PRIMEIRO DIA
DEPOIS DE NONA
Onde se visita o scriptorium e se conhecem muitos estudiosos, copistas e rubricadores,
assim como um velho cego que espera o Anticristo.
Enquanto subíamos, vi que o meu mestre observava as janelas que davam luz à
escada. Estava provavelmente a tornar-me tão hábil como ele, porque me apercebi logo
que a sua disposição dificilmente teria consentido a alguém chegar até elas. Por outro
lado, as janelas que se abriam no refeitório (as únicas que do primeiro andar davam para
o precipício) também não pareciam de fácil acesso, dado que por baixo delas não havia
qualquer espécie de móveis.
Chegados ao cimo da escada, entramos, pelo torreão setentrional, no scriptorium, e
ali não pude conter um grito de admiração. O segundo andar não estava dividido em dois
como o inferior e oferecia-se portanto ao meu olhar em toda a sua espaçosa imensidão.
As abóbadas, curvas e não demasiado altas (menos do que numa igreja, mais todavia do
que em qualquer outra sala capitular que tinha visto), sustentadas por robustas pilastras,
encerravam um espaço inundado de belíssima luz, porque três enormes janelas se abriam
de cada um dos lados maiores, enquanto cinco janelas mais pequenas perfuravam cada
um dos cinco lados externos de cada torreão; oito janelas altas e estreitas, enfim,
deixavam que a luz entrasse também pelo poço octogonal interior.
A abundância de janelas fazia com que a grande sala fosse alegrada por uma luz
contínua e difusa, embora fosse uma tarde de Inverno. As vidraças não eram coloridas
como as das igrejas, e os caixilhos de chumbo fixavam quadrados de vidro incolor, para
que a luz entrasse do modo mais puro possível, não modulada pela arte humana, e
servisse o seu objetivo, que era iluminar o trabalho da leitura e da escrita. Vi outras
vezes e em outros lugares muitos scriptoria, mas nenhum em que tão luminosamente
refulgisse, nas colunas de luz física que faziam resplandecer o ambiente, o próprio
princípio espiritual que a luz encarna, a clarista: fonte de toda a beleza e sapiência,
atributo inseparável da proporção que a sala manifestava. Porque três coisas concorrem
para criar a beleza: antes de mais, a integridade ou perfeição, e por isto reputamos feias
as coisas incompletas; depois, a devida proporção, isto é, a consonância; e, finalmente,
a claridade e a luz, e de fato chamamos belas às coisas de cor nítida. E como a visão do
belo comporta a paz, e para o nosso apetite é a mesma coisa aquietar-se na paz, no bem
ou no belo, senti-me invadido de grande consolação e pensei como devia ser agradável
trabalhar naquele lugar.
Tal como apareceu a meus olhos, àquela hora da tarde, pareceu-me uma alegre
oficina de sapiência. Vi em seguida em San Gallo um scriptorium de proporções
semelhantes, separado da biblioteca (noutros lugares os monges trabalhavam no próprio
lugar onde eram guardados os livros), mas não tão bem disposto como este. Antiquários,
livreiros, rubricadores e estudiosos estavam sentados, cada um à sua própria mesa, uma
mesa sob cada uma das janelas. E como as janelas eram quarenta (número
verdadeiramente perfeito devido à decuplicação do quadrilátero, como se os dez
mandamentos tivessem sido magnificados pelas quatro virtudes cardeais), quarenta
monges poderiam trabalhar em uníssono, embora naquele momento fossem apenas uns
trinta. Severino explicou-nos que os monges que trabalhavam no scriptorium estavam
dispensados dos ofícios de terça, sexta e nona para não terem de interromper o seu
trabalho nas horas de luz, e terminavam as suas atividades só ao pôr do Sol, para
vésperas.
Os lugares mais luminosos eram reservados aos antiquários, aos iluminadores mais
expertos, aos rubricadores e aos copistas. Cada mesa tinha tudo quanto servia para
iluminar e copiar: chifres de tinta, penas finas que alguns monges estavam afiando com
uma lamina delgada, pedra-pomes para tornar liso o pergaminho, réguas para traçar as
linhas sobre as quais se iria estender a escrita. Ao lado de cada escriba, ou no topo do
plano inclinado de cada mesa, estava uma estante, sobre a qual estava pousado o códice
a copiar, a página coberta de marginadores que enquadravam a linha que naquele
momento era transcrita. E alguns tinham tintas de ouro e de outras cores. Outros, por
sua vez, estavam apenas lendo livros e transcreviam notas nos seus cadernos ou
tabuinhas pessoais.
Não tive, aliás, tempo de observar o seu trabalho, porque veio ao nosso encontro o
bibliotecário, que já sabíamos que era Malaquias de Hildesheim. O seu rosto procurava
adquirir uma expressão de boas-vindas, mas não pude deixar de estremecer diante duma
fisionomia tão singular. A sua figura era alta e, embora extremamente magra, os seus
membros eram grandes e desajeitados. Como caminhava com grandes passadas, envolto
nas negras vestes da ordem, havia qualquer coisa de inquietante no seu aspecto. O
capuz, que, vindo de fora, tinha ainda levantado, lançava uma sombra sobre a palidez do
seu rosto e conteria um não se quê de doloroso aos seus grandes olhos melancólicos.
Havia na sua fisionomia como que os traços de muitas paixões que a vontade tinha
disciplinado mas que pareciam ter fixado os lineamentos que agora tinham deixado de
animar. Melancolia e severidade predominavam nas linhas do seu rosto, e os seus olhos
eram tão intensos que com um só olhar podiam penetrar o coração de quem lhe falava e
ler-lhe os pensamentos secretos, de modo que dificilmente se podia tolerar a sua
indignação, e era-se tentado a não os encontrar uma segunda vez.
O bibliotecário apresentou-nos a muitos dos monges que estavam naquele momento a
trabalhar. De cada um deles, Malaquias disse-nos ainda o trabalho que estava
executando, e admirei a profunda devoção de todos ao saber e ao estudo da palavra
divina. Conheci assim Venancio de Salvemec, tradutor de grego e de árabe, devoto de
Aristóteles, que foi certamente o mais sábio de todos os homens; Bêncio de Upsala, um
jovem monge escandinavo que se ocupava de retórica; Berengário de Arundel, o
ajudante do bibliotecário; Aymaro de Alexandria, que estava a copiar obras que só por
alguns meses estariam emprestadas à biblioteca; e depois um grupo de miniaturistas de
vários países, Patricio de Clonmacnois, Rábano de Toledo, Magnus de lona, Waldo de
Hereford.
A enumeração poderia decerto continuar, e nada é mais maravilhoso do que a
enumeração, instrumento de admiráveis hipotiposes. Mas devo voltar ao assunto das
nossas discussões, do qual emergiram muitas indicações úteis para compreender a sutil
inquietação que pairava entre os monges e um não sei quê de inexpresso que pesava
sobre todos os seus discursos.
O meu mestre principiou a conversar com Malaquias louvando a beleza e a
operosidade do scriptorium e pedindo-lhe informações sobre o andamento do trabalho
que ali se executava, porque, disse com muita sagacidade, tinha ouvido por toda a parte
falar daquela biblioteca e gostaria de examinar muitos dos livros. Malaquias explicou-lhe
aquilo que o Abade já tinha dito, que o monge pedia ao bibliotecário a obra a consultar,
e este iria buscá-la à biblioteca superior, se o pedido fosse justo e pio. Guilherme
perguntou como podia conhecer os nomes dos livros conservados nos armários de cima, e
Malaquias mostrou-lhe, fixado por uma cadeia de ouro à sua mesa, um volumoso códice
coberto de listas cerradíssimas.
Guilherme enfiou as mãos no saio, onde este se abria no peito formando uma bolsa, e
tirou de lá um objeto que já lhe tinha visto nas mãos, e no rosto, no decurso da viagem.
Era uma forquilha, construída de modo a poder estar sobre o nariz de um homem (e
melhor ainda sobre o seu, tão proeminente e aquilino) como um cavaleiro está à garupa
do seu cavalo ou como um pássaro num cavalete. E dos dois lados da forquilha, de modo
a corresponder aos olhos, arredondavam-se dois círculos ovais de metal, que encerravam
duas amêndoas de vidro espessas como fundos de copo. Guilherme lia de preferência
com aquilo sobre os olhos e dizia que via melhor do que a natureza o tinha dotado ou do
que a sua idade avançada, especialmente quando declinava a luz do dia, lhe permitiria.
Não lhe serviam para ver ao longe, que pelo contrário tinha a vista agudíssima, mas para
ver ao perto. Com aquilo ele podia ler manuscritos em letras finíssimas que eu próprio
quase não conseguia decifrar. Tinha-me explicado que, passando o homem a metade da
vida, mesmo que a sua vista tenha sido sempre ótima, o olho endurecia e se recusava a
adaptar a pupila, de modo que muitos sábios ficavam como mortos para a leitura e para
a escrita depois da sua qüinquagésima primavera. Grave infortúnio para homens que
teriam podido dar o melhor da sua inteligência por muitos anos ainda. Por isso se devia
louvar o Senhor por alguém ter descoberto e fabricado aquele instrumento. E dizia-mo
para defender as idéias do seu Roger Bacon, quando dizia que o escopo do saber era
também prolongar a vida humana.
Os outros monges olharam para Guilherme com muita curiosidade mas não ousaram
fazer-lhe perguntas. E eu apercebi-me que, mesmo num lugar tão zelosa e
orgulhosamente dedicado à leitura e à escrita, aquele admirável instrumento não tinha
ainda penetrado. E senti-me orgulhoso por estar junto de um homem que tinha alguma
coisa com que espantar outros homens famosos no mundo pela sua sabedoria.
Com aqueles objetos diante dos olhos, Guilherme inclinou-se sobre as listas lavradas
no códice. Olhei eu também, e descobrimos títulos de livros jamais ouvidos, e outros
celebérrimos, que a biblioteca possuía.
-De pentágono Salomonis, Ars loquendi et intelHgendi in língua hebraica, De rebus
metallicis, de Rogério de Heretord, Algebra, de Al Kuwarizmi, traduzida em latim por
Roberto Anglico, as Púnicas, de Sílio Itálico, as Gesta francorum, De laudibus sanctae
cru-cis, de Rábano Mauro, e Flavii Claudii Giordani de aetate mundi et hominis reservatis
singulis litteris per singulos libros ab A usque ad Z - leu o meu mestre. - Esplêndidas
obras. Mas em que ordem estão registradas? - Citou dum texto que eu não conhecia mas
que era decerto familiar a Malaquias: - « Habeat Librarius et registrum omnium librorum
ordinatum secundum facúltales et auctores, reponeatque eos separatim et ordinate cum
signaturis per scripturam applicatis.» Como fazeis para conhecer o lugar de cada livro?
Malaquias mostrou-lhe umas anotações que acompanhavam cada título. Li: iii, IV
gradus, V in prima graecorum; ii, V gradus, Vll in tertia anglorum, e assim
sucessivamente. Compreendi que o primeiro número indicava a posição do livro na
estante ou gradus, indicado pelo segundo número, sendo o armário indicado pelo
terceiro número, e compreendi também que as outras expressões designavam uma sala
ou corredor da biblioteca, e ousei pedir mais informações sobre estas últimas
distinctiones. Malaquias olhou-me severamente:
- Talvez não saibais, ou tenhais esquecido, que o acesso à biblioteca é consentido só
ao bibliotecário. E portanto é justo e suficiente que só o bibliotecário saiba decifrar
estas coisas.
- Mas em que ordem são referidos os livros nesta lista? - perguntou Guilherme. - Não
por assuntos, parece-me.
Não indicou uma ordem por autores que seguisse a mesma seqüência das letras do
alfabeto, porque é sutileza que vi posta em prática só nos últimos anos, e então usava-se
pouco.
- A biblioteca afunda a sua origem no fundo dos tempos – disse Malaquias -, e os livros
são registrados segundo a ordem das aquisições, das doações, do seu ingresso nestas
paredes.
- Difíceis de encontrar - observou Guilherme.
- Basta que o bibliotecário os conheça de cor e saiba para cada livro a época em que
chegou. Quanto aos outros monges, podem confiar na sua memória.
E parecia que falava de outro, que não fosse ele próprio; e compreendi que ele falava
da função que naquele momento indignamente desempenhava, mas que tinha sido
desempenhada por outros cem, já desaparecidos, que tinham transmitido uns aos outros
o seu saber.
- Compreendi - disse Guilherme. - Se eu então procurasse alguma coisa, sem saber o
quê, sobre o pentágono de Salomão, vós saberíeis indicar-me que existe o livro cujo
título acabo de ler, e poderíeis determinar a sua posição no andar superior.
- Se vós devêsseis verdadeiramente aprender alguma coisa sobre o pentágono de
Salomão - disse Malaquias. - Mas para vos dar um livro desses, preferia pedir antes o
conselho do Abade.
- Soube que um dos vossos miniaturistas mais hábeis - disse então Guilherme -
desapareceu recentemente. O Abade falou-me muito da sua arte. Posso ver os códices
que iluminava?
- Adelmo de Otranto - disse Malaquias, olhando para Guilherme com desconfiança - só
trabalhava, por causa da sua jovem idade, sobre os marginalia. Tinha uma imaginação
muito viva, e de coisas conhecidas sabia compor coisas desconhecidas e surpreendentes,
como quem une um corpo humano a uma cerviz eqüina. Mas estão ali os seus livros.
Ninguém tocou ainda na sua mesa.
Aproximamo-nos daquilo que tinha sido o local de trabalho de Adelmo, onde jaziam
ainda as folhas de um saltério ricamente iluminadas. Eram folha de velum finíssimo - o
rei dos pergaminhos -, e o último estava ainda fixado à mesa. Apenas esfregado com
pedra-pomes e amaciado com gesso, tinha sido alisado com a plaina, e, dos minúsculos
furos produzidos aos lados com um fino estilete, tinham sido traçadas todas as linhas que
deviam guiar a mão do artista. A primeira metade já tinha sido coberta de escrita, e o
monge tinha começado aí a esboçar as figuras nas margens. Pelo contrário, as outras
folhas já estavam acabadas, e, olhando-as, nem eu nem Guilherme conseguimos conter
um grito de admiração. Tratava-se de um saltério em cujas margens se delineava um
mundo invertido em relação àquele a que nos habituaram os nossos sentidos. Como se no
limiar de um discurso que por definição é o discurso da verdade se desenrolasse,
profundamente ligado àquele, por admiráveis alusões in aenigmate, um discurso
mentiroso sobre um universo posto de cabeça para baixo, onde os cães fogem diante da
lebre e os veados caçam o leão. Pequenas cabeças com pata de ave, animais com mãos
humanas nas costas, cabeças cabeludas de onde saíam pés, dragões zebrados,
quadrúpedes com pescoço de serpente que se enlaçava em mil nós inextricáveis,
macacos de cornos de veado, sereias com forma de voláteis com asas membranosas no
dorso, homens sem braços com outros corpos humanos que lhes nasciam na coluna a
modo de costa e figuras com a boca dentada no ventre, humanos com cabeça eqüina e
eqüinos com pernas humanas, peixes com asas de pássaro e pássaros com cauda de
peixe, monstros de corpo único e dupla cabeça ou cabeça única e corpo duplo, vacas
com cauda de galo de asas de borboleta, mulheres de cabeça escamada como o dorso de
um peixe, quimeras bicéfalas entrelaçadas com libélulas de focinho de lagarto,
centauros, dragões, elefantes, mantícoras, sciápodos estendidos em ramos de árvores,
grifos em cuja cauda se gerava um arqueiro em posição de guerra, criaturas diabólicas de
pescoço sem fim, seqüências de animais antropomorfos e de anões zoomorfos
associavam-se, por vezes na mesma página, a cenas de vida campestre onde se via
representada, com uma vivacidade tão impressionante que se teria pensado que as
figuras estavam vivas, toda a vida dos campos, lavradores, coletores de frutos, ceifeiros,
fiandeiras, semeadores ao lado de raposas e fuinhas armadas de bestas que escalavam as
torres duma cidade defendida por macacos. Aqui uma letra inicial dobrava-se em L, e na
parte interior gerava um dragão, ali um grande V que dava início à palavra «verba»
produzia como natural gavinha do seu tronco uma serpente de mil volutas, por sua vez
gerando outras serpentes como pâmpanos e corimbos.
