O NOME DA ROSA

por Umberto Eco

NATURALMENTE, UM MANUSCRITO

No dia 16 de Agosto de 1968 foi-me parar às mãos um livro que se deve à pena de um
certo abade Vallet, Le Manuscript de Dom Adson de Melk, traduit en français d’après
l’édition de Dom J. Mabillon (Aux Presses de l'Ablaye de la Source, Paris, 1842). O livro,
acompanhado de indicações históricas na verdade bastante pobres, afirmava reproduzir
fielmente um manuscrito do século XIV, por sua vez encontrado no mosteiro de Melk pelo
grande erudito seiscentista, a quem tanto se deve pela história da ordem beneditina.

A
douta trouvaille (para mim, portanto a terceira no tempo) alegrava-me enquanto me
achava em Praga à espera de uma pessoa querida. Seis dias depois, as tropas soviéticas
invadiam a desventurada cidade. Consegui afortunadamente alcançar a fronteira
austríaca em Linz, dali dirigi-me para Viena, onde me reuni à pessoa esperada, e juntos
seguimos o curso do Danúbio.

Num clima mental de grande excitação, eu lia, fascinado, a terrível história de Adso
de Melk, e tanto me deixei absorver que quase de um jato redigi a sua tradução, nuns
grandes cadernos da Papelarie Joseph Gibert, em que é tão agradável escrever se a
caneta for macia. E assim fazendo chegamos às proximidades de Melk, onde se ergue
ainda, a pique sobre um meandro do rio, o belíssimo Stijt, muitas vezes restaurado
através dos séculos. Como o leitor terá imaginado, na biblioteca do mosteiro não
encontrei vestígios do manuscrito de Adso.

Antes de chegar a Salzburg, numa trágica noite numa pequena estalagem das margens
do Mondsee, a minha viagem a dois foi bruscamente interrompida, e a pessoa com quem
viajava desapareceu, levando consigo o livro do abade Vallet, não por mal, mas por
causa do modo desordenado abrupto como tinha findado a nossa relação. Fiquei assim
com uma série de cadernos manuscritos pelo meu punho e um grande vazio no coração.

Alguns meses depois, em Paris, decidi ir ao fundo da minha investigação. Das poucas
informações que tinha tirado do livro francês restava-me a referência à fonte,
excepcionalmente minuciosa e precisa.
Vetera analecta, sive collectio veterum aliquot operum & opusculorum omnis generis,
carminum, epistolarum, diplomaton, epitaphiorum, &, cuín, itinere germánico,
adnotationibus aliquot disquisitionibus R. P. D. Joannis Mabillon, Presbiteri ac Monachi
Ord. Sancti Benedicti e Congregatione S. Mauri. Nova Editio cui accessere Mabilonii vita
& aliquot opuscula, scilicet Dissertatio de Pane Eucharistico, Azymo el Ferméntalo, ad
Eminentiss. Cardinalem Bona. Subjungitur opusculum Eldefonsi Hispaniensis Episcopi de
eodem argumento Et Eusebii Romani ad Theophilum Gallum epístola. De cultu sanctorum
ignotorum, Parisiis, apud Levesque, ad Pontem S. Michaelis, MDCCXXI, cum privilegio
Regis.

Encontrei logo os Vetera Analecta na biblioteca Seguinte Geneviève, mas, com grande
surpresa minha, a edição encontrada discordava em dois pormenores. Antes de mais, o
editor, que era Montalant, ad Ripam P.P. Augustinianorum (prope Pontem S. Michaelis),
e depois a data, de dois anos mais tarde. É inútil dizer que estes analecta não continham
nenhum manuscrito de Adso ou Adso Melk, trata-se, pelo contrário, como qualquer um
pode verificar, de uma recolha de textos de curta e média extensão, enquanto a história
transcrita por Vallet se estendia por algumas centenas de páginas. Consultei nessa altura
medievalistas ilustres, como o querido e inesquecível Etienne Gilson, mas foi claro que os
únicos Vetera Analecta eram os que tinha visto em Sainte Geneviève. Uma saltada à
Abbaye de la Source, que surge nos arredores de Passy, e uma conversa que o amigo Dom
Arne Lahnestedt convenceram-me igualmente de que nenhum abade Vallet tinha
publicado livros nos prelos (aliás inexistentes) da abadia. É conhecida a negligencia dos
eruditos franceses em dar indicações bibliográficas duma certa credibilidade, mas o caso
superava qualquer razoável pessimismo. Comecei a pensar que me tinha caído nas mãos
um apócrifo; o próprio livro de Vallet era então irrecuperável (ou pelo menos não ousava
ir pedi-lo a quem mo tinha subtraído), e não me restava senão as minhas notas, das quais
já começava a duvidar.

Há momentos mágicos, de grande cansaço físico e intensa excitação motora, em que
se tem visões de pessoas conhecidas no passado («en me retraçant ces détails, j'en suis à
me desmander s'ils sont réels, ou lien si je les ai revés»). Como aprendi mais tarde, no
belo livrinho de Abbé de Bucqouy há-se igualmente visões de livros ainda não escritos.
Se não tivesse sucedido alguma coisa de novo, estaria ainda aqui a perguntar-me
donde viria a história de Adso de Melk, mas em 1970, em Buenos Aires, vasculhando nas
bancas de um pequeno alfarrabista em Corrientes, não muito longe do mais insigne Patio
del Tango daquela grande avenida, caiu-me nas mãos a versão castelhana de um livrinho
de Milo Temesrar, Do Uso dos Espelhos no Jogo do Xadrez, que já tinha tido ocasião de
citar (em segunda mão) no meu Apocalipticos e Integrados, fazendo a recensão do seu
mais recense Os Vendedores de Apocalipse. Tratava-se da tradução do original, hoje
perdido, em língua georgiana (Tibilisi, 1934), com grande surpresa minha, li copiosas
citações do manuscrito de Adro, salvo que a fonte não era nem Vallet nem Mahillon, mas
sim o padre Athanariur Kircher (mas qual a obra?). Um erudito - que não considero
oportuno nomear - assegurou-me depois que (e citava índices decor) o grande jesuíta
nunca falou de Adso de Melk. Mas as páginas de Temesvar estavam debaixo dos meus
olhos, e os episódios a que se referia eram absolutamente análogos aos do manuscrito
traduzido por Vallet (em particular, a descrição do labirinto não deixava lugar para
dúvidas). Apesar do que escreveu depois Beniamino Placido1, o abade Vallet tinha
existido e também, certamente, Adso de Melk.

Conclui que as memórias de Adro pareciam juntamente participar da natureza dos
eventos que narra. Envoltas em muitos e vagos mistérios, a começar pelo autor e a
acabar na localização da abadia sobre a qual Adso se cala com tenaz obstinação, de
modo que as conjeturas permitem desenhar uma zona imprecisa entre Pomposa e
Conquer, com razoáveis probabilidades de que o lugar se situasse ao longo da cadeia dos
Apeninos, entre o Piemonte, a Alguria e a França (como quem diz entre Lerici e Turbia).

Quanto à época em que se desenrola os eventos descritos, estamos no fim de Novembro
de 1327, é, porém, incerto quando escreve o autor. Calculando que se diz noviço, em
1327 e já está próximo da morte quando redige as suas memórias, podemos conjeturar
que o manuscrito foi lavrado nos últimos dez ou vinte anos do século XIV.

Pensando bem, eram bastante escassas as razões que podiam inclinar-se a abafar à
estampa a minha versão italiana duma obscura versão neogótica francesa de uma edição
latina seiscentista de uma obra escrita em latim, por um monge alemão nos fins do
século XIV.

Antes de mais, que estilo adotar. Era rejeitada como de todo injustificada a tentação
de imitar modelos italianos da época, não só Adso escreve em latim, mas é claro por
todo o desenvolvimento do texto que a sua cultura (ou a cultura da abadia que tão
claramente o influencia) é muito mais datada, trata-se claramente de uma soma
plurissecular de conhecimentos e de versos estilísticos que se ligam à tradição baixomedieval
latina. Adso pensa e escreve como um monge que permaneceu impermeável à
revolução da língua vulgar, apegado às páginas acolhidas na biblioteca de que fala,
formado a partir de textos patriótico-escolásticos, e a sua história (para além das
referencias e dos acontecimentos do século XVI, que o próprio Adso registra no meio de
mil perplexidades, e sempre por ouvir dizer) poderia ter sido escrita, quando à língua e
às citações eruditas, no século XII ou XIII.

Por outro lado, é indubitável que ao traduzir no seu francês neogótico o latim de
Adso, Vallet introduziu de seu várias licenças, e nem sempre apenas estilísticas. Por
exemplo, os personagens falam por vezes dar virtudes das ervas, reportando-se
claramente ao livro dos segredos atribuído a Alberto Magno, que sofreu infinitas
reelaborações através dos séculos. É certo que Adso o conhecia, mas resta o fato que
cita trechos que evocam demasiado literalmente quer receitas de Paracelso quer claras
interpolações de uma edição de Alberto Magno sem dúvida da época Tudor2. Por outro
lado, apurei em seguida que nos tempos em que Vallet transcrevia o manuscrito de Adso
circulava em Paris uma edição setecentista do Grand e do Petit Albert3; já
irremediavelmente corrompida. Todavia, como ter a certeza que o texto a que se
reportavam Adso ou os monges cujos discursos ele anotava não continha, entre glosas,
escólios e apêndices vários, também anotações que depois iriam alimentar a cu1tura
posterior.

Enfim, devia conservar em latim as passagens que o próprio abade Vallet não
considerou oportuno traduzir, talvez para conservar o espírito da época. Não havia
justificações precisas para o fazer, a não ser um sentimento, talvez mal-entendido, de
fidelidade à minha fonte... Eliminei o excesso, mas alguma coisa deixei. E receio ter
feito como os maus romancistas que, ao porem em cena um personagem francês, o
fazem dizer «parbleu!» e «la femme, ah, la femme!».
Em conclusão, estou cheio de dúvidas. Ao certo não sei porque decidi encher-me de
coragem e apresentar como se fosse autentico o manuscrito de Adso de Melk. Digamos,
um gesto de enamorado. Ou, se se quiser, um modo de me libertar de numerosas e
antigas obsessões.

Transcrevo sem preocupações de atualidade. Nos anos em que descobri o texto do
abade Vallet corria a convicção de que se devia escrever apenas comprometendo-se com
o presente e para mudar o mundo. A mais de dez anos de distancia, é agora consolação
do homem de letras (restituído à sua altíssima dignidade) poder escrever por puro amor
da escrita. E assim, agora, sinto-me livre de contar, por simples gosto efabulatório, a
história de Adso de Melk, e sinto conforto e consolação em encontrá-la tão
incomensuravelmente distante no tempo (agora que a vigília da razão afugentou todos os
monstros que o seu sono tinha gerado), tão gloriosamente privada de relação com os
nossos tempos, intemporalmente estranha às nossas esperanças e às nossas certezas.

Porque esta é uma história de livros, não de misérias quotidianas, e a sua leitura pode
inclinar-nos a recitar, com o grande imitador de Kempis. «In ómnibus réquiem quaesivi,
et nusquam inveni nisi in ángulo cum libro.»

5 de Janeiro de 1980

1La Repubblica, 22 de septiembre de 1977.

2Líber aggregationís seu liber secretorum Alberti Magni, Londinium, juxta pontem qui
vulgariter dicitur Flete brigge. MCCCCLXXXV.
3Les admirables secrets d'Albert le Grand, A Lyon, Chez les Héritiers Beringos, Fratres,
à l'Enseigne d'Agrippa. MDCCLXXV; Secrets merveilleux de la Magie Naturelle et
Cabalistique du Petit Albert, A Lyon. ibidem. MDCCXXIX.

NOTA

O manuscrito de Adso está dividido em sete dias e cada dia em períodos
correspondentes às horas litúrgicas. Os subtítulos, na terceira pessoa, foram
provavelmente acrescentados por Vallet. Mas como são úteis para orientar o leitor, e
este uso não se aparta do de muita literature em língua vulgar daquele tempo, não
considerei oportuno eliminá-los.

As referências de Adso às horas canônicas causaram-me uma certa perplexidade, não
só porque a sua determinação varia segundo as localidades e as estações, mas, com toda
a probabilidade, no século XIV não se seguiam com absoluta precisão as indicações
fixadas por São Bento na regra.
Todavia, para orientação do leitor, deduzindo em parte do texto e em parte
confrontando a regra originária com a descrição da vida monástica fornecida por Edouard
Schneider em Les heures bénédictines (Paris, Grasset, 1925), credo que se pode adotar a
avaliação seguinte:

Matinas - (que por vezes Adso designa também com a antiga expressão Vigiliae) Entre
as 2h30 as 3h da noite.

Laudas -(que na tradição mais antiga se chamavam Matutini) Entre as 5h e as 6h da
manhã, de modo a terminarem ao romper da alva.

Prima - Cerca das 7h30, pouco antes da aurora.

Terça - Cerca das 9h.

Sexta - Meio-dia (num mosteiro em que os monges não trabalhavam no campo, no

Inverno, era também a hora da refeição).
Nona - Entre as 2h e as 3h da tarde.

Vésperas - Cerca das 4h30, ao pôr do Sol (a regra prescreve a ceia quando ainda não
desceu a treva).

Completas - Cerca das 6h (antes das 7h os monges vão-se deitar).
O cálculo baseia-se no fato de que na Itália Setentrional, no fim de Novembro, o Sol
nasce por volta das 7h30 e põe-se por volta das 4h40 da tarde.

PRÓLOGO

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava
no princípio com Deus, e a tarefa do monge fiel seria repetir cada dia com salmo diante
humildade o único imodificável evento cuja incontroversa verdade se pode asseverar.
Mas vivemus num per speculum et in aenigmate e a verdade, antes de face a face,
manifesta-se por traços (ai, quão ilegíveis) no errar do mundo, de modo que devemos
decifrar-lhe os sinais fiéis, mesmo onde nos parecem obscuros e quase tecidos de uma
vontade de todo tendente ao mal.

Chegado ao fim da minha vida de pecador, enquanto velho encanecido como o mundo,
à espera de me perder no abismo sem fundo da divindade silenciosa e deserta,
participando da luz incomunicável das inteligências angélicas, retido agora pelo meu
corpo pesado e doente nesta cela do querido mosteiro de Melk, disponho-me a deixar
neste velo testemunho dos admiráveis e terríveis eventos a que na juventude me foi
dado assistir, repetindo verbatim quanto vi e ouvi, sem ousar tirar daí nenhum desígnio,
como para deixar àqueles que hão-de vir (se o Anticristo não os preceder) sinais de sinais
para que sobre eles se exercise a prece da decifração.
O Senhor me concede a graça de ser testemunha transparente dos acontecimentos que
tiveram lugar na abadia de que é bom e piedoso calar agora o próprio nome ao findar o
ano do Senhor de 1327, em que o imperador Luís desceu à Itália para reconstituir a
dignidade do sacro Império Romano, segundo os desígnios do Altíssimo e para confusão
do infame usurpador simoníaco e heresiarca que em Avinhão cobriu de vergonha o santo
nome do apóstolo (digo, a alma pecadora de Jacques de Cahors, que os ímpios
veneraram como João XXII).

