De fato, mesmo na violência da disputa que fazia periclitar tanto a
unidade da Igreja, Miguel de Cesena, várias vezes chamado a Avinhão pelo papa João,
tinha-se finalmente disposto a aceitar o convite, porque não queria que a sua ordem
ficasse definitivamente de relações cortadas com o pontífice. Como geral dos
franciscanos, queria ao mesmo tempo fazer triunfar as suas posições e obter o consenso
papal, também porque intuía que sem o consenso do papa não poderia permanecer
muito tempo à testa da ordem.
Mas muitos tinham-lhe feito observar que o papa o esperaria em França para lhe armar
uma cilada, acusá-lo de heresia e processá-lo. E por isso aconselhavam que a ida de
Miguel a Avinhão fosse precedida de algumas negociações. Marsílio tinha tido uma idéia
melhor: enviar com Miguel também um legado imperial que apresentasse ao papa o
ponto de vista dos detensores do imperador. Não tanto para convencer o velho Cahors
mas para reforçar a posição de Miguel, que, fazendo parte de uma delegação imperial,
não poderia cair tão facilmente como presa da vingança pontifícia.
Também esta idéia apresentava todavia numerosos inconvenientes e não era realizável
imediatamente. Daí viera a idéia de um encontro preliminar entre os membros da
delegação imperial e alguns enviados do papa, para provar as respectivas posições e
redigir os acordos para um encontro em que a segurança dos visitantes italianos fosse
garantida. Da organização deste primeiro encontro tinha sido encarregado precisamente
Guilherme de Baskerville, o qual deveria depois representar o ponto de vista dos teólogos
imperiais em Avinhão, se considerasse que a viagem era possível sem perigo. Empresa
pouco fácil, porque se supunha que o papa, que queria Miguel sozinho para o poder
reduzir mais facilmente à obediência, enviaria à Itália uma delegação instruída de modo
a fazer fracassar, na medida do possível, a viagem dos enviados imperiais à sua corte.
Guilherme tinha-se movimentado até então com grande habilidade. Depois de longas
consultas com vários abades beneditinos (eis a razão das muitas etapas da nossa viagem),
tinha escolhido a abadia onde estávamos, precisamente porque sabia que o Abade era
devotadíssimo ao império e todavia, pela sua grande habilidade diplomática, nada
malvisto na corte pontifícia. Território neutro, portanto, a abadia, onde os dois grupos
poderiam encontrar-se.
Mas as resistências do pontífice não acabavam ali. Ele sabia que, uma vez no terreno
da abadia, a sua delegação ficaria submetida à jurisdição do Abade: e, como dela
também fariam parte membros do clero secular, não aceitava esta cláusula, alegando
temores de uma cilada imperial. Assim, tinha posto a condição de que a incolumidade
dos seus enviados fosse confiada a uma companhia de archeiros do rei de França às
ordens de pessoa da sua confiança. Tinha ouvido vagamente Guilherme discorrer acerca
disto com um embaixador do papa em Bobbio: tinha-se tratado de definir a fórmula com
a qual designar os deveres desta companhia, ou seja, que coisa se entendia pela
salvaguarda da incolumidade dos legados pontifícios. Tinha-se finalmente aceitado uma
fórmula proposta pelos avinhonenses e que tinha parecido razoável: os homens armados
e quem os comandava teriam jurisdição «sobre todos aqueles que de qualquer modo
procurassem atentar contra a vida dos membros da delegação pontifícia e influenciar o
seu comportamento e juízo com atos violentos». Então, o pacto parecera inspirado por
puras preocupações formais. Agora, depois dos fatos recentes acontecidos na abadia, o
Abade estava inquieto e manifestou as suas dúvidas a Guilherme. Se a delegação
chegasse à abadia enquanto era ainda desconhecido o autor de dois delitos (no dia
seguinte as preocupações do Abade deveriam aumentar, porque os delitos seriam três),
dever-se-ia admitir que circulava dentro daquelas muralhas alguém capaz de influenciar
com atos violentos o juízo e o comportamento dos legados pontifícios.
De nada valia procurar ocultar os crimes que tinham sido cometidos, porque se ainda
acontecesse mais alguma coisa os legados pontifícios pensariam num conluio contra eles.
E portanto as soluções eram apenas duas. Ou Guilherme descobria o assassino antes da
chegada da delegação (e aqui o Abade olhou-o fixamente como a repreendê-lo
tacitamente por ainda não ter chegado a nenhuma conclusão sobre o assunto), ou então
era necessário avisar lealmente o representante do papa sobre aquilo que estava
acontecendo e pedir a sua colaboração para que a abadia fosse posta sob atenta
vigilância durante o curso dos trabalhos. Coisa que desagradava ao Abade, porque
significava renunciar a parte da sua soberania e pôr os seus próprios monges sob o
controle dos franceses. Mas não se podia arriscar. Guilherme e o Abade estavam ambos
contrariados pelo rumo que as coisas levavam, mas tinham poucas alternativas. Voltaram
a prometer, por isso, que tomariam uma decisão definitiva até ao dia seguinte.
Entretanto, não restava senão confiar na misericórdia divina e na sagacidade de
Guilherme.
- Farei o possível, Vossa Sublimidade - disse Guilherme. - Mas, por outro lado, não vejo
como a coisa possa comprometer deveras o encontro. Mesmo o representante pontifício
terá de compreender que há diferença entre a obra de um louco, ou de um sanguinário,
ou talvez apenas de uma alma perdida, e os graves problemas que homens probos virão
discutir.
- Acreditais? - perguntou o Abade, olhando fixamente para Guilherme. - Não esqueçais
que os avinhonenses sabem que vêm encontrar-se com menoritas, e portanto com
pessoas perigosamente próximas dos fraticelli e de outros ainda mais desvairados que os
fraticelli, de hereges perigosos que se mancharam com delitos - e aqui o Abade baixou a
voz – em confronto com os quais os fatos, aliás horríveis, que aqui aconteceram
empalidecem como névoa ao sol.
- Não se trata da mesma coisa! - exclamou Guilherme com vivacidade. - Não podeis
colocar no mesmo plano os menoritas do capítulo de Perugia e alguns bandos de hereges
que interpretaram mal a mensagem do Evangelho, transformando a luta contra as
riquezas numa série de vinganças privadas ou de loucuras sanguinárias...
- Ainda não há muitos anos que, a poucas milhas daqui, um desses bandos, como vós
lhe chamais, pôs a ferro e fogo as terras do bispo de Vercelli e as montanhas da província
de Novara - disse secamente o Abade.
- Falais de frei Dolcino e dos apostólicos...
- Dos pseudo-apóstolos - corrigiu o Abade.
E mais uma vez ouvia citar frei Dolcino e os pseudo-apóstolos, e mais uma vez em tom
circunspecto e quase com um leve aceno de terror.
- Dos pseudo-apóstolos - admitiu de boa vontade Guilherme. – Mas esses não tinham
nada a ver com os menoritas...
- Professavam a mesma reverência que eles por Joaquim de Calábria - instou o Abade -
, e podeis perguntá-lo ao vosso irmão Ubertino.
- Faço notar a Vossa Sublimidade que agora é irmão vosso – disse Guilherme com um
sorriso e uma espécie de reverência, como para cumprimentar o Abade pela aquisição
que a sua ordem tinha feito acolhendo um homem de tal reputação.
- Eu sei, eu sei - sorriu o Abade. - E vós sabeis com que fraterna solicitude a nossa
ordem acolheu os espirituais quando incorreram na ira do papa. Não falo só de Ubertino
mas também de muitos outros frades mais humildes, dos quais pouco se sabe, e dos quais
talvez se devesse saber mais. Porque aconteceu que nós acolhemos trânsfugas que se
apresentaram com o saio dos menoritas, e depois vim a saber que as várias vicissitudes
da sua vida os tinham levado, por um certo tempo, bastante perto dos dolcinianos...
- Mesmo aqui? - perguntou Guilherme.
- Mesmo aqui. Estou a revelar-vos alguma coisa de que na verdade sei muito pouco, e,
em todo o caso, não o bastante para formular acusações. Mas, visto que estais indagando
sobre a vida desta abadia, é bom que também vós conheçais estas coisas. Dir-vos-ei
então que suspeito, reparai, suspeito, com base em coisas que tenho ouvido ou
adivinhado, que houve um momento muito obscuro na vida do nosso despenseiro, que
precisamente chegou aqui há anos seguindo o êxodo dos menoritas.
- O despenseiro? Remígio de Varagine um dolciano? Parece-me o ser mais manso e em
todo o caso menos preocupado com a dona pobreza que eu jamais vi... - disse
Guilherme.
- E de fato não posso dizer nada dele, e valho-me dos seus bons serviços, pelos quais
toda a comunidade lhe está reconhecida. Mas digo isto para vos fazer compreender como
é fácil encontrar conexões entre um frade e um fraticello.
- Mais uma vez a vossa magnitude é injusta, se assim posso dizer - interveio
Guilherme. - Estávamos a falar dos dolcinianos, não dos fraticelli. Dos quais muito se
poderá dizer, sem sequer saber de quem se fala, porque deles há muitas espécies, mas
não que sejam sanguinários. Poder-se-á no máximo censurar-lhes que ponham em prática
sem demasiado bom senso coisas que os espirituais pregaram com maior medida e
animados de verdadeiro amor de Deus, e nisto concordo que existam fronteiras bastante
tênues entre uns e outros...