Ao lado do saltério estava, evidentemente terminado há pouco, um delicado livro de
horas, de dimensões tão incrivelmente pequenas que se poderia tê-lo na palma da mão.
Exígua a escrita, as miniaturas marginais mal se viam à primeira vista e pediam que os
olhos as examinassem de perto para aparecerem em toda a sua beleza (e perguntava-se
com que instrumento sobre-humano o miniaturista as teria traçado para obter eleitos de
tanta vivacidade num espaço tão reduzido). As margens inteiras do livro eram invadidas
por minúsculas figuras que se geravam, quase por natural expansão, das volutas
terminais das letras esplendidamente traçadas: sereias marinhas, veados em fuga,
quimeras, torsos humanos sem braços que saíam como lombrigas do próprio corpo dos
versículos. Num ponto, quase na continuação dos três «Sanctus, Sanctus, Sanctus»
repetidos em três linhas diversas, viam-se três figuras beluínas de cabeças humanas,
duas das quais se dobravam, uma para baixo e outra para cima, para se unirem num
beijo que não se teria hesitado em definir impudico se não se estivesse persuadido que,
embora não perspícuo, um profundo significado espiritual devia certamente justificar
aquela representação naquele ponto.
Eu seguia aquelas paginas dividido entre a admiração muda e o riso porque as figuras
predispunham necessariamente à hilaridade, embora comentassem páginas santas. E
frade Guilherme examinava-as sorrindo, e comentou:
- Babewyn, assim lhes chamam nas minhas ilhas.
- Babouins, como lhes chamam nas Galias - disse Malaquias. - E de fato Adelmo
aprendeu a sua arte no vosso país, embora depois tenha estudado também em França.
Babuínos, ou seja, macacos de África. Figuras de um mundo invertido, onde as casas
surgem na ponta de uma agulha e a terra esta acima do céu.
Eu recordei-me de alguns versos que tinha ouvido no versículo da minha terra e não
pude conter-me sem os pronunciar:
Aller Wunder si geswigen, das herde himel hast überstigen, daz sult ir vür ein Wunder
wigen
E Malaquias continuou, citando do mesmo texto:
Erd ob un himel unter das sult ir han besunder Vur aller Wunder ein Wunder.
- Bravo, Adso - continuou o bibliotecário -, efetivamente estas imagens falam-nos
daquela região onde se chega cavalgando um ganso azul, onde se encontram gaviões que
pescam peixes num riacho, ursos que perseguem falcões no céu, lagostins que voam com
as pombas e três gigantes apanhados na armadilha e mordidos por um galo.
E um pálido sorriso iluminou os seus lábios. Então os outros monges, que tinham
seguido a conversa com uma certa timidez, puseram-se a rir com vontade, como se
tivessem esperado o consenso do bibliotecário. O qual se toldou, enquanto os outros
continuavam a rir, louvando a habilidade do pobre Adelmo e mostrando uns aos outros as
figuras mais inverossímeis. E foi enquanto todos ainda riam que ouvimos atrás de nós
uma voz, solene e severa.
- Verba vana aur risui apta non loqui.
Voltamo-nos. Quem tinha falado era um monge curvado pelo peso dos anos, branco
como a neve, não digo só o cabelo, mas também o rosto, as pupilas. Reparei que era
cego. A voz era ainda majestosa e os membros potentes, embora o corpo tivesse
encolhido ao peso da idade. Fixava-nos como se nos visse, e sempre também em seguida
o vi mover-se e falar como se possuísse ainda o dom da vista. Mas o tom da voz era, pelo
contrário, de quem possui só o dom da profecia.
- O homem venerando em idade e sapiência que vedes – disse Malaquias a Guilherme,
indicando-lhe o recém-chegado - é Jorge de Burgos. Mais velho do que quem quer que
viva no mosteiro, salvo Alinardo de Grottaferrata, ele é aquele a quem muitíssimos dos
monges confiam a carga dos seus pecados no segredo da confissão. - Depois, dirigindo-se
ao velho – Aquele que está diante de vós é frade Guilherme de Baskerville, nosso
hóspede.
- Espero que não vos tenhais zangado pelas minhas palavras - disse o velho em tom
brusco. - Ouvi pessoas que riam de coisas risíveis e recordei-lhes um dos princípios da
nossa regra. E como diz o salmista, se o monge se deve abster dos discursos bons pelo
voto do silêncio, com muito maior razão deve subtrair-se aos discursos maus. E tal como
existem discursos maus existem imagens más. E são aquelas que mentem acerca da
forma da criação e mostram o mundo ao contrário daquilo que deve ser. sempre foi e
sempre será nos séculos dos séculos até à consumação dos tempos. Mas vós vindes de
outra ordem, onde me dizem que é vista com indulgência até a jovialidade mais
inoportuna.
Aludia àquilo que entre os beneditinos se dizia das extravagâncias atribuídas a São
Francisco de Assis e talvez também das extravagâncias atribuídas a fraticelli e espirituais
de toda a espécie, que, da ordem franciscana, eram os mais recentes e embaraçosos
rebentos. Mas frade Guilherme deu mostras de não perceber a insinuação.
- As imagens marginais induzem muitas vezes a sorrir, mas com fins de edificação -
respondeu. - Como nos sermões para tocar a imaginação das piedosas multidões é preciso
inserir exempla, não raro facetos assim também o discurso das imagens deve permitir
estas nugae. Para cada virtude e para cada pecado há um exemplo tirado dos bestiários,
e os animais fazem-se figura do mundo humano.
- Oh, sim - motejou o velho, mas sem sorrir -, toda a imagem é boa
para estimular a virtude, para que a obra-prima da criação, posta de cabeça para
baixo, se torne matéria de riso. E assim a palavra de Deus manifesta-se através do burro
que toca lira, do tolo que lavra com o escudo, dos bois que se atrelam sozinhos ao arado,
dos rios que correm ao contrário, do mar que se incendeia, do lobo que se faz eremita!
Caçai a lebre com o boi, mandai-vos ensinar gramática pelas corujas, que os cães
mordam as pulgas, os cegos olhem para os mudos e os mudos peçam pão a formiga dê à
luz um vitelo, voem os frangos assados, as fogaças cresçam nos telhados, os papagaios
dêem lições de retórica, as galinhas fecundem os galos, metei o carro adiante dos bois,
ponde o cão a dormir na cama e que todos caminhem de pernas para o ar! Que querem
todas estas nugae? Um mundo invertido e oposto ao estabelecido por Deus, sob o
pretexto de ensinar os preceitos divinos!
- Mas o Areopagita ensina - disse humildemente Guilherme – que Deus só pode ser
nomeado através das coisas mais disformes. E Hugo de São Vítor recorda-nos que, quanto
mais a similitude se faz dissímil, tanto mais a verdade nos é revelada sob o véu de figuras
horríveis e indecorosas, tanto menos a imaginação se aplaca no gozo carnal e é obrigada
a colher os mistérios que se ocultam sob a curpitude das imagens...
- Conheço o argumento! E admito com vergonha que foi o argumento principal da
nossa ordem, quando os abades clunicenses se batiam contra os cistercienses. Mas São
Bernardo tinha razão: pouco a pouco o homem que representa monstros e portentos da
natureza para revelar as coisas de Deus per speculum et in aenigmate toma gosto na
própria natureza das monstruosidades que cria e deleita-se com elas, e por elas, e já não
vê senão através delas. Basta que olheis, vós que ainda tendes vista, para os capitéis do
vosso claustro - e apontou com a mão para fora das janelas, na direção da igreja -, sob os
olhos dos frades absorvidos na meditação, que significam aquelas ridículas
monstruosidades, aquelas disformes formosuras e formosas deformidades. Àqueles
sórdidos macacos? Aqueles leões, aqueles centauros, aqueles seres semi-humanos, com a
boca no ventre, com um só pé, com orelhas de abano? Aqueles tigres malhados, aqueles
guerreiros em luta, aqueles caçadores que sopram o corno, e aqueles múltiplos corpos
numa só cabeça e muitas cabeças num só corpo? Quadrúpedes com cauda de serpente, e
peixes com cabeça de quadrúpede, e aqui um animal que pela frente parece um cavalo e
por trás um bode, e além um eqüino com cornos e assim sucessivamente, agora é mais
agradável para um monge ler os mármores do que os manuscritos, e admirar as obras do
homem em vez de meditar sobre a lei de Deus. Tende vergonha pelo desejo dos vossos
olhos e pelos vossos sorrisos!
O grande velho parou arquejando. E eu admirei a viva memória com que, talvez cego
há tantos anos, ainda recordava as imagens de cuja turpitude nos falava. Tanto que
suspeitei que elas o tinham seduzido muito quando as tinha visto, se sabia descrevê-las
ainda com tanta paixão. Mas muitas vezes me aconteceu encontrar as representações
mais sedutoras do pecado precisamente nas páginas dos homens de incorruptível virtude
que condenavam o seu fascínio e os seus efeitos. Sinal de que estes homens são movidos
por tal ardor no testemunho da verdade, que não hesitam, por amor de Deus, em
conferir ao mal todas as seduções de que se reveste, para melhor instruir os homens
sobre os modos com que o maligno os encanta. E de fato as palavras de Jorge
despertaram-me uma grande vontade de ver os tigres e os macacos do claustro, que
ainda não tinha admirado. Mas Jorge interrompeu o curso dos meus pensamentos porque
recomeçou, em tom menos excitado, a falar.
- Nosso Senhor não teve necessidade de tantas estultícias para nos indicar o reto
caminho. Nada nas suas parábolas move ao riso ou ao temor. Adelmo, pelo contrário, que
morto agora chorais, gozava de tal maneira com as monstruosidades que iluminava que
tinha perdido de vista as coisas últimas de que deviam ser a figura material. E percorreu
todas, digo todas – e a sua voz fez-se solene e ameaçadora - as veredas da
monstruosidade. Por onde Deus sabe punir.
Desceu um pesado silêncio sobre os presentes. Ousou rompê-lo Venancio de Salvamec.
- Venerável Jorge –disse -, a vossa virtude torna-vos injusto. Dois dias antes de Adelmo
morrer, vós estáveis presente num douto debate que teve lugar precisamente aqui no
scriptorium. Adelmo preocupava-se com que a sua arte, cedendo a representações
bizarras e fantásticas, tendesse todavia à glória de Deus, instrumento de conhecimento
das coisas celestes. Frade Guilherme citava há pouco o Areopagira, sobre o
conhecimento pela deformidade. E Adelmo citou naquele dia uma outra autoridade
altíssima, a do doutor de Aquino, quando disse que convém que as coisas divinas sejam
expostas mais na figura de corpos vis do que na figura de corpos nobres. Primeiro porque
o espírito humano é mais facilmente libertado do erro; é claro, de fato, que certas
propriedades não podem ser atribuídas às coisas divinas, o que seria duvidoso se estas
fossem indicadas com figuras de nobres coisas corpóreas. Em segundo lugar porque este
modo de representação convém mais ao conhecimento de Deus que remos sobre esta
terra: ele manifesta-se-nos, de fato, mais naquilo que não é do que naquilo que é, e por
isso as semelhanças das coisas que mais se afastam de Deus levam-nos a uma mais exata
opinião dele, porque assim sabemos que ele está acima daquilo que dizemos e pensamos.
E em terceiro lugar porque assim são melhor ocultadas as coisas de Deus às pessoas
indignas. Em suma, tratava-se naquele dia de compreender de que modo se pode
descobrir a verdade através de expressões surpreendentes, e argutas, e enigmáticas. E
eu recordei-lhe que na obra do grande Aristóteles tinha encontrado palavras bastante
claras a este respeito...
- Não me recordo - interrompeu secamente Jorge -, sou muito velho. Não me recordo.
Posso ter exagerado em severidade. Agora tarde, tenho de ir.
- É estranho que não vos recordeis - insistiu Venancio -, foi uma douta e belíssima
discussão, em que também intervieram Bêncio e Berengário. Tratava-se de saber de fato
se as metáforas, e os jogos de palavras, e os enigmas, que embora pareçam imaginados
pelos poetas por puro deleite, não induzem a especular sobre as coisas de modo novo e
surpreendente, e eu dizia que também esta é uma virtude que se exige ao sábio... E
também estava Malaquias...
- Se o venerável Jorge não se recorda, tem respeito pela sua idade e pelo cansaço da
sua mente... aliás sempre tão viva - interveio um dos monges que seguiam a discussão.
A frase tinha sido pronunciada de modo agitado, pelo menos no início, porque quem
tinha falado, apercebendo-se que para convidar ao respeito do velho de fato lhe punha
em relevo uma fraqueza, tinha depois abandonado o ímpeto da sua própria intervenção,
acabando quase num sussurro de desculpa. O que tinha estado a falar era Berengário de
Arundel, o ajudante-bibliotecário. Era um jovem de rosto pálido, e observando-o
recordei-me da definição que Ubertino tinha dado de Adelmo: os seus olhos pareciam os
de uma mulher lasciva. Intimidado pelos olhares de todos que agora se pousavam sobre
ele, tinha os dedos das mãos enlaçados como quem quer reprimir uma tensão interior.
Singular foi a reação de Venancio. Olhou para Berengário de modo tal que aquele
baixou os olhos:
- Está bem, irmão – disse -, se a memória é um dom de Deus também a capacidade de
esquecer pode ser muito boa, e é respeitada. Mas respeito-a no irmão ancião a quem
falava. De ti esperava uma recordação mais viva sobre o que aconteceu quando
estávamos aqui, justamente com um teu caríssimo amigo...
Não poderia dizer se Venancio tinha acentuado o tom sobre a palavra «caríssimo». O
fato é que percebi uma atmosfera de embaraço entre os assistentes. Cada um voltava o
olhar para outro lado e ninguém o dirigia para Berengário, que tinha corado
violentamente. Interveio de súbito Malaquias, com autoridade:
- Vinde, frade Guilherme – disse -, mostrar-vos-ei outros livros interessantes.
O grupo desfez-se. Notei Berengário a lançar a Venancio um olhar carregado de
rancor, e Venancio responder-lhe da mesma maneira, num mudo desafio. Eu, vendo que
o velho Jorge se estava afastando, movido por um sentido de respeitosa reverência,
inclinei-me para lhe beijar a mão. O velho recebeu o beijo, pousou a mão sobre a minha
cabeça e perguntou quem era. Quando lhe disse o meu nome, o seu rosto iluminou-se.
- Tens um nome grande e belíssimo - disse. - Sabes quem foi Adso de Monter-en-Der? -
perguntou. Eu, confesso, não sabia. Então Jorge acrescentou: - Foi o autor de um livro
grande e terrível, o Lvoellus de Antichristo, em que ele viu coisas que haviam de
acontecer, e não foi escutado o bastante.
- O livro foi escrito antes do milênio - disse Guilherme -, e essas coisas não se
verificaram...
- Para quem não tem olhos para ver - disse o cego. - As vias do Anticristo são lentas e
tortuosas. Ele chega quando não o prevemos, e não porque o cálculo sugerido pelo
apóstolo estivesse errado, mas porque nós não lhe aprendemos a arte. - Depois gritou,
em voz altíssima, o rosto voltado para a sala, fazendo ribombar as abóbadas do
scriptorium: - Ele está a chegar! Não percais os últimos dias rindo de monstrozinhos de
pele malhada e cauda retorcida. Não dissipeis os últimos sete dias!