Para melhor compreender os acontecimentos em que me achei envolvido, talvez seja
bom recordar quanto estava acontecendo no início daquele século, tal como o
compreendi então, vivendo-o, e tal como o rememoro agora, enriquecido com outros
relatos que depois ouvi-se acaso a minha memória está em condições de reatar os fios de
tantos e tão confusos eventos.

Desde os primeiros anos daquele século que o papa Clemente V tinha transferido a
sede apostólica para Avinhão, deixando Roma à mercê das ambições dos senhores locais:
e gradualmente a cidade santíssima da cristandade se tinha transformado num circo, ou
num lupanar, dilacerada pelas lutas entre os seus maiores; dizia-se república e não o
era, batida por bandos armados, sujeita a violências e saques. Eclesiásticos que se
esquivavam à jurisdição secular comandavam grupos de facínoras e rapinavam de espada
em punho, prevaricavam e organizavam torpes tráficos. Como impedir que o Caput Mundi
voltasse a ser, e justamente, a meta de quem quisesse cingir a coroa do sacro Império
Romano e restaurar a dignidade do domínio temporal que já tinha sido dos césares?
Eis, pois, que em 1314 cinco príncipes alemães tinham eleito em Francoforte Luís da
Baviera como supremo regente do império. Mas no mesmo dia, na margem oposta do
Meno, o conde palatino do Reno e o arcebispo de Colônia tinham eleito com a mesma
dignidade Frederico de Áustria. Dois imperadores para uma única sede e um só papa para
duas: situação que se tornou, na verdade, fonte de grande desordem.

Dois anos depois era eleito em Avinhão o novo papa, Jacques de Cahors, de setenta e
dois anos, precisamente com o nome de João XXII, e queiram os céus que nunca mais
nenhum pontífice adote um nome já tão malvisto pelos homens de bem. Francês e
devoto do rei de França (os homens daquela terra corrupta estão sempre inclinados a
favorecer os interesses dos seus e são incapazes de olhar o mundo inteiro como a sua
pátria espiritual) tinha defendido Filipe, o Belo, contra os cavaleiros templários, que o
rei tinha acusado (creio que injustamente) de delitos ignominiosos para se apoderarem
dos seus bens, com a cumplicidade daquele eclesiástico renegado. Entretanto, tinha-se
inserido em toda aquela trama Roberto de Nápoles, que, para manter o controle da
península italiana, tinha convencido o papa a não reconhecer nenhum dos dois
imperadores alemães, ficando assim chefe geral do Estado da Igreja.

Em 1322, Luís, o Bávaro, batia o seu rival Frederico. Ainda mais temeroso de um só
imperador do que tinha sido de dois,João excomungou o vencedor, e este em resposta
denunciou o papa como herético. É necessário dizer que, precisamente naquele ano,
tinha tido lugar em Perugia o capítulo dos frades franciscanos, e o seu geral, Miguel de
Cesena, acolhendo as instancias dos «espirituais» (de que terei ainda ocasião de falar),
tinha proclamado como verdade de fé a pobreza de Cristo, que, se tinha possuído alguma
coisa com os seus apóstolos, o tinha tido só como usus facti. Digna resolução, destinada a
salvaguardar a virtude e a pureza da ordem, mas ela desagradou assaz ao papa, que nela
entrevia talvez um princípio que poria em perigo as próprias pretensões que ele, como
chefe da Igreja, tinha de contestar ao império o direito de eleger bispos, reservando pelo
contrário ao sacro sólio o de investir o imperador. Fossem estas ou outras as razões que o
moviam, João condenou em 1323 as propostas dos franciscanos com a decretal Cum Ínter
nonnullos.

Foi naquela altura, imagino, que Luís viu nos franciscanos, então inimigos do papa,
poderosos aliados. Ao afirmar a pobreza de Cristo, de certo modo eles revigoravam as
idéias dos teólogos imperiais, isto é, de Marsílio de Pádua e João de Gianduno. E
finalmente, não muitos meses antes dos eventos que estou narrando, Luís, que tinha
chegado a um acordo com o derrotado Frederico, descia à Itália, era coroado em Milão,
entrava em conflito com os Visconti, que no entanto o tinham acolhido favoravelmente,
punha cerco a Pisa, nomeava vigário imperial Castruccio, duque de Luca e Pistóia (e
creio que fez mal porque nunca conheci homem mais cruel, exceto talvez Uguccione
della Faggiola), e preparava-se então a descer para Roma, chamado por Sciarra Colonna,
senhor do lugar.

Eis como era a situação quando eu - já noviço beneditino no mosteiro de Melk - fui
retirado da tranqüilidade do claustro por meu pai, que se batia no séqüito de Luís, não
como o último dos seus barões, e que considerou avisado levar-me consigo para que
conhecesse as maravilhas de Itália e estivesse presente quando o imperador fosse
coroado em Roma. Mas o assédio de Pisa absorveu-o nos cuidados militares. Eu disso tirei
vantagem, vagueando, um pouco por ócio e um pouco por desejo de aprender, pelas
cidades da Toscana, mas esta vida livre e sem regra não se adequava, pensaram os meus
pais, a um adolescente votado à vida contemplativa. E a conselho de Marsílio, que
começara a gostar de mim, decidiram pôr-me junto de um douto franciscano, frade
Guilherme de Baskerville, que ia iniciar uma missão que o levaria a visitar cidades
famosas e abadias antiqüíssimas. Assim me tornei seu escrivão e discípulo ao mesmo
tempo, e não vim a arrepender-me, porque fui com ele testemunha de acontecimentos
dignos de serem confiados, como agora estou fazendo, à memória daqueles que hão-de
vir.

Eu não sabia então o que procurava frade Guilherme, e, para dizer a verdade, ainda
hoje não o sei, e presumo que nem sequer ele o soubesse, movido como era pelo único
desejo da verdade e pela suspeita - que sempre lhe vi nutrir - de que a verdade não era
aquela que lhe aparecia no momento presente. E talvez naqueles anos ele estivesse
desviado dos seus estudos prediletos por incumbências do século. A missão de que
Guilherme estava encarregado ficou para mim incógnita ao longo de toda a viagem, ou
melhor, ele não me falou dela. Foi sobretudo ouvindo pedaços de conversas que ele teve
com os abades dos mosteiros em que nos íamos detendo que pude fazer uma idéia da
natureza da sua tarefa. Mas não o compreendi plenamente enquanto não chegamos à
nossa meta, como direi depois. Dirigíamo-nos para norte, mas a nossa viagem não
prosseguiu em linha reta, e detivemo-nos em várias abadias. Assim, aconteceu que
viramos para ocidente, enquanto a nossa meta última ficava a oriente, quase seguindo a
linha de montanhas que vai de Pisa na direção da estrada de Santiago, parando numa
terra que os terríveis acontecimentos que depois aí sucederam me desaconselham de
identificar melhor, mas cujos senhores eram fiéis ao império e onde os abades da nossa
ordem se opunham de comum acordo ao papa herético e corrupto. A viagem durou duas
semanas entre vicissitudes várias, e durante esse tempo tive ocasião de conhecer (nunca
o bastante, como estou convencido) o meu novo mestre.

Nas páginas que se seguem não quero abandonar-me a descrições de pessoas - a não
ser quando a expressão de um rosto ou um gesto apareçam como sinais de muda mas
eloqüente linguagem -, porque, como diz Boécio, nada é mais fugaz do que a forma
exterior, que fenece e muda como as flores do campo ao surgir o Outono, e que sentido
teria hoje dizer do abade Abbone que tinha o olhar severo e as faces pálidas, quando
agora ele e os que o rodeavam são pó e do pó o seu corpo tem já o cinzento mortífero
(só o espírito, queira Deus, resplandecendo de uma luz que jamais se extinguirá)?

Mas de
Guilherme quero falar, e uma vez por todas, porque também me impressionaram as suas
singulares feições, e é próprio dos jovens ligar-se a um homem mais velho e mais sábio
não só pelo fascínio da palavra e pela agudeza da mente mas também pela forma
superficial do corpo, que se torna queridíssima, como acontece com a figura de um pai,
a quem se estudam os gestos e as cóleras e se espia o sorriso - sem a menor sombra de
luxúria a inquinar esta forma (talvez a única verdadeiramente pura) de amor corpóreo.
Os homens de outrora eram altos e belos (agora são crianças e anões), mas este fato é
apenas um dos muitos que testemunham a desgraça de um mundo que envelhece. A
juventude não quer aprender mais nada, a ciência está em decadência, o mundo inteiro
caminha de cabeça para baixo, cegos conduzem outros cegos e fazem-nos precipitar nos
abismos, os pássaros lançam-se antes de começarem a voar, o burro toca lira, os bois
dançam, Maria já não ama a vida contemplativa e Marta já não ama a vida ativa, Lia é
estéril, Raquel tem olhos sensuais, Catão freqüenta os lupanares, Lucrécio torna-se
mulher. Tudo está desviado do seu próprio caminho. Sejam dadas graças a Deus que eu,
naquele tempo, adquiri do meu mestre o desejo de aprender e o sentido da reta via, que
se conserva mesmo quando o caminho é tortuoso.

Assim, a aparência física de frade Guilherme era tal que chamava a atenção do
observador mais distraído. A sua estatura superava a de um homem normal e era tão
magro que parecia mais alto. Tinha olhos agudos e penetrantes; o nariz afilado e um
pouco adunco conteria ao seu rosto a expressão de alguém que vigia, salvo nos
momentos de torpor de que falarei. Também o queixo denunciava nele uma vontade
firme, embora o rosto alongado e coberto de sardas - como vi muitas vezes nas pessoas
nascidas entre Hibernia e Northumbria - pudesse por vezes exprimir incerteza e
perplexidade. Com o tempo apercebi-me de que aquilo que parecia insegurança era ao
invés e somente curiosidade, mas no início pouco sabia desta virtude, que julgava
sobretudo uma paixão do espírito concupiscente, pensando que o espírito racional não
devia nutrir-se dela, alimentando-se só do verdadeiro, que (pensava) já se sabe desde o
início.

Jovem como eu era, aquilo que nele logo me tinha impressionado eram uns tufos de
pêlos amarelados que lhe saíam das orelhas e das sobrancelhas espessas e louras. Podia
ele ter cinqüenta primaveras, e portanto era já muito velho, mas movia o corpo
incansável com uma agilidade que a mim muitas vezes faltava. A sua energia parecia
inexaurível quando o tomava um excesso de atividade. Mas, de vez em quando, como se
o seu espírito vital participasse do caranguejo, caía em momentos de inércia, e vi-o estar
durante horas no catre da sua cela pronunciando a custo um ou outro monossílabo sem
contrair um único músculo do rosto. Nessas ocasiões aparecia nos seus olhos uma
expressão vaga e ausente, e eu teria suspeitado que estivesse sob o efeito de alguma
substância vegetal capaz de provocar visões se a evidente temperança que regulava a
sua vida não me tivesse induzido a afastar este pensamento. Não escondo todavia que,
no decurso da viagem, tinha parado por vezes à beira de um prado, na orla de uma
floresta, para colher uma erva (creio que era sempre a mesma): e punha-se a mastigá-la
com ar absorto. Uma parte guardava-a consigo e comia-a nos momentos de maior tensão
(e muitas vezes os tivemos na abadia!). Quando uma vez lhe perguntei de que se tratava,
disse-me, sorrindo, que um bom cristão pode aprender às vezes até com os infiéis; e,
quando lhe pedi para provar, respondeu-me que, tal como para os discursos, também
para os simples há os paidikoi, os ephebikoi e os gynaikoioi e assim sucessivamente, de
modo que as ervas que são boas para um velho franciscano não são boas para um jovem
beneditino.

No tempo que estivemos juntos não tivemos ocasião de fazer uma vida muito regular:
mesmo na abadia velávamos de noite e caíamos de cansaço durante o dia, e nem sequer
participávamos regularmente nos ofícios sacros. Raramente, no entanto, em viagem, ele
velava depois de completas, e tinha hábitos sóbrios. Por vezes, como sucedeu na abadia,
passava todo o dia movendo-se pelo horto, examinando as plantas como se fossem
crisoprássios ou esmeraldas, e vi-o vaguear pela cripta do tesouro olhando para um
escrínio ornado de esmeraldas e crisoprássios como se fosse um ramo de estramônio.
Outras vezes ficava um dia inteiro na sala grande da biblioteca folheando manuscritos
como se não procurasse outra coisa senão o seu próprio prazer (quando à nossa volta se
multiplicavam os cadáveres de monges horrorosamente assassinados). Um dia encontrei-o
a passear no jardim sem qualquer fim aparente, como se não devesse dar contas a Deus
das suas obras. Na ordem tinham-me ensinado um outro modo de dividir o meu tempo, e
eu disse-lho. E ele respondeu que a beleza do cosmo é dada não só pela unidade na
variedade mas também pela variedade, na unidade. Pareceu-me uma resposta ditada por
um empirismo grosseiro, mas aprendi em seguida que os homens da sua terra definem
muitas vezes as coisas de modo tal que a força iluminante da razão não parece ter
grande papel.

Durante o período que passamos na abadia vi-lhe sempre as mãos cobertas pelo pó dos
livros, pelo ouro das iluminuras ainda frescas, por substâncias amareladas em que tinha
tocado no hospital de Severino. Parecia que não podia pensar senão com as mãos, coisa
que então me parecia mais digna de um mecânico (e tinham-me ensinado que o
mecânico é moechus, e comete adultério em relação à vida intelectual a que deveria
estar unido em castíssimos esponsais): mas, mesmo quando as suas mãos tocavam em
coisas extremamente frágeis, como certos códices de iluminuras ainda frescas, ou
páginas corroídas pelo tempo e friáveis como pão ázimo, ele possuía, pareceu-me, uma
extraordinária delicadeza de tato, a mesma que usava ao tocar nas suas máquinas.

Direi
com efeito que este homem curioso trazia consigo, na sua saca de viagem, instrumentos
que eu nunca tinha visto até então, e que ele definia como as suas maravilhosas
máquinas. As máquinas, dizia ele, são produto da arte, que imita a natureza, e dela
reproduzem não as formas mas a própria operação. Explicou-me assim os prodígios do
relógio, do astrolábio e do magneto. Mas a princípio temi que se tratasse de bruxaria, e
fingi dormir em certas noites serenas em que ele se punha (com um estranho triângulo na
mão) a observar as estrelas. Os franciscanos que tinha conhecido em Itália e na minha
terra eram homens simples, muitas vezes iletrados, e com ele admirei-me da sua
sapiência. Mas ele disse-me sorrindo que os franciscanos das suas ilhas eram de molde
diverso: «Roger Bacon, que eu venero como mestre, ensinou-nos que o plano divino
passará um dia para a ciência das máquinas, que é magia natural e santa. E um dia pela
força da natureza poder-se-ão fazer instrumentos de navegação com os quais os navios
irão com um único homem regente, e bem mais rápidos do que impelidos por velas ou
remos; e haverá carros sem “animale moveantur cum impetu inaestimabili, et
instrumenta volandi et homo sedens in medio instrumentis revolvens aliquod ingenium
per quod alae artificialiter composita aerem verberent, ad modum avis volantis”. E
pequeníssimos instrumentos que levantem pesos enormes e veículos que permitam viajar
pelo fundo do mar.