- Mas os fraticelli são hereges! - interrompeu secamente o Abade. - Não se limitam a
defender a pobreza de Cristo e dos apóstolos, doutrina que, mesmo que não possa
compartilhá-la, pode ser oposta utilmente à arrogância avinhonense. Os fraticelli
extraem dessa doutrina um silogismo prático, inferem um direito à revolta, ao saque, à
perversão dos costumes.
- Mas que fraticelli?
- Todos em geral. Sabeis que se mancharam com delitos abomináveis, que não
reconhecem o matrimônio, que negam o inferno, que cometem sodomia, que abraçam a
heresia bogomila do ordo Bulgarie e do ordo Drygonthie...
- Por favor - disse Guilherme -, não confundais coisas diversas! Vós falais como se
fraticelli, patarinos, valdenses, cátaros e esses bogomilos da Bulgária e hereges da
Dragovitsa fossem todos a mesma coisa!
- São - disse secamente o Abade -, são porque são hereges e são porque põem em risco
a própria ordem do mundo civil, até a ordem do império que vós me pareceis auspiciar.
Há mais de cem anos os sequazes de Arnaldo de Brescia incendiaram as casas dos nobres
e dos cardeais, e foram estes os frutos da heresia lombarda dos patarinos. Sei de
histórias terríveis sobre estes hereges, e li-as em Cesário de Eisterbach. Em Verona, o
canônico de São Gedeão, Everardo, notou uma vez que aquele que o hospedava todas as
noites saía de casa com a mulher e a filha. Interrogou não sei qual dos três para saber
onde iam e que faziam. «Vem e verás», foi a resposta, e ele seguiu-os até uma casa
subterrânea, muito ampla, onde estavam reunidas pessoas de ambos os sexos. Um
heresiarca, enquanto todos estavam em silêncio, fez um discurso cheio de blasfêmias,
com o propósito de corromper a sua vida e os seus costumes. Depois, apagada a vela,
cada um se lançou sobre a sua vizinha, sem fazer diferença entre a esposa legítima e a
mulher solteira, entre viúva e virgem, entre senhora e serva, nem (o que era pior, o
Senhor me perdoe enquanto digo coisas tão horríveis) entre filha e irmã. Everardo, vendo
tudo isto, como jovem leviano e luxurioso que era, fingindo-se um discípulo, aproximouse
não sei se da filha do seu hospedeiro ou de uma outra rapariga e, logo que apagaram a
vela, pecou com ela. Infelizmente fez isto, por mais de um ano, e no fim o mestre disse
que aquele jovem freqüentava com tanto proveito as suas sessões que em breve estaria
em condições de instruir os neófitos. Nessa altura, Everardo compreendeu o abismo em
que tinha caído e conseguiu fugir à sua sedução, dizendo que tinha freqüentado aquela
casa não porque fosse atraído pela heresia mas porque era atraído pelas raparigas.
Aqueles expulsaram-no. Mas esta, bem vedes, é a lei e a vida dos hereges, patarinos,
cátaros, joaquimitas, espirituais de qualquer seita. Nem há de que se admirar: não
crêem na ressurreição da carne, nem no inferno como castigo dos malvados, e
consideram que podem fazer impunemente seja o que for. Eles, de fato, dizem-se
catharoi, isto é, puros.
- Abbone - disse Guilherme -, vós viveis isolado nesta esplêndida e santa abadia, longe
das malícias do mundo. A vida nas cidades é muito mais complexa do que julgais, e
existem gradações, bem sabeis, também no erro e no mal. Lot foi muito menos pecador
que os seus concidadãos, que conceberam pensamentos imundos até sobre os anjos
enviados por Deus, e a traição de Pedro não foi nada comparada com a traição de Judas;
de fato, um foi perdoado e o outro não. Não podeis considerar patarinos e cátaros a
mesma coisa. Os patarinos são um movimento de reforma dos costumes no interior das
leis de Santa Madre Igreja. Eles sempre quiseram melhorar o modo de vida dos
eclesiásticos.
- Defendendo que não se deviam receber os sacramentos dos sacerdotes impuros...
- E erraram, mas foi o seu único erro de doutrina. Nunca se propuseram alterar a lei
de Deus...
- Mas a pregação patarina de Arnaldo de Brescia, em Roma, há mais de duzentos anos,
impeliu a turba dos rústicos a incendiar as casas dos nobres e dos cardeais.
- Arnaldo procurou arrastar para o seu movimento de reforma os magistrados da
cidade. Aqueles não o seguiram, mas encontrou consenso entre as turbas dos pobres e
dos deserdados. Não foi responsável pela energia e pela raiva com que aqueles
responderam aos seus apelos por uma cidade menos corrupta.
- A cidade é sempre corrupta.
- A cidade é o lugar onde hoje vive o povo de Deus, de que vós, de que nós somos os
pastores. É o lugar do escândalo, onde o prelado rico prega a virtude ao povo pobre e
esfomeado. As desordens dos patarinos nascem desta situação. São tristes, não são
incompreensíveis. Os cátaros são outra coisa. É uma heresia oriental, fora da doutrina da
Igreja. Eu não sei se verdadeiramente cometem ou cometeram os delitos que lhes são
imputados. Sei que recusam o matrimônio, que negam o inferno. Pergunto-me se muitos
dos atos que não cometeram não lhes foram atribuídos apenas em virtude das idéias
(decerto nefandas) que defenderam.
- E vós dizeis-me que os cátaros não se misturaram aos patarinos, e que ambos não são
mais que duas das faces, inumeráveis, da mesma manifestação demoníaca?
- Digo que muitas destas heresias, independentemente das doutrinas que defendem,
obtêm sucesso entre os simples, porque lhes sugerem a possibilidade de uma vida
diversa. Digo que, freqüentemente, os simples não sabem muito de doutrina. Digo que
aconteceu muitas vezes que turbas de simples confundiram a pregação cátara com a dos
patarinos, e esta em geral com a dos espirituais. A vida dos simples, Abbone, não é
iluminada pela sapiência e pelo sentido vigilante das distinções que nos faz sábios. É
obcecada pela doença, pela pobreza, feita balbuciante pela ignorância.
Freqüentemente, para muitos deles, a adesão a um grupo herético é apenas um modo
como qualquer outro de gritar o seu desespero. Pode-se queimar a casa de um cardeal
seja porque se quer aperfeiçoar a vida do clero seja porque se considera que o inferno,
que ele prega, não existe. Isso faz-se sempre porque existe o inferno terreno, em que
vive o rebanho de que nós somos pastores. Mas vós sabeis muito bem que, como eles não
distinguem entre igreja búlgara e sequazes do padre Liprando, freqüentemente cambem
as autoridades imperiais e os seus defensores não distinguiram entre espirituais e
hereges. Não raro, grupos gibelinos, para baterem o seu adversário, defenderam entre o
povo tendências cátaras. Na minha opinião fizeram mal. Mas aquilo que agora sei é que
os mesmos grupos, muitas vezes, para se desembaraçarem destes inquietos e perigosos
adversários demasiado «simples», atribuíram a uns as heresias dos outros e empurraramnos
todos para a fogueira. Eu vi juro-vos Abbone, vi com os meus olhos, homens de vida
virtuosa, sinceramente partidários da pobreza e da castidade, mas inimigos dos bispos,
que os bispos entregaram ao braço secular, quer ele estivesse ao serviço do império ou
das cidades livres, acusando-os de promiscuidade sexual, sodomia, práticas nefandas...
de que talvez outros, mas não eles, se tinham tornado culpados. Os simples são carne
para o talho, para usar quando servem para pôr em crise o poder adverso e para
sacrificar quando já não servem.
- Então - disse o Abade com evidente malícia -, frei Dolcino e os seus desatinados, e
Gerardo Segalelli e aqueles torpes assassinos foram cátaros malvados ou fraticelli
virtuosos, bogomilos sodomitas ou patarinos reformadores? Quereis dizer-me então,
Guilherme, vós que sabeis tudo dos hereges, a ponto de parecerdes um deles onde está a
verdade?
- Em parte nenhuma, por vezes - disse com tristeza Guilherme.
- Vedes que até vós já não sabeis distinguir entre herege e herege? Eu tenho pelo
menos uma regra. Sei que hereges são aqueles que põem em risco a ordem com que se
rege o povo de Deus. E defendo o império porque ele me garante esta ordem. Combato o
papa porque está entregando o poder espiritual aos bispos das cidades, que se aliam aos
mercadores e às corporações e não saberão manter esta ordem. Nós mantivemo-la
durante séculos. E, quanto aos hereges, também tenho uma regra, e ela resume-se na
resposta que deu Arnaldo Amalrico, abade de Citeaux, a quem lhe perguntava que fazer
dos citadinos de Béziers, cidade suspeita de heresia: «Matai-os todos, Deus reconhecerá
os seus.»
Guilherme baixou os olhos e ficou um certo tempo em silêncio. Depois disse:
- A cidade de Béziers foi tomada, e os nossos não olharam nem à dignidade nem ao
sexo nem à idade, e quase vinte mil homens morreram ao fio da espada. Feito assim o
massacre, a cidade foi saqueada e queimada.
- Mesmo uma guerra santa é uma guerra.
- Mesmo uma guerra santa é uma guerra. Por isso talvez não devesse haver guerras
santas. Mas que digo, estou aqui a defender os direitos de Luís, que no entanto está
pondo a ferro e fogo a Itália. Também eu me encontro preso num jogo de estranhas
alianças. Estranha a aliança dos espirituais com o império; estranha a do império com
Marsílio, que pede a soberania para o povo; e estranha a de nós os dois, tão diversos por
propósitos e tradição. Mas temos duas tarefas em comum. O êxito do encontro e a
descoberta de um assassino. Esforcemo-nos por proceder em paz.