PRIMEIRO DIA
VÉSPERAS
Onde se visita o resto da abadia, Guilherme tira algumas Conclusões sobre a morte de
Adelmo, e fala com o irmão vidreiro sobre os vidros para ler e de fantasmas para quem
quer ler demasiado.
Naquele momento tocaram para vésperas, e os monges dispuseram-se a deixar as suas
mesas. Malaquias deu-nos a entender que também nós nos devíamos ir embora. Ele
ficaria com o seu ajudante, Berengário a pôr de novo as coisas em ordem e (assim se
exprimiu) a preparar a biblioteca para a noite. Guilherme perguntou-lhe se depois
fechava as portas.
- Não há portas que impeçam o acesso ao scriptorium pela cozinha e pelo refeitório,
nem à biblioteca pelo scriptorium. Mais forte do que qualquer porta deve ser o interdito
do Abade. E os monges têm de servir-se não só da cozinha como do refeitório até
completas. Nessa altura, para impedir que estranhos ou animais, para os quais o
interdito não vale, possam entrar no Edifício, eu próprio fecho os portais de baixo, que
conduzem às cozinhas e ao refeitório, e depois daquela hora o Edifício fica isolado.
Descemos. Enquanto os monges se dirigiam para o coro, o meu mestre decidiu que o
Senhor nos perdoaria se não assistíssemos ao ofício divino (o Senhor teve muito que nos
perdoar nos dias seguintes) e propôs-me que caminhasse um pouco com ele pelo
planalto, a fim de nos familiarizarmos com o lugar.
Saímos pelas cozinhas, atravessamos o cemitério: havia pedras tumulares mais
recentes, e outras que apresentavam os sinais do tempo, contando vidas de monges, que
tinham vivido nos séculos passados. As tumbas não tinham nome, encimadas por cruzes
de pedra.
O tempo estava a pôr-se feio. Tinha-se levantado um vento frio, e o céu tornava-se
caliginoso. Adivinhava-se um sol que se punha por trás dos hortos, e já se fazia escuro
para oriente, para onde nos dirigimos, ladeando o coro da igreja e atingindo a parte
posterior do planalto. Ali, quase encostados ao muro da cerca, onde ele se soldava ao
torreão oriental do Edifício, ficavam as estrumeiras, e os porqueiros estavam a tapar a
jarra com o sangue dos porcos. Notamos que, por trás das estrumeiras o muro da cerca
era mais baixo, de modo que se podia debruçar-se. Para além do precipício dos muros, o
terreno, que descia vertiginosamente por baixo, estava coberto por um barro que a neve
não conseguia esconder completamente. Dei conta que se tratava do depósito de
estrume, que era atirado daquele lugar, e descia até à curva onde se bifurcava o
caminho ao longo do qual se tinha aventurado o fugitivo Brunello. Digo estrume porque
se tratava de um grande despejo de matéria fedorenta, cujo odor chegava até ao
parapeito em que me debruçava; evidentemente os camponeses iam buscá-lo, de baixo,
para o usarem nos campos. Mas às de jecções dos animais e dos homens misturavam-se
outros detritos sólidos, todo o refluir de matérias mortas que a abadia expelia do seu
próprio corpo, para se manter límpida e pura na sua relação com o cimo do monte e com
o céu.
Nas cavalariças ao lado, os guardadores de cavalos reconduziam os animais à
manjedoura. Percorremos o caminho ao longo do qual se sucediam, do lado do muro, os
vários estábulos, e à esquerda, encostado ao coro, o dormitório dos monges, e depois as
latrinas. Onde o muro oriental dobrava para sul, no angulo do muro da cerca, era o
edifício das forjas. Os últimos terreiros estavam depondo os seus instrumentos e
apagando os foles, para se encaminharem para o ofício divino. Guilherme dirigiu-se com
curiosidade para uma parte das forjas, quase separada do resto do laboratório, onde um
monge estava arrumando as suas coisas. Na sua mesa estava uma belíssima
coleção de vidros multicolores, de pequenas dimensões, mas vidros mais largos
estavam encostados à parede. Diante dele estava um relicário ainda incompleto, de que
só existia a carcaça de prata, mas sobre a qual ele estava evidentemente a encastoar
vidros e outras pedras, que com os seus instrumentos tinha reduzido às dimensões de
uma gema.
Conhecemos assim Nicolau de Morimondo, mestre vidreiro da abadia. Explicou-nos que
na parte posterior da forja também se soprava vidro, enquanto na anterior, onde
estavam os ferreiros, se lixavam os vidros aos caixilhos de chumbo para fazer vitrais.
Mas, acrescentou, a grande obra vidreira, que embelezava a igreja e o Edifício, já tinha
sido concluída pelo menos dois séculos antes. Agora limitavam-se a trabalhos menores,
ou à reparação dos estragos do tempo.
- E com grande dificuldade – acrescentou -, porque já não se conseguem encontrar as
cores de outros tempos, especialmente o azul que ainda podeis admirar no coro, de uma
qualidade tão límpida que, com o sol alto, derrama na nave uma luz paradisíaca. Os
vidros da parte ocidental da nave, refeitos ainda não há muito tempo, não são da mesma
qualidade, e vê-se nos dias de Verão. É inútil – acrescentou -, já não temos a sabedoria
dos antigos, acabou-se a época dos gigantes!
- Somos anões - admitiu Guilherme -, mas anões que estão às costas daqueles
gigantes, e na nossa pequenez conseguimos por vezes ver mais longe do que eles no
horizonte.
- Diz-me que coisas fazemos melhor do que eles tenham sabido fazer! - exclamou
Nicolau. - Se desceres à cripta da igreja onde está guardado o tesouro da abadia,
encontrarás relicários de tão delicada feitura que o monstrozinho que eu estou agora
miseramente construindo - e apontou para a sua obra sobre a mesa - parecer-te-á
imitação daqueles!
- Não está escrito que os mestres vidreiros tenham de continuar a construir janelas e
os ourives relicários, se os mestres do passado souberam produzi-los tão belos e
destinados a durar através dos séculos. Senão, a terra encher-se-ia de relicários, numa
época em que os santos de que tirar relíquias são tão raros - motejou Guilherme. - E
também não se deverão soldar janelas até ao infinito. Mas vi em vários países obras
novas feitas de vidro que nos fazem pensar num mundo de amanhã em que o vidro esteja
não só ao serviço dos ofícios divinos mas também ajude a fraqueza do homem. Quero
mostrar-te uma obra dos nossos dias, de que me honro de possuir um utilíssimo
exemplar.
Meteu as mãos no saio e tirou de lá as suas lentes, que deixaram estupefato o nosso
interlocutor.
Nicolau pegou na forquilha que Guilherme lhe estendia com grande interesse:
- Oculi de vitro cum capsula! - exclamou. - Já tinha ouvido falar disso a um certo frei
Giordano que conheci em Pisa! Dizia que não havia ainda vinte anos que tinham sido
inventados. Mas falei com ele há mais de vinte anos.
- Creio que foram inventados muito antes - disse Guilherme -, mas são difíceis de
fabricar e requerem-se mestres vidreiros muito experientes. Custam tempo e trabalho.
Ha dez anos um par desses vitrei ab oculis ad legendum foram vendidos em Bolonha por
seis soldos. Eu recebi um par como presente de um grande mestre, Salvino degli Armati,
há mais de dez anos, e tenho-os conservado ciosamente por todo este tempo, como se
fossem (como já são) parte do meu próprio corpo.
- Espero que mos deixes examinar um destes dias, não me desagradaria produzir uns
semelhantes - disse emocionado Nicolau.
- Certamente - concordou Guilherme -, mas repara que a espessura do vidro deve
mudar segundo o olho a que se deve adaptar, e é preciso tentar muitas destas lentes,
para as experimentar no paciente, enquanto não se encontra a espessura boa.
- Que maravilha! - continuava Nicolau. - E no entanto muitos falariam de bruxaria e de
manipulação diabólica...
- É certo que por estas coisas podes falar de magia – concordou Guilherme. - Mas há
duas formas de magia. Há uma magia que é obra do diabo e que visa a ruína do homem
através de artifícios de que não é bom falar. Mas há uma magia que é obra divina, onde a
ciência de Deus se manifesta através da ciência do homem, que serve para transformar a
natureza, sendo um dos seus fins prolongar a própria vida do homem. E esta é magia
santa, a que os sábios deverão dedicar-se cada vez mais, não só para descobrir coisas
novas mas para redescobrir tantos segredos da natureza que a sapiência divina tinha
revelado aos hebreus, aos gregos, a outros povos antigos e até hoje aos infiéis (e não te
digo quantas coisas maravilhosas de óptica e ciência da visão existem nos livros dos
infiéis!). E uma ciência cristã deve reapossar-se de todos estes conhecimentos e retomála
aos pagãos e aos infiéis tanquam ab iniustus possessoribus.
- Mas porque é que aqueles que possuem esta ciência não a comunicam a todo o povo
de Deus?
- Porque nem todo o povo de Deus está pronto a aceitar tantos segredos, e muitas
vezes aconteceu que os depositários desta ciência foram confundidos com magos ligados
por pacto com o demônio, pagando com a sua vida o desejo que tinham tido de tornar os
outros participantes do seu tesouro de conhecimento. Eu próprio, durante processos em
que se suspeitava que alguém tinha comércio com o demônio, tive de me abster de usar
estas lentes, recorrendo a secretários cheios de boa vontade que me lessem as escrituras
de que precisava, porque senão, num momento em que a presença do diabo era tão
invadente e todos respiravam, por assim dizer, o seu poder de enxofre, eu próprio teria
sido visto como amigo dos inquiridos. E enfim, advertia o grande Roger Bacon, nem
sempre os segredos da ciência devem andar nas mãos de todos, que alguns poderiam usálos
para maus propósitos. Freqüentemente o sábio deve fazer aparecer como mágicos
livros que mágicos não são, mas precisamente de boa ciência, para os proteger de olhos
indiscretos.
- Tu temes portanto que os simples possam fazer mau uso destes segredos? - perguntou
Nicolau.
- Pelo que respeita aos simples, temo apenas que possam ser aterrorizados,
confundindo-os com as obras do diabo, de que demasiadas vezes lhes falam os
pregadores. Vê, aconteceu-me conhecer médicos habilíssimos que tinham instilado
medicamentos capazes de curar imediatamente uma doença. Mas estes davam o seu
ungüento ou infusão aos simples acompanhando-o com palavras sacras e salmodiando
frases que pareciam orações. Não porque estas orações tivessem o poder de curar, mas
para que, acreditando que a cura vinha das orações, os simples engolissem a infusão ou
se untassem com o ungüento, e assim se curassem, sem prestar demasiada atenção à sua
força efetiva. E depois também para que o espírito, bem excitado pela fé na fórmula
devora, se dispusesse melhor à ação corporal do medicamento. Mas freqüentemente os
tesouros da ciência são defendidos não contra os simples mas sim contra outros sábios.
Fazem-se hoje máquinas prodigiosas, de que um dia te falarei, com que verdadeiramente
se pode dirigir o curso da natureza. Mas ai de nós se elas caíssem nas mãos de homens
que as usassem para estender o seu poder terreno e saciar a sua ambição de posse.
Dizem-me que em Catay um sábio misturou um pó que pode produzir, em contato com o
fogo, um grande estrondo e uma grande chama, destruindo todas as coisas braças e
braças em redor. Admirável artifício, se fosse usado para desviar o curso dos rios ou
fragmentar as rochas onde haja que assorear o terreno. Mas se alguém o usasse para
causar prejuízo aos seus próprios inimigos?
- Talvez fosse bem, se fossem inimigos do povo de Deus – disse devotamente Nicolau.
- Talvez - admitiu Guilherme. - Mas quem é hoje o inimigo do povo de Deus? Luís,
imperador, ou João, o papa?
- Oh, meu Senhor - disse Nicolau todo assustado -, não queria de fato decidir sozinho
uma coisa tão dolorosa!
- Vês? - disse Guilherme. - Por vezes é bem que certos segredos ainda permaneçam
cobertos por discursos ocultos. Os segredos da natureza não se transportam em peles de
cabra ou de ovelha. Aristóteles diz no livro dos segredos que ao comunicar-se demasiados
arcanos da natureza e da arte se quebra um sigilo celeste e que muitos males poderiam
seguir-se. O que não quer dizer que os segredos não devam ser revelados, mas que
compete aos sábios decidir quando e como.
- Por isso é bom que em lugares como este - disse Nicolau – nem todos os livros
estejam ao alcance de todos.
- Essa é outra história - disse Guilherme. - Pode-se pecar por excesso de loquacidade e
por excesso de reticência. Eu não queria dizer que é preciso esconder as fontes da
ciência. Isto parece-me antes um grande mal. Queria dizer que, tratando-se de arcanos
de que pode nascer tanto o bem como o mal, o sábio tem o direito e o dever de usar uma
linguagem obscura, compreensível só para seus iguais. A via da ciência é difícil, e é
difícil distinguir aí o bem do mal. E freqüentemente os sábios dos tempos novos são só
anões aos ombros de anões.
A amável conversa com o meu mestre devia ter posto Nicolau em veia de confidências.
Por isso piscou o olho a Guilherme (como a dizer: eu e tu entendemo-nos porque falamos
das mesmas coisas) e aludiu:
- Porém lá em baixo - e apontou para o Edifício - os segredos da ciência estão bem
defendidos por obras de magia...
- Sim? - disse Guilherme, ostentando indiferença. – Portas trancadas, proibições
severas, ameaças, imagino.
- Oh, não, mais...
- O quê, por exemplo?
- Olha, eu não sei com exatidão, eu ocupo-me de vidros e não de livros, mas na abadia
circulam histórias... estranhas...
- De que gênero?
- Estranhas. Digamos, a de um monge que pela calada da noite quis aventurar-se na
biblioteca, para procurar qualquer coisa que Malaquias não tinha querido dar-lhe, e viu
serpentes, homens sem cabeça e homens com duas cabeças. Por pouco não saía louco do
labirinto...
- Porque falas de magia e não de aparições diabólicas?
- Porque embora seja um pobre mestre vidreiro não sou assim tão ingênuo. O diabo
(Deus nos salve!) não tenta um monge com serpentes e homens bicéfalos. Quando muito
com visões lascivas, como com os padres do deserto. E depois, se é mal pôr a mão em
certos livros, porque é que o diabo havia de dissuadir um monge de cometer o mal?
- Parece-me um bom entimema - admitiu o meu mestre.
- E enfim, quando colocava as vidraças no hospital, diverti-me a folhear alguns livros
de Severino. Havia um livro de segredos escrito, creio, por Alberto Magno; fui atraído por
algumas iluminuras curiosas, e li umas páginas sobre o modo como se pode untar o pavio
de uma lâmpada de azeite e com os sufumígios que dela provêm provocam visões. Deves
ter notado, ou melhor, não deves ter ainda notado porque ainda não passaste uma noite
na abadia, que durante as horas noturnas o andar superior do Edifício está iluminado.
Pelas vidraças, nalguns sítios, transparece uma luz débil. Muitos se têm perguntado o que
será, e falou-se de fogos-fátuos, ou das almas dos bibliotecários monges defuntos que
voltam para visitar o seu reino. Muitos aqui acreditam nisso. Eu penso que são lâmpadas
preparadas para as visões. Sabes, se pegares na gordura da orelha de um cão e com ela
untares um pavio, quem respirar o fumo daquela lâmpada acreditará que tem uma
cabeça de cão, e se estiver alguém a seu lado vê-lo-á com cabeça de cão. E há um outro
ungüento que faz com que aqueles que giram à volta da lâmpada se sintam grandes como
elefantes. E com os olhos de um morcego e de dois peixes cujo nome não recordo e o fel
de um lobo fazes um pavio que ao arder te fará ver os animais donde tiraste a gordura. E
com a cauda de lagarto fazes ver todas as coisas em torno como de prata, e com a
gordura de uma serpente negra e um fragmento de lençol fúnebre a sala aparecerá cheia
de serpentes. Eu sei disso. Na biblioteca há alguém muito astuto...