Quando lhe perguntei onde estavam essas máquinas, disse-me que já tinham sido
feitas na Antiguidade, e algumas até nos nossos tempos: «Exceto o instrumento para
voar, que não vi, nem conheci quem o tivesse visto, mas conheço um sábio que o
imaginou. E podem fazer-se pontes que transpõem os rios sem colunas ou outro meio de
sustentação e outras máquinas inauditas. Mas não deves preocupar-te se ainda não
existem, porque isso não quer dizer que não venham a existir. E eu digo-te que Deus
quer que existam, e decerto estão já na sua mente, embora o meu amigo de Occam
negue que as idéias existam desse modo, e não porque possamos decidir da natureza
divina, mas precisamente porque não podemos pôr-lhe limite algum.» Não foi esta a
única proposição contraditória que lhe ouvi enunciar: mas mesmo agora, que sou velho e
mais sábio do que então, não consegui compreender como podia ele ter tanta confiança
no seu amigo de Occam e jurar ao mesmo tempo pelas palavras de Bacon, como era
costume fazer. É porém verdade que aqueles eram tempos obscuros em que um homem
sábio tinha de pensar coisas contraditórias entre si.

Eis que disse sobre frade Guilherme coisas talvez insensatas, como para recolher
desde o início as impressões desconexas que então tive. Quem ele foi e o que fazia, meu
bom leitor, poderás talvez deduzi-lo melhor das ações que operou nos dias que passamos
na abadia. Não te prometi um desenho completo, mas sim um elenco de fatos (isso sim
admiráveis e terríveis).
Assim, conhecendo dia a dia o meu mestre, e passando as longas horas de marcha em
infindáveis conversas de que, se for o caso, falarei pouco a pouco, chegamos às faldas do
monte sobre o qual se erguia a abadia. E é tempo, como nós então fizemos, que dela se
aproxime o meu relato, e Oxalá que a minha mão não trema ao preparar-me para dizer
quanto depois aconteceu.

PRIMEIRO DIA

PRIMA

Onde se chega aos pés da abadessa e Guilherme dá prova de grande agudeza
Era uma bela manhã de fim de Novembro. De noite tinha nevado um pouco, mas a
fresca camada que cobria o terreno não era superior a três dedos. às escuras, logo depois
de laudas, tínhamos ouvido missa numa aldeia do vale. Depois tínhamo-nos posto a
caminho para as montanhas, ao despontar o Sol.
Como trepávamos pelo carreiro íngreme que serpenteava em torno do monte, vi a
abadia. Não me espantaram as muralhas que a cingiam por todos os lados, semelhantes a
outras que vi em todo o mundo cristão, mas a mole daquilo que depois soube que era o
Edifício. Esta era uma construção octogonal que à distância parecia um tetrágono (figura
perfeitíssima que exprime a solidez e a inexpugnabilidade da Cidade de Deus), cujos
lados meridionais se erguiam no planalto da abadia, enquanto os setentrionais pareciam
crescer das próprias faldas do monte, nas quads se encaixavam a pique. Digo que em
certos pontos, de baixo, parecia que a rocha se prolongava para o céu, sem solução de
tons nem de matéria, e se tornava a certa altura um maciço torreão (obra de gigantes
que tivessem grande familiaridade com a terra e com o céu). Três ordens de janelas
diziam o ritmo ternário da sua elevação, de modo que aquilo que era fisicamente
quadrado sobre a terra era espiritualmente triangular no céu. Ao aproximarmo-nos mais,
percebia-se que a forma quadrangular gerava, em cada um dos seus ângulos, um torreão
heptagonal, cujos cinco lados se adiantavam para o exterior - quatro portanto dos oito
lados do octógono maior, gerando quatro heptágonos menores, que do exterior se
manifestavam como pentágonos. E não há quem não veja a admirável concórdia de
tantos números santos, revelando cada um, um sutilíssimo sentido espiritual. Oito o
número da perfeição de todo o tetrágono, quatro o número dos evangelhos, cinco o
número das zonas do mundo, sete o número dos dons do Espírito Santo. Pela mole e pela
forma, o Edifício apareceu-me como mais tarde havia de ver no Sul da península italiana
Castel Urbino ou Castel dal Monte, mas pela sua posição inacessível era mais terrível do
que aqueles e capaz de produzir temor no viajante que dele se aproximasse pouco a
pouco. E por sorte que, sendo uma límpida manhã de inverno, a construção não me
apareceu tal como se vê nos dias de tempestade.

Então direi no entanto que ela sugeria sentimentos de jovialidade. Eu senti medo e
uma vaga inquietação. Deus sabe que não eram fantasmas do meu espírito imaturo e que
retamente interpretava indubitáveis presságios inscritos na pedra, desde o dia em que os
gigantes aí puseram a mão e antes que a ingênua vontade dos monges ousasse consagrála
à custódia da palavra divina.

Enquanto os nossos machos trepavam pela última curva da montanha, lá onde o
caminho principal se ramificava em trívio, gerando dois carreiros laterais, o meu mestre
parou por algum tempo, olhando em torno os lados da estrada, a estrada, e acima da
estrada, onde uma série de pinheiros sempre-verdes formava por um breve espaço um
teto natural, alvo de neve.
- Rica abadia - disse. - O Abade gosta de parecer bem nas ocasiões públicas.
Habituado como estava a ouvi-lo fazer as mais singulares afirmações, não o
interroguei. Até porque, depois de outro troço de estrada, ouvimos ruídos, e numa curva
apareceu um grupo agitado de monges e de servos. Um deles, quando nos viu, veio ao
nosso encontro com grande urbanidade:

- Bem-vindo, senhor - disse -, e não vos admireis se imagino quem sois, porque fomos
advertidos da vossa visita. Eu sou Remígio de Varagine, o despenseiro do mosteiro. E se
vós sois, como creio, frade Guilherme de Bascavilla, o Abade deve ser avisado. Tu -
ordenou voltando-se para uma da comitiva-, sobe a avisar que o nosso visitante está
prestes a entrar na cerca.

- Agradeço-vos, senhor despenseiro - respondeu cordialmente o meu mestre -, e tanto
mais aprecio a vossa cortesia quanto para me saudar haveis interrompido a perseguição.
Mas não temais, o cavalo passou por aqui e dirigiu-se para o carreiro da direita. Não
poderá ir muito longe, porque chegando ao depósito do estrume tem de parar. É
demasiado inteligente para se lançar pelo terreno íngreme...
- Quando o haveis visto? - perguntou o despenseiro.
- Não o vimos de modo nenhum, não é verdade, Adso? – disse Guilherme, voltando-se
para mim com ar divertido. - Mas se procurais Brunello, o animal não pode estar senão
além onde eu disse.

O despenseiro hesitou. Fitou Guilherme, depois o caminho e por fim perguntou:

- Brunello? Como sabeis?
- Vamos - disse Guilherme -, é evidente que andais à procura de Brunello, o cavalo
preferido do Abade, o melhor galopador da vossa estrebaria, de pêlo negro, cinco pés de
altura, cauda majestosa, casco pequeno e redondo mas de galope bastante regular;
cabeça miúda, orelhas finas mas olhos grandes. Foi para a direita, digo-vos, e apressaivos,
em todo o caso.

O despenseiro teve um momento de hesitação, depois fez um sinal aos seus e lançouse
pelo caminho da direita, enquanto os nossos machos voltavam a subir. Quando estava
para interrogar Guilherme, porque me roia a curiosidade, ele fez-me sinal para esperar:
e, de fato, poucos minutos depois ouvimos gritos de júbilo, e na curva do caminho
reapareceram monges e servos trazendo o cavalo pelo freio. Passaram ao nosso lado,
continuando a olhar-nos algo, atônitos, e precederam-nos em direção à abadia. Creio
mesmo que Guilherme afrouxava o passo à sua cavalgadura para lhes permitir contar
quanto tinha acontecido. De fato tinha tido ocasião de me aperceber que o meu mestre,
em tudo e por tudo homem de altíssima virtude, cedia ao vício da vaidade quando se
tratava de dar prova da sua agudeza, e, tendo já apreciado os seus dotes de fino
diplomata, compreendi que queria chegar à mera precedido por uma sólida fama de
homem sapiente.

- E agora dizei-me - por fim não soube conter-me -, como fizeste para saber?
- Meu bom Adso - disse o mestre. - Em toda a viagem te tenho ensinado a reconhecer
os traços com que o mundo nos fala como um grande livro. Alano das Ilhas dizia que
omnis mundi creatura quasi liber et pictura nobis est in speculum e pensava na inexausta
reserva de símbolos com que Deus, através das suas criaturas, nos fala da vida eterna.
Mas o universo é ainda mais loquaz do que pensava Alano e não só fala das coisas últimas
(caso em que o faz sempre de modo obscuro) mas também das próximas, e nisto é muito
claro. Quase me envergonho de repetir-te aquilo que deverias saber. No trívio, sobre a
neve ainda fresca, desenhavam-se com muita clareza as pegadas dos cascos de um cavalo
que apontavam para o carreiro à nossa esquerda. A bela e igual distancia um do outro,
aqueles sinais diziam que o casco era pequeno e redondo e o galope de grande
regularidade... de modo que daí deduzi a natureza do cavalo e o fato de ele não correr
desordenadamente como faz um animal irritado. Ali, onde os pinheiros formavam como
que um teto natural, alguns ramos tinham sido quebrados de fresco justamente à altura
de cinco pés. Um dos silvados de amoras, por onde o animal deve ter andado para meter
pelo caminho à sua direita, enquanto altivamente sacudia a sua bela cauda, conservava
ainda entre os espinhos longas crinas muito negras... Não me digas enfim que não sabes
que aquele caminho conduz ao depósito do estrume, porque subindo pela curva inferior
vimos a baba dos detritos descer a pique aos pés do torreão meridional, sujando a neve;
e, tal como o trívio estava disposto, o caminho não podia senão conduzir naquela
direção.

- Sim – disse -, mas a cabeça pequena, as orelhas aguçadas, os olhos grandes...
- Não sei se os tem, mas decerto os monges o crêem firmemente. Dizia Isidoro de
Sevilha que a beleza de um cavalo exige «ut sit exiguum caput, et siccum prope pelle
ossibus adhaerente, aures breves et argutae, oculi magni, nares patulae, erecta cervix,
coma densa et cauda, ungularum soliditate fixa rotunditas». Se o cavalo cuja passagem
inferi não fosse na verdade o melhor da estrebaria, não se explicava porque a persegui-lo
não foram só os moços, mas se incomodou o próprio despenseiro. E um monge que
considera um cavalo excelente, para além das formas naturais, não pode deixar de o ver
como as autoridades lho descreveram, especialmente se - e aqui sorriu com malícia
dirigindo-se a mim - é um douto beneditino...
- Está bem – disse -, mas porquê Brunello?
-Que o Espírito Santo te ponha mais miolos na cabeça do que aqueles que tens, meu
filho! - exclamou o mestre. - Que outro nome lhe terias dado se o grande Buridano, que
vai ser reitor em Paris, tendo que falar de um belo cavalo, não encontrou nome mais
natural?
Assim era o meu mestre. Não só sabia ler no grande livro da natureza mas também do
modo como os monges liam os livros da Escritura e pensavam através deles. Dote que,
como veremos, havia de ser-lhe bastante útil nos dias que se seguiram. A sua explicação
pareceu-me, além disso, naquele ponto tão óbvia que a humilhação de a não ter
encontrado sozinho foi dominada pelo orgulho de dela comparticipar a partir de então, e
quase me congratulei comigo mesmo pela minha agudeza. Tal é a força da verdade que,
como o bem, se difunde por si. E se já louvado o santo nome de Nosso Senhor Jesus
Cristo por esta bela revelação que tive.

Mas retoma o fio, ó meu conto, que este monge senescente demora-se demasiado nos
marginalia. Diz, antes, que chegamos ao grande portal da abadia, e no limiar estava o
Abade, a quem dois noviços seguravam uma pequena bacia de ouro cheia de água. E,
como descemos dos nossos animais, ele lavou as mãos a Guilherme, depois abraçou-o,
beijando-o na boca e dando-lhe as suas santas boas-vindas, enquanto o despenseiro se
ocupava de mim.

- Obrigado, Abbone - disse Guilherme -, é para mim uma grande alegria pôr o pé no
mosteiro de Vossa Magnificência, cuja fama transpôs estas montanhas. Eu venho como
peregrino em nome de Nosso Senhor, e como tal vós me prestastes homenagem. Mas
venho também em nome do nosso senhor sobre esta terra, como vos dirá a carta que vos
entrego, e também em seu nome vos agradeço pelo vosso acolhimento.
O Abade pegou na carta com os selos imperiais e disse que, em todo o caso, a vinda de
Guilherme tinha sido precedida por outras missivas de confrades seus (pois que, disse
para comigo com um certo orgulho, é difícil colher um abade beneditino de surpresa),
depois pediu ao despenseiro que nos conduzisse aos nossos alojamentos, enquanto os
moços levavam os nossos cavalos. O Abade prometeu visitar-nos mais tarde, quando
estivéssemos recompostos, e entramos no grande pátio, onde os edifícios da abadia se
estendiam ao longo do suave planalto que arredondava numa ligeira concha – ou alpe - o
cume do monte.