O Abade abriu os braços.
- Dai-me o beijo da paz, frade Guilherme. Com um homem do vosso saber podemos
discutir longamente sobre sutis questões de teologia e de moral. Mas não devemos ceder
ao gosto da disputa como fazem os mestres de Paris. E verdade, temos uma tarefa
importante que nos espera, e devemos proceder de comum acordo. Mas falei destas
coisas porque creio que há uma relação, compreendeis?, uma relação possível, ou seja,
que outros podem encontrar uma ligação entre os delitos que aqui aconteceram e as
teses dos vossos irmãos. Por isso vos avisei, por isso devemos prevenir qualquer suspeita
ou insinuação por parte dos avinhonenses.
- Não deverei supor que a vossa Sublimidade me sugeriu também uma pista para a
minha investigação? Considerais que na origem dos eventos recentes possa existir alguma
obscura história que remonta ao passado herético de algum monge?
O Abade calou-se por alguns instantes, olhando para Guilherme sem que nenhuma
expressão transparecesse do seu rosto. Depois disse:
- Neste triste caso, o inquisidor sois vós. A vós compete ser suspeitoso e até arriscar
uma suspeita injusta. Eu sou aqui apenas o pai comum. E, acrescento, se soubesse que o
passado de um dos meus monges se presta a suspeitas verídicas, procederia eu já para
arrancar a planta má. Aquilo que sei, sabei-lo. Aquilo que não sei, é justo que venha à
luz graças à vossa sagacidade. Mas, em todo o caso, informai-vos sempre, e em primeiro
lugar a mim.
Saudou e saiu da igreja.
- A história torna-se mais complicada, caro Adso – disse Guilherme de rosto sombrio. -
Nós corremos atrás de um manuscrito, interessamo-nos pelas diatribes de alguns monges
demasiado curiosos e pelo caso de outros monges demasiado luxuriosos, e eis que se
perfila cada vez com mais insistência também uma outra pista, totalmente diversa. O
despenseiro, portanto... E com o despenseiro veio para aqui aquele estranho animal do
Salvador... Mas agora temos de ir repousar, porque projetamos ficar acordados durante a
noite.
- Mas então projetais ainda penetrar na biblioteca esta noite? Não abandonais essa
primeira pista?
- De modo nenhum. E, depois, quem disse que se trata de duas pistas diversas? Enfim,
esta história do despenseiro poderia ser apenas uma suspeita do Abade.
Dirigiu-se para o albergue dos peregrinos, chegando à soleira parou e falou como se
continuasse o discurso anterior.
- No fundo, o Abade pediu-me que indagasse sobre a morte de Adelmo quando pensava
que acontecia algo de suspeito entre os seus jovens monges. Mas agora a morte de
Venancio faz nascer outras suspeitas, talvez o Abade tenha intuído que a chave do
mistério está na biblioteca, e sobre isso não quer que eu indague. E eis que agora me
oferece a pista do despenseiro para desviar a minha atenção do Edifício...
- Mas porque é que não havia de querer que...
- Não faças demasiadas perguntas. O Abade disse-me desde o início que na biblioteca
não se toca. Lá terá as suas razões. Pode ser que também ele esteja envolvido nalgum
caso que ele não pensava que pudesse ter relação com a morte de Adelmo, e agora dá-se
conta que o escândalo se alarga e pode envolvê-lo também a ele. E não quer que se
descubra a verdade, ou pelo menos não quer que a descubra eu...
- Mas então vivemos num lugar abandonado por Deus - disse desconsolado.
- Encontraste-os, esses lugares onde Deus se sentiria à vontade? - perguntou-me
Guilherme, olhando-me do alto da sua estatura.
Depois mandou-me repousar. Enquanto me deitava concluí que meu pai não deveria
ter-me mandado pelo mundo, que era mais complicado do que eu pensava. Estava a
aprender coisas de mais.
- Salva me ab ore leonis - rezei, adormecendo.
SEGUNDO DIA
DEPOIS DE VÉSPERAS
Onde, apesar do capítulo ser breve, o velho Alinardo diz coisas bastante interessantes
sobre o labirinto e sobre o modo de lá entrar.
Acordei pouco antes de soar a hora da refeição da noite. Sentia-me entorpecido pelo
sono, porque o sono diurno é como o pecado da carne: quanto mais se teve mais se
queria ter, e no entanto sentimo-nos infelizes, saciados e insaciados ao mesmo tempo.
Guilherme não estava na sua cela, evidentemente tinha-se levantado muito antes.
Encontrei-o, depois de uma breve deambulação, quando saía do Edifício. Disse-me que
tinha estado no scriptorium, folheando o catálogo e observando o trabalho dos monges,
na tentativa de se aproximar da mesa de Venancio para retomar a inspeção. Mas que,
por um motivo ou por outro, todos pareciam apostados em não o deixar remexer
naqueles papéis. Primeiro aproximara-se dele Malaquias, para lhe mostrar algumas
miniaturas de valor. Depois Bêncio tinha-o mantido ocupado com pretextos de nenhum
valor. Depois ainda, quando se tinha inclinado para retomar a sua inspeção, Berengário
tinha-se posto a andar à sua volta, oferecendo a sua colaboração.
Enfim Malaquias, vendo que o meu mestre parecia seriamente apostado em ocupar-se
das coisas de Venancio, tinha-lhe dito clara e nitidamente que talvez, antes de rebuscar
entre os papéis do morto, fosse melhor obter a autorização do Abade; que ele próprio,
apesar de ser o bibliotecário, se tinha abstido disso, por respeito e disciplina; e que, em
todo o caso, ninguém se tinha aproximado daquela mesa, como Guilherme lhe tinha
pedido, e que ninguém se aproximaria dela enquanto o Abade não interviesse. Guilherme
tinha-lhe feito notar que o Abade lhe tinha dado licença para indagar por toda a abadia;
Malaquias tinha perguntado, não sem malícia, se o Abade também lhe tinha dado licença
para se mover livremente pelo scriptorium ou, não o quisesse Deus, pela biblioteca.
Guilherme tinha compreendido que não era o caso de se empenhar numa prova de força
com Malaquias, embora todos aqueles movimentos e aqueles temores em torno dos
papéis de Venancio lhe tivessem naturalmente fortificado o desejo de tomar
conhecimento deles. Mas a sua determinação de voltar lá de noite, ainda não sabia
como, era tal que tinha decidido não criar incidentes. Alimentava, porém, evidentes
pensamentos de desforra que, se não fossem inspirados, como eram, pela sede de
verdade, teriam parecido muito obstinados e talvez reprováveis.
Antes de entrar no refeitório, demos ainda um pequeno passeio no claustro, para
dissipar os fumos do sono ao ar frio da noite. Por ali giravam ainda alguns monges em
meditação. No jardim que dava para o claustro distinguimos o velhíssimo Alinardo de
Grottaferrata, que agora, imbecil de corpo, passava grande parte do seu dia entre as
plantas, quando não estava a rezar na igreja. Parecia não sentir frio e estava sentado ao
longo da parte externa das arcadas.
Guilherme dirigiu-lhe algumas palavras de saudação, e o velho pareceu alegre por
alguém conversar com ele.
- Dia sereno - disse Guilherme.
- Pela graça de Deus - respondeu o velho.
- Sereno no céu, mas escuro na terra. Conhecíeis bem Venancio?
- Que Venancio? - disse o velho. Depois uma luz se acendeu nos seus olhos. - Ah, o
rapaz morto. A besta gira pela abadia...
- Qual besta?
- A grande besta que vem do mar... Sete cabeças e dez cornos, e nos cornos dez
diademas, e nas cabeças três nomes de blasfêmia. A besta que parece um leopardo, com
pés como os do urso e a boca como a do leão... Eu vi-a.
- Onde a vistes? Na biblioteca?
- Biblioteca? Porquê? Há anos que já não vou ao scriptorium e nunca vi a biblioteca.
Ninguém vai à biblioteca. Eu conheci aqueles que subiam à biblioteca...
- Quem, Malaquias, Berengário?
- Oh, não... - O velho riu com voz rouca. - Antes. O bibliotecário que veio antes de
Malaquias, há muitos anos...
- Quem era?
- Não me recordo, morreu quando Malaquias era ainda jovem. E aquele que veio antes
do mestre de Malaquias e era ajudante-bibliotecário jovem quando eu era jovem... Mas
na biblioteca eu nunca pus os pés. Labirinto...
- A biblioteca é um labirinto?
- Hunc mundum tipice laberinthus denotat Ule - recitou absorto o velho. - Intranti
largus, redeunti sed nimis artus. A biblioteca é um grande labirinto, sinal do labirinto do
mundo. Entras e não sabes se sairás. Não se devem violar as colunas de Hércules...
- Então não sabeis como se entra na biblioteca quando as portas do Edifício estão
fechadas?
- Oh, sim - riu o velho -, muitos o sabem. Passas pelo ossário. Podes passar pelo
ossário, mas não queres passar pelo ossário. Os monges mortos velam.
- São esses, os monges mortos, que velam, não aqueles que giram de noite com uma
candeia pela biblioteca?
- Com uma candeia? - O velho pareceu espantado. - Nunca ouvi essa história. Os
monges mortos estão no ossário, os ossos descem pouco a pouco do cemitério e juntamse
ali a guardar a passagem. Nunca viste o altar da capela que leva ao ossário?