- Mas não poderiam ser as almas dos bibliotecários defuntos que fazem estas magias?
Nicolau deteve-se perplexo e inquieto:
- Não tinha pensado nisso. Pode ser. Deus nos proteja... É tarde, as vésperas já
começaram. Adeus.
E dirigiu-se para a igreja.
Prosseguimos ao longo do lado sul: à direita o albergue dos peregrinos e a sala
capitular com o jardim, à esquerda os lagares, o moinho, os celeiros, as caves, a casa dos
noviços. E todos se apressavam para a igreja.
- Que pensais daquilo que disse Nicolau? - perguntei.
- Não sei. Na biblioteca acontece quaisquer coisa, e não creio que sejam as almas dos
bibliotecários defuntos...
- Porquê?
- Porque imagino que terão sido tão virtuosos que hoje estarão no reino dos céus a
contemplar o rosto da divindade, se esta resposta te pode satisfazer. Quanto, as
lâmpadas, se as houver vê-las-emos. E quanto aos ungüentos de que nos falava o nosso
vidreira há modos mais fáceis de provocar visões, e Severino conhece-os muito bem, tu
apercebeste-te disso hoje. É certo que na abadia não querem que se penetre de noite na
biblioteca e que muitos, pelo contrário, tentaram ou tentam fazê-lo.
- E o nosso delito tem alguma coisa a ver com esta história?
- Delito? Quanto mais penso nisso mais me convenço que Adelmo se matou.
- E porquê?
- Recordas-te desta manhã quando notei o depósito do estrume? Enquanto subíamos a
curva dominada pelo torreão oriental tinha notado naquele ponto os sinais deixados por
um desmoronamento; ou melhor, uma porção de terreno, mais ou menos onde se
amontoa o estrume, tinha desabado rolando até debaixo do torreão. E eis porque esta
tarde, quando olhamos do alto, o estrume nos apareceu pouco coberto de neve, ou
melhor, coberto apenas pela última de ontem, não pela dos dias passados. Quanto ao
cadáver de Adelmo, o Abade disse-nos que estava dilacerado pelas rochas, e sob o
torreão oriental, exatamente onde a construção acaba a pique, crescem pinheiros. As
rochas estão, pelo contrário, precisamente no ponto em que a muralha acaba, formando
como que uma espécie de degrau, e depois começa a queda do estrume.
- E então?
- E então pensa se não será mais... como dizer?... menos dispendioso para a nossa
mente pensar que Adelmo, por razões ainda a apurar, se atirou sponte sua do parapeito
da muralha, saltou sobre as rochas e, morto ou ferido que estivesse, precipitou-se no
estrume. Depois, o desmoronamento, devido ao furacão daquela noite, fez deslizar o
estrume e parte do terreno e também o corpo do infeliz para debaixo do torreão
oriental.
- Porque dizeis que é uma solução menos dispendiosa para a nossa mente?
- Querido Adso, não é preciso multiplicar as explicações e as causas sem ter estrita
necessidade disso. Se Adelmo caiu do torreão oriental é preciso que tenha penetrado na
biblioteca, que alguém o tenha atingido primeiro para que não opusesse resistência, que
tenha encontrado modo de subir com um corpo exânime às costas até à janela, que a
tenha aberto e tenha precipitado o desgraçado no abismo. Com a minha hipótese
bastam-nos ao invés Adelmo, a sua vontade e um desmoronamento. Tudo se explica
utilizando um menor número de causas.
- Mas porque é que se teria matado?
- Mas porque é que o teriam matado? Em todo o caso, é preciso encontrar as razões. E
que as há parece-me indubitável. No Edifício respira-se ar de reticência, todos nos calam
qualquer coisa. Entretanto já recolhemos algumas insinuações, bastante vagas na
verdade, sobre uma certa relação que existia entre Adelmo e Berengário. Quer dizer que
teremos debaixo de olho o ajudante-bibliotecário.
Enquanto assim se falava, o ofício de vésperas tinha terminado. Os servos voltavam às
suas funções antes de se retirarem para a ceia, os monges encaminhavam-se para o
refeitório. Agora, o céu estava escuro e principiava a nevar. Uma neve ligeira, em
pequenos flocos macios, que continuaria, creio, por grande parte da noite, porque na
manhã seguinte todo o planalto estava coberto por um alvo manto, como direi.
Eu tinha fome e acolhi com alívio a idéia de ir para a mesa.
PRIMEIRO DIA
COMPLETAS
Onde Guilherme e Adro gozam da alegre hospitalidade do Abade e da irritada
conversação de Jorge.
O refeitório era iluminado por grandes tochas. Os monges sentavam-se ao longo de
uma fila de mesas, dominada pela mesa do Abade, posta perpendicularmente a eles
sobre um vasto estrado. Do lado oposto um púlpito, sobre o qual já tinha tomado lugar o
monge que faria a leitura durante a ceia. O Abade esperava-nos junto de uma pequena
fonte com um pano branco para nos enxugar as mãos depois do lavabo, segundo os
conselhos antiqüíssimos de São Pacómio.
O Abade convidou Guilherme para a sua mesa e disse que por aquela noite, dado que
também eu era hóspede fresco, gozaria do mesmo privilégio, embora fosse um noviço
beneditino. Nos dias seguintes, disse-me paternalmente, poderia sentar-me à mesa com
os monges, ou, se o meu mestre me tivesse confiado alguma tarefa, passar antes ou
depois das refeições pela cozinha, onde os cozinheiros se ocupariam de mim.
Os monges estavam agora de pé diante das mesas, imóveis, com o capucho caído sobre
o rosto e as mãos debaixo do escapulário. O Abade aproximou-se da sua mesa e
pronunciou o Benedicite. Do púlpito, o cantor entoou Edení pauperes. O Abade deu a sua
bênção, e todos se sentaram.
A regra do nosso fundador prevê um almoço bastante parco, mas deixa decidir o
Abade a quantidade de alimento de que efetivamente têm necessidade os monges. Por
outro lado, agora nas nossas abadias cede-se mais aos prazeres da mesa. Não falo
daquelas que, infelizmente, se tornaram em covis de glutões; mas mesmo as que se
inspiram em critérios penitenciais e de virtude fornecem aos monges, absorvidos quase
sempre em gravosos trabalhos do intelecto, uma nutrição não mole mas robusta. Por
outro lado, a mesa do Abade é sempre privilegiada, até porque não raro a ela se sentam
hóspedes de respeito, e as abadias são orgulhosas dos produtos dos seus cozinheiros.
A refeição dos monges decorreu em silêncio, como de costume, comunicando uns com
os outros com o nosso habitual alfabeto dos dedos. Os noviços e os monges mais jovens
eram servidos primeiro, logo depois dos pratos destinados a todos terem passado pela
mesa do Abade.
À mesa do Abade sentavam-se conosco Malaquias, o despenseiro e os dois monges mais
idosos. Jorge de Burgos, o velho cego que já tinha conhecido no scriptorium, e o
velhíssimo Alinardo de Grottaferrata: quase centenário, claudicante e de aspecto frágil,
e -pareceu-me - de espírito ausente. O Abade disse-nos dele que, tendo entrado como
noviço naquela abadia, sempre ali tinha vivido e recordava pelo menos oitenta anos das
suas vicissitudes. O Abade disse-nos estas coisas no princípio, em voz baixa, porque em
seguida ateve-se ao uso da nossa ordem e seguiu-se em silêncio a leitura. Mas, como
disse, à mesa do Abade tomavam-se algumas liberdades, e sucedeu-nos elogiar os pratos
que nos foram oferecidos, enquanto o Abade celebrava as qualidades do seu azeite ou do
seu vinho. Até uma vez, servindo-nos de beber, recordou-nos aqueles passos da regra em
que o santo fundador tinha observado que certamente o vinho não convém aos monges,
mas, pois que não se podem persuadir os monges do nosso tempo a não beber, que ao
menos não bebam até à saciedade, porque o vinho leva à apostasia até os sábios, como
recorda o Eclesiastes. Bento dizia «no nosso tempo» e referia-se ao seu, já muito
distante: imaginemos no tempo em que ceávamos na abadia, depois de tanta decadência
de costumes (e não falo do meu tempo, em que agora escrevo, com a diferença que aqui
em Melk cede-se mais à cerveja!): em suma, bebeu-se sem exagerar mas não sem gosto.
Comemos carne no espeto, dos porcos acabados de matar, e reparei que para outros
alimentos não se usava gordura de animais nem óleo de colza, mas um bom azeite de
oliveira, que vinha de terrenos que a abadia possuía aos pés do monte para o lado do
mar. O Abade fez-nos provar (reservado para a sua mesa) aquele frango que tinha visto
preparar na cozinha. Notei que, coisa bastante rara, ele dispunha também de um garfo
de metal, que, pela forma, me recordava as lentes do meu mestre: homem de nobre
extração, o nosso hospedeiro não queria sujar as mãos com a comida, e até nos ofereceu
o seu instrumento ao menos para tirar as carnes do prato grande e pô-las nas nossas
escudelas. Eu recusei, mas vi que Guilherme aceitou de bom grado e se serviu com
desenvoltura daquele utensílio de senhores, talvez para provar ao Abade que os
franciscanos não eram pessoas de escassa educação e de extração humilíssima.
Entusiasta como era por todas aquelas boas comidas (depois de alguns dias de viagem
em que nos tínhamos alimentado como podíamos), tinha-me distraído do curso da leitura
que entretanto prosseguia devotamente. Fui chamado a ela por um vigoroso grunhido de
assentimento de Jorge, e reparei que se tinha chegado ao ponto em que se lia sempre
um capítulo da regra. Dei conta da razão por que Jorge estava tão satisfeito, depois de o
ter escutado naquela tarde.
De fato, dizia o leitor: «Imitemos o exemplo do profeta que
diz: decidi, vigiarei sobre o meu caminho para não pecar com a minha língua, pus uma
mordaça à minha boca, emudeci humilhando-me, abstive-me de tudo, até de coisas
honestas. E se neste passo o profeta nos ensina que, por vezes, por amor do silêncio, nos
deveríamos abster até dos discursos lícitos, quanto mais devemos abster-nos dos
discursos ilícitos para evitar a pena deste pecado!» E depois prosseguia: «Mas as
vulgaridades, as palermices e as fanfarronices nós condenamo-las a reclusão perpétua,
em qualquer lugar, e não permitimos que o discípulo abra a boca para fazer discursos de
tal sorte.»
- E que isto valha para os marginalia de que se falava hoje - não se conteve de
comentar Jorge em voz baixa João Boccadoro disse que Cristo nunca riu.
- Nada na sua natureza humana o impedia - observou Guilherme -, porque o riso, como
ensinam os teólogos, é próprio do homem.
- Forte potuit sed non legitur eo usus fuisse – disse incisivamente Jorge, citando Pedro
Cantore.
- Manduca, jam coctum est - sussurrou Guilherme.
- O quê? - perguntou Jorge, que pensava que ele aludia a algum alimento que lhe era
apresentado.
- São as palavras que, segundo Ambrósio, foram pronunciadas por São Lourenço na
grelha, quando convidou os carrascos a voltá-lo do outro lado, como também recorda
Prudêncio no Perirtephanon - disse Guilherme com o ar de um santo. – São Lourenço
sabia portanto rir e dizer coisas ridículas embora fosse para humilhar os próprios
inimigos.
- O que demonstra que o riso é coisa bastante próxima da morte e da corrupção do
corpo - rebateu Jorge, com um grunhido, e devo admitir que se comportou como bom
lógico.
Naquele momento, o Abade convidou-nos amavelmente ao silêncio. A ceia, aliás,
estava a terminar. O Abade levantou-se e apresentou Guilherme aos monges. Louvou-lhe
a sabedoria, proclamou-lhe a fama, e advertiu que lhe tinha sido pedido para investigar
sobre a morte de Adelmo, convidando os monges a responder às suas perguntas e a
advertir os seus subordinados, por toda a abadia, a fazerem outro tanto. E a facilitar-lhe
as investigações, contanto que, acrescentou, os seus pedidos não transgredissem as
regras do mosteiro. Nesse caso, dever-se-ia recorrer à sua autorização.
Acabada a ceia, os monges dispuseram-se a dirigir-se para o coro, para o ofício de
completas. Baixaram de novo o capucho sobre o rosto e alinharam-se diante da porta,
parados. Depois moveram-se numa longa fila, atravessando o cemitério e entrando no
coro pelo portal setentrional.
Encaminhamo-nos com o Abade.
- A esta hora fecham-se as portas do Edifício? – perguntou Guilherme.
- Logo que os servos tenham limpo o refeitório e as cozinhas, o próprio bibliotecário
fechara todas as portas, trancando-as por dentro.
- Por dentro? E ele por onde sai?
O Abade fixou Guilherme por um instante de rosto sério:
- Decerto não dorme na cozinha - disse bruscamente.
E apressou o passo.
- Muito bem - sussurrou Guilherme -, portanto existe uma outra entrada, mas nós não
a devemos conhecer. - Eu sorri todo orgulhoso da sua dedução, e ele ralhou-me: - E não
te rias. Bem viste que dentro destas muralhas o riso não goza de boa reputação.
Entramos no coro. Ardia uma única lâmpada, sobre um robusto tripé de bronze, da
altura de dois homens. Os monges colocaram-se nas estalas em silêncio, enquanto o
leitor lia uma passagem de uma homilia de São Gregório.
Depois o Abade fez um sinal e o cantor entoou Tu autem Domine miserere nobis. O
Abade respondeu Adjutorium nostrum in nomine Domini, e todos fizeram coro com Qui
fecit coelum et terram. Então iniciou-se o canto dos salmos: Quando te invoco respondeme,
ó Deus da minha justiça! Dar-te-ei graças, Senhor, com todo o meu coração,
bendizei o Senhor, servos todos do Senhor. Nós não nos tínhamos colocado nas estalas,
mas tínhamo-nos retirado para a nave principal. Foi dali que distinguimos de repente
Malaquias, que emergia do escuro de uma capela lateral.
- Não percas de vista aquele ponto - disse-me Guilherme. – Pode haver uma passagem
que leve ao Edifício.
- Por baixo do cemitério?
- E porque não? Melhor, pensando bem nisso, deve haver em qualquer parte um ossário
; é impossível que há séculos sepultem todos os monges naquela nesga de terra.
- Mas quereis verdadeiramente entrar de noite na biblioteca? - perguntei, aterrado.
- Onde estão os monges defuntos e as serpentes e as luzes misteriosas, meu bom Adso?
Não, rapaz. Pensava nisso hoje, e não por curiosidade mas porque me punha o problema
de como teria morrido Adelmo. Agora, como te disse, inclino-me para uma explicação
mais lógica, e no fim de contas quero respeitar os usos deste lugar.
- Então porque quereis saber?
- Porque a ciência não consiste apenas em saber aquilo que se deve ou se pode fazer,
mas também em saber aquilo que se poderia fazer e que talvez não se deva fazer. Eis
porque dizia hoje ao mestre vidreiro que o sábio deve de certo modo ocultar os segredos
que descobre, para que outros não façam mau uso deles, mas é preciso descobri-los, e
esta biblioteca parece-me sobretudo um lugar onde os segredos permanecem
encobertos.
Com estas palavras encaminhou-se para fora da igreja, porque o ofício tinha
terminado. Estávamos ambos muito cansados, e fomos para a nossa cela. Eu aninhei-me
naquilo a que Guilherme chamou gracejando o meu «nicho» e adormeci imediatamente.
assim como um velho cego que espera o Anticristo.