Da disposição da abadia terei ocasião de falar mais vezes e mais minuciosamente.
Depois do portal (que era a única abertura nas muralhas da cerca) abria-se uma alameda
arborizada que conduzia à igreja abacial. À esquerda da alameda estendia-se uma vasta
zona de hortas e, como soube depois, o jardim botânico, em torno dos dois edifícios dos
balneários e do hospital e loja do ervanário, que ladeavam a curva das muralhas. Ao
fundo, à esquerda da igreja, erguia-se o Edifício, separado da igreja por uma esplanada
coberta de túmulos. O portal norte da igreja dava para o torreão sul do Edifício, que
oferecia frontalmente aos olhos do visitante o torreão ocidental, depois à esquerda
ligava-se às muralhas e afundava-se com as suas torres no abismo, sobre o qual se
debruçava o torreão setentrional, que se via de lado. À direita da igreja estendiam-se
algumas construções que estavam encostadas a ela e à volta do claustro: decerto o
dormitório, a casa do Abade e a casa dos peregrinos, a que nos dirigíamos e onde
chegamos atravessando um belo jardim. Do lado direito, para além de uma vasta
esplanada, ao longo das muralhas meridionais e continuando a oriente por trás da igreja,
uma série de quarteirões de colonos, estábulos, moinhos, lagares, celeiros e adegas e a
que me pareceu ser a casa dos noviços. A regularidade do terreno, apenas ondulado,
tinha permitido aos antigos construtores daquele lugar sagrado respeitar os ditames da
orientação melhor de quanto poderiam pretender Honório Augusto duniense ou
Guilherme Durando. Pela posição do Sol àquela hora do dia. Apercebi-me que o portal se
abria perfeitamente a ocidente, de modo que o coro e o altar estivessem voltados a
oriente; e o Sol de manhã cedo podia surgir, acordando diretamente os monges no
dormitório e os animais nos estábulos. Não vi abadia mais bela e admiravelmente
orientada, mesmo se em seguida conheci San Gallo, e Cluny, e Fontenay, e outras ainda,
talvez maiores mas menos têm proporcionadas. Diversamente das outras, esta distinguiase,
porém, pela mole incomensurável do Edifício. Não tinha a experiência dum mestrepedreiro,
mas apercebi-me logo que ele era muito mais antigo do que as construções que
o rodeavam, nascido talvez pare outros fins, e que o conjunto abacial se dispusera à sue
volta em tempos posteriores, mas de modo que a orientação da grande construção se
adequasse à da igreja, ou esta àquela. Porque a arquitetura é entre todas as artes
aquela que mais ousadamente procure reproduzir no seu ritmo a ordem do universo, que
os amigos chamavam kosmos, isto é, ornado, na medida em que é como um grande
animal sobre o qual refulge a perfeição e a proporção de todos os seus membros. E
louvado seja o Nosso Criador que, como diz Agostinho, estabeleceu todas as coisas em
número, peso e medida.

PRIMEIRO DIA

TERÇA

Onde Guilherme tem uma instrutiva conversa com o Abade.
O despenseiro era um homem gordo e de aspecto vulgar mas jovial, encanecido mas
ainda robusto, pequeno mas veloz. Conduziu-nos às nossas celas na casa dos peregrinos.
Ou melhor, conduziu-nos à cela destinada ao meu mestre, prometendo que no dia
seguinte desocuparia uma também para mim, na medida em que, embora noviço, eu era
seu hóspede, e portanto devia ser tratado com toda a honra. Por aquela noite podia
dormir num grande e comprido nicho que se abria na parede da cela, onde tinha
mandado pôr boa palha fresca. Coisa que, acrescentou, se fazia às vezes para os servos
de algum senhor que desejava ser velado durante o sono.

Depois, os monges trouxeram-nos vinho, queijo, azeitonas, pão e boa uva passa, e
deixaram-nos para nos recompormos. Comemos e bebemos com muito gosto. O meu
mestre não tinha os hábitos austeros dos beneditinos e não gostava de comer em
silêncio. Por outro lado, falava sempre de coisas tão boas e sábias que era como se um
monge nos lesse as vidas dos santos.
Naquele dia não me contive sem o interrogar de novo sobre o caso do cavalo.

- Porém – disse -, quando vós lestes as marcar sobre a neve e nos ramos, não
conhecíeis ainda Brunello. De certo modo, aquelas marcas falavam-nos de todos os
cavalos, ou pelo menos de todos os cavalos daquela espécie. Não devemos então dizer
que o livro da natureza nos fala só por essências, como ensinam muitos teólogos insignes?
- Não inteiramente, caro Adso - respondeu-me o mestre. - É certo que aquele tipo de
pegadas me exprimia, se quiseres, o cavalo como verbum mentis, e ter-mo-ia expresso
onde quer que o tivesse encontrado. Mas a pegada naquele lugar e àquela hora do dia
dizia-me que pelo menos um entre todos os cavalos possíveis tinha passado por ali. De
modo que eu me achava a meio caminho entre a apreensão do conceito de cavalo e o
conhecimento de um cavalo individual. E em todo o caso aquilo que eu conhecia do
cavalo universal era-me dado pela marca, que era singular. Posso dizer que naquele
momento eu estava prisioneiro entre a singularidade da marca e a minha ignorância, que
assumia a forma bastante diáfana de uma idéia universal. Se vês qualquer coisa de longe
e não percebes o que é, contentar-te-ás em defini-lo como um corpo extenso. Quando se
aproximar de ti, defini-lo-ás então como um animal, mesmo que não saibas ainda se é
um cavalo ou um burro. E finalmente, quando ele estiver mais perto, poderás dizer que é
um cavalo, mesmo que não saibas ainda se é Brunello ou Favello. E só quando estiveres à
distancia justa verás que é Brunello (ou seja, aquele cavalo e não outro, seja como for
que decidas chamar-lhe). E este será o conhecimento pleno, a intuição do singular.
Assim, há uma hora, eu estava pronto para esperar todos os cavalos, não pela vastidão
do meu intelecto, mas sim pela estreiteza da minha intuição. E a fome do meu intelecto
foi saciada apenas quando vi o cavalo singular que os monges levavam pelo freio. Só
então soube verdadeiramente que o meu primeiro raciocínio me tinha conduzido perto
da verdade. Assim, as idéias, que eu usava antes para imaginar um cavalo que ainda não
tinha visto, eram puros sinais, como eram sinais da idéia de cavalo as pegadas sobre a
neve: e usam-se sinais e sinais de sinais apenas quando nos faltam as coisas.
Outras vezes tinha-o ouvido falar com muito cepticismo das idéias universais e com
grande respeito pelas coisas individuais: e também em seguida me pareceu que esta
tendência lhe provinha tanto do fato de ser britânico como de ser franciscano. Mas
naquele dia não tinha forças suficientes para afrontar disputas teológicas: e assim me
aninhei no espaço que me tinha sido concedido, envolvi-me num cobertor e caí num sono
profundo.

Quem entrasse poderia ter-me confundido com um embrulho. E assim fez certamente
o Abade quando veio visitar Guilherme pela hora terça. Foi assim que eu pude escutar
sem ser observado o seu primeiro colóquio. E sem malícia, porque apresentar-me de
repente ao visitante teria sido mais descortês do que ocultar-me, como fiz, com
humildade.
Chegou portanto Abbone. Desculpou-se pela intrusão, renovou as suas boas-vindas e
disse que devia falar a Guilherme, em particular, de coisa bastante grave.
Começou por felicitá-lo pela habilidade com que se tinha conduzido na história do
cavalo, e perguntou como é que tinha sabido dar informações tão seguras de um animal
que nunca tinha visto. Guilherme explicou sucintamente e com ar distante a via que
tinha seguido, e o Abade alegrou-se muito pela sua agudeza. Disse que não teria
esperado menos de um homem que tinha sido precedido por uma fama de grande
sagacidade. Disse-lhe que tinha recebido uma carta do Abade de Farfa que não só lhe
falava da missão confiada a Guilherme pelo imperador (sobre a qual discutiriam depois
nos dias seguintes), mas também lhe dizia que na Inglaterra e na Itália o meu mestre fora
inquisidor em alguns processos, onde se tinha distinguido pela sua perspicácia, não isenta
de grande humanidade.

- Muito me agradou saber - acrescentou o Abade - que em numerosos casos vós haveis
decidido pela inocência do acusado. Creio, e mais do que nunca nestes dias tristíssimos,
na presença constante do maligno nas coisas humanas - e olhou em torno,
imperceptivelmente, como se o inimigo vagueasse entre aquelas paredes -, mas creio
também que muitas vezes o maligno opera por causas segundas. E sei que pode impelir
as suas vítimas a fazer o mal de tal modo que a culpa recaia sobre um justo, gozando
com o fato que o justo seja queimado em lugar do seu súcubo. Freqüentemente, os
inquisidores, para darem prova de diligência, arrancam a todo o custo uma confissão ao
acusado, pensando que só é bom inquisidor aquele que conclui o processo encontrando
um bode-expiatório...

- Até um inquisidor pode ser movido pelo diabo - disse Guilherme.
- É possível - admitiu o Abade com muita cautela -, porque os desígnios do Altíssimo
são imperscrutáveis, mas não serei eu a lançar a sombra da suspeita sobre homens tão
beneméritos. É mesmo de vós, como um deles, que eu hoje tenho necessidade.
Aconteceu nesta abadia alguma coisa que requer a atenção e o conselho de um homem
sutil e prudente como vós. Sutil para descobrir e prudente (se for o caso) para encobrir.
Freqüentemente, de fato, é indispensável provar a culpa de homens que deveriam
exceder pela sua santidade, mas de modo a poder eliminar a causa do mal sem que o
culpado seja exposto ao desprezo público. Se um pastor falha deve ser isolado dos outros
pastores, mas ai de nós se as ovelhas começassem a duvidar dos pastores.
- Compreendo - disse Guilherme.
Já tinha tido ocasião de notar que, quando se exprimia daquele modo tão solícito e
educado, geralmente escondia, de modo honesto, o seu desacordo ou a sua
perplexidade.
- Por isso - continuou o Abade -, considero que todo o caso que diga respeito à falta de
um pastor não pode ser confiado senão a homens como vós, que não só sabem distinguir
o bem do mal, mas também aquilo que é oportuno daquilo que o não é. Apraz-me pensar
que vós tenhais condenado apenas quando...
- ... os acusados eram culpados de atos delituosos, de envenenamentos, de corrupção
de crianças inocentes e de outros atos nefandos que a minha boca não ousa pronunciar...
- ... que tenhais condenado apenas quando - continuou o Abade sem ter em conta a
interrupção - a presença do demônio era tão evidente aos olhos de todos que não se
podia proceder diversamente sem que a indulgência fosse mais escandalosa do que o
próprio delito.
- Quando reconheci alguém culpado - precisou Guilherme -, este tinha realmente
cometido crimes de tal sorte que podia entregá-lo com boa consciência ao braço secular.
O Abade teve um momento de hesitação:
- Porque – perguntou - insistis em falar de ações delituosas sem vos pronunciardes
sobre a sua causa diabólica!
- Porque refletir sobre as causas e sobre os efeitos é coisa assaz difícil, de que, creio,
o único juiz só pode ser Deus. A nós já nos custa muito supor uma relação entre um
efeito tão evidente como uma árvore queimada e o raio que a incendiou que remontar a
cadeias por vezes longuíssimas de causas e efeitos parece-me tão louco como tentar
construir uma torre que chegue ao céu.
- O doutor de Aquino - sugeriu o Abade - não temeu demonstrar unicamente com a
força da razão a existência do Altíssimo, remontando de causa em causa à causa primeira
não causada.
- Quem sou eu - disse com humildade Guilherme - para me opor ao doutor de Aquino?
Até porque a sua prova da existência de Deus é sufragada por tantos outros testemunhos
que as suas vias resultam fortificadas. Deus fala-nos no interior da nossa alma, como já o
sabia Agostinho, e vós, Abbone, teríeis cantado os louvores do Senhor e a evidência da
sua presença ainda que Tomás não tivesse... - Deteve-se e acrescentou - Imagino.
- Oh, decerto - apressou-se a assegurar o Abade.
E o meu mestre truncou deste modo belíssimo uma discussão de escola que
evidentemente lhe agradava pouco. Depois recomeçou a falar.
- Voltemos aos processos. Vede: um homem, suponhamos, foi morto por
envenenamento. Este é um dado da experiência. É possível que imagine, diante de
certos sinais irrefutáveis, que o autor do envenenamento foi outro homem. Em cadeias
de causas tão simples, a minha mente pode intervir com uma certa confiança no seu
poder. Mas como posso complicar a cadeia imaginando que, a causar a ação malvada,
haja uma outra intervenção, desta vez não humana mas diabólica? Não digo que não seja
possível, também o diabo denuncia a sua passagem com claros sinais, como o vosso
cavalo Brunello. Mas porque devo procurar essas provas? Não é já suficiente que eu saiba
que o culpado é aquele homem e o entregue ao braço secular? Em qualquer caso, a sua
pena será a morte, que Deus lhe perdoe.

- Mas consta-me que um processo que se desenrolou em Kilkenny, há três anos, em
que algumas pessoas foram acusadas de ter cometido torpes delitos, vós não negastes a
intervenção diabólica, uma vez descobertos os culpados.
- Mas também nunca o afirmei abertamente. Também não o neguei, é verdade. Quem
sou eu para exprimir juízos sobre as tramas do maligno, especialmente - acrescentou, e
pareceu querer insistir nesta razão -, em casos em que aqueles que tinham dado início à
inquisição, o bispo, os cidadãos magistrados e o povo todo, talvez os próprios acusados,
desejavam verdadeiramente descobrir a presença do demônio? Ai está, talvez a única
verdadeira prova da presença do diabo seja a intensidade com que todos naquele
momento aspiram sabê-lo na obra...

- Então vós - disse o Abade em tom preocupado - dizeis-me que em muitos processos o
diabo não age só no culpado mas talvez e sobretudo nos juízes?
- Poderia acaso fazer uma afirmação desse gênero? – perguntou Guilherme, e percebi
que a pergunta era formulada de modo que o Abade não pudesse afirmar que ele podia;
assim, Guilherme aproveitou o seu silêncio para desviar o curso do diálogo. - Mas no
fundo trata-se de coisas distantes. Abandonei aquela nobre atividade, e se o fiz foi
porque o Senhor assim o quis...
- Sem dúvida - admitiu o Abade.
- ... e agora - continuou Guilherme - ocupo-me de outras delicadas questões. E queria
ocupar-me daquela que vos atormenta, se vós dela me falardes.
Pareceu-me que o Abade ficou satisfeito por poder terminar aquela conversa,
tornando ao seu problema. Pôs-se então a contar, com muita prudência na escolha das
palavras e longas perífrases, um fato singular que tinha acontecido poucos dias antes e
que tinha deixado muita perturbação entre os monges. E disse que falava disso a
Guilherme porque, sabendo-o grande conhecedor não só do espírito humano mas também
das tramas do maligno, esperava que pudesse dedicar parte do seu tempo precioso a
lançar luz sobre um doloridíssimo enigma. Tinha-se dado então o caso que Adelmo
Otranto, um monge ainda jovem e todavia já famoso como grande mestre iluminista e
que estava adornando os manuscritos da biblioteca com imagens belíssimas, tinha sido
encontrado uma manhã por um cabreiro no fundo da escarpa dominada pelo torreão este
do Edifício. Pois que tinha sido visto pelos outros monges no coro durante completas mas
não tinha reaparecido a matinas, tinha-se provavelmente precipitado durante as horas
mais escuras da noite. Noite de grande tempestade de neve, em que caíam flocos
cortantes como lâminas, que quase pareciam granizo, impelidos por um austro que
soprava impetuoso. Amolecido pela neve que primeiro se tinha derretido e depois
endurecido em laminas de gelo, o seu corpo tinha sido encontrado aos pés do
despenhadeiro, dilacerado pelas rochas contra as quais tinha feito ricochete. Pobre e
frágil coisa morta, que Deus tivesse misericórdia dele. Por causa dos numerosos
ricochetes que o corpo tinha sofrido ao precipitar-se, não era fácil dizer de que ponto
exato tinha caído: certamente duma das janelas que se abriam em três ordens de
andares nos quatro lados do torreão expostos ao abismo.