- E a terceira à esquerda depois do transepto, não é?
- A terceira? Talvez. É a da pedra do altar esculpida com mil esqueletos. O quarto
crânio à direita, carregas nos olhos... e estás no ossário . Mas não vais lá, eu nunca lá
fui. O Abade não quer.
- E a besta, onde a viste a besta?
- A besta? Ah, o Anticristo... Ele está para vir, o milênio foi cumprido, esperamo-lo...
- Mas o milênio foi cumprido há trezentos anos, e então não veio...
- O Anticristo não vem depois de se terem cumprido os mil anos. Cumpridos os mil
anos, inicia-se o reino dos justos, depois vem o Anticristo para confundir os justos, e
depois será a batalha final...
- Mas os justos reinarão por mil anos - disse Guilherme – Ou reinaram desde a morte de
Cristo até ao fim do primeiro milênio, e portanto é então que devia vir o Anticristo, ou
ainda não reinaram, e o Anticristo está longe.
- O milênio não se calcula a partir da morte de Cristo mas a partir da doação de
Constantino. Cumprem-se agora os mil anos...
- E então acaba o reino dos justos?
- Não sei, já não sei... Estou cansado. O cálculo é difícil. Beato de Liébana fê-lo,
pergunta a Jorge, ele é jovem, recorda-se bem... Mas os tempos estão maduros. Não
ouviste as sete trombetas?
- Porquê as sete trombetas?
- Não ouviste como morreu o outro rapaz, o miniaturista? O primeiro anjo soprou a
primeira trombeta e dela veio granizo e fogo misturado com sangue. E o segundo anjo
soprou a segunda trombeta e a terça parte do mar tornou-se sangue... Não morreu no
mar de sangue o segundo rapaz? Atenção à terceira trombeta! Morrerá a terça parte das
criaturas vivendo no mar. Deus castiga-nos. O mundo todo em torno da abadia está
infestado pela heresia, disseram-me que está no trono de Roma um papa perverso que
usa hóstias para práticas de necromancia e com elas nutre as suas moréias... E entre nós
alguém violou o interdito, quebrou os selos do labirinto...
- Quem vo-lo disse?
- Ouvi-o, todos murmuram que o pecado entrou na abadia. Tens grãos-de-bico?
A pergunta, dirigida a mim, surpreendeu-me.
- Não, não tenho grãos-de-bico - disse confuso.
- Para a próxima traz-me grãos-de-bico. Mantenho-os na boca, vês a minha pobre boca
sem dentes, até que amoleçam todos. Estimulam a saliva, aqua fons vitae. Amanhã
trazes-me grãos-de-bico?
- Amanhã trago-vos grãos-de-bico - disse-lhe.
Mas ele tinha adormecido. Deixamo-lo para ir para o refeitório.
- Que pensais do que disse? - perguntei ao meu mestre.
- Ele goza da divina loucura dos centenários. Difícil distinguir o verdadeiro do falso nas
suas palavras. Mas creio que nos disse alguma coisa sobre o modo de penetrar no
Edifício. Vi a capela de onde saiu Malaquias a noite passada. Ali há na verdade um altar
de pedra, e na base estão esculpidos crânios, esta noite tentaremos.
SEGUNDO DIA
COMPLETAS
Onde se entra no Edifício, se descobre um visitante misterioso, se encontra uma
mensagem secreta com sinais de necromante, e desaparece, mal é encontrado, um livro
que depois será procurado por muitos outros capítulos sem olvidar o furto das preciosas
lentes de Guilherme.
A ceia foi triste e silenciosa. Tinham passado pouco mais de doze horas desde que se
tinha descoberto o cadáver de Venancio. Todos olhavam de soslaio para o seu lugar vazio
à mesa. Quando foi a hora de completas, o cortejo que se dirigiu ao coro parecia um
desfile fúnebre. Participamos no ofício ficando na nave e não perdendo de vista a
terceira capela. A luz era pouca, e quando vimos Malaquias emergir do escuro para
atingir a sua estala não pudemos compreender de onde saia exatamente. Pelo sim pelo
não deslizamos para a sombra, escondendo-nos na nave lateral, para que ninguém visse
que ficávamos ali, terminado o ofício. Eu tinha no meu escapulário a candeia que tinha
subtraído na cozinha durante a ceia. Acendê-la-iamos depois na grande trípode de
bronze que ficava acesa toda a noite. Tinha um pavio novo, e muito azeite. Teríamos luz
para muito tempo.
Estava demasiado excitado pelo que nos aprestamos a fazer para prestar atenção ao
rito, que acabou sem que quase me apercebesse. Os monges baixaram os capuchos sobre
o rosto e saíram em lenta fila para se dirigirem às suas celas. A igreja ficou deserta,
iluminada pelo clarão da trípode.
- Vamos - disse Guilherme. - Ao trabalho.
Aproximamo-nos da terceira capela. A base do altar era verdadeiramente semelhante
a um ossário ; uma série de crânios de órbitas vazias e profundas incutiam temor aos que
olhavam para eles, pousados como apareciam no admirável relevo sobre um amontoado
de tíbias. Guilherme repetiu em voz baixa as palavras que ouvira a Alinardo (o quarto
crânio à direita, carregas nos olhos). Introduziu os dedos nas órbitas daquele rosto
descarnado, e de súbito ouvimos como um rangido rouco. O altar moveu-se, girando
sobre um eixo oculto, deixando entrever uma abertura escura. Iluminando-a com a
minha candeia levantada, distinguimos uns degraus úmidos. Decidimos descê-los, depois
de termos discutido se devíamos voltar a fechar a passagem atrás de nós. Era melhor
não, disse Guilherme, não sabíamos se depois poderíamos reabri-la. E, quanto ao risco de
sermos descobertos, se alguém chegasse àquela hora a manobrar o mesmo mecanismo
era porque sabia como entrar e não ficaria preso por uma passagem fechada.
Descemos mais de uma dezena de degraus e penetramos num corredor em cujos lados
se abriam nichos horizontais, como mais tarde me aconteceu ver em muitas catacumbas.
Mas era a primeira vez que penetrava num ossário , e tive muito medo. Os ossos dos
monges tinham sido recolhidos ali no curso dos séculos, exumados da terra e amontoados
nos nichos sem tentarem recompor a figura dos seus corpos. Porém, alguns nichos tinham
apenas ossos miúdos outros apenas crânios, bem dispostos quase em pirâmide, de modo a
não se precipitarem uns sobre os outros, e era espetáculo deveras aterrorizador,
especialmente com o jogo de sombras e de luzes que a candeia criava ao longo do nosso
caminho. Num nicho vi apenas mãos, muitas mãos, agora irremediavelmente
entrelaçadas umas nas outras, num emaranhado de dedos mortos. Soltei um grito,
naquele lugar de mortos, sentindo por um momento a impressão que ali houvesse alguma
coisa de vivo, um chio, e um rápido movimento na sombra.
- Ratos - tranqüilizou-me Guilherme.
- Que fazem os ratos aqui?
- Passam, como nós, porque o ossário conduz ao Edifício, e portanto à cozinha. E aos
bons livros da biblioteca. E agora compreendes porque é que Malaquias tem um rosto tão
austero. O seu ofício obriga-o a passar por aqui duas vezes por dia, à noite e de manhã.
Ele, sim, não tem de que se rir.
- Mas porque é que o Evangelho nunca diz que Cristo ria? - perguntei sem uma boa
razão. - É deveras como diz Jorge?
- Foram legiões os que se perguntaram se Cristo riu. A coisa não me interessa
grandemente. Creio que nunca riu, porque, onisciente como devia ser o filho de Deus,
sabia que coisa faríamos nós, os cristãos. Mas eis que chegamos.
E de fato, graças a Deus, o corredor tinha acabado; começava uma nova série de
degraus e, depois de percorridos estes, não tivemos senão que empurrar uma porta de
madeira rija reforçada de ferro e encontramo-nos por trás da chaminé da cozinha,
precisamente debaixo da escada de caracol que levava ao scriptorium.
Enquanto subíamos, pareceu-nos ouvir um ruído que vinha de cima.
Ficamos um instante em silêncio, depois disse.
- E impossível. Não entrou ninguém antes de nós...
- Admitindo que esta fosse a única via de acesso ao Edifício. Nos séculos passados, isto
era uma fortaleza, e deve ter mais acessos secretos do que nós imaginamos. Vamos subir
devagar. Mas temos pouco por onde escolher. Se apagamos a candeia não sabemos por
onde vamos, se a mantemos acesa damos o alarme a quem se encontra em cima. A única
esperança é que, se está lá alguém, tenha mais medo do que nós.
Chegamos ao scriptorium, emergindo do torreão meridional. A mesa de Venancio
estava precisamente do lado oposto. Movendo-nos, não iluminávamos mais que algumas
braças de parede de cada vez, porque a sala era demasiado ampla. Esperamos que
ninguém estivesse no pátio e visse a luz transparecer pelas janelas. A mesa parecia em
ordem, mas Guilherme inclinou-se logo a examinar as folhas da estante por baixo e teve
uma exclamação de desapontamento.
- Falta alguma coisa? - perguntei.
- Hoje vi aqui dois livros, e um era em grego. E é este último que falta. Alguém o
tirou, e a toda a pressa, porque um pergaminho caiu aqui ao chão.
- Mas a mesa estava guardada...