Enquanto subíamos, vi que o meu mestre observava as janelas que davam luz à
escada. Estava provavelmente a tornar-me tão hábil como ele, porque me apercebi logo
que a sua disposição dificilmente teria consentido a alguém chegar até elas. Por outro
lado, as janelas que se abriam no refeitório (as únicas que do primeiro andar davam para
o precipício) também não pareciam de fácil acesso, dado que por baixo delas não havia
qualquer espécie de móveis.
Chegados ao cimo da escada, entramos, pelo torreão setentrional, no scriptorium, e
ali não pude conter um grito de admiração. O segundo andar não estava dividido em dois
como o inferior e oferecia-se portanto ao meu olhar em toda a sua espaçosa imensidão.
As abóbadas, curvas e não demasiado altas (menos do que numa igreja, mais todavia do
que em qualquer outra sala capitular que tinha visto), sustentadas por robustas pilastras,
encerravam um espaço inundado de belíssima luz, porque três enormes janelas se abriam
de cada um dos lados maiores, enquanto cinco janelas mais pequenas perfuravam cada
um dos cinco lados externos de cada torreão; oito janelas altas e estreitas, enfim,
deixavam que a luz entrasse também pelo poço octogonal interior.
A abundância de janelas fazia com que a grande sala fosse alegrada por uma luz
contínua e difusa, embora fosse uma tarde de Inverno. As vidraças não eram coloridas
como as das igrejas, e os caixilhos de chumbo fixavam quadrados de vidro incolor, para
que a luz entrasse do modo mais puro possível, não modulada pela arte humana, e
servisse o seu objetivo, que era iluminar o trabalho da leitura e da escrita. Vi outras
vezes e em outros lugares muitos scriptoria, mas nenhum em que tão luminosamente
refulgisse, nas colunas de luz física que faziam resplandecer o ambiente, o próprio
princípio espiritual que a luz encarna, a clarista: fonte de toda a beleza e sapiência,
atributo inseparável da proporção que a sala manifestava. Porque três coisas concorrem
para criar a beleza: antes de mais, a integridade ou perfeição, e por isto reputamos feias
as coisas incompletas; depois, a devida proporção, isto é, a consonância; e, finalmente,
a claridade e a luz, e de fato chamamos belas às coisas de cor nítida. E como a visão do
belo comporta a paz, e para o nosso apetite é a mesma coisa aquietar-se na paz, no bem
ou no belo, senti-me invadido de grande consolação e pensei como devia ser agradável
trabalhar naquele lugar.
Tal como apareceu a meus olhos, àquela hora da tarde, pareceu-me uma alegre
oficina de sapiência. Vi em seguida em San Gallo um scriptorium de proporções
semelhantes, separado da biblioteca (noutros lugares os monges trabalhavam no próprio
lugar onde eram guardados os livros), mas não tão bem disposto como este. Antiquários,
livreiros, rubricadores e estudiosos estavam sentados, cada um à sua própria mesa, uma
mesa sob cada uma das janelas. E como as janelas eram quarenta (número
verdadeiramente perfeito devido à decuplicação do quadrilátero, como se os dez
mandamentos tivessem sido magnificados pelas quatro virtudes cardeais), quarenta
monges poderiam trabalhar em uníssono, embora naquele momento fossem apenas uns
trinta. Severino explicou-nos que os monges que trabalhavam no scriptorium estavam
dispensados dos ofícios de terça, sexta e nona para não terem de interromper o seu
trabalho nas horas de luz, e terminavam as suas atividades só ao pôr do Sol, para
vésperas.
Os lugares mais luminosos eram reservados aos antiquários, aos iluminadores mais
expertos, aos rubricadores e aos copistas. Cada mesa tinha tudo quanto servia para
iluminar e copiar: chifres de tinta, penas finas que alguns monges estavam afiando com
uma lamina delgada, pedra-pomes para tornar liso o pergaminho, réguas para traçar as
linhas sobre as quais se iria estender a escrita. Ao lado de cada escriba, ou no topo do
plano inclinado de cada mesa, estava uma estante, sobre a qual estava pousado o códice
a copiar, a página coberta de marginadores que enquadravam a linha que naquele
momento era transcrita. E alguns tinham tintas de ouro e de outras cores. Outros, por
sua vez, estavam apenas lendo livros e transcreviam notas nos seus cadernos ou
tabuinhas pessoais.
Não tive, aliás, tempo de observar o seu trabalho, porque veio ao nosso encontro o
bibliotecário, que já sabíamos que era Malaquias de Hildesheim. O seu rosto procurava
adquirir uma expressão de boas-vindas, mas não pude deixar de estremecer diante duma
fisionomia tão singular. A sua figura era alta e, embora extremamente magra, os seus
membros eram grandes e desajeitados. Como caminhava com grandes passadas, envolto
nas negras vestes da ordem, havia qualquer coisa de inquietante no seu aspecto. O
capuz, que, vindo de fora, tinha ainda levantado, lançava uma sombra sobre a palidez do
seu rosto e conteria um não se quê de doloroso aos seus grandes olhos melancólicos.
Havia na sua fisionomia como que os traços de muitas paixões que a vontade tinha
disciplinado mas que pareciam ter fixado os lineamentos que agora tinham deixado de
animar. Melancolia e severidade predominavam nas linhas do seu rosto, e os seus olhos
eram tão intensos que com um só olhar podiam penetrar o coração de quem lhe falava e
ler-lhe os pensamentos secretos, de modo que dificilmente se podia tolerar a sua
indignação, e era-se tentado a não os encontrar uma segunda vez.
O bibliotecário apresentou-nos a muitos dos monges que estavam naquele momento a
trabalhar. De cada um deles, Malaquias disse-nos ainda o trabalho que estava
executando, e admirei a profunda devoção de todos ao saber e ao estudo da palavra
divina. Conheci assim Venancio de Salvemec, tradutor de grego e de árabe, devoto de
Aristóteles, que foi certamente o mais sábio de todos os homens; Bêncio de Upsala, um
jovem monge escandinavo que se ocupava de retórica; Berengário de Arundel, o
ajudante do bibliotecário; Aymaro de Alexandria, que estava a copiar obras que só por
alguns meses estariam emprestadas à biblioteca; e depois um grupo de miniaturistas de
vários países, Patricio de Clonmacnois, Rábano de Toledo, Magnus de lona, Waldo de
Hereford.
A enumeração poderia decerto continuar, e nada é mais maravilhoso do que a
enumeração, instrumento de admiráveis hipotiposes. Mas devo voltar ao assunto das
nossas discussões, do qual emergiram muitas indicações úteis para compreender a sutil
inquietação que pairava entre os monges e um não sei quê de inexpresso que pesava
sobre todos os seus discursos.
O meu mestre principiou a conversar com Malaquias louvando a beleza e a
operosidade do scriptorium e pedindo-lhe informações sobre o andamento do trabalho
que ali se executava, porque, disse com muita sagacidade, tinha ouvido por toda a parte
falar daquela biblioteca e gostaria de examinar muitos dos livros. Malaquias explicou-lhe
aquilo que o Abade já tinha dito, que o monge pedia ao bibliotecário a obra a consultar,
e este iria buscá-la à biblioteca superior, se o pedido fosse justo e pio. Guilherme
perguntou como podia conhecer os nomes dos livros conservados nos armários de cima, e
Malaquias mostrou-lhe, fixado por uma cadeia de ouro à sua mesa, um volumoso códice
coberto de listas cerradíssimas.
Guilherme enfiou as mãos no saio, onde este se abria no peito formando uma bolsa, e
tirou de lá um objeto que já lhe tinha visto nas mãos, e no rosto, no decurso da viagem.
Era uma forquilha, construída de modo a poder estar sobre o nariz de um homem (e
melhor ainda sobre o seu, tão proeminente e aquilino) como um cavaleiro está à garupa
do seu cavalo ou como um pássaro num cavalete. E dos dois lados da forquilha, de modo
a corresponder aos olhos, arredondavam-se dois círculos ovais de metal, que encerravam
duas amêndoas de vidro espessas como fundos de copo. Guilherme lia de preferência
com aquilo sobre os olhos e dizia que via melhor do que a natureza o tinha dotado ou do
que a sua idade avançada, especialmente quando declinava a luz do dia, lhe permitiria.
Não lhe serviam para ver ao longe, que pelo contrário tinha a vista agudíssima, mas para
ver ao perto. Com aquilo ele podia ler manuscritos em letras finíssimas que eu próprio
quase não conseguia decifrar. Tinha-me explicado que, passando o homem a metade da
vida, mesmo que a sua vista tenha sido sempre ótima, o olho endurecia e se recusava a
adaptar a pupila, de modo que muitos sábios ficavam como mortos para a leitura e para
a escrita depois da sua qüinquagésima primavera. Grave infortúnio para homens que
teriam podido dar o melhor da sua inteligência por muitos anos ainda. Por isso se devia
louvar o Senhor por alguém ter descoberto e fabricado aquele instrumento. E dizia-mo
para defender as idéias do seu Roger Bacon, quando dizia que o escopo do saber era
também prolongar a vida humana.
Os outros monges olharam para Guilherme com muita curiosidade mas não ousaram
fazer-lhe perguntas. E eu apercebi-me que, mesmo num lugar tão zelosa e
orgulhosamente dedicado à leitura e à escrita, aquele admirável instrumento não tinha
ainda penetrado. E senti-me orgulhoso por estar junto de um homem que tinha alguma
coisa com que espantar outros homens famosos no mundo pela sua sabedoria.
Com aqueles objetos diante dos olhos, Guilherme inclinou-se sobre as listas lavradas
no códice. Olhei eu também, e descobrimos títulos de livros jamais ouvidos, e outros
celebérrimos, que a biblioteca possuía.
-De pentágono Salomonis, Ars loquendi et intelHgendi in língua hebraica, De rebus
metallicis, de Rogério de Heretord, Algebra, de Al Kuwarizmi, traduzida em latim por
Roberto Anglico, as Púnicas, de Sílio Itálico, as Gesta francorum, De laudibus sanctae
cru-cis, de Rábano Mauro, e Flavii Claudii Giordani de aetate mundi et hominis reservatis
singulis litteris per singulos libros ab A usque ad Z - leu o meu mestre. - Esplêndidas
obras. Mas em que ordem estão registradas? - Citou dum texto que eu não conhecia mas
que era decerto familiar a Malaquias: - « Habeat Librarius et registrum omnium librorum
ordinatum secundum facúltales et auctores, reponeatque eos separatim et ordinate cum
signaturis per scripturam applicatis.» Como fazeis para conhecer o lugar de cada livro?
Malaquias mostrou-lhe umas anotações que acompanhavam cada título. Li: iii, IV
gradus, V in prima graecorum; ii, V gradus, Vll in tertia anglorum, e assim
sucessivamente. Compreendi que o primeiro número indicava a posição do livro na
estante ou gradus, indicado pelo segundo número, sendo o armário indicado pelo
terceiro número, e compreendi também que as outras expressões designavam uma sala
ou corredor da biblioteca, e ousei pedir mais informações sobre estas últimas
distinctiones. Malaquias olhou-me severamente:
- Talvez não saibais, ou tenhais esquecido, que o acesso à biblioteca é consentido só
ao bibliotecário. E portanto é justo e suficiente que só o bibliotecário saiba decifrar
estas coisas.
- Mas em que ordem são referidos os livros nesta lista? - perguntou Guilherme. - Não
por assuntos, parece-me.
Não indicou uma ordem por autores que seguisse a mesma seqüência das letras do
alfabeto, porque é sutileza que vi posta em prática só nos últimos anos, e então usava-se
pouco.
- A biblioteca afunda a sua origem no fundo dos tempos – disse Malaquias -, e os livros
são registrados segundo a ordem das aquisições, das doações, do seu ingresso nestas
paredes.
- Difíceis de encontrar - observou Guilherme.
- Basta que o bibliotecário os conheça de cor e saiba para cada livro a época em que
chegou. Quanto aos outros monges, podem confiar na sua memória.
E parecia que falava de outro, que não fosse ele próprio; e compreendi que ele falava
da função que naquele momento indignamente desempenhava, mas que tinha sido
desempenhada por outros cem, já desaparecidos, que tinham transmitido uns aos outros
o seu saber.
- Compreendi - disse Guilherme. - Se eu então procurasse alguma coisa, sem saber o
quê, sobre o pentágono de Salomão, vós saberíeis indicar-me que existe o livro cujo
título acabo de ler, e poderíeis determinar a sua posição no andar superior.
- Se vós devêsseis verdadeiramente aprender alguma coisa sobre o pentágono de
Salomão - disse Malaquias. - Mas para vos dar um livro desses, preferia pedir antes o
conselho do Abade.
- Soube que um dos vossos miniaturistas mais hábeis - disse então Guilherme -
desapareceu recentemente. O Abade falou-me muito da sua arte. Posso ver os códices
que iluminava?
- Adelmo de Otranto - disse Malaquias, olhando para Guilherme com desconfiança - só
trabalhava, por causa da sua jovem idade, sobre os marginalia. Tinha uma imaginação
muito viva, e de coisas conhecidas sabia compor coisas desconhecidas e surpreendentes,
como quem une um corpo humano a uma cerviz eqüina. Mas estão ali os seus livros.
Ninguém tocou ainda na sua mesa.
Aproximamo-nos daquilo que tinha sido o local de trabalho de Adelmo, onde jaziam
ainda as folhas de um saltério ricamente iluminadas. Eram folha de velum finíssimo - o
rei dos pergaminhos -, e o último estava ainda fixado à mesa. Apenas esfregado com
pedra-pomes e amaciado com gesso, tinha sido alisado com a plaina, e, dos minúsculos
furos produzidos aos lados com um fino estilete, tinham sido traçadas todas as linhas que
deviam guiar a mão do artista. A primeira metade já tinha sido coberta de escrita, e o
monge tinha começado aí a esboçar as figuras nas margens. Pelo contrário, as outras
folhas já estavam acabadas, e, olhando-as, nem eu nem Guilherme conseguimos conter
um grito de admiração. Tratava-se de um saltério em cujas margens se delineava um
mundo invertido em relação àquele a que nos habituaram os nossos sentidos. Como se no
limiar de um discurso que por definição é o discurso da verdade se desenrolasse,
profundamente ligado àquele, por admiráveis alusões in aenigmate, um discurso
mentiroso sobre um universo posto de cabeça para baixo, onde os cães fogem diante da
lebre e os veados caçam o leão. Pequenas cabeças com pata de ave, animais com mãos
humanas nas costas, cabeças cabeludas de onde saíam pés, dragões zebrados,
quadrúpedes com pescoço de serpente que se enlaçava em mil nós inextricáveis,
macacos de cornos de veado, sereias com forma de voláteis com asas membranosas no
dorso, homens sem braços com outros corpos humanos que lhes nasciam na coluna a
modo de costa e figuras com a boca dentada no ventre, humanos com cabeça eqüina e
eqüinos com pernas humanas, peixes com asas de pássaro e pássaros com cauda de
peixe, monstros de corpo único e dupla cabeça ou cabeça única e corpo duplo, vacas
com cauda de galo de asas de borboleta, mulheres de cabeça escamada como o dorso de
um peixe, quimeras bicéfalas entrelaçadas com libélulas de focinho de lagarto,
centauros, dragões, elefantes, mantícoras, sciápodos estendidos em ramos de árvores,
grifos em cuja cauda se gerava um arqueiro em posição de guerra, criaturas diabólicas de
pescoço sem fim, seqüências de animais antropomorfos e de anões zoomorfos
associavam-se, por vezes na mesma página, a cenas de vida campestre onde se via
representada, com uma vivacidade tão impressionante que se teria pensado que as
figuras estavam vivas, toda a vida dos campos, lavradores, coletores de frutos, ceifeiros,
fiandeiras, semeadores ao lado de raposas e fuinhas armadas de bestas que escalavam as
torres duma cidade defendida por macacos. Aqui uma letra inicial dobrava-se em L, e na
parte interior gerava um dragão, ali um grande V que dava início à palavra «verba»
produzia como natural gavinha do seu tronco uma serpente de mil volutas, por sua vez
gerando outras serpentes como pâmpanos e corimbos.