- Onde haveis sepultado o pobre corpo? - perguntou Guilherme.
- No cemitério, naturalmente - respondeu o Abade. - Talvez o tenhais notado,
estende-se entre o lado setentrional da igreja, o Edifício e o horto.
- Vejo - disse Guilherme -, e vejo que o vosso problema é o seguinte. Se aquele infeliz
se tivesse, Deus não queira, suicidado (pois que não se podia pensar que tivesse caído
acidentalmente), no dia seguinte teríeis encontrado aberta uma daquelas janelas,
enquanto as haveis encontrado todas fechadas e sem que aos pés de nenhuma
aparecessem marcas de água.

O Abade era homem, já o disse, de grande e diplomática compostura, mas desta vez
teve um movimento de surpresa que lhe tirou qualquer traço daquele decoro que condiz
com a pessoa grave e magnânima como diz Aristóteles:
- Quem vo-lo disse?
- Haveis-mo dito vós - disse Guilherme. - Se a janela tivesse sido aberta, teríeis logo
pensado que ele se tinha atirado. Pelo que pude julgar do exterior, trata-se de grandes
janelas de vidraças opacas, e janelas daquele tipo não se abrem geralmente, em
edifícios destas dimensões, à altura de uma pessoa. Portanto, se tivesse sido aberta,
dado que é impossível que o desgraçado se tivesse debruçado e tivesse perdido o
equilíbrio, não restaria senão pensar num suicídio. Nesse caso, não o teríeis deixado
sepultar em terra consagrada. Mas visto que o haveis sepultado cristãmente, as janelas
deviam estar fechadas. Porque, se estavam fechadas, como eu não encontrei nem sequer
os processos de bruxaria um morto impenitente a quem Deus ou o Diabo tenham
concedido voltar a subir do abismo para apagar as marcas do seu delito, é evidente que o
presumível suicida foi mesmo empurrado, quer por mão humana quer por força
diabólica. E vós perguntai-vos quem poderá tê-lo não digo empurrado para o abismo mas
içado voluntariamente até ao peitoril, e estais perturbado porque uma força maléfica,
natural ou sobrenatural, vagueia agora pela abadia.

- Assim é... - disse o Abade, e não era claro se confirmava as palavras de Guilherme ou
dava razão a si próprio com as razões que Guilherme tinha tão admiravelmente
produzido. - Mas como conseguis saber que não havia água aos pés de nenhuma vidraça?
- Pois que me haveis dito que soprava o austro, e a água não podia ser impelida contra
janelas que se abrem a oriente.
- Não me tinham dito o bastante das vossas virtudes - disse o Abade. - E tendes razão,
não havia água, e agora sei porquê. As coisas passaram-se como dizeis. E agora
compreendeis a minha angústia. Já teria sido grave se um dos meus monges se tivesse
manchado com o abominável pecado do suicídio. Mas tenho razões para pensar que outro
se manchou com um pecado igualmente terrível. E se fosse só esse...
- E antes de mais, porquê um dos monges? Na abadia há muitas outras pessoas,
estribeiros, cabreiros, servos...
- Claro, é uma abadia pequena mas rica - admitiu com orgulho o Abade. - Cento e
cinqüenta servos para sessenta monges. Mas tudo aconteceu no Edifício. Ali, como
decerto já sabeis, embora no primeiro andar sejam as cozinhas e o refeitório, nos dois
andares superiores ficam o scriptorium e a biblioteca. Depois da ceia, o Edifício é
fechado, e há uma regra rigidíssima que proíbe seja quem for de ali aceder - adivinhou a
pergunta de Guilherme e acrescentou logo, mas claramente contrariado -, incluindo os
monges naturalmente, mas...

- Mas?
- Mas excluo absolutamente, absolutamente, entendeis, que um servo tenha tido a
coragem de ali penetrar de noite. - Nos seus olhos passou como que um sorriso de
desafio, mas foi rápido como o relâmpago ou uma estrela cadente. - Digamos que teriam
medo, sabeis... por vezes as ordens dadas aos simples são reforçadas por alguma
ameaça, como o presságio que pode acontecer alguma coisa de terrível, e por força
sobrenatural, a quem desobedecer. Um monge, ao invés...
- Compreendo.
- Não só, mas um monge podia ter outras razões para se aventurar num lugar
interdito, quero dizer, razões... como dizer? Razoáveis, ainda que contrárias à regra...
Guilherme apercebeu-se do mal-estar do Abade e fez uma pergunta que talvez tivesse
em mira desviar o discurso mas que produziu um mal-estar não menos grande.
- Falando de um possível homicídio, haveis dito «e se fosse só esse». Que queríeis
dizer?
- Disse isso? Pois bem, não se mata sem uma razão, por mais perversa que seja. E
tremo à idéia da perversidade das razões que podem ter levado um monge a matar um
confrade. Aqui está. É assim.
- Não há mais nada?
- Não há mais nada que eu vos possa dizer.
- Quereis dizer que não há mais nada que vós tenhais poder para dizer?
- Por favor, frade Guilherme, irmão Guilherme.
E o Abade acentuou tanto frade como irmão. Guilherme corou vivamente e comentou:
- Eris sacerdos in aeternum.
- Obrigado - disse o Abade.

Ó Senhor Deus, que mistério terrível afloraram naquele momento os meus imprudentes
superiores, impelido um pela angústia e outro pela curiosidade. Porque, noviço que se
iniciava nos mistérios do santo sacerdócio de Deus, também eu, humilde criança,
compreendi que o Abade sabia alguma coisa, mas tinha-o ouvido sob o segredo da
confissão. Ele devia ter sabido dos lábios de alguém qualquer pormenor pecaminoso que
podia ter relação com o trágico fim de Adelmo. Por isso, pedia talvez a frade Guilherme
que descobrisse um segredo de que ele suspeitava sem poder revelá-lo a ninguém, e
esperava que o meu mestre fizesse luz com as forças do intelecto sobre tudo quanto ele
devia envolver em sombra por força do sublime império da caridade.
- Bem - disse então Guilherme -, posso fazer perguntas aos monges?
- Podeis.
- Posso andar livremente pela abadia?
- Confiro-vos essa faculdade.
- Investir-me-eis desta missão coram monachis?
- Esta noite mesmo.
- Começarei hoje porém, antes que os monges saibam do que me haveis encarregado.
E além disso desejava muito, e não é a menor razão da minha passagem por aqui, visitar
a vossa biblioteca, de que se fala com admiração em todas as abadias da cristandade.

O Abade levantou-se quase de um salto, com o rosto muito tenso.
- Podeis andar por toda a abadia, disse-vos. Não certamente pelo último andar do
Edifício, na biblioteca.
- Porquê?
- Devia ter-vo-lo explicado primeiro, e pensava que o soubésseis. Vós sabeis que a
nossa biblioteca não é como as outras...
- Sei que tem mais livros do que qualquer outra biblioteca cristã. Sei que ao lado dos
vossos armaria os de Bobbio ou de Pomposa, de Cluny ou de Fleury parecem o quarto de
uma criança que mal se tenha iniciado no ábaco. Sei que os seis mil códices de que se
orgulhava Novalesa há mais de cem anos são pouco ao lado dos vossos, e talvez muitos
deles estejam agora aqui. Sei que a vossa abadia é a única luz que a cristandade pode
opor às trinta e seis bibliotecas de Bagdad, aos dez mil códices do vizir Ibn al-Alkami,
que o número das vossas bíblias iguala os dois mil e quatrocentos corões de que se
orgulha o Cairo, e que a realidade dos vossos armaria é luminosa evidência contra a
soberba lenda dos infiéis que há anos afirmavam (íntimos como são do príncipe da
mentira) que a biblioteca de Trípoli era rica de seis milhões de volumes e habitada por
oitenta mil comentadores e duzentos escribas.
- Assim é, sejam dados louvores ao céu.
- Sei que dos monges que vivem entre vós muitos vêm de outras abadias dispersas por
todo mundo: uns por pouco tempo, para copiarem manuscritos impossíveis de encontrar
noutros lugares e para os levarem depois para as próprias sedes, não sem vos terem
trazido em troca algum outro manuscrito que vós copiareis e inserireis no vosso tesouro;
e outros por longo tempo, para aqui ficarem por vezes até à morte, porque só aqui
podem encontrar as obras que iluminam a sua pesquisa. E portanto tendes entre vós
germanos, dácios, hispanos, franceses e gregos. Sei que o imperador Frederico, há
muitos e muitos anos, vos pediu que lhe compilásseis um livro sobre as profecias de
Merlim e depois o traduzísseis em árabe, para o enviar como presente ao sultão do Egipto.

Sei enfim que uma abadia gloriosa como Murbach, nestes tempos tão tristes, já não tem
um único escriba, que em San Gallo ficaram poucos monges que sabem escrever, que
agora é nas cidades que surgem corporações e gildas compostas por seculares que
trabalham para as universidades, e que só a vossa abadia renova dia a dia. Que digo?
Eleva a fastigios sempre mais altos as glórias da vossa ordem...
- Monasterium sine libris - citou absorto o Abade - est sicut civitas sine opibus,
castrum sine numeris, coquina sine supellectili, mensa sine cibis, hortus sine herbis,
pratum sine floribus, arbor sine foliis... E a nossa ordem, crescendo em torno ao duplo
mandamento do trabalho e da oração, foi luz para todo o mundo conhecido, reserva de
saber, salvação de uma doutrina antiga que ameaçava desaparecer em incêndios, saques
e terremotos, forja de nova escrita e incremento da antiga... Oh, vós bem sabeis,
vivemos agora em tempos muitos obscuros, e coro ao dizer-vos que não há muitos anos o
concílio de Viena teve de recordar que todo o monge tem o dever de tomar ordens...

Quantas das nossas abadias, que há duzentos anos eram centros resplandecentes de
grandeza e santidade, são agora refúgio de mandriões. A ordem é ainda poderosa, mas o
fedor das cidades cinge de perto os nossos lugares santos, o povo de Deus inclina-se
agora para o comércio e para as guerras de facções, lá em baixo, nos grandes centros
habitados, onde não pode ter abrigo o espírito da santidade, não só se fala (que aos
leigos não se poderia pedir outra coisa) mas já se escreve em língua vulgar, e Oxalá que
nenhum destes volumes jamais possa entrar nas nossas muralhas... fonte de heresia
como se torna fatalmente pelos pecados dos homens o mundo está suspenso à beira do
abismo, penetrado pelo mesmo abismo que o abismo invoca. E amanhã, como afirmava
Honório, os corpos dos homens serão mais pequenos que os nossos, tal como os nossos
são mais pequenos que os dos antigos. Mundus senescit. Ora se Deus confiou à nossa
ordem uma missão, ela é a de se opor a esta corrida para o abismo, conservando,
repetindo e defendendo o tesouro de sabedoria que os nossos pais nos confiaram. A
divina Providência ordenou que o governo universal, que no princípio do mundo era no
oriente, à medida que o tempo se avizinha se deslocasse para ocidente, para nos avisar
que o fim do mundo se aproxima, porque o curso dos acontecimentos já atingiu o limite
do universo. Mas enquanto não acabar definitivamente o milênio, enquanto não triunfar,
embora por pouco, a besta imunda que é o Anticristo, cabe-nos a nós defender o tesouro
do mundo cristão, e a própria palavra de Deus, tal como ele a ditou aos profetas e aos
apóstolos, tal como os padres a repetiram sem lhe mudar o verbo, tal como as escolas
procuraram glosar, embora hoje nas próprias escolas se aninhe a serpente da soberba, da
inveja, da insensatez. Neste ocaso nós somos ainda fachos e luz alta no horizonte. E
enquanto estas muralhas resistirem, nós seremos a custódia da Palavra divina.

- Assim seja - disse Guilherme em tom devoto. - Mas que tem a ver isso com o fato de
não se poder visitar a biblioteca?
- Vede, frade Guilherme - disse o Abade -, para poder realizar a obra imensa e santa
que enriquece aquelas muralhas - e apontou para a mole do Edifício, que se entrevia das
janelas da cela, pontificando acima da própria igreja abacial -, homens devotos
trabalharam durante séculos, seguindo regras de ferro. A biblioteca nasceu segundo um
desígnio que permaneceu obscuro para todos através dos séculos e que nenhum dos
monges é chamado a conhecer. Só o bibliotecário recebeu o seu segredo do bibliotecário
que o precedeu, e comunica-o, ainda em vida, ao bibliotecário ajudante, de modo que a
morte não o surpreenda privando a comunidade daquele saber. E os lábios de ambos
estão selados pelo segredo. Só o bibliotecário, além de saber, tem o direito de se mover
no labirinto dos livros, só ele sabe onde encontrá-los e onde repô-los, só ele é
responsável pela sua conservação. Os outros monges trabalham no scriptorium e podem
conhecer o elenco dos volumes que a biblioteca encerra. Mas um elenco de títulos
freqüentemente diz muito pouco, só o bibliotecário sabe, pela colocação do volume,
pelo grau da sua inacessibilidade, que tipo de segredos, de verdades ou de mentiras o
volume encerra. Só ele decide como, quando e se o fornece ao monge que faz a sua
requisição, por vezes depois de me ter consultado. Porque nem todas as verdades são
para todos os ouvidos, nem todas as mentiras podem ser reconhecidas como tais por um
espírito piedoso, e os monges, enfim, estão no scriptorium para levar a cabo uma obra
precisa, para a qual devem ler certos volumes e não outros, e não para seguir qualquer
insensata curiosidade que os colha, quer por debilidade da mente, quer por soberba,
quer por sugestão diabólica.

- Portanto, também há na biblioteca livros que contêm mentiras...
- Os monstros existem porque fazem parte dos desígnios divinos, e até nas horríveis
façanhas dos monstros se revela a potência do Criador. Assim, por desígnio divino,
existem também os livros dos magos, as cabalas dos judeus, as fábulas dos poetas
pagãos, as mentiras dos infiéis. Foi firme e santa convicção daqueles que quiseram e
sustentaram esta abadia através dos séculos que até nos livros mentirosos pode
transparecer, aos olhos do leitor sagaz, uma pálida luz da sapiência divina. E por isso
também desses a biblioteca é escrínio. Mas precisamente por isso, compreendeis, não
pode penetrar nela qualquer um. E além disso - acrescentou o Abade, quase a desculparse
da insuficiência deste último argumento -, o livro é criatura frágil, sofre a usura do
tempo, teme os roedores, as intempéries, as mãos inábeis. Se durante centenas de anos
qualquer um tivesse podido livremente tocar nos nossos códices, a maior parte deles já
não existiria. O bibliotecário defende-os portanto não só dos homens mas também da
natureza, e dedica a sua vida a esta guerra contra as forças do esquecimento, inimigo da
verdade.