- Decerto. Talvez alguém lhe tenha posto as mãos só há pouco. Talvez esteja ainda
aqui. - Voltou-se para as sombras, e a sua voz ressoou entre as colunas: - Se estás aqui,
tem cuidado!
Pareceu-me uma boa idéia: como Guilherme já tinha dito, é sempre melhor que quem
nos incute medo tenha mais medo que nós.
Guilherme pousou a folha que tinha encontrado aos pés da mesa e aproximou o rosto.
Pediu-me que lhe desse luz. Aproximei a candeia e distingui uma página em branco na
primeira metade, e na segunda coberta de caracteres pequeníssimos cuja origem a custo
reconheci.
- É grego? - perguntei.
- Sim, mas não percebo bem. - Tirou do saio as suas lentes e pô-las solidamente em
cima do nariz, depois aproximou ainda mais o rosto. - É grego, escrito muito pequeno, e
todavia desordenadamente. Mesmo com as lentes me custa a ler, seria precisa mais luz.
Aproxima-te...
Tinha pegado na folha segurando-a diante do rosto, e eu, estupidamente, em vez de
lhe passar por trás, mantendo a candeia alta sobre a sua cabeça, pus-me precisamente
diante dele. Ele pediu-me para me desviar para o lado, e, ao fazê-lo, rocei com a chama
o verso da folha. Guilherme afastou-me com um empurrão, perguntando-me se lhe
queria queimar o manuscrito, depois soltou uma exclamação. Vi claramente que na parte
superior da página tinham aparecido alguns sinais imprecisos de cor amarelo-escura.
Guilherme mandou-me dar-lhe a candeia, e moveu-a por trás da folha, mantendo a
chama bastante próxima da superfície do pergaminho, de modo a aquecê-lo sem lhe
tocar. Lentamente, como se uma mão invisível estivesse traçando «Mane, Tekel, Fares»,
vi desenhar-se, sobre o verso branco da folha, um a um, à medida que Guilherme movia
a candeia e enquanto o fumo que provinha da ponta da chama enegrecia o resto, traços
que não se assemelhavam aos de nenhum alfabeto, a não ser ao dos necromantes.
- Fantástico! - disse Guilherme. - Cada vez mais interessante! - Olhou em seu redor: -
Mas será melhor não expor esta descoberta às insídias do nosso hóspede misterioso, se
ainda está aqui... - Tirou as lentes e pousou-as sobre a mesa, depois enrolou com
cuidado o pergaminho e escondeu-o no saio. Ainda aturdido por aquela seqüência de
eventos pelo menos miraculosos, estava para lhe pedir outras explicações, quando um
ruído imprevisto e seco nos distraiu. Provinha dos pés da escada oriental que levava à
biblioteca. - O nosso homem está ali, apanha-o! - gritou Guilherme, e lançamo-nos
naquela direção, ele mais rápido, eu mais lento, porque levava a candeia. Ouvi um
estrondo de pessoa que tropeça e cai, acorri, encontrei Guilherme aos pés da escada
observando um pesado volume de capa reforçada por brochas metálicas. No mesmo
instante, ouvimos um outro barulho da direção de onde tínhamos vindo. - Estúpido que
eu sou! – gritou Guilherme. - Depressa, à mesa de Venancio!
Compreendi: alguém que estava na sombra, por trás de nós, tinha atirado o volume
para nos atrair para longe.
Uma vez mais Guilherme foi mais rápido que eu e alcançou a mesa. Eu, ao segui-lo,
entrevi entre as colunas uma sombra que fugia, enfiando pela escada do torreão
ocidental.
Possuído de ardor guerreiro, meti a candeia na mão de Guilherme e atirei-me às cegas
pela escada por onde tinha descido o fugitivo. Naquele momento sentia-me como um
soldado de Cristo em luta com todas as legiões infernais e ardia com o desejo de pôr as
mãos sobre o desconhecido para o entregar ao meu mestre. Quase rolei pela escada de
caracol abaixo, tropecei nas abas do meu hábito (foi aquele o único momento da minha
vida, juro, que lamentei ter entrado numa ordem monástica!), mas naquele mesmo
instante, e foi pensamento de um relâmpago, consolei-me à idéia de que também o meu
adversário devia sofrer do mesmo embaraço. E, além disso, se tinha tirado o livro, devia
ter as mãos ocupadas. Precipitei-me quase na cozinha por trás do forno do pão e, à luz
da noite estrelada que iluminava palidamente o vasto átrio, vi a sombra que perseguia e
que enfiava pela porta do refeitório, puxando-a atrás de si. Precipitei-me para ela,
custou-me uns segundos a abri-la, entrei, olhei em redor e já não vi ninguém. A porta
que dava para o exterior estava ainda trancada. Voltei-me. Sombra e silêncio.
Distingui
um clarão que vinha da cozinha e encostei-me a uma parede. Na soleira da passagem
entre as duas salas apareceu uma figura iluminada por uma candeia. Gritei. Era
Guilherme.
- Já não está ninguém, como eu previa. Aquele não saiu por uma porta. Não enfiou
pela passagem do ossário ?
- Não, saiu daqui. Mas não sei por onde!
- Eu disse-to, há outras passagens, e é inútil procurá-las. Provavelmente, o nosso
homem está emergindo de novo nalgum sítio longe daqui. E, com ele, as minhas lentes.
- As vossas lentes?
- Precisamente. O nosso amigo não pôde tirar-me a folha mas, com grande presença
de espírito, ao passar pela mesa agarrou as minhas lentes.
- E porquê?
- Porque não é parvo. Ouviu-lhe falar destas notas, compreendeu que eram
importantes, pensou que sem as lentes não sou capaz de as decifrar e tem como certo
que não me fiarei em ninguém a ninguém. De fato, agora é como se as não tivesse.
- Mas como sabia da existência das vossas lentes?
- Vamos! À parte o fato de ontem termos falado delas com o mestre vidreiro, esta
manhã no scriptorium pousei-as para rebuscar entre os papéis de Venancio. Por isso, há
muitas pessoas que poderiam saber como aqueles objetos eram preciosos. E de fato
poderia mesmo ler um manuscrito normal, mas este não – e ia desenrolando de novo o
misterioso pergaminho -, onde a parte em grego é demasiado pequena e a parte superior
demasiado incerta... - Mostrou-me os sinais misteriosos que tinham aparecido como por
encanto ao calor da chama: - Venancio queria ocultar um segredo importante e usou uma
daquelas tintas que escrevem sem deixar marcas e reaparecem com o calor. Ou então
usou sumo de limão. Mas, como não sei que substancia terá usado e os sinais podem
voltar a desaparecer, depressa, tu que tens bons olhos, copia-os já do modo mais fiel que
puderes e talvez um pouco maiores.
E assim fiz, sem saber que coisa copiava. Tratava-se de uma série de quatro ou cinco
linhas deveras parecidas com bruxaria, e agora reproduzo apenas os primeiros sinais,
para dar ao leitor uma idéia do enigma que tínhamos diante dos olhos:
Quando acabei de copiar, Guilherme pegou o papel e, apesar de estar sem as lentes,
as manteve perto de seus olhos para examinar.
- Sim, sem dúvida se trata de um alfabeto secreto, que teremos que decifrar – disse. –
Os traços não são muito firmes, e é provável que a sua cópia não os tenha melhorado,
mas é evidente que os sinos pertencem a um alfabeto zodiacal. Vês? Na primeira linha
temos... – trouxe o papel para mais perto, entrecerrou os olhos em um esforço de
concentração e disse: - Sagitário, Sol, Mercúrio, Escorpião...
- Que significam?
- Se Venancio tivesse sido ingênuo, teria usado o alfabeto zodiacal mas conhecido: A
igual a Sol, B igual a Júpiter... Então a primeira linha se leria assim... tente transcrevela:
RAIOASVAL... – Interrompeu-se. – Não. Não quer dizer nada, e Venancio não era
ingênuo Se valeu de outra chave para transformar o alfabeto. Temos que descobri-la.
- E podemos? – perguntei admirado.
— Sim, quando se conhece um pouco a sabedoria árabe. Os melhores tratados de
criptografia são obra de sábios infiéis, e em Oxford pude me inteirar de alguns deles.
Bacon tinha razão quando dizia que a conquista do saber para pelo conhecimento das
línguas. Há séculos Abu Bakr Ahmad ben Ali ben Washiyya an-Nabati escreveu um Livro
do frenético desejo do devoto em aprender os enigmas das escrituras antigas, donde
expus muitas regras para compor e decifrar alfabetos misteriosos, úteis para práticas
mágicas, mas também para a correspondência entre os exércitos ou entre um rei e seus
embaixadores. E vi outros livros árabes onde se enumera uma série de artifícios bastante
engenhosos. Por exemplo, podes reencobrir uma letra por outra, podes escrever uma
palavra ao contrário, podes inverte a ordem das letras, mas colocando uma sim e outra
não, e voltando a empregar logo desde o princípio, podes, como neste caso, reencobrir
as letras por signos zodiacais, mas atribuindo as letras ocultas seu valor numérico, para
depois, seguir um outro alfabeto, transformar os números em outras letras...
- E qual desses sistemas terá utilizado Venancio?
- Teríamos que provar todos estes, e também outros. Mas a primeira regra para
decifrar uma mensagem consiste em adivinhar o que se quer dizer.
- Mas então não é preciso decifrá-lo! Exclamei rindo.