Ao lado do saltério estava, evidentemente terminado há pouco, um delicado livro de
horas, de dimensões tão incrivelmente pequenas que se poderia tê-lo na palma da mão.
Exígua a escrita, as miniaturas marginais mal se viam à primeira vista e pediam que os
olhos as examinassem de perto para aparecerem em toda a sua beleza (e perguntava-se
com que instrumento sobre-humano o miniaturista as teria traçado para obter eleitos de
tanta vivacidade num espaço tão reduzido). As margens inteiras do livro eram invadidas
por minúsculas figuras que se geravam, quase por natural expansão, das volutas
terminais das letras esplendidamente traçadas: sereias marinhas, veados em fuga,
quimeras, torsos humanos sem braços que saíam como lombrigas do próprio corpo dos
versículos. Num ponto, quase na continuação dos três «Sanctus, Sanctus, Sanctus»
repetidos em três linhas diversas, viam-se três figuras beluínas de cabeças humanas,
duas das quais se dobravam, uma para baixo e outra para cima, para se unirem num
beijo que não se teria hesitado em definir impudico se não se estivesse persuadido que,
embora não perspícuo, um profundo significado espiritual devia certamente justificar
aquela representação naquele ponto.
Eu seguia aquelas paginas dividido entre a admiração muda e o riso porque as figuras
predispunham necessariamente à hilaridade, embora comentassem páginas santas. E
frade Guilherme examinava-as sorrindo, e comentou:
- Babewyn, assim lhes chamam nas minhas ilhas.
- Babouins, como lhes chamam nas Galias - disse Malaquias. - E de fato Adelmo
aprendeu a sua arte no vosso país, embora depois tenha estudado também em França.
Babuínos, ou seja, macacos de África. Figuras de um mundo invertido, onde as casas
surgem na ponta de uma agulha e a terra esta acima do céu.
Eu recordei-me de alguns versos que tinha ouvido no versículo da minha terra e não
pude conter-me sem os pronunciar:
Aller Wunder si geswigen, das herde himel hast überstigen, daz sult ir vür ein Wunder
wigen
E Malaquias continuou, citando do mesmo texto:
Erd ob un himel unter das sult ir han besunder Vur aller Wunder ein Wunder.
- Bravo, Adso - continuou o bibliotecário -, efetivamente estas imagens falam-nos
daquela região onde se chega cavalgando um ganso azul, onde se encontram gaviões que
pescam peixes num riacho, ursos que perseguem falcões no céu, lagostins que voam com
as pombas e três gigantes apanhados na armadilha e mordidos por um galo.
E um pálido sorriso iluminou os seus lábios. Então os outros monges, que tinham
seguido a conversa com uma certa timidez, puseram-se a rir com vontade, como se
tivessem esperado o consenso do bibliotecário. O qual se toldou, enquanto os outros
continuavam a rir, louvando a habilidade do pobre Adelmo e mostrando uns aos outros as
figuras mais inverossímeis. E foi enquanto todos ainda riam que ouvimos atrás de nós
uma voz, solene e severa.
- Verba vana aur risui apta non loqui.
Voltamo-nos. Quem tinha falado era um monge curvado pelo peso dos anos, branco
como a neve, não digo só o cabelo, mas também o rosto, as pupilas. Reparei que era
cego. A voz era ainda majestosa e os membros potentes, embora o corpo tivesse
encolhido ao peso da idade. Fixava-nos como se nos visse, e sempre também em seguida
o vi mover-se e falar como se possuísse ainda o dom da vista. Mas o tom da voz era, pelo
contrário, de quem possui só o dom da profecia.
- O homem venerando em idade e sapiência que vedes – disse Malaquias a Guilherme,
indicando-lhe o recém-chegado - é Jorge de Burgos. Mais velho do que quem quer que
viva no mosteiro, salvo Alinardo de Grottaferrata, ele é aquele a quem muitíssimos dos
monges confiam a carga dos seus pecados no segredo da confissão. - Depois, dirigindo-se
ao velho – Aquele que está diante de vós é frade Guilherme de Baskerville, nosso
hóspede.
- Espero que não vos tenhais zangado pelas minhas palavras - disse o velho em tom
brusco. - Ouvi pessoas que riam de coisas risíveis e recordei-lhes um dos princípios da
nossa regra. E como diz o salmista, se o monge se deve abster dos discursos bons pelo
voto do silêncio, com muito maior razão deve subtrair-se aos discursos maus. E tal como
existem discursos maus existem imagens más. E são aquelas que mentem acerca da
forma da criação e mostram o mundo ao contrário daquilo que deve ser. sempre foi e
sempre será nos séculos dos séculos até à consumação dos tempos. Mas vós vindes de
outra ordem, onde me dizem que é vista com indulgência até a jovialidade mais
inoportuna.
Aludia àquilo que entre os beneditinos se dizia das extravagâncias atribuídas a São
Francisco de Assis e talvez também das extravagâncias atribuídas a fraticelli e espirituais
de toda a espécie, que, da ordem franciscana, eram os mais recentes e embaraçosos
rebentos. Mas frade Guilherme deu mostras de não perceber a insinuação.
- As imagens marginais induzem muitas vezes a sorrir, mas com fins de edificação -
respondeu. - Como nos sermões para tocar a imaginação das piedosas multidões é preciso
inserir exempla, não raro facetos assim também o discurso das imagens deve permitir
estas nugae. Para cada virtude e para cada pecado há um exemplo tirado dos bestiários,
e os animais fazem-se figura do mundo humano.
- Oh, sim - motejou o velho, mas sem sorrir -, toda a imagem é boa
para estimular a virtude, para que a obra-prima da criação, posta de cabeça para
baixo, se torne matéria de riso. E assim a palavra de Deus manifesta-se através do burro
que toca lira, do tolo que lavra com o escudo, dos bois que se atrelam sozinhos ao arado,
dos rios que correm ao contrário, do mar que se incendeia, do lobo que se faz eremita!
Caçai a lebre com o boi, mandai-vos ensinar gramática pelas corujas, que os cães
mordam as pulgas, os cegos olhem para os mudos e os mudos peçam pão a formiga dê à
luz um vitelo, voem os frangos assados, as fogaças cresçam nos telhados, os papagaios
dêem lições de retórica, as galinhas fecundem os galos, metei o carro adiante dos bois,
ponde o cão a dormir na cama e que todos caminhem de pernas para o ar! Que querem
todas estas nugae? Um mundo invertido e oposto ao estabelecido por Deus, sob o
pretexto de ensinar os preceitos divinos!
- Mas o Areopagita ensina - disse humildemente Guilherme – que Deus só pode ser
nomeado através das coisas mais disformes. E Hugo de São Vítor recorda-nos que, quanto
mais a similitude se faz dissímil, tanto mais a verdade nos é revelada sob o véu de figuras
horríveis e indecorosas, tanto menos a imaginação se aplaca no gozo carnal e é obrigada
a colher os mistérios que se ocultam sob a curpitude das imagens...
- Conheço o argumento! E admito com vergonha que foi o argumento principal da
nossa ordem, quando os abades clunicenses se batiam contra os cistercienses. Mas São
Bernardo tinha razão: pouco a pouco o homem que representa monstros e portentos da
natureza para revelar as coisas de Deus per speculum et in aenigmate toma gosto na
própria natureza das monstruosidades que cria e deleita-se com elas, e por elas, e já não
vê senão através delas. Basta que olheis, vós que ainda tendes vista, para os capitéis do
vosso claustro - e apontou com a mão para fora das janelas, na direção da igreja -, sob os
olhos dos frades absorvidos na meditação, que significam aquelas ridículas
monstruosidades, aquelas disformes formosuras e formosas deformidades. Àqueles
sórdidos macacos? Aqueles leões, aqueles centauros, aqueles seres semi-humanos, com a
boca no ventre, com um só pé, com orelhas de abano? Aqueles tigres malhados, aqueles
guerreiros em luta, aqueles caçadores que sopram o corno, e aqueles múltiplos corpos
numa só cabeça e muitas cabeças num só corpo? Quadrúpedes com cauda de serpente, e
peixes com cabeça de quadrúpede, e aqui um animal que pela frente parece um cavalo e
por trás um bode, e além um eqüino com cornos e assim sucessivamente, agora é mais
agradável para um monge ler os mármores do que os manuscritos, e admirar as obras do
homem em vez de meditar sobre a lei de Deus. Tende vergonha pelo desejo dos vossos
olhos e pelos vossos sorrisos!
O grande velho parou arquejando. E eu admirei a viva memória com que, talvez cego
há tantos anos, ainda recordava as imagens de cuja turpitude nos falava. Tanto que
suspeitei que elas o tinham seduzido muito quando as tinha visto, se sabia descrevê-las
ainda com tanta paixão. Mas muitas vezes me aconteceu encontrar as representações
mais sedutoras do pecado precisamente nas páginas dos homens de incorruptível virtude
que condenavam o seu fascínio e os seus efeitos. Sinal de que estes homens são movidos
por tal ardor no testemunho da verdade, que não hesitam, por amor de Deus, em
conferir ao mal todas as seduções de que se reveste, para melhor instruir os homens
sobre os modos com que o maligno os encanta. E de fato as palavras de Jorge
despertaram-me uma grande vontade de ver os tigres e os macacos do claustro, que
ainda não tinha admirado. Mas Jorge interrompeu o curso dos meus pensamentos porque
recomeçou, em tom menos excitado, a falar.
- Nosso Senhor não teve necessidade de tantas estultícias para nos indicar o reto
caminho. Nada nas suas parábolas move ao riso ou ao temor. Adelmo, pelo contrário, que
morto agora chorais, gozava de tal maneira com as monstruosidades que iluminava que
tinha perdido de vista as coisas últimas de que deviam ser a figura material. E percorreu
todas, digo todas – e a sua voz fez-se solene e ameaçadora - as veredas da
monstruosidade. Por onde Deus sabe punir.
Desceu um pesado silêncio sobre os presentes. Ousou rompê-lo Venancio de Salvamec.
- Venerável Jorge –disse -, a vossa virtude torna-vos injusto. Dois dias antes de Adelmo
morrer, vós estáveis presente num douto debate que teve lugar precisamente aqui no
scriptorium. Adelmo preocupava-se com que a sua arte, cedendo a representações
bizarras e fantásticas, tendesse todavia à glória de Deus, instrumento de conhecimento
das coisas celestes. Frade Guilherme citava há pouco o Areopagira, sobre o
conhecimento pela deformidade. E Adelmo citou naquele dia uma outra autoridade
altíssima, a do doutor de Aquino, quando disse que convém que as coisas divinas sejam
expostas mais na figura de corpos vis do que na figura de corpos nobres. Primeiro porque
o espírito humano é mais facilmente libertado do erro; é claro, de fato, que certas
propriedades não podem ser atribuídas às coisas divinas, o que seria duvidoso se estas
fossem indicadas com figuras de nobres coisas corpóreas. Em segundo lugar porque este
modo de representação convém mais ao conhecimento de Deus que remos sobre esta
terra: ele manifesta-se-nos, de fato, mais naquilo que não é do que naquilo que é, e por
isso as semelhanças das coisas que mais se afastam de Deus levam-nos a uma mais exata
opinião dele, porque assim sabemos que ele está acima daquilo que dizemos e pensamos.
E em terceiro lugar porque assim são melhor ocultadas as coisas de Deus às pessoas
indignas. Em suma, tratava-se naquele dia de compreender de que modo se pode
descobrir a verdade através de expressões surpreendentes, e argutas, e enigmáticas. E
eu recordei-lhe que na obra do grande Aristóteles tinha encontrado palavras bastante
claras a este respeito...
- Não me recordo - interrompeu secamente Jorge -, sou muito velho. Não me recordo.
Posso ter exagerado em severidade. Agora tarde, tenho de ir.
- É estranho que não vos recordeis - insistiu Venancio -, foi uma douta e belíssima
discussão, em que também intervieram Bêncio e Berengário. Tratava-se de saber de fato
se as metáforas, e os jogos de palavras, e os enigmas, que embora pareçam imaginados
pelos poetas por puro deleite, não induzem a especular sobre as coisas de modo novo e
surpreendente, e eu dizia que também esta é uma virtude que se exige ao sábio... E
também estava Malaquias...
- Se o venerável Jorge não se recorda, tem respeito pela sua idade e pelo cansaço da
sua mente... aliás sempre tão viva - interveio um dos monges que seguiam a discussão.
A frase tinha sido pronunciada de modo agitado, pelo menos no início, porque quem
tinha falado, apercebendo-se que para convidar ao respeito do velho de fato lhe punha
em relevo uma fraqueza, tinha depois abandonado o ímpeto da sua própria intervenção,
acabando quase num sussurro de desculpa. O que tinha estado a falar era Berengário de
Arundel, o ajudante-bibliotecário. Era um jovem de rosto pálido, e observando-o
recordei-me da definição que Ubertino tinha dado de Adelmo: os seus olhos pareciam os
de uma mulher lasciva. Intimidado pelos olhares de todos que agora se pousavam sobre
ele, tinha os dedos das mãos enlaçados como quem quer reprimir uma tensão interior.
Singular foi a reação de Venancio. Olhou para Berengário de modo tal que aquele
baixou os olhos:
- Está bem, irmão – disse -, se a memória é um dom de Deus também a capacidade de
esquecer pode ser muito boa, e é respeitada. Mas respeito-a no irmão ancião a quem
falava. De ti esperava uma recordação mais viva sobre o que aconteceu quando
estávamos aqui, justamente com um teu caríssimo amigo...
Não poderia dizer se Venancio tinha acentuado o tom sobre a palavra «caríssimo». O
fato é que percebi uma atmosfera de embaraço entre os assistentes. Cada um voltava o
olhar para outro lado e ninguém o dirigia para Berengário, que tinha corado
violentamente. Interveio de súbito Malaquias, com autoridade:
- Vinde, frade Guilherme – disse -, mostrar-vos-ei outros livros interessantes.
O grupo desfez-se. Notei Berengário a lançar a Venancio um olhar carregado de
rancor, e Venancio responder-lhe da mesma maneira, num mudo desafio. Eu, vendo que
o velho Jorge se estava afastando, movido por um sentido de respeitosa reverência,
inclinei-me para lhe beijar a mão. O velho recebeu o beijo, pousou a mão sobre a minha
cabeça e perguntou quem era. Quando lhe disse o meu nome, o seu rosto iluminou-se.
- Tens um nome grande e belíssimo - disse. - Sabes quem foi Adso de Monter-en-Der? -
perguntou. Eu, confesso, não sabia. Então Jorge acrescentou: - Foi o autor de um livro
grande e terrível, o Lvoellus de Antichristo, em que ele viu coisas que haviam de
acontecer, e não foi escutado o bastante.
- O livro foi escrito antes do milênio - disse Guilherme -, e essas coisas não se
verificaram...
- Para quem não tem olhos para ver - disse o cego. - As vias do Anticristo são lentas e
tortuosas. Ele chega quando não o prevemos, e não porque o cálculo sugerido pelo
apóstolo estivesse errado, mas porque nós não lhe aprendemos a arte. - Depois gritou,
em voz altíssima, o rosto voltado para a sala, fazendo ribombar as abóbadas do
scriptorium: - Ele está a chegar! Não percais os últimos dias rindo de monstrozinhos de
pele malhada e cauda retorcida. Não dissipeis os últimos sete dias!