- Assim, ninguém, salvo duas pessoas, entra no último andar do Edifício...
O Abade sorriu:
- Ninguém deve. Ninguém pode. Ninguém, querendo, o conseguiria. A biblioteca
defende-se por si, insondável como a verdade que acolhe, enganosa como a mentira que
encerra. Labirinto espiritual, é também labirinto terreno. Poderíeis entrar e poderíeis
não sair. E, dito isto, queria que vos adequásseis às regras da abadia.
- Mas vós não excluístes que Adelmo pode ter-se precipitado por uma das janelas da
biblioteca. E como posso raciocinar sobre a sua morte se não vir o lugar em que podia ter
início a história da sua morte?
- Frade Guilherme - disse o Abade em tom conciliador -, um homem que descreveu o
meu cavalo Brunello sem o ver e a morte de Adelmo sem dela saber quase nada não terá
dificuldade em raciocinar sobre lugares a que não tem acesso.
Guilherme inclinou-se numa reverência:

- Sois sábio mesmo quando sois severo. Como quiserdes.
- Se acaso fosse sábio, sê-lo-ia porque sei ser severo - respondeu o Abade.
- Uma última coisa - pediu Guilherme. - Ubertino?
- Está aqui. Espera-vos. Encontrá-lo-eis na igreja.
- Quando?
- Sempre - sorriu o Abade. - Sabeis que, embora muito douto, não é homem para
apreciar a biblioteca. Considera-a uma tentação do século... Está quase sempre na igreja
a meditar, a rezar...
- Está velho? - perguntou Guilherme, hesitando.
- Há quanto tempo não o vedes?
- Há muitos anos.
- Está cansado. Muito desligado das coisas deste mundo. Tem sessenta e oito anos. Mas
creio que tem ainda o espírito da sua juventude.
- Vou já procurá-lo, agradeço-vos.
O Abade perguntou-lhe se não queria unir-se à comunidade para almoçar, depois de
sexta. Guilherme disse que tinha acabado de comer, e muito confortavelmente, e que
preferia ver imediatamente Ubertino. O Abade despediu-se.
Ia a sair da cela quando se elevou do pátio um uivo lancinante, como de pessoa ferida
de morte, a que se seguiram outros lamentos igualmente atrozes.
- O que é?! - perguntou Guilherme, desconcertado.
- Nada - respondeu o Abade, sorrindo. - Nesta época estão a matar os porcos. Um
trabalho para os porqueiros. Não é deste sangue que deveis ocupar-vos.
Saiu, e não deu razão à sua fama de homem avisado. Porque na manhã seguinte... Mas
refreia a tua impaciência, minha língua petulante. Porque no dia de que falo, e antes da
noite, aconteceram ainda muitas coisas que será bom referir.

PRIMEIRO DIA

SEXTA

Onde Adso admira o portal da igreja e Guilherme reencontra Ubertino de Casale.
A igreja não era majestosa como outras que vi em seguida em Estrasburgo, em
Chartres, em Bamberg e em Paris. Assemelhava-se mais àquelas que já tinha visto na
Itália, pouco propensas a elevar-se vertiginosamente para o céu e solidamente pousadas
em terra, freqüentemente mais largas que altas; a não ser que, a um primeiro nível, ela
era coroada, como uma fortaleza, por uma série de ameias quadradas, e acima deste
andar elevava-se uma segunda construção, mais do que uma torre, uma sólida segunda
igreja, encimada por um telhado em forma de ponta e perfurada de severas janelas.
Robusta igreja abacial como as que construíam os nossos antigos na Provença e
Languedoc, longe das ousadias e do excesso de ornatos próprios do estilo moderno, que
só em tempos mais recentes, creio, se tinha enriquecido sobre o coro, com uma agulha
ousadamente apontada para a abóbada celeste.
Duas colunas direitas e polidas enquadravam a entrada, que aparecia à primeira vista
como um único grande arco: mas das colunas partiam dois contrafortes que, coroados
por outros e múltiplos arcos, conduziam o olhar, como no coração de um abismo, para o
verdadeiro e autêntico portal, que se entrevia na sombra, encimado por um grande
tímpano, sustentado aos lados por dois pés-direitos e ao centro por um pilar esculpido,
que subdividia a entrada em duas aberturas, defendidas por portas de carvalho
reforçadas de metal. Àquela hora do dia, o sol pálido batia quase a pique sobre o telhado
e a luz caía obliquamente sobre a fachada sem iluminar o tímpano: de modo que,
passadas as duas colunas, nos achamos logo debaixo da abóbada quase silvestre das
arcadas que partiam da seqüência de colunas menores que proporcionalmente
reforçavam os contrafortes. Habituados finalmente os olhos à penumbra, logo o mudo
discurso da pedra historiada, acessível como era imediatamente à vista e à fantasia de
qualquer um (porque picture est laicorum literature), fulminou o meu olhar e mergulhoume
numa visão de que ainda hoje a custo a minha língua consegue falar.
Vi um bono colocado no céu e alguém sentado no bono. O rosto do Sentado era severo
e impassível, os olhos arregalados e dardejantes sobre uma humanidade terrestre que
chegara ao fim da sua aventura, os cabelos e a barba majestosos que lhe caíam sobre o
rosto e o peito como as águas de um rio, em ribeiros todos iguais e simetricamente
bipartidos. A coroa que usava na cabeça era rica de esmaltes e de gemas, a túnica
imperial cor de púrpura dispunha-se-lhe em amplas volutas sobre os joelhos, tecida de
bordados e rendas em fios de ouro e de prata. A mão esquerda, pousada sobre os
joelhos, segurava um livro selado, a direita elevava-se em atitude não sei se de bênção
ou de ameaça. O rosto era iluminado pela tremenda beleza de um nimbo cruciforme e
florido, e vi brilhar em torno do bono e sobre a cabeça do Sentado um arco-íris de
esmeralda. Diante do bono, sob os pés do Sentado, corria um mar de cristal, e em torno
do Sentado, em torno do bono e sobre o bono quatro animais terríveis – vi -, terríveis
pare mim que os olhava extasiado, mas dóceis e dulcíssimos pare o Sentado, a quem
cantavam louvores sem descanso.
Ou melhor, nem todos se podiam dizer terríveis, porque me pareceu belo e gentil o
homem que à minha esquerda (e à direita do Sentado) estendia um livro. Mas, do lado
oposto, pareceu-me horrenda uma águia, de bico dilatado, plumas hirtas dispostas em
loriga, garras possantes, grandes asas abertas. E aos pés do Sentado, por baixo das duas
primeiras figures, outras duas, um touro e um leão, cada um dos dois monstros
apertando entre as garras e os cascos um livro, com o corpo voltado pare o exterior mas
a cabeça pare o bono, como torcendo o dorso e o pescoço num ímpeto feroz, flancos
palpitantes, as patas de animal que agonize, as faces escancaradas, as caudas enroladas
e retorcidas como serpentes e terminando na ponta em línguas de fogo. Ambos alados,
ambos coroados por um nimbo, apesar da sua aparência formidável não eram criaturas
do inferno, mas do céu, e se pareciam tremendas era porque rugiam em adoração do
Vindouro que julgaria os vivos e os mortos.

Em torno do bono, ao lado dos quatro animais e sob os pés do Sentado, como vistos à
transparência sob as águas do mar de cristal, enchendo quase todo o espaço da visão,
compostos segundo a estrutura triangular do tímpano, elevando-se de uma base de sete
mais sete, depois a três mais três e depois a dois mais dois, ao lado do bono, estavam
vinte e quatro velhos, em vinte e quatro pequenos tronos, revestidos de vestes brancas e
coroados de ouro. Um tinha na mão uma viola, outro uma taça de perfumes, e só um
tocava, todos os outros arrebatados em êxtase, com o rosto voltado para o Sentado, a
quem cantavam louvores, os membros também eles contorcidos como os dos animais, de
modo que pudessem todos ver o Sentado, não de modo bestial mas sim com movimentos
de dança extática - como deve ter dançado David em torno da arca -, de modo que, onde
quer que estivessem as suas pupilas, contra a lei que governava a estatura dos corpos,
convergissem para o mesmo ponto fulgurante. Oh, que concerto de abandonos e de
impulsos, de posições antinaturais e no entanto graciosas naquela mística linguagem de
membros miraculosamente libertados do peso da matéria corpórea, signata quantidade
infundida de nova forma substancial, como se o sagrado tropel fosse batido por um vento
impetuoso, sopro de vida, frenesi de deleite, júbilo de aleluia transformado
prodigiosamente, de som que era, em imagem.
Corpos e membros habitados pelo Espírito, iluminados pela revelação, perturbados os
rostos pelo espanto, exaltados os olhares pelo entusiasmo, inflamadas as faces pelo
amor, dilatadas as pupilas pela beatitude, fulminado um por uma deleitosa
consternação, transido outro por um consternado deleite, um transfigurado pela
admiração, outro rejuvenescido pelo gáudio, ei-los todos a cantar com a expressão dos
rostos, com o panejamento das túnicas, com o aspecto e a tensão dos membros, um
cântico novo, os lábios entreabertos num sorriso de louvor perene. E sob os pés dos
velhos, arqueados sobre eles e sobre o trono e sobre o grupo tetramorfo, dispostos em
grupos simétricos, a custo distinguíveis um do outro, tanto a sapiência da arte os tinha
tornado todos mutuamente proporcionais, iguais na variedade e variados na unidade,
únicos na diversidade e diversos na sua própria coadunação, em admirável congruência
das partes com deleitável suavidade de tintas, milagre de consonância e concórdia de
vozes dissemelhantes entre si, conjunto disposto como as cordas da cítara, consenciente
e conspirante continuada cognação por profunda e interna força própria para operar o
unívoco no próprio jogo alternado dos equívocos, ornato e cotejo de criaturas
irredutíveis umas às outras e umas às outras reduzidas, obra de amorosa conexão regida
por uma regra celeste e mundana a um tempo (vínculo e estável nexo de paz, amor,
virtude, regime, potestade, ordem, origem, vida, luz, esplendor, espécie e figura),
equidade numerosa resplandecente pelo reluzir da forma sobre as partes proporcionadas
da matéria - eis que se entrelaçavam todas as flores e as folhas e as gavinhas e os ramos
e os corimbos de todas as ervas com que se adornam os jardins da terra e do céu, a
violeta, o cítiso, o serpil, o lírio, o ligustro, o narciso, a colocásia, o acanto, o
malobatro, a mirra e os hopobálsamos.
Mas enquanto a minha alma, arrebatada por aquele concerto de belezas terrenas e de
majestosos sinais sobrenaturais, estava prestes a explodir num cântico de alegria, o
olhar, acompanhando o ritmo proporcionado das rosáceas floridas aos pés dos velhos,
caiu sobre as figuras que, entrelaçadas, formavam uma só com o pilar central que
sustinha o tímpano. O que eram e que simbólica mensagem comunicavam aqueles três
pares de leões entrelaçados em cruz transversalmente disposta, rompantes como arcos,
fincando as patas posteriores no terreno e apoiando as anteriores no dorso do próprio
companheiro, com a juba eriçada em volutas anguitormes, a boca aberta num rosnar
ameaçador, ligados ao próprio corpo do pilar por um molho, ou um ninho, de gavinhas?

Para acalmar o meu espírito, como estavam postos talvez para amestrar a natureza
diabólica dos leões e transformá-la em simbólica alusão às coisas superiores, dos lados
dos pilares estavam duas figuras humanas, tão desnaturadamente longas como a própria
coluna e gêmeas de outras duas que simetricamente, de ambos os lados, lhes ficavam de
frente nos pés-direitos historiados dos lados externos, onde cada uma das portas de
carvalho tinha os seus estípites: eram pois quatro figuras de velhos, por cujos parafernais
reconheci Pedro e Paulo, Jeremias e Isaías, contorcidos também eles como num passo de
dança, as longas mãos ossudas levantadas de dedos tensos como asas, e como asas as
barbas e os cabelos movidos por um vento profético, as pregas das vestes longuíssimas
agitadas pelas longuíssimas pernas dando vida a ondas e voltas, opostos aos leões mas da
mesma matéria dos leões. E, enquanto desviava o olhar fascinado por aquela enigmática
polifonia de membros santos e de músculos internais, vi ao lado do portal, e debaixo das
profundas arcadas, por vezes historiados nos contra-fortes do espaço entre as delicadas
colunas que as sustinham e adornavam, e ainda sobre a densa vegetação dos capitéis de
cada coluna, e dali ramificando-se para a abóbada silvestre das múltiplas arcadas, outras
visões horríveis de ver, e justificadas naquele lugar só pela sua força parabólica e
alegórica ou pelo ensinamento moral que transmitiam: vi uma mulher luxuriosa nua e
descarnada, roída por sapos imundos, sugada por serpentes, acasalada com um sátiro de
ventre inchado e pernas de grifo cobertas de pêlos hirsutos, a goela obscena, que gritava
a sua própria danação, e vi um avaro, rígido da rigidez da morte, sobre o seu leito de
suntuosas colunas, agora presa débil de uma corte de demônios, um dos quais lhe
arrancava da boca agonizante a alma em forma de infante (ai, jamais nascituro para a
vida eterna), e vi um orgulhoso a cujos ombros trepava um demônio fincando-lhe as
garras nos olhos, enquanto outros dois gulosos se despedaçavam num corpo a corpo
repugnante, e outras criaturas ainda, com cabeça de bode, pêlo de leão, faces de
pantera, prisioneiros numa selva de chamas cujo hálito ardente quase se podia sentir.

E em torno deles, misturados com eles, sobre eles e debaixo dos seus pés, outros rostos e
outros membros, um homem e uma mulher que se agarravam pelos cabelos, duas áspides
que sugavam os olhos de um danado, um homem de riso maligno que dilatava com as
mãos aduncas as faces de uma hidra, e todos os animais do bestiário de Satanás,
reunidos em consistório e postos em guarda e coroa do bono que lhes ficava defronte,
pare lhe cantarem a glória com a sue derrota, faunos, seres de duplo sexo, brutos de
mãos com seis dedos, sereias, hipocentauros, górgonas, harpias, íncubos,
dragontopóides, minotauros, linces, leopardos, quimeras, cenóperos de focinho de cão
que lançavam fogo pelas narinas, dentotiranos, policaudados, serpentes peludas,
salamandras, cerastas, quelidros, cobras, bicípites de dorso armado de dentes, hienas,
lontras, gralhas, crocodilos, hidropos de cornos em forma de serra, rãs, grifos, símios,
cinocéfalos, leucrotos, mantícoras, abutres, parandros, doninhas, dragões, poupas,
corujas, basiliscos, hipnálios, prestérios, spectafigos, escorpiões, sáurios, cetáceos,
cítalos, anfisbenas, jáculos, dipsádios, sardões, rémoras, polvos, moreias e tartarugas.