- Não quis dizer isso. O que se pode fazer é formular hipóteses sobre quais poderiam
ser as primeiras palavras da mensagem, e depois ver se a regra que ali se infere vale
para o resto do texto. Por exemplo, Venancio anotou aqui certamente a chave para
penetrar no finis Africae. Se eu tento pensar que a mensagem fala disto, eis que sou
iluminado de repente por um ritmo... Tenta olhar para as primeiras três palavras, não
consideres as letras, considera só o número dos sinais... IIIIIIII IIIII IIIIIII... Agora tenta
dividir os grupos em sílabas de pelo menos dois sinais cada uma e recita em voz alta: tata-
ta, ta-ta, ta-ta-ta... Não te vem nada em mente?
- A mim não.
- E a mim sim. Secretum finis Africae... Mas, se assim fosse, a última palavra devia ter
a primeira e a sexta letras iguais, e fato assim é, eis duas vezes o símbolo da Terra. E a
primeira letra da primeira palavra, o S devia ser igual à última da segunda, e de fato eis
repetido o signo da Virgem. Talvez seja o bom caminho. Porém, poderia tratar-se apenas
de uma série de coincidências. É preciso encontrar uma regra de correspondência...
- Encontrá-la onde?
- Na cabeça. Inventá-la. E depois ver se é a verdadeira. Mas entre uma prova e outra o
jogo poderia levar-me um dia inteiro. Não mais, porque (recorda-te) não há escritura
secreta que não possa ser decifrada com um pouco de paciência. Mas agora arriscamonos
a atrasar-nos e queremos visitar a biblioteca. Tanto mais que sem as lentes nunca
conseguirei ler a segunda parte da mensagem, e tu não me podes ajudar, porque estes
sinais para os teus olhos...
- Graecum est, non legitur - completei humilhado.
- Exatamente, e vês que Bacon tinha razão. Estuda! Mas não desanimemos. Deixemos o
pergaminho e as tuas notas e subamos à biblioteca. Porque esta noite nem dez legiões
internais conseguirão deter-nos.
Persignei-me.
- Mas quem pode ter-nos precedido aqui? Bêncio?
- Bêncio ardia com desejo de saber que coisa havia entre os papéis de Venancio, mas
não me parecia na disposição de nos pregar partidas tão maliciosas. No fundo, tinha-nos
proposto uma aliança, e depois tinha ar de quem não tem coragem de entrar de noite no
Edifício.
- Então, Berengário? Ou Malaquias?
- Berengário parece-me que tem animo para lazer coisas deste gênero. No fundo, e coresponsável
pela biblioteca, é roído pelo remorso de ter traído algum dos seus segredos,
julgava que Venancio tinha tirado aquele livro e queria talvez repô-lo no lugar de onde
veio. Não conseguiu subir, agora está escondendo o volume em qualquer parte, e
poderemos apanhá-lo em flagrante, se Deus nos assistir, quando tentar repô-lo no seu
lugar.
- Mas também poderia ser Malaquias, movido pelas mesmas intenções.
- Diria que não. Malaquias tinha tido todo o tempo que queria para rebuscar na mesa
de Venancio quando ficou sozinho para fechar o Edifício. Eu sabia-o muito bem e não
tinha meios de o evitar. Agora sabemos que não o fez. E, se refletires bem, não temos
motivo para suspeitar que Malaquias soubesse que Venancio tinha entrado na biblioteca
tirando de lá alguma coisa. Isto, sabem-no Berengário e Bêncio e sabemo-lo tu e eu. A
seguir à confissão de Adelmo poderia sabê-lo Jorge, mas não era ele decerto o homem
que se precipitava com tanto ímpeto pela escada de caracol...
- Então, ou Berengário ou Bêncio...
- E porque não Pacífico de Tivoli ou outro dos monges que aqui vimos hoje? Ou
Nicolau, o vidreiro, que sabe dos meus óculos? Ou aquela bizarra personagem que é
Salvador, que nos disseram que anda de noite sabe-se lá por que afazeres? Devemos
prestar atenção em não restringir o campo dos suspeitos simplesmente porque as
revelações de Bêncio nos orientaram numa única direção. Bêncio talvez quisesse
contundir-nos.
- Mas pareceu-vos sincero.
- Decerto. Mas recorda-te que o primeiro dever de um bom inquisidor é o de suspeitar
em primeiro lugar daqueles que te parecem sinceros.
- Péssimo trabalho o do inquisidor - disse eu.
- Por isso o abandonei. E, como vês, cabe-me retomá-lo. Mas vamos à biblioteca.
SEGUNDO DIA
NOITE
Onde se penetra finalmente no labirinto, se tem estranhas visões e, como acontece
nos labirinto, aí a gente se perde.
Voltamos ao scriptorium, desta vez pela escada oriental, que também subia ao andar
proibido, com a candeia ao alto diante de nós. Eu pensava nas palavras de Alinardo sobre
o labirinto e esperava coisas pavorosas.
Fiquei surpreendido, quando emergimos no lugar onde não deveríamos ter entrado, ao
encontrar-me numa sala de sete lados, não muito ampla, privada de janelas, em que
reinava, como de resto em todo o andar, um forte odor a fechado ou a mofo. Nada de
terrificante.
A sala, como disse, tinha sete paredes, mas só em quatro delas se abria entre duas
colunazinhas encaixadas na parede, uma abertura, uma passagem bastante ampla
encimada por um arco de volta inteira. Ao longo das paredes fechadas encostavam-se
enormes armários, carregados de livros dispostos com regularidade. Os armários tinham
uma etiqueta numerada, assim como cada uma das prateleiras: claramente, os mesmos
números que tínhamos visto no catálogo. No meio da sala uma mesa, também ela repleta
de livros. Sobre todos os volumes um véu bastante fino de poeira sinal de que os livros
eram limpos com uma certa freqüência. Pelo chão também havia qualquer sujidade. Por
cima do arco de uma das portas, uma grande inscrição, pintada na parede, apresentava
as palavras: Apocalypsis lesu Christi. Não parecia esbatida, embora os caracteres fossem
antigos. Apercebemo-nos depois que, também nas outras salas, estas inscrições eram na
verdade gravadas na pedra, e bastante profundamente e depois as cavidades tinham sido
preenchidas com tinta, como se usa para pintar a fresco as igrejas.
Passamos por uma das aberturas. Encontramo-nos numa outra sala onde se abria uma
janela, que no lugar dos vidros apresentava placas de alabastro, com duas paredes
plenas e uma abertura, do mesmo tipo daquela por onde tínhamos acabado de passar,
que dava para outra sala, a qual tinha, também ela, duas paredes plenas com uma
janela, e uma outra porta que se abria diante de nós. Nas suas salas duas inscrições
semelhantes na forma à primeira que tínhamos visto, mas com outras palavras. A
inscrição da primeira dizia: Super thronos viginti quatuor, e a da segunda: Nomen illi
mors. Quanto ao resto, embora as suas salas fossem mais pequenas do que aquela por
onde tínhamos entrado na biblioteca (de fato, aquela era heptagonal e estas duas
retangulares), o mobiliário era o mesmo: armários com livros e mesa central.
Acedemos à terceira sala. Esta não tinha livros nem inscrição. Sob a janela, um altar
de pedra. Havia três portas, uma por onde tínhamos entrado, outra que dava para a sala
heptagonal já visitada, uma terceira que nos introduziu numa nova sala, não diferente
das outras, salvo pela inscrição, que dizia: Obscuratus est sol et aer. Daqui passava-se a
uma nova sala, cuja inscrição dizia: Facía est grando et ignis: era privada de outras
portas, ou melhor, chegados àquela sala não se podia avançar e era preciso voltar para
trás.
- Raciocinemos - disse Guilherme. - Cinco salas quadrangulares ou vagamente
trapezoidais, com uma janela cada uma, que giram em torno de uma sala heptagonal
sem janelas, a que é servida pela
escada. Parece-me elementar. Estamos no torreão oriental: cada torreão do exterior
apresenta cinco janelas e cinco lados. A conta está certa. A sala vazia é precisamente a
que está voltada a oriente, na mesma direção do coro da igreja; a luz do Sol ao
amanhecer ilumina o altar, o que me parece justo e piedoso. A única idéia astuta
parece-me a das placas de alabastro. De dia filtram uma bela luz, de noite não deixam
transparecer sequer os raios lunares. Não é pois um grande labirinto. Agora vejamos
onde levam as outras duas portas da sala heptagonal. Creio que nos orientaremos
facilmente.
O meu mestre enganava-se, e os construtores da biblioteca tinham sido mais hábeis do
que julgávamos. Não sei bem explicar o que aconteceu, mas ao abandonarmos o torreão
a ordem das salas tornou-se mais confusa. Umas tinham duas portas, outras três. Todas
tinham uma janela, mesmo aquelas por onde entrávamos partindo de uma sala com
janela e pensando que íamos para o interior do Edifício. Cada uma delas tinha sempre o
mesmo tipo de armários e de mesas, os volumes empilhados em boa ordem pareciam
todos iguais e não nos ajudavam decerto a reconhecer o lugar num golpe de vista.
Tentamos orientar-nos com as inscrições. Uma vez tínhamos atravessado uma sala em
que estava escrito In diebus illis e depois de algumas voltas pareceu-nos que tínhamos ali
voltado. Mas recordávamos que a porta em frente à janela introduzia uma sala em que
estava escrito Primogeni-tus mortuorum, enquanto encontrávamos agora uma outra que
dizia de novo Apocalypsis lesu Christi, e não era a sala heptagonal de onde tínhamos
partido. Este fato convenceu-nos que, por vezes, as inscrições se repetiam, eram iguais
em salas diferentes. Encontramos duas salas com inscrição Apocalypsis uma a seguir à
outra, e logo depois uma com Cecidit de coelo stella magna.