PRIMEIRO DIA
VÉSPERAS
Onde se visita o resto da abadia, Guilherme tira algumas Conclusões sobre a morte de
Adelmo, e fala com o irmão vidreiro sobre os vidros para ler e de fantasmas para quem
quer ler demasiado.
Naquele momento tocaram para vésperas, e os monges dispuseram-se a deixar as suas
mesas. Malaquias deu-nos a entender que também nós nos devíamos ir embora. Ele
ficaria com o seu ajudante, Berengário a pôr de novo as coisas em ordem e (assim se
exprimiu) a preparar a biblioteca para a noite. Guilherme perguntou-lhe se depois
fechava as portas.
- Não há portas que impeçam o acesso ao scriptorium pela cozinha e pelo refeitório,
nem à biblioteca pelo scriptorium. Mais forte do que qualquer porta deve ser o interdito
do Abade. E os monges têm de servir-se não só da cozinha como do refeitório até
completas. Nessa altura, para impedir que estranhos ou animais, para os quais o
interdito não vale, possam entrar no Edifício, eu próprio fecho os portais de baixo, que
conduzem às cozinhas e ao refeitório, e depois daquela hora o Edifício fica isolado.
Descemos. Enquanto os monges se dirigiam para o coro, o meu mestre decidiu que o
Senhor nos perdoaria se não assistíssemos ao ofício divino (o Senhor teve muito que nos
perdoar nos dias seguintes) e propôs-me que caminhasse um pouco com ele pelo
planalto, a fim de nos familiarizarmos com o lugar.
Saímos pelas cozinhas, atravessamos o cemitério: havia pedras tumulares mais
recentes, e outras que apresentavam os sinais do tempo, contando vidas de monges, que
tinham vivido nos séculos passados. As tumbas não tinham nome, encimadas por cruzes
de pedra.
O tempo estava a pôr-se feio. Tinha-se levantado um vento frio, e o céu tornava-se
caliginoso. Adivinhava-se um sol que se punha por trás dos hortos, e já se fazia escuro
para oriente, para onde nos dirigimos, ladeando o coro da igreja e atingindo a parte
posterior do planalto. Ali, quase encostados ao muro da cerca, onde ele se soldava ao
torreão oriental do Edifício, ficavam as estrumeiras, e os porqueiros estavam a tapar a
jarra com o sangue dos porcos. Notamos que, por trás das estrumeiras o muro da cerca
era mais baixo, de modo que se podia debruçar-se. Para além do precipício dos muros, o
terreno, que descia vertiginosamente por baixo, estava coberto por um barro que a neve
não conseguia esconder completamente. Dei conta que se tratava do depósito de
estrume, que era atirado daquele lugar, e descia até à curva onde se bifurcava o
caminho ao longo do qual se tinha aventurado o fugitivo Brunello. Digo estrume porque
se tratava de um grande despejo de matéria fedorenta, cujo odor chegava até ao
parapeito em que me debruçava; evidentemente os camponeses iam buscá-lo, de baixo,
para o usarem nos campos. Mas às de jecções dos animais e dos homens misturavam-se
outros detritos sólidos, todo o refluir de matérias mortas que a abadia expelia do seu
próprio corpo, para se manter límpida e pura na sua relação com o cimo do monte e com
o céu.
Nas cavalariças ao lado, os guardadores de cavalos reconduziam os animais à
manjedoura. Percorremos o caminho ao longo do qual se sucediam, do lado do muro, os
vários estábulos, e à esquerda, encostado ao coro, o dormitório dos monges, e depois as
latrinas. Onde o muro oriental dobrava para sul, no angulo do muro da cerca, era o
edifício das forjas. Os últimos terreiros estavam depondo os seus instrumentos e
apagando os foles, para se encaminharem para o ofício divino. Guilherme dirigiu-se com
curiosidade para uma parte das forjas, quase separada do resto do laboratório, onde um
monge estava arrumando as suas coisas. Na sua mesa estava uma belíssima
coleção de vidros multicolores, de pequenas dimensões, mas vidros mais largos
estavam encostados à parede. Diante dele estava um relicário ainda incompleto, de que
só existia a carcaça de prata, mas sobre a qual ele estava evidentemente a encastoar
vidros e outras pedras, que com os seus instrumentos tinha reduzido às dimensões de
uma gema.
Conhecemos assim Nicolau de Morimondo, mestre vidreiro da abadia. Explicou-nos que
na parte posterior da forja também se soprava vidro, enquanto na anterior, onde
estavam os ferreiros, se lixavam os vidros aos caixilhos de chumbo para fazer vitrais.
Mas, acrescentou, a grande obra vidreira, que embelezava a igreja e o Edifício, já tinha
sido concluída pelo menos dois séculos antes. Agora limitavam-se a trabalhos menores,
ou à reparação dos estragos do tempo.
- E com grande dificuldade – acrescentou -, porque já não se conseguem encontrar as
cores de outros tempos, especialmente o azul que ainda podeis admirar no coro, de uma
qualidade tão límpida que, com o sol alto, derrama na nave uma luz paradisíaca. Os
vidros da parte ocidental da nave, refeitos ainda não há muito tempo, não são da mesma
qualidade, e vê-se nos dias de Verão. É inútil – acrescentou -, já não temos a sabedoria
dos antigos, acabou-se a época dos gigantes!
- Somos anões - admitiu Guilherme -, mas anões que estão às costas daqueles
gigantes, e na nossa pequenez conseguimos por vezes ver mais longe do que eles no
horizonte.
- Diz-me que coisas fazemos melhor do que eles tenham sabido fazer! - exclamou
Nicolau. - Se desceres à cripta da igreja onde está guardado o tesouro da abadia,
encontrarás relicários de tão delicada feitura que o monstrozinho que eu estou agora
miseramente construindo - e apontou para a sua obra sobre a mesa - parecer-te-á
imitação daqueles!
- Não está escrito que os mestres vidreiros tenham de continuar a construir janelas e
os ourives relicários, se os mestres do passado souberam produzi-los tão belos e
destinados a durar através dos séculos. Senão, a terra encher-se-ia de relicários, numa
época em que os santos de que tirar relíquias são tão raros - motejou Guilherme. - E
também não se deverão soldar janelas até ao infinito. Mas vi em vários países obras
novas feitas de vidro que nos fazem pensar num mundo de amanhã em que o vidro esteja
não só ao serviço dos ofícios divinos mas também ajude a fraqueza do homem. Quero
mostrar-te uma obra dos nossos dias, de que me honro de possuir um utilíssimo
exemplar.
Meteu as mãos no saio e tirou de lá as suas lentes, que deixaram estupefato o nosso
interlocutor.
Nicolau pegou na forquilha que Guilherme lhe estendia com grande interesse:
- Oculi de vitro cum capsula! - exclamou. - Já tinha ouvido falar disso a um certo frei
Giordano que conheci em Pisa! Dizia que não havia ainda vinte anos que tinham sido
inventados. Mas falei com ele há mais de vinte anos.
- Creio que foram inventados muito antes - disse Guilherme -, mas são difíceis de
fabricar e requerem-se mestres vidreiros muito experientes. Custam tempo e trabalho.
Ha dez anos um par desses vitrei ab oculis ad legendum foram vendidos em Bolonha por
seis soldos. Eu recebi um par como presente de um grande mestre, Salvino degli Armati,
há mais de dez anos, e tenho-os conservado ciosamente por todo este tempo, como se
fossem (como já são) parte do meu próprio corpo.
- Espero que mos deixes examinar um destes dias, não me desagradaria produzir uns
semelhantes - disse emocionado Nicolau.
- Certamente - concordou Guilherme -, mas repara que a espessura do vidro deve
mudar segundo o olho a que se deve adaptar, e é preciso tentar muitas destas lentes,
para as experimentar no paciente, enquanto não se encontra a espessura boa.
- Que maravilha! - continuava Nicolau. - E no entanto muitos falariam de bruxaria e de
manipulação diabólica...
- É certo que por estas coisas podes falar de magia – concordou Guilherme. - Mas há
duas formas de magia. Há uma magia que é obra do diabo e que visa a ruína do homem
através de artifícios de que não é bom falar. Mas há uma magia que é obra divina, onde a
ciência de Deus se manifesta através da ciência do homem, que serve para transformar a
natureza, sendo um dos seus fins prolongar a própria vida do homem. E esta é magia
santa, a que os sábios deverão dedicar-se cada vez mais, não só para descobrir coisas
novas mas para redescobrir tantos segredos da natureza que a sapiência divina tinha
revelado aos hebreus, aos gregos, a outros povos antigos e até hoje aos infiéis (e não te
digo quantas coisas maravilhosas de óptica e ciência da visão existem nos livros dos
infiéis!). E uma ciência cristã deve reapossar-se de todos estes conhecimentos e retomála
aos pagãos e aos infiéis tanquam ab iniustus possessoribus.
- Mas porque é que aqueles que possuem esta ciência não a comunicam a todo o povo
de Deus?
- Porque nem todo o povo de Deus está pronto a aceitar tantos segredos, e muitas
vezes aconteceu que os depositários desta ciência foram confundidos com magos ligados
por pacto com o demônio, pagando com a sua vida o desejo que tinham tido de tornar os
outros participantes do seu tesouro de conhecimento. Eu próprio, durante processos em
que se suspeitava que alguém tinha comércio com o demônio, tive de me abster de usar
estas lentes, recorrendo a secretários cheios de boa vontade que me lessem as escrituras
de que precisava, porque senão, num momento em que a presença do diabo era tão
invadente e todos respiravam, por assim dizer, o seu poder de enxofre, eu próprio teria
sido visto como amigo dos inquiridos. E enfim, advertia o grande Roger Bacon, nem
sempre os segredos da ciência devem andar nas mãos de todos, que alguns poderiam usálos
para maus propósitos. Freqüentemente o sábio deve fazer aparecer como mágicos
livros que mágicos não são, mas precisamente de boa ciência, para os proteger de olhos
indiscretos.
- Tu temes portanto que os simples possam fazer mau uso destes segredos? - perguntou
Nicolau.
- Pelo que respeita aos simples, temo apenas que possam ser aterrorizados,
confundindo-os com as obras do diabo, de que demasiadas vezes lhes falam os
pregadores. Vê, aconteceu-me conhecer médicos habilíssimos que tinham instilado
medicamentos capazes de curar imediatamente uma doença. Mas estes davam o seu
ungüento ou infusão aos simples acompanhando-o com palavras sacras e salmodiando
frases que pareciam orações. Não porque estas orações tivessem o poder de curar, mas
para que, acreditando que a cura vinha das orações, os simples engolissem a infusão ou
se untassem com o ungüento, e assim se curassem, sem prestar demasiada atenção à sua
força efetiva. E depois também para que o espírito, bem excitado pela fé na fórmula
devora, se dispusesse melhor à ação corporal do medicamento. Mas freqüentemente os
tesouros da ciência são defendidos não contra os simples mas sim contra outros sábios.
Fazem-se hoje máquinas prodigiosas, de que um dia te falarei, com que verdadeiramente
se pode dirigir o curso da natureza. Mas ai de nós se elas caíssem nas mãos de homens
que as usassem para estender o seu poder terreno e saciar a sua ambição de posse.
Dizem-me que em Catay um sábio misturou um pó que pode produzir, em contato com o
fogo, um grande estrondo e uma grande chama, destruindo todas as coisas braças e
braças em redor. Admirável artifício, se fosse usado para desviar o curso dos rios ou
fragmentar as rochas onde haja que assorear o terreno. Mas se alguém o usasse para
causar prejuízo aos seus próprios inimigos?
- Talvez fosse bem, se fossem inimigos do povo de Deus – disse devotamente Nicolau.
- Talvez - admitiu Guilherme. - Mas quem é hoje o inimigo do povo de Deus? Luís,
imperador, ou João, o papa?
- Oh, meu Senhor - disse Nicolau todo assustado -, não queria de fato decidir sozinho
uma coisa tão dolorosa!
- Vês? - disse Guilherme. - Por vezes é bem que certos segredos ainda permaneçam
cobertos por discursos ocultos. Os segredos da natureza não se transportam em peles de
cabra ou de ovelha. Aristóteles diz no livro dos segredos que ao comunicar-se demasiados
arcanos da natureza e da arte se quebra um sigilo celeste e que muitos males poderiam
seguir-se. O que não quer dizer que os segredos não devam ser revelados, mas que
compete aos sábios decidir quando e como.
- Por isso é bom que em lugares como este - disse Nicolau – nem todos os livros
estejam ao alcance de todos.
- Essa é outra história - disse Guilherme. - Pode-se pecar por excesso de loquacidade e
por excesso de reticência. Eu não queria dizer que é preciso esconder as fontes da
ciência. Isto parece-me antes um grande mal. Queria dizer que, tratando-se de arcanos
de que pode nascer tanto o bem como o mal, o sábio tem o direito e o dever de usar uma
linguagem obscura, compreensível só para seus iguais. A via da ciência é difícil, e é
difícil distinguir aí o bem do mal. E freqüentemente os sábios dos tempos novos são só
anões aos ombros de anões.
A amável conversa com o meu mestre devia ter posto Nicolau em veia de confidências.
Por isso piscou o olho a Guilherme (como a dizer: eu e tu entendemo-nos porque falamos
das mesmas coisas) e aludiu:
- Porém lá em baixo - e apontou para o Edifício - os segredos da ciência estão bem
defendidos por obras de magia...
- Sim? - disse Guilherme, ostentando indiferença. – Portas trancadas, proibições
severas, ameaças, imagino.
- Oh, não, mais...
- O quê, por exemplo?
- Olha, eu não sei com exatidão, eu ocupo-me de vidros e não de livros, mas na abadia
circulam histórias... estranhas...
- De que gênero?
- Estranhas. Digamos, a de um monge que pela calada da noite quis aventurar-se na
biblioteca, para procurar qualquer coisa que Malaquias não tinha querido dar-lhe, e viu
serpentes, homens sem cabeça e homens com duas cabeças. Por pouco não saía louco do
labirinto...
- Porque falas de magia e não de aparições diabólicas?
- Porque embora seja um pobre mestre vidreiro não sou assim tão ingênuo. O diabo
(Deus nos salve!) não tenta um monge com serpentes e homens bicéfalos. Quando muito
com visões lascivas, como com os padres do deserto. E depois, se é mal pôr a mão em
certos livros, porque é que o diabo havia de dissuadir um monge de cometer o mal?
- Parece-me um bom entimema - admitiu o meu mestre.
- E enfim, quando colocava as vidraças no hospital, diverti-me a folhear alguns livros
de Severino. Havia um livro de segredos escrito, creio, por Alberto Magno; fui atraído por
algumas iluminuras curiosas, e li umas páginas sobre o modo como se pode untar o pavio
de uma lâmpada de azeite e com os sufumígios que dela provêm provocam visões. Deves
ter notado, ou melhor, não deves ter ainda notado porque ainda não passaste uma noite
na abadia, que durante as horas noturnas o andar superior do Edifício está iluminado.
Pelas vidraças, nalguns sítios, transparece uma luz débil. Muitos se têm perguntado o que
será, e falou-se de fogos-fátuos, ou das almas dos bibliotecários monges defuntos que
voltam para visitar o seu reino. Muitos aqui acreditam nisso. Eu penso que são lâmpadas
preparadas para as visões. Sabes, se pegares na gordura da orelha de um cão e com ela
untares um pavio, quem respirar o fumo daquela lâmpada acreditará que tem uma
cabeça de cão, e se estiver alguém a seu lado vê-lo-á com cabeça de cão. E há um outro
ungüento que faz com que aqueles que giram à volta da lâmpada se sintam grandes como
elefantes. E com os olhos de um morcego e de dois peixes cujo nome não recordo e o fel
de um lobo fazes um pavio que ao arder te fará ver os animais donde tiraste a gordura. E
com a cauda de lagarto fazes ver todas as coisas em torno como de prata, e com a
gordura de uma serpente negra e um fragmento de lençol fúnebre a sala aparecerá cheia
de serpentes. Eu sei disso. Na biblioteca há alguém muito astuto...