Toda a população dos infernos parecia ter marcado encontro pare fazer de vestíbulo,
selva obscura, charneca desesperada da exclusão, à aparição do Sentado do tímpano, ao
seu rosto promitente e ameaçador, eles, os vencidos do Armagedão, defronte a quem
virá separar definitivamente os vivos dos mortos. E desfalecido (quase) por aquela visão,
já sem saber se me encontrava num lugar amigo ou no vale do juízo final, aterrorizei-me,
e a custo contive o pranto, e pareceu-me ouvir (ou ouvi deveras?) a voz e vi as visões que
tinham acompanhado a minha infância de noviço, as minhas primeiras leituras dos livros
sagrados e as noites de meditação no coro de Melk, e no delíquio dos meus sentidos
debilíssimos e debilitados ouvi uma voz potente como de tromba que dizia «aquilo que
vês escreve-o num livro» (o que agora estou fazendo), e vi sete lâmpadas de ouro e no
meio das lâmpadas uma semelhante ao filho de homem, cingido no peito com uma faixa
de ouro, alvos a cabeça e os cabelos com alva lã, os olhos como chama de fogo, os pés
como bronze ardente na fornalha, a voz como o fragor de muitas águas, e segurava na
direita sete estrelas e da boca saía-lhe uma espada de dois gumes. E vi uma porta aberta
no céu, e Aquele que estava sentado pareceu-me como de jaspe e sardônio, e uma íris
envolvia o bono e do bono saíam relâmpagos e trovões. E o Sentado tomou nas mãos uma
foice afiada e gritou: «Vibra a tua foice e ceifa, chegou a hora de ceifar porque está
madura a messa da terra»; e Aquele que estava sentado vibrou a sua foice e a terra foi
ceifada.

Foi então que compreendi que de outra coisa não falava a visão senão de quanto
estava a acontecer na abadia e tínhamos colhido dos lábios reticentes do Abade - e
quantas vezes nos dias seguintes não voltei a contemplar o portal, seguro de viver a
própria história que ele contava. E compreendi que tínhamos subido até ali para ser
testemunhas de uma grande e celeste carnificina.
Tremi, como se estivesse molhado pela chuva gélida do inverno. E ouvi ainda uma
outra voz, mas desta vez ela vinha das minhas costas e era uma voz diferente, porque
partia da terra e não do centro fulgurante da minha visão; ou melhor, despedaçava a
visão, porque também Guilherme (naquele momento apercebi-me da sua presença), até
então perdido também ele na contemplação, se voltava como eu.
O ser que estava atrás de nós parecia um monge, embora a túnica suja e rasgada o
fizesse assemelhar antes a um vagabundo, e o seu rosto não era diferente do dos
monstros que tinha acabado de ver nos capitéis. Nunca me aconteceu na vida, como ao
invés aconteceu a muitos dos meus confrades, ser visitado pelo diabo, mas creio que se
ele me aparecesse um dia, incapaz por decreto divino de ocultar plenamente a sua
natureza, mesmo quando quisesse fazer-se semelhante ao homem, ele não teria feições
diferentes das que me apresentava naquele instante o nosso interlocutor. A cabeça
raspada, não por penitência mas sim pela ação remota de algum viscoso eczema, a testa
tão baixa que se ele tivesse cabelos na cabeça estes se teriam confundido com as
sobrancelhas (que tinha espessas e revoltas), os olhos eram redondos, de pupilas
pequenas e movediças, e o olhar não sei se inocente ou maligno, e talvez ambas as
coisas, a espaços e em momentos diversos. Não se podia falar de nariz a não ser porque
um osso partia do meio dos olhos, mas, como se destacava do rosto, logo reentrava, não
se tornando mais do que duas escuras cavernas, narinas dilatadas e cheias de pêlos. A
boca, unida às narinas por uma cicatriz, era larga e desajeitada, mais esticada à direita
do que à esquerda, e entre o lábio superior, inexistente, e o inferior, proeminente e
carnudo, emergiam com ritmo irregular dentes negros e aguçados como os de um cão.
O homem sorriu (ou pelo menos assim julguei) e, levantando o dedo como para
admoestar, disse:

- Penitenciagite! Vide quando draco venturus est para roê-la a tua alma! A mortz est
super nos! Reza que vem o papa santo para livrar nos a malo de todas as peccata! Ah, ah,
gostais d'ista necromancia de Domini Nostri Iesu Christi! Et mesmo jois m'es dols e plazer
m'es dolors... Cave el diablo! Semper m'espreita em qualquer canto para me ferrar os
calcanhares. Mas Salvador non est insipiens! Bonum monasterium, e aqui se manja e se
roga dominum nostrum. Et el resto valet um figo seco. Et amen. No?
Devo, no prosseguimento desta história, falar ainda, e muito, desta criatura e referir
os seus discursos. Confesso que me é muito difícil fazê-lo, porque não saberei dizer
agora, como nunca compreendi então, que gênero de língua ele falava. Não era latim,
língua em que nos exprimíamos entre homens de letras na abadia, não era a língua vulgar
daquelas terras, nem outra vulgar que jamais tivesse ouvido. Creio ter dado uma pálida
idéia do seu modo de falar referindo acima (tal como as recordo) as primeiras palavras
que lhe ouvi. Quando mais tarde soube da sua vida aventurosa e dos vários lugares onde
tinha vivido, sem encontrar raízes em nenhum, dei-me conta que Salvador falava todas
as línguas e nenhuma. Ou melhor, tinha inventado uma língua própria usando os pedaços
das línguas com que tinha entrado em contato - e uma vez pensei que a sua era não a
língua adâmica que a humanidade feliz tinha falado, todos unidos por um só falar, desde
as origens do mundo até à Torre de Babel, e nem sequer uma das línguas surgidas depois
do funesto evento da sua divisão, mas precisamente a língua babélica do primeiro dia
depois do castigo divino, a língua da confusão primeva. Nem por outro lado poderia
chamar língua ao falar de Salvador, porque em todas as línguas humanas há regras e cada
termo significa ad placitum uma coisa, segundo uma lei que não muda, porque o homem
não pode chamar ao cão uma vez cão e outra gato nem pronunciar sons aos quais o
consenso das pessoas não tenha atribuído um sentido definido, como aconteceria a quem
dissesse a palavra «blitiri». E todavia, bem ou mal, eu compreendia o que Salvador
queria dizer, e os outros também. Sinal de que ele falava não uma mas todas as línguas,
nenhuma de modo justo, tirando as suas palavras ora duma ora doutra. Apercebi-me
porém em seguida que ele podia nomear uma coisa ora em latim ora em provençal, e dei
conta que, mais do que inventar as suas próprias frases, ele usava disiecta membra de
outras frases, ouvidas um dia, segundo as situações e as coisas que queria dizer, como se
só conseguisse falar de um alimento, creio, com as palavras das gentes junto das quais
tinha comido esse alimento, e exprimir a sua alegria só com sentenças que tinha ouvido
emitir a gente alegre, no dia em que ele tinha sentido igual alegria. Era como se o seu
falar fosse a imagem da sua cara, feita com pedaços de caras alheias, ou como vi por
vezes preciosos relicários (silicet magnis componere parva, ou às coisas divinas as
diabólicas) que nasciam dos detritos de outros objetos sacros. No momento em que o
encontrei pela primeira vez, Salvador apareceu-me, não só pelo seu rosto mas também
pelo seu modo de falar, um ser não dissemelhante dos cruzamentos pelosos e ungulados
que tinha acabado de ver sob o pórtico. Mais tarde compreendi que era talvez um
homem de bom coração e humor faceto. Mais tarde ainda... Mas vamos por ordem. Até
porque, mal ele tinha acabado de falar, o meu mestre interrogou-o com muita
curiosidade.

- Porque disseste penitenciagite? - perguntou.
- Domine frate magnificentisimo - respondeu Salvador com uma espécie de vênia -
Jesus venturus est et os homini debent facere penitentia. No?
Guilherme olhou-o fixamente:
- Vieste para aqui de algum convento de menoritas?
- No entendo.
- Pergunto se viveste com os frades de São Francisco, pergunto se conheceste os
chamados apóstolos...
Salvador empalideceu, ou melhor, o seu rosto bronzeado e beluíno tornou-se cinzento.
Fez uma profunda vênia, pronunciou a meia voz um «vade retro», persignou-se
devotamente e fugiu voltando-se para trás de quando em quando.
- Que lhe haveis perguntado? - perguntei a Guilherme.
Ele ficou um pouco pensativo.
- Não importa, digo-to depois. Agora entremos. Quero ver Ubertino.
Pouco passava da hora sexta. O sol, pálido, penetrava de ocidente, e assim por poucas
e estreitas janelas, no interior da igreja. Uma tênue faixa de luz tocava ainda o altarmor,
cujo frontal me pareceu reluzir com um fulgor áureo. As naves laterais estavam
imersas na penumbra.
Junto da última capela antes do altar, na nave da esquerda, erguia-se uma delicada
coluna, sobre a qual estava uma Virgem de pedra, esculpida no estilo dos modernos, de
sorriso inefável, ventre proeminente, o menino nos braços, vestida de um traje gracioso,
com um fino colete. Aos pés da Virgem, em oração, quase prostrado, estava um homem,
vestido com o hábito da ordem clunicense.

Aproximamo-nos. O homem, ouvindo o ruído dos nossos passos, levantou o rosto. Era
um velho, de rosto glabro, crânio sem cabelos, grandes olhos azuis, uma boca fina e
vermelha, a pele alva, o crânio ossudo a que a pele aderia como se fosse uma múmia
conservada em leite. As mãos eram brancas, de dedos longos e finos. Parecia uma
menina emurchecida por uma morte precoce. Pousou sobre nós um olhar primeiro
perdido, como se o tivéssemos perturbado numa visão extática, depois o rosto iluminou-se-lhe de alegria.

- Guilherme! - exclamou. - Meu caríssimo irmão! - Levantou-se com dificuldade e foi
ao encontro do meu mestre, abraçando-o e beijando-o na boca. – Guilherme! - repetiu, e
os olhos umedeceram-se-lhe de pranto. - Quanto tempo! Mas ainda te reconheço! Quanto
tempo quantas vicissitudes! Quantas provas que o Senhor nos impôs!
Chorou. Guilherme retribuiu-lhe o abraço, visivelmente comovido. Encontrávamo-nos
diante de Ubertino de Casale.
Já tinha ouvido falar dele e longamente, ainda antes de vir para a Itália, e mais ainda
quando freqüentava os franciscanos da corte imperial. Alguém me tinha até dito que o
maior poeta daqueles tempos, Dante Alighieri de Florença, morto há poucos anos, tinha
composto um poema (que eu não pude ler porque estava escrito em língua vulgar
toscana) em que tinham posto a mão, o céu e a terra, e muitos dos seus versos não eram
mais do que uma paráfrase de textos escritos por Ubertino no seu Arbor vitae crucifixae.

E não era este o único título de mérito daquele homem famoso. Mas para permitir ao
meu leitor compreender melhor a importância daquele encontro terei de procurar
reconstituir as vicissitudes daqueles anos, tal como as tinha compreendido durante a
minha breve estada na Itália Central por palavras dispersas do meu mestre e ouvindo os
muitos colóquios que Guilherme tivera com abades e monges no decurso da nossa
viagem.
Procurarei dizer o que tinha compreendido, ainda que não tenha a certeza de dizer
bem estas coisas. Os meus mestres de Melk tinham-me dito freqüentemente que é muito
difícil para um nórdico ter idéias claras sobre as vicissitudes religiosas e políticas da
Itália.

A península, onde o poder do clero era mais evidente do que em qualquer outro país e
onde, mais do que em qualquer outro país, o clero ostentava poder e riqueza, tinha
gerado há pelo menos dois séculos movimentos de homens tendentes a uma vida mais
pobre, em polêmica com os padres corruptos, de quem recusavam até os sacramentos
reunindo-se em comunidades autônomas malvistas, ao mesmo tempo pelos senhores,
pelo império e pelas magistraturas citadinas.
Por fim tinha vindo São Francisco e tinha difundido um amor pela pobreza que não
contradizia os preceitos da Igreja, e por obra sua a Igreja tinha acolhido o apelo à
severidade de costumes daqueles antigos movimentos e tinha-os purificado dos
elementos de desordem que neles se aninhavam. Deveria ter-se seguido uma época de
brandura e de santidade, mas, como a ordem franciscana crescia e atraia a si os homens
melhores, tornava-se demasiado poderosa e ligada a assuntos terrenos, e muitos
franciscanos quiseram reconduzi-la à pureza do passado. Coisa bastante difícil para uma
ordem que, nos tempos em que eu estava na abadia, já contava mais de trinta mil
membros espalhados por todo o mundo. Mas assim é, e muitos destes frades de São
Francisco opunham-se à regra que a ordem se tinha dado, dizendo que a ordem já tinha
assumido as formas das instituições eclesiásticas para cuja reforma tinha nascido, e que
isto já tinha acontecido no tempo em que Francisco era vivo, e que as suas palavras e os
seus propósitos tinham sido traídos. Muitos deles descobriram então o livro dum monge
cisterciense que tinha escrito no início do século XII da nossa era, chamado Joaquim e a
quem se atribuía espírito de profecia. De fato, ele tinha previsto o advento de uma nova
era, em que o espírito de Cristo, há algum tempo corrompido por obra dos seus falsos
apóstolos, se realizaria de novo sobre a terra. E tinha anunciado tais prazos que a todos
parecera claro que ele falava sem o saber da ordem franciscana. E muitos franciscanos
tinham-se alegrado bastante com isto, parece que até de mais, tanto que a meio do
século em Paris os doutores da Sorbonne condenaram as proposições daquele abade
Joaquim, mas parece que o fizeram porque os franciscanos (e os dominicanos) estavam a
tornar-se demasiado poderosos e sapientes, na universidade de França, e queriam
eliminá-los como hereges. O que depois não se fez, e foi um grande bem para a Igreja,
porque isto permitiu que fossem divulgadas as obras de Tomás de Aquino e de
Boaventura de Bagnoregio, que certamente não eram hereges. Por isto se vê que
também em Paris as idéias estavam confusas, ou alguém queria confundi-las com fins
pessoais. E este é o mal que a heresia faz ao povo cristão, que torna obscuras as idéias e
leva todos a tornarem-se inquisidores pelo próprio bem pessoal. E tudo quanto vi mais
tarde na abadia e de que falarei depois) fez-me pensar que muitas vezes são os
inquisidores que criam os hereges. E não só no sentido de que os imaginam quando não
existem, mas porque reprimem com tanta veemência a corrupção herética que muitos
são levados a nela participar por ódio contra eles. Na verdade, um círculo imaginado
pelo demônio, que Deus nos salve.