De onde provinham as frases das inscrições era evidente, tratava-se de versículos do
Apocalipse de João, mas não era nada claro nem por que razão estavam pintadas nas
paredes nem qual a lógica por que estavam dispostas. Para aumentar a nossa confusão,
reparamos que algumas inscrições, não muitas, eram de cor vermelha em vez de negra.
A certa altura encontramo-nos de novo na sala heptagonal do ponto de partida (aquela
era reconhecível, porque aí se abria a entrada da escada) e recomeçamos a mover-nos
para a nossa direita, procurando seguir em frente de sala em sala. Passamos por três
salas e depois achamo-nos diante de uma parede fechada. A única passagem introduzia
numa única sala que só tinha uma outra porta, pela qual saímos, percorrendo mais
quatro salas, e achamo-nos de novo diante de uma parede. Voltamos à sala precedente
que tinha duas saídas, metemos por aquela que ainda não tínhamos tentado, passamos a
uma nova sala e encontramo-nos na sala heptagonal do ponto de partida.
- Como se chamava a última sala onde voltamos para trás? - perguntou Guilherme.
Fiz um esforço de memória:
- Equus albus.
- Bem, é preciso encontrá-la de novo.
E foi fácil. Dali, se não se queria andar para trás, não havia senão que passar à sala
dita Gratia vobis et pax, e dali, à direita, pareceu-nos encontrar uma nova passagem que
não nos fizesse voltar para trás. Com efeito, encontramos outra vez In diebus illis y
Primogenitus mortuorum (porém não eram as mesmas salas de pouco antes?), mas
finalmente chegamos a uma sala que nos parecia que ainda não tínhamos visitado: Tenia
pars terrae combusta est. Mas, naquele momento, já não sabíamos onde estávamos em
relação ao torreão oriental.
Estendendo a candeia para a frente, aventurei-me até às salas seguintes, um gigante
de proporções ameaçadoras, de corpo ondulado e flutuante como o de um fantasma,
veio ao meu encontro.
- Um diabo! - gritei, e pouco faltou para me cair a candeia enquanto me voltava de
repente e me refugiava nos braços de Guilherme.
Este tirou-me a candeia das mãos e, afastando-me, avançou com uma decisão que me
pareceu sublime. Também ele viu qualquer coisa, porque recuou bruscamente. Depois
avançou de novo e levantou a candeia. Desatou a rir.
- Verdadeiramente engenhoso. Um espelho!
- Um espelho?
- Sim, meu valente guerreiro. Lançaste-te com tanta coragem sobre um inimigo
verdadeiro, a pouco no scriptorium, e agora assustas-te diante da tua imagem. Um
espelho que te devolve a tua imagem aumentada e deformada.
Tomou-me pela mão e conduziu-me diante da parede fronteira à entrada da sala.
Numa placa de vidro ondulada, agora que a candeia a iluminava mais de perto, vi as
nossas duas imagens, grotescamente deformadas, que mudava nossa forma e altura
conforme nos aproximávamos ou nos afastávamos dele.
- Deves ler algum tratado de óptica - disse Guilherme divertido -, como decerto leram
os fundadores da biblioteca. Os melhores são os dos árabes. Alhazen compôs um tratado
De aspectibus que com demonstrações geométricas precisas, falou da força dos espelhos.
Alguns deles, segundo o modo como é modulada a sua superfície, podemos aumentar as
coisas mais minúsculas (e que outra coisa faz as minhas lentes?), outros fazem aparecer
as imagens invertidas ou obliquas. Ou mostram dois objetos em vez de um, e quatro em
vez de dois. Outros ainda, como este, fazem de um anão um gigante ou de um gigante
num anão.
- Jesus Senhor! - disse. - Então são estas as visões que alguém diz ter tido na
biblioteca?
- Talvez. Uma idéia deveras engenhosa. - Leu as inscrições na parede, por cima do
espelho: Super thronos viginti quator. – ali a encontramos, mas era uma sala sem
espelho. E esta além do mais, não tem janelas nem é heptagonal. Onde estamos? - Olhou
em seu redor e aproximou-se de um armário: - Adso, sem aqueles benditos oculi ad
legendum não consigo compreender o que está escrito nestes livros. Lê-me alguns
títulos.
Peguei num livro ao acaso:
- Mestre, não está escrito!
- Como? Veja o que está escrito, que lês?
- Não leio. Não são letras do alfabeto e não é grego, reconhecê-lo-ia. Parecem
vermes, serpentezinhas, caganitas de moscas...
- Ah, é árabe. Há mais desses?
- Sim, alguns. Mas cá está um em latim, se Deus quiser. Al... Al Kuwarizmi, Tabúlete.
- As tábuas astronômicas de Al Kuwarizmi, traduzidas por Abelardo de Bath! Obra
raríssima! Continua.
- Isa ibn Ali, De oculis, Alkindi, De radiies stellatis...
- Olha agora sobre a mesa.
Abri um grande volume que estava sobre a mesa, um De bes-tiis. Calhou-me uma
página finamente iluminada, onde estava representado um belíssimo unicórnio.
- Bela obra - comentou Guilherme, que conseguia ver bem as imagens. - E aquilo?
- Líber monstruorum de diversis generibus. Também este com belas imagens, mas
parecem-me mais antigas.
Guilherme inclinou o rosto sobre o texto:
- Iluminado por monges irlandeses, há pelo menos cinco séculos. O livro do unicórnio
é, pelo contrário, mais recente, parece-me feito à maneira dos franceses.
Mais uma vez admirei a sabedoria do meu mestre. Entramos na sala a seguir e
percorremos as quatro salas seguintes, todas com janelas e todas cheias de volumes em
línguas desconhecidas e mais alguns textos de ciências ocultas, e chegamos a uma
parede que nos obrigou a voltar para trás, porque as últimas cinco salas penetravam
umas nas outras sem consentir outras saídas.
- Pela inclinação das paredes, devemos estar no pentágono de outro torreão - disse
Guilherme - talvez nos enganemos.
- Mas as janelas? - disse. - Como podem existir tantas janelas? Impossível que todas as
salas dêem para o exterior.
- Esqueces o poço central, muitas daquelas que vimos são janelas que dão para o
octógono do poço. Se fosse de dia, a diferença da luz dir-nos-ia quais são as janelas
exteriores e quais as interiores, e talvez até nos revelasse a posição da sala em relação
ao Sol. Mas de noite não se percebe nenhuma diferença. Voltemos para trás.
Voltamos de novo à sala do espelho e viramos para a terceira porta, pela qual nos
parecia que ainda não tínhamos passado. Vimos diante de nós uma fileira de três ou
quatro salas, e perto da última avistamos um clarão.
- Está aqui alguém! - exclamei com voz sufocada.
- Se está, já se apercebeu da nossa candeia - disse Guilherme cobrindo todavia a
chama com a mão.
Detivemo-nos por um ou dois minutos. O clarão continuava a oscilar levemente, mas
sem se tornar mais forte ou mais fraco.
- Talvez seja apenas uma lâmpada - disse Guilherme -, daquelas que se põem para
convencer os monges de que a biblioteca é habitada -, mas não há a sala heptagonal
central, pelas almas dos defuntos. Mas é preciso saber. Tu fica aqui cobrindo a candeia,
eu vou à frente com cautela.
Ainda envergonhado pela triste figura que fizera diante do espelho, quis redimir-me
aos olhos de Guilherme:
- Não vou eu – disse - e vós ficais aqui. Avançarei com cautela, sou mais pequeno e
mais leve. Mal dê conta que não há perigo, chamo-vos.
Eu disse. Avancei através de três salas caminhando rente às paredes ágil como um
gato (ou como um noviço que desce à cozinha a roubar queijo na despensa, empresa em
que era perito em Melk). Cheguei à soleira da sala de onde provinha o clarão, bastante
fraco, rastejando ao longo da parede atrás da coluna que servia de pé direito e espreitei
para a sala. Não havia ninguém. Uma espécie de lâmpada estava pousada sobre a mesa
acesa, e fumegava quase apagada. Não era uma candeia como a nossa parecia antes um
turíbulo destapado, não tinha chama, mas uma cinza ligeira ardia queimando alguma
coisa. Enchi-me de coragem e entrei. Sobre a mesa ao lado do turíbulo estava aberto um
livro de cores vivas. Aproximei-me e distingui sobre a página quatro riscas de diversas
cores, amarelo, vermelho, azul-turquesa e terra-queimada. Apresentava um animal,
horrível de ver, um grande dragão de dez cabeças que arrastava com a causa as estrelas
do céu e as fazia precipitar sobre a terra. E repentinamente vi que o dragão se
multiplicava, e as escamas da sua pele se tornavam como uma selva de estilhaços
rutilantes que se soltaram da folha e vieram rodopiar à solta da minha cabeça. Inclineime
para trás e vi o teto da sala que se inclinava e descia sobre mim, depois ouvi como
um sibilo de mil serpentes, mas não medonho, quase sedutor, e apareceu uma mulher
circundada de luz que aproximou o seu rosto do meu respirando-me para a cara. Afasteia
com as mãos estendidas, e pareceu-me que as minhas mãos tocavam os livros do
armário em frente, ou que eles cresciam desmesuradamente. Já não me dava conta do
lugar onde estava, e onde estava a terra e onde o céu. Vi no centro da sala Berengário,
que me fixava com um sorriso odioso, transpirando luxúria. Cobri o rosto com as mãos, e
as minhas mãos pareceram-me os membros de um sapo, viscosas e espalmadas. Gritei,
creio, senti um sabor acidulado na boca, depois afundei-me numa escuridão infinita, que
parecia abrir-se cada vez mais debaixo de mim, e não soube mais nada.