- Mas não poderiam ser as almas dos bibliotecários defuntos que fazem estas magias?
Nicolau deteve-se perplexo e inquieto:
- Não tinha pensado nisso. Pode ser. Deus nos proteja... É tarde, as vésperas já
começaram. Adeus.
E dirigiu-se para a igreja.
Prosseguimos ao longo do lado sul: à direita o albergue dos peregrinos e a sala
capitular com o jardim, à esquerda os lagares, o moinho, os celeiros, as caves, a casa dos
noviços. E todos se apressavam para a igreja.
- Que pensais daquilo que disse Nicolau? - perguntei.
- Não sei. Na biblioteca acontece quaisquer coisa, e não creio que sejam as almas dos
bibliotecários defuntos...
- Porquê?
- Porque imagino que terão sido tão virtuosos que hoje estarão no reino dos céus a
contemplar o rosto da divindade, se esta resposta te pode satisfazer. Quanto, as
lâmpadas, se as houver vê-las-emos. E quanto aos ungüentos de que nos falava o nosso
vidreira há modos mais fáceis de provocar visões, e Severino conhece-os muito bem, tu
apercebeste-te disso hoje. É certo que na abadia não querem que se penetre de noite na
biblioteca e que muitos, pelo contrário, tentaram ou tentam fazê-lo.
- E o nosso delito tem alguma coisa a ver com esta história?
- Delito? Quanto mais penso nisso mais me convenço que Adelmo se matou.
- E porquê?
- Recordas-te desta manhã quando notei o depósito do estrume? Enquanto subíamos a
curva dominada pelo torreão oriental tinha notado naquele ponto os sinais deixados por
um desmoronamento; ou melhor, uma porção de terreno, mais ou menos onde se
amontoa o estrume, tinha desabado rolando até debaixo do torreão. E eis porque esta
tarde, quando olhamos do alto, o estrume nos apareceu pouco coberto de neve, ou
melhor, coberto apenas pela última de ontem, não pela dos dias passados. Quanto ao
cadáver de Adelmo, o Abade disse-nos que estava dilacerado pelas rochas, e sob o
torreão oriental, exatamente onde a construção acaba a pique, crescem pinheiros. As
rochas estão, pelo contrário, precisamente no ponto em que a muralha acaba, formando
como que uma espécie de degrau, e depois começa a queda do estrume.
- E então?
- E então pensa se não será mais... como dizer?... menos dispendioso para a nossa
mente pensar que Adelmo, por razões ainda a apurar, se atirou sponte sua do parapeito
da muralha, saltou sobre as rochas e, morto ou ferido que estivesse, precipitou-se no
estrume. Depois, o desmoronamento, devido ao furacão daquela noite, fez deslizar o
estrume e parte do terreno e também o corpo do infeliz para debaixo do torreão
oriental.
- Porque dizeis que é uma solução menos dispendiosa para a nossa mente?
- Querido Adso, não é preciso multiplicar as explicações e as causas sem ter estrita
necessidade disso. Se Adelmo caiu do torreão oriental é preciso que tenha penetrado na
biblioteca, que alguém o tenha atingido primeiro para que não opusesse resistência, que
tenha encontrado modo de subir com um corpo exânime às costas até à janela, que a
tenha aberto e tenha precipitado o desgraçado no abismo. Com a minha hipótese
bastam-nos ao invés Adelmo, a sua vontade e um desmoronamento. Tudo se explica
utilizando um menor número de causas.
- Mas porque é que se teria matado?
- Mas porque é que o teriam matado? Em todo o caso, é preciso encontrar as razões. E
que as há parece-me indubitável. No Edifício respira-se ar de reticência, todos nos calam
qualquer coisa. Entretanto já recolhemos algumas insinuações, bastante vagas na
verdade, sobre uma certa relação que existia entre Adelmo e Berengário. Quer dizer que
teremos debaixo de olho o ajudante-bibliotecário.
Enquanto assim se falava, o ofício de vésperas tinha terminado. Os servos voltavam às
suas funções antes de se retirarem para a ceia, os monges encaminhavam-se para o
refeitório. Agora, o céu estava escuro e principiava a nevar. Uma neve ligeira, em
pequenos flocos macios, que continuaria, creio, por grande parte da noite, porque na
manhã seguinte todo o planalto estava coberto por um alvo manto, como direi.
Eu tinha fome e acolhi com alívio a idéia de ir para a mesa.
PRIMEIRO DIA
COMPLETAS
Onde Guilherme e Adro gozam da alegre hospitalidade do Abade e da irritada
conversação de Jorge.
O refeitório era iluminado por grandes tochas. Os monges sentavam-se ao longo de
uma fila de mesas, dominada pela mesa do Abade, posta perpendicularmente a eles
sobre um vasto estrado. Do lado oposto um púlpito, sobre o qual já tinha tomado lugar o
monge que faria a leitura durante a ceia. O Abade esperava-nos junto de uma pequena
fonte com um pano branco para nos enxugar as mãos depois do lavabo, segundo os
conselhos antiqüíssimos de São Pacómio.
O Abade convidou Guilherme para a sua mesa e disse que por aquela noite, dado que
também eu era hóspede fresco, gozaria do mesmo privilégio, embora fosse um noviço
beneditino. Nos dias seguintes, disse-me paternalmente, poderia sentar-me à mesa com
os monges, ou, se o meu mestre me tivesse confiado alguma tarefa, passar antes ou
depois das refeições pela cozinha, onde os cozinheiros se ocupariam de mim.
Os monges estavam agora de pé diante das mesas, imóveis, com o capucho caído sobre
o rosto e as mãos debaixo do escapulário. O Abade aproximou-se da sua mesa e
pronunciou o Benedicite. Do púlpito, o cantor entoou Edení pauperes. O Abade deu a sua
bênção, e todos se sentaram.
A regra do nosso fundador prevê um almoço bastante parco, mas deixa decidir o
Abade a quantidade de alimento de que efetivamente têm necessidade os monges. Por
outro lado, agora nas nossas abadias cede-se mais aos prazeres da mesa. Não falo
daquelas que, infelizmente, se tornaram em covis de glutões; mas mesmo as que se
inspiram em critérios penitenciais e de virtude fornecem aos monges, absorvidos quase
sempre em gravosos trabalhos do intelecto, uma nutrição não mole mas robusta. Por
outro lado, a mesa do Abade é sempre privilegiada, até porque não raro a ela se sentam
hóspedes de respeito, e as abadias são orgulhosas dos produtos dos seus cozinheiros.
A refeição dos monges decorreu em silêncio, como de costume, comunicando uns com
os outros com o nosso habitual alfabeto dos dedos. Os noviços e os monges mais jovens
eram servidos primeiro, logo depois dos pratos destinados a todos terem passado pela
mesa do Abade.
À mesa do Abade sentavam-se conosco Malaquias, o despenseiro e os dois monges mais
idosos. Jorge de Burgos, o velho cego que já tinha conhecido no scriptorium, e o
velhíssimo Alinardo de Grottaferrata: quase centenário, claudicante e de aspecto frágil,
e -pareceu-me - de espírito ausente. O Abade disse-nos dele que, tendo entrado como
noviço naquela abadia, sempre ali tinha vivido e recordava pelo menos oitenta anos das
suas vicissitudes. O Abade disse-nos estas coisas no princípio, em voz baixa, porque em
seguida ateve-se ao uso da nossa ordem e seguiu-se em silêncio a leitura. Mas, como
disse, à mesa do Abade tomavam-se algumas liberdades, e sucedeu-nos elogiar os pratos
que nos foram oferecidos, enquanto o Abade celebrava as qualidades do seu azeite ou do
seu vinho. Até uma vez, servindo-nos de beber, recordou-nos aqueles passos da regra em
que o santo fundador tinha observado que certamente o vinho não convém aos monges,
mas, pois que não se podem persuadir os monges do nosso tempo a não beber, que ao
menos não bebam até à saciedade, porque o vinho leva à apostasia até os sábios, como
recorda o Eclesiastes. Bento dizia «no nosso tempo» e referia-se ao seu, já muito
distante: imaginemos no tempo em que ceávamos na abadia, depois de tanta decadência
de costumes (e não falo do meu tempo, em que agora escrevo, com a diferença que aqui
em Melk cede-se mais à cerveja!): em suma, bebeu-se sem exagerar mas não sem gosto.
Comemos carne no espeto, dos porcos acabados de matar, e reparei que para outros
alimentos não se usava gordura de animais nem óleo de colza, mas um bom azeite de
oliveira, que vinha de terrenos que a abadia possuía aos pés do monte para o lado do
mar. O Abade fez-nos provar (reservado para a sua mesa) aquele frango que tinha visto
preparar na cozinha. Notei que, coisa bastante rara, ele dispunha também de um garfo
de metal, que, pela forma, me recordava as lentes do meu mestre: homem de nobre
extração, o nosso hospedeiro não queria sujar as mãos com a comida, e até nos ofereceu
o seu instrumento ao menos para tirar as carnes do prato grande e pô-las nas nossas
escudelas. Eu recusei, mas vi que Guilherme aceitou de bom grado e se serviu com
desenvoltura daquele utensílio de senhores, talvez para provar ao Abade que os
franciscanos não eram pessoas de escassa educação e de extração humilíssima.
Entusiasta como era por todas aquelas boas comidas (depois de alguns dias de viagem
em que nos tínhamos alimentado como podíamos), tinha-me distraído do curso da leitura
que entretanto prosseguia devotamente. Fui chamado a ela por um vigoroso grunhido de
assentimento de Jorge, e reparei que se tinha chegado ao ponto em que se lia sempre
um capítulo da regra. Dei conta da razão por que Jorge estava tão satisfeito, depois de o
ter escutado naquela tarde.
De fato, dizia o leitor: «Imitemos o exemplo do profeta que
diz: decidi, vigiarei sobre o meu caminho para não pecar com a minha língua, pus uma
mordaça à minha boca, emudeci humilhando-me, abstive-me de tudo, até de coisas
honestas. E se neste passo o profeta nos ensina que, por vezes, por amor do silêncio, nos
deveríamos abster até dos discursos lícitos, quanto mais devemos abster-nos dos
discursos ilícitos para evitar a pena deste pecado!» E depois prosseguia: «Mas as
vulgaridades, as palermices e as fanfarronices nós condenamo-las a reclusão perpétua,
em qualquer lugar, e não permitimos que o discípulo abra a boca para fazer discursos de
tal sorte.»
- E que isto valha para os marginalia de que se falava hoje - não se conteve de
comentar Jorge em voz baixa João Boccadoro disse que Cristo nunca riu.
- Nada na sua natureza humana o impedia - observou Guilherme -, porque o riso, como
ensinam os teólogos, é próprio do homem.
- Forte potuit sed non legitur eo usus fuisse – disse incisivamente Jorge, citando Pedro
Cantore.
- Manduca, jam coctum est - sussurrou Guilherme.
- O quê? - perguntou Jorge, que pensava que ele aludia a algum alimento que lhe era
apresentado.
- São as palavras que, segundo Ambrósio, foram pronunciadas por São Lourenço na
grelha, quando convidou os carrascos a voltá-lo do outro lado, como também recorda
Prudêncio no Perirtephanon - disse Guilherme com o ar de um santo. – São Lourenço
sabia portanto rir e dizer coisas ridículas embora fosse para humilhar os próprios
inimigos.
- O que demonstra que o riso é coisa bastante próxima da morte e da corrupção do
corpo - rebateu Jorge, com um grunhido, e devo admitir que se comportou como bom
lógico.
Naquele momento, o Abade convidou-nos amavelmente ao silêncio. A ceia, aliás,
estava a terminar. O Abade levantou-se e apresentou Guilherme aos monges. Louvou-lhe
a sabedoria, proclamou-lhe a fama, e advertiu que lhe tinha sido pedido para investigar
sobre a morte de Adelmo, convidando os monges a responder às suas perguntas e a
advertir os seus subordinados, por toda a abadia, a fazerem outro tanto. E a facilitar-lhe
as investigações, contanto que, acrescentou, os seus pedidos não transgredissem as
regras do mosteiro. Nesse caso, dever-se-ia recorrer à sua autorização.
Acabada a ceia, os monges dispuseram-se a dirigir-se para o coro, para o ofício de
completas. Baixaram de novo o capucho sobre o rosto e alinharam-se diante da porta,
parados. Depois moveram-se numa longa fila, atravessando o cemitério e entrando no
coro pelo portal setentrional.
Encaminhamo-nos com o Abade.
- A esta hora fecham-se as portas do Edifício? – perguntou Guilherme.
- Logo que os servos tenham limpo o refeitório e as cozinhas, o próprio bibliotecário
fechara todas as portas, trancando-as por dentro.
- Por dentro? E ele por onde sai?
O Abade fixou Guilherme por um instante de rosto sério:
- Decerto não dorme na cozinha - disse bruscamente.
E apressou o passo.
- Muito bem - sussurrou Guilherme -, portanto existe uma outra entrada, mas nós não
a devemos conhecer. - Eu sorri todo orgulhoso da sua dedução, e ele ralhou-me: - E não
te rias. Bem viste que dentro destas muralhas o riso não goza de boa reputação.
Entramos no coro. Ardia uma única lâmpada, sobre um robusto tripé de bronze, da
altura de dois homens. Os monges colocaram-se nas estalas em silêncio, enquanto o
leitor lia uma passagem de uma homilia de São Gregório.
Depois o Abade fez um sinal e o cantor entoou Tu autem Domine miserere nobis. O
Abade respondeu Adjutorium nostrum in nomine Domini, e todos fizeram coro com Qui
fecit coelum et terram. Então iniciou-se o canto dos salmos: Quando te invoco respondeme,
ó Deus da minha justiça! Dar-te-ei graças, Senhor, com todo o meu coração,
bendizei o Senhor, servos todos do Senhor. Nós não nos tínhamos colocado nas estalas,
mas tínhamo-nos retirado para a nave principal. Foi dali que distinguimos de repente
Malaquias, que emergia do escuro de uma capela lateral.
- Não percas de vista aquele ponto - disse-me Guilherme. – Pode haver uma passagem
que leve ao Edifício.
- Por baixo do cemitério?
- E porque não? Melhor, pensando bem nisso, deve haver em qualquer parte um ossário
; é impossível que há séculos sepultem todos os monges naquela nesga de terra.
- Mas quereis verdadeiramente entrar de noite na biblioteca? - perguntei, aterrado.
- Onde estão os monges defuntos e as serpentes e as luzes misteriosas, meu bom Adso?
Não, rapaz. Pensava nisso hoje, e não por curiosidade mas porque me punha o problema
de como teria morrido Adelmo. Agora, como te disse, inclino-me para uma explicação
mais lógica, e no fim de contas quero respeitar os usos deste lugar.
- Então porque quereis saber?
- Porque a ciência não consiste apenas em saber aquilo que se deve ou se pode fazer,
mas também em saber aquilo que se poderia fazer e que talvez não se deva fazer. Eis
porque dizia hoje ao mestre vidreiro que o sábio deve de certo modo ocultar os segredos
que descobre, para que outros não façam mau uso deles, mas é preciso descobri-los, e
esta biblioteca parece-me sobretudo um lugar onde os segredos permanecem
encobertos.
Com estas palavras encaminhou-se para fora da igreja, porque o ofício tinha
terminado. Estávamos ambos muito cansados, e fomos para a nossa cela. Eu aninhei-me
naquilo a que Guilherme chamou gracejando o meu «nicho» e adormeci imediatamente.
3ª parte »»»