Acordei após um período que me pareceu de séculos, sentindo pancadas que me
ressoavam na cabeça. Estava estendido no chão, e Guilherme dava-me bofetadas nas
faces. Já não estava naquela sala, e os meus olhos distinguiram uma inscrição que dizia:
Requiescant a laboribus suis.
- Vá, vá, Adso - sussurrava-me Guilherme. - Não é nada...
- As coisas... - disse ainda delirando. – Além, a besta...
- Não há besta nenhuma. Encontrei-te a delirar aos pés de uma mesa onde se
encontrava uma belo apocalipse moçárabe, aberto na página da mulier amicta sole que
enfrenta o dragão. Mas apercebi-me, pelo cheiro, que tu tinhas respirado alguma coisa
de nocivo e tirei-te logo dali. Também a mim me dói a cabeça.
- Mas o que é que eu vi?
- Não viste nada. É que, ali, ardiam substancias capazes de provocar visões, reconheci
o cheiro, é uma coisa dos árabes, talvez a mesma que o velho da montanha dava a
cheirar aos seus assassinos antes de os impelir para as suas empresas. E assim explicamos
o mistério das visões. Alguém põe ervas mágicas durante a noite para convencer os
visitantes importunos que a biblioteca está protegida por presenças diabólicas. Que
sentiste, afinal?
Confusamente, por aquilo que recordava, contei-lhe a minha visão e Guilherme riu:
- Metade era a ampliação daquilo que tinhas distinguido no livro e na outra metade
deixavas falar os teus desejos e os teus receios. Esses são os efeitos que ativam tais
ervas. Amanhã é preciso falar disso com Severino, creio que sabe mais do que quer fazernos
crer. São ervas, apenas ervas, sem necessidade daquelas preparações necromanticas
de que nos falava o vidreiro. Ervas, espelhos... Este lugar da sapiência interdita é
defendido por muitas e sapientíssimas invenções. A ciência usada para ocultar em vez de
iluminar. Não me agrada. Uma mente perversa preside à Santa defesa da biblioteca. Mas
foi uma noitada pesada, temos de sair, por agora. Tu estás atordoado e tens necessidade
de água e de ar fresco. Inútil tentar abrir estas janelas, demasiado altas e fechadas
talvez há dezenas de anos. Como puderam pensar que Adelmo se tenha atirado daqui?
Sair, disse Guilherme. Como se fosse fácil. Sabíamos que a biblioteca era acessível de
um único torreão, o oriental. Mas onde estávamos naquele momento? Tínhamos perdido
completamente a orientação. A volta que demos, errando com o temor de nunca mais
sairmos daquele lugar, eu sempre vacilante e acometido por acessos de vômitos,
Guilherme bastante preocupado comigo e despeitado com a pequenez da sua ciência,
deu-nos, ou melhor, deu-lhe a ele, uma idéia para o dia seguinte. Deveríamos voltar à
biblioteca, admitindo que alguma vez dela saíssemos, com um tição de madeira
queimada, ou outra substancia capaz de deixar sinais nas paredes.
- Para encontrar a saída de um labirinto - recitou de fato Guilherme - não há senão um
meio. Ao chegar a cada novo nó, ou seja, nunca visitado antes, o percurso de chegada
será distinguido com três sinais. Se se observar sinais em algum dos caminhos do nó, sele
indicará que o mesmo já foi visitado, e então só marcará um único sinal no percurso de
chegada. Se todas as passagens já tiverem sido marcadas então será preciso refazer o
caminho, voltando para trás. Mas, se uma ou duas passagens do nó ainda não tiverem
sinais, escolher-se-á uma qualquer, aplicando-lhe dois sinais. Encaminhando-se por uma
passagem que tem um único sinal, aplicar-lhe-emos outros dois, de modo que, agora,
aquela passagem tenha três. Todas as partes do labirinto deveriam ter sido percorridas
se, chegando a um nó, nunca se seguir a passagem com três sinais, a menos que já
nenhuma das outras passagens esteja privada de sinais...
- Como sabeis? Sois perito em labirintos?
- Não, recito de um texto antigo que uma vez li.
- E, segundo essa regra, sai-se?
- Quase nunca, que eu saiba. Mas tentaremos na mesma. E depois, nos próximos dias,
terei lentes e terei tempo para me deter melhor sobre os livros. Pode ser que lá onde o
percurso das inscrições nos confunde, o dos livros nos dê uma regra.
- Tereis as lentes? Como fareis para as encontrar?
- Eu disse que terei lentes. Farei outras. Creio que o vidreiro não espera senão uma
ocasião desse gênero para fazer uma nova experiência. Se tiver os utensílios adequados
para lapidar cacos. Quanto aos cacos, naquela oficina há muitos.
Enquanto vagueávamos procurando caminho, de repente, no centro de uma sala, senti
acariciarem-me o rosto com uma mão invisível, enquanto um gemido, que não era
humano nem era
animal, ecoava naquele espaço e no seguinte, como se um espectro vagueasse de sala
em sala. Devia estar preparado para as surpresas da biblioteca, mas, uma vez mais,
aterrorizei-me e dei um salto para trás. Também Guilherme devia ter tido uma
experiência semelhante à minha, porque tocava a face, levantando a candeia e olhando
em seu redor.
Ele ergueu uma mão, depois examinou a chama que parecia agora mais viva, depois
umedeceu um dedo e manteve-o direito diante de si.
- É claro - disse depois, e mostrou-me dois pontos, em duas paredes opostas, à altura
de um homem. Abriam-se aí duas seteiras estreitas, e, aproximando delas a mão, podia
sentir-se o ar frio que provinha do exterior. Aproximando depois o ouvido sentia-se um
zumbido, como se de fora agora soprasse vento. - A biblioteca devia ter também um
sistema de ventilação - disse Guilherme -, de contrário a atmosfera seria irrespirável,
especialmente no Verão. Além disso, estas seteiras também fornecem uma justa dose de
umidade, a fim de que os pergaminhos não sequem. Mas a habilidade dos fundadores não
ficou por aqui. Dispondo as seteiras segundo certos ângulos, asseguraram que, nas noites
de vento, a aragem que penetra por estas aberturas se cruze com outra aragem e se
adense pela fileira das salas, produzindo os sons que ouvimos. Os quais, unidos aos
espelhos e às ervas, aumentam o temor dos incautos que aqui penetram, como nós sem
conhecer bem o lugar. E nós próprios pensamos por um momento que eram fantasmas
que respiravam para a cara. Só nos demos conta agora, porque só agora se levantou o
vento. E também este mistério está resolvido. Mas com tudo isto não sabemos ainda
como sair!
Assim falando vagueávamos no vazio, já perdidos, sem o cuidado de ler as inscrições
que apareciam todas iguais. Caímos numa nova sala heptagonal, giramos pelas salas
vizinhas, não encontramos qualquer saída. Voltamos para trás, caminhamos durante
quase uma hora, renunciando a saber onde estávamos. A certa altura, Guilherme decidiu
que estávamos derrotados, não nos restava senão pormo-nos a dormir nalguma sala e
esperar que no dia seguinte Malaquias nos encontrasse. Enquanto nos lamentávamos pelo
miserável fim da nossa bela empresa, encontramos inopinadamente a sala de onde partia
a escada. Agradecemos com fervor ao céu e descemos com grande alegria.
Uma vez na cozinha, lançamo-nos para a chaminé, entramos no corredor do ossário , e
juro que o esgar mortífero daquelas cabeças nuas me pareceu o sorriso de pessoas
queridas. Reentramos na igreja e saímos pelo portal setentrional, sentando-nos enfim
felizes sobre as lajes de pedra dos túmulos. O ar belíssimo da noite pareceu-me um
bálsamo divino. As estrelas brilhavam à nossa volta, e as visões da biblioteca pareceramme
bastante longínquas.
- Como é belo o mundo e como são feios os labirintos! - disse aliviado.
- Como seria belo o mundo se houvesse uma regra para andar nos labirintos -
respondeu o meu mestre.
- Que horas serão? - perguntei.
- Perdi a noção do tempo. Mas será bom encontrarmo-nos nas nossas celas antes que
toquem a matinas.
Costeamos o lado esquerdo da igreja, passamos diante do portal (voltei-me para o
outro lado para não ver os velhos do Apocalipse, super thronos viginti quatuor!) e
atravessamos o claustro para chegar ao albergue dos peregrinos.
Na soleira da construção estava o Abade, que nos olhou com severidade.
- Procurei-vos toda a noite - disse a Guilherme. - Não vos encontrei na cela, não vos
encontrei na igreja...
- Seguíamos uma pista... - disse vagamente Guilherme, com visível embaraço.
O Abade fixou-o longamente, depois disse com voz lenta e severa:
- Procurei-vos logo depois de completas. Berengário não estava no coro.
- Que coisa me estais dizendo? - fez Guilherme com ar hilário. De fato tornava-se-lhe
agora claro quem se tinha aninhado no scriptorium.
- Não estava no coro a completas - repetiu o Abade -, e não voltou pare a sua cela.
Vão tocar a matinal, e veremos agora se reaparece. De contrário, temo alguma nova
desgraça.
A matinal, Berengário não estava.
4ª parte »»»