Mas falava da heresia (se acaso o foi) joaquimita. E viu-se na Toscana um franciscano,
Gerardo de Borgo San Donnino, tornar-se o porta-voz das predições de Joaquim e
impressionar muito o ambiente dos frades menores. Surgiu assim entre eles uma ala de
defensores da regra antiga, contra a reorganização tentada pelo grande Boaventura, que
depois se tinha tornado geral da ordem. Nos últimos trinta anos do século passado,
quando o concílio de Lião, salvando a ordem franciscana contra quem a queria abolir, lhe
concedeu a propriedade de todos os bens que tinha em uso, como já era de lei para as
ordens mais antigas, alguns frades nas Marche rebelaram-se, porque consideravam que o
espírito da regra tinha sido definitivamente traído, na medida em que um franciscano
não deve possuir nada, nem pessoalmente, nem como convento, nem como ordem.
Meteram-nos na prisão para toda a vida. Não me parece que pregassem coisas contrárias
ao evangelho, mas quando entra em jogo a posse das coisas terrenas é difícil que os
homens raciocinem segundo a justiça. Disseram-me que, anos depois, o novo geral da
ordem, Raimundo Gaufredi, encontrou estes prisioneiros em Ancona e, libertando-os,
disse: «Quisesse Deus que todos nós e toda a ordem estivéssemos manchados com essa
culpa.» Sinal de que não é verdade aquilo que dizem os hereges e de que na Igreja
habitam ainda homens de grande virtude.

Estava entre estes prisioneiros libertados Angelo Clareno que se encontrou depois com
um frade da Provença, Pedro de João Olivi, que pregava as profecias de Joaquim, e
depois com Ubertino de Casale, e daí nasceu o movimento dos espirituais. Ascendia
naqueles anos ao trono pontifício um eremita santíssimo, Pedro de Morrone, que reinou
como Celestino V, e este foi acolhido com alívio pelos espirituais: «Aparecerá um santo»,
tinha-se dito, «e observará os ensinamentos de Cristo, terá uma vida angélica, tremei
prelados corruptos.» Talvez Celestino tivesse uma vida demasiado angélica, ou os
prelados à sua volta fossem demasiado corruptos, ou ele não conseguisse suportar a
tensão de uma guerra já demasiado longa com o imperador e com os outros reis da
Europa; o fato é que Celestino renunciou à sua dignidade e retirou-se num eremitério.
Mas no breve período do seu reinado, menos de um ano, as esperanças dos espirituais
foram todas satisfeitas: foram junto de Celestino, que fundou com eles a comunidade
dita dos fratres et pauperes heremitae domini Celestini. Por outro lado, enquanto o papa
tinha de fazer de mediador entre os mais poderosos cardeais de Roma, houve alguns
como um Colonna ou um Orsini, que secretamente apoiavam as novas tendências de
pobreza: escolha na verdade bastante curiosa para homens tão poderosos que viviam no
meio de comodidades e riquezas desmedidas, e nunca compreendi se simplesmente se
serviam dos espirituais para os seus fins de governo ou de algum modo se consideravam
justificados na sua vida carnal por apoiarem as tendências espirituais, e talvez fossem
verdade ambas as coisas, pelo pouco que eu compreendo das coisas italianas. Mas,
precisamente para dar um exemplo, Ubertino tinha sido acolhido como capelão pelo
cardeal Orsini quando, tendo-se tornado o mais escutado dos espirituais, corria o risco de
ser acusado como herege. E o próprio cardeal lhe tinha servido de escudo em Avinhão.
Como acontece porém em tais casos, por um lado Angelo e Ubertino pregavam
segundo a doutrina, por outro grandes massas de simples aceitavam esta sua pregação e
espalhavam-se pelo país, fora de qualquer controle. Assim a Itália foi invadida por estes
fraticelli, ou frades de vida pobre, que muitos consideravam perigosos. Então era difícil
distinguir os mestres espirituais, que mantinham contato com as autoridades
eclesiásticas, e os seus seguidores mais simples, que simplesmente viviam já fora da
ordem, pedindo esmola e vivendo dia a dia do trabalho das suas mãos, sem deter
propriedade alguma. Era a estes que a opinião pública então chamava fraticelli, pouco
diferentes dos beguinos franceses, que se inspiravam em Pedro de João Olivi.
Celestino V foi substituído por Bonifácio VIII, e este papa apressou-se em demonstrar
muito pouca indulgência para com os espirituais e fraticelli em geral: precisamente nos
últimos anos do século que findava assinou uma bula, Firma cautela, com a qual
condenava de um só golpe beatos, vagabundos mendicantes que erravam no limite
extremo da ordem franciscana e os próprios espirituais, ou melhor, aqueles que se
subtraíam à vida da ordem para se entregarem ao ermo.
Os espirituais tentaram depois obter o consenso de outros pontífices, como Clemente
V, para se poderem separar da ordem de modo não violento. Creio que o teriam
conseguido, mas o advento de João XXII tirou-lhes toda a esperança. Logo que foi eleito,
em 1316, ele escreveu ao rei da Sicília para que expulsasse estes frades das suas terras,
porque muitos ali se tinham refugiado, e mandou pôr a ferros Angelo Clareno e os
espirituais da Provença.

Não deve ter sido uma empresa fácil, e muitos na cúria lhe resistiram. O fato é que
Ubertino e Clareno conseguiram ser autorizados a abandonar a ordem e foram acolhidos
um pelos beneditinos e o outro pelos celestinos. Mas, para aqueles que continuaram a
seguir uma vida livre, João foi impiedoso e mandou-os perseguir pela inquisição, e
muitos foram queimados.
Ele tinha compreendido porém que para destruir a planta má dos fraticelli, que
minavam a base da autoridade da Igreja, era preciso condenar as proposições sobre as
quais eles baseavam a sua fé. Eles defendiam que Cristo e os apóstolos não tinham tido
propriedade alguma, nem individual nem comum, e o papa condenou como herética esta
idéia. Coisa surpreendente, porque não se vê por que razão um papa deve considerar
perversa a idéia de que Cristo era pobre: mas é que precisamente um ano antes se tinha
reunido o capítulo geral dos franciscanos, em Perugia, que tinha defendido esta opinião,
e, condenando uns, o papa condenava também o outro. Como já disse, o capítulo
causava grande prejuízo à sua luta contra o imperador, este é o fato. Assim, desde
então, muitos fraticelli, que nada sabiam nem do imperador nem de Perugia, morreram
queimados.
Pensava eu nestas coisas ao olhar para um personagem lendário como Ubertino. O meu
mestre tinha-me apresentado, e o velho tinha-me acariciado a face, com uma mão
quente, quase ardente. Ao toque daquela mão, eu tinha compreendido muitas das coisas
que tinha ouvido sobre aquele santo homem e outras que tinha lido nas páginas de Arbor
Vitae; compreendia o fogo místico que o tinha devorado desde a juventude, quando,
ainda estudante em Paris, se tinha retirado das especulações teológicas e tinha
imaginado que se transformara na Madalena penitente; e as relações tão intensas que
tinha mantido com Santa Angela de Foligno, que o tinha iniciado nos tesouros da vida
mística e na adoração da cruz; e porque os seus superiores um dia, preocupados com o
ardor da sua pregação, o tinham mandado retirar para Verna.
Perscrutava aquele rosto de traços suavíssimos como os da santa com quem tinha
estado em fraterno comércio de espiritualíssimos sentidos. Intuía que devia ter sabido
adotar traços bem mais duros quando, em 1311, o concílio de Viena, com a decretal Exivi
di paradiso, tinha eliminado os superiores franciscanos hostis aos espirituais, mas tinha
imposto a estes últimos que vivessem em paz no seio da ordem, e este campeão da
renúncia não tinha aceitado aquele prudente compromisso e tinha-se batido para que
fosse constituída uma ordem independente, inspirada no máximo rigor. Este grande
combatente tinha então perdido a sua batalha, porque naqueles anos João XXII
propugnava uma cruzada contra os seguidores de Pedro de João Olivi (entre os quais ele
próprio se contava) e condenava os frades de Narbona e Béziers. Mas Ubertino não tinha
hesitado em defender diante do papa a memória do amigo, e o papa, subjugado pela sua
santidade, não tinha ousado condená-lo (embora depois tenha condenado os outros).

Mais, naquela ocasião tinha-lhe oferecido uma via de salvação, primeiro aconselhando-o
e depois ordenando-lhe que entrasse na ordem clunicense. Ubertino, que devia ser
igualmente hábil (ele aparentemente tão desarmado e frágil) a conquistar proteções e
alianças na corte pontifícia, tinha sim aceitado entrar no mosteiro de Gemblach, na
Flandres, mas creio que nunca tinha lá ido, e tinha ficado em Avinhão, sob a proteção do
cardeal Orsini, para defender a causa dos franciscanos.
Só nos últimos tempos (e os rumores que tinha ouvido eram confusos) a sua fortuna na
corte tinha declinado, e ele tivera de se afastar de Avinhão enquanto o papa mandava
perseguir este homem indomável como herege que per mundus discurrit vagabundus.
Dele dizia-se que se tinha perdido o rasto. Durante a tarde soubera, pelo diálogo entre
Guilherme e o Abade, que ele estava agora escondido nesta abadia. E agora via-o diante
de mim.

- Guilherme - ia ele dizendo -, estavam a ponto de me matar, sabes, tive de fugir pela
calada da noite.
- Quem te queria ver morto? João?
- Não. João nunca me amou, mas respeitou-me sempre. No fundo, foi ele que me
ofereceu um modo de fugir ao processo, há dez anos, obrigando-me a entrar nos
beneditinos, e com isto fazia calar os meus inimigos. Murmuraram por muito tempo,
ironizavam sobre o fato de um defensor da pobreza entrar numa ordem tão rica e viver
na corte do cardeal Orsini... Guilherme, tu sabes quanto me importam as coisas desta
terra! Mas era o único modo de ficar em Avinhão e defender os meus irmãos. O papa tem
medo de Orsini, jamais me tocaria num cabelo. Ainda há três anos me mandou como
mensageiro junto do rei de Aragão.

- Então quem te queria mal?
- Todos. A cúria. Tentaram assassinar-me duas vezes. Tentaram fazer-me calar. Tu
sabes o que aconteceu há cinco anos. Tinham sido condenados há dois anos os beguinos
de Narbona, e Berengário Talloni, que até era um dos juizes, apelou para o papa. Eram
momentos difíceis, João tinha já emitido duas bulas contra os espirituais, e o próprio

Miguel de Cesena tinha cedido... a propósito, quando chega ele?
- Estará aqui dentro de dois dias.
- Miguel... Há tanto tempo que não o vejo. Agora arrependeu-se, compreende o que
queríamos, o capítulo de Perugia deu-nos razão. Mas então, ainda em 1318, cedeu ao
papa e pôs-lhe nas mãos cinco espirituais da Provença que resistiam à submissão.
Queimados, Guilherme... Oh, é horrível!
Escondeu a cabeça entre as mãos.
- Mas que aconteceu exatamente depois do apelo de Talloni? - perguntou Guilherme.
- João devia reabrir o debate, compreendes? Devia, porque mesmo na cúria havia
homens que duvidavam, até os franciscanos da cúria... fariseus, sepulcros caiados,
prontos a vender-se por uma prebenda, mas duvidavam. Foi então que João me pediu
para apresentar uma memória sobre a pobreza. Foi uma coisa bela, Guilherme, Deus me
perdoe o orgulho...
- Li-a, Miguel mostrou-ma.
- Havia titubeantes, mesmo entre os nossos, o provincial de Aquitania, o cardeal de
San Vitale, o bispo de Caffa...
- Um imbecil - disse Guilherme.
- Descanse em paz, voou para junto de Deus há dois anos.
- Deus não foi tão misericordioso. Foi uma falsa noticia chegada de Constantinopla.
Está ainda entre nós, dizem-me que fará parte da legação. Deus nos proteja!
- Mas é favorável ao capítulo de Perugia - disse Ubertino.
- Exatamente. Pertence àquela raça de homens que são sempre os melhores
defensores do seu adversário.
- Para falar verdade - disse libertino -, também então não ajudou muito a causa. E
depois tudo acabou em nada, de fato, mas pelo menos não se estabeleceu que a idéia
era herética, e isto foi importante. Por isso os outros nunca me perdoaram.

Procuraram
prejudicar-me de todas as maneiras, disseram que estive em Sachsenhausen quando Luís
há três anos proclamou João herético. E no entanto todos sabiam que em Julho eu estava
em Avinhão com Orsini... Acharam que partes da declaração do imperador refletiam as
minhas idéias, que loucura.
- Não tanto como isso - disse Guilherme. - As idéias tinha-lhas dado eu, tirando-as da
tua declaração de Avinhão e de algumas páginas de Olivi.
- Tu? - exclamou, entre estupefato e alegre, Ubertino. – Mas então dás-me razão!
Guilherme pareceu embaraçado:
- Eram boas idéias para o imperador, naquele momento – disse evasivamente.
Ubertino olhou-o com desconfiança.
- Ah, mas tu não crês verdadeiramente nelas, não é verdade?
- Conta outra vez - disse Guilherme -, conta como te salvaste daqueles cães.
- Oh sim, cães, Guilherme. Cães raivosos. Achei-me a combater com o próprio
Bonagrazia, sabes?
- Mas Bonagrazia de Bérgamo está conosco!
- Agora, depois de eu ter falado longamente com ele. Só naquela altura se convenceu
e protestou contra a Ad conditorem canonum. E o papa aprisionou-o por um ano.
- Ouvi dizer que agora está próximo de um amigo meu que está na cúria, Guilherme de
Occam.
- Conheci-o pouco. Não me agrada. Um homem sem fervor, só cabeça, sem coração.
- Mas é uma bela cabeça.
- Pode ser, e levá-lo-á ao inferno.
- Então voltarei a vê-lo lá embaixo, e discutiremos com lógica.
- Cala-te, Guilherme - disse Ubertino, sorrindo com intenso afeto -, tu és melhor que
os teus filósofos. Se apenas tivesses querido...
- O quê?
- Quando nos vimos a última vez na Umbria? Lembras-te? Acabava de ser curado dos
meus males pela intercessão daquela mulher maravilhosa... Clara de Montefalco... -
murmurou com o rosto radioso. - Clara... Quando a natureza feminina, naturalmente tão
perversa, se sublima na santidade, então sabe tornar-se o mais alto veículo da graça.
Sabes como a minha vida se inspirou na castidade mais pura, Guilherme - tinha-o
agarrado por um braço, convulsivamente -, sabes com que... feroz (sim, é a palavra
exata), com que feroz sede de penitência tentei mortificar em mim as palpitações da
carne, para me tornar totalmente transparente ao amor de Jesus Crucificado... E no
entanto três mulheres na minha vida foram para mim três mensageiros celestes. Angela
de Foligno, Margarida de Città di Castello (que me antecipou o fim do meu livro quando
eu só tinha escrito um terço) e finalmente Clara de Montefalco. Foi um prêmio do céu
que eu, precisamente eu, tivesse de indagar sobre os seus milagres e proclamar a sua
santidade às multidões, antes que a santa madre Igreja se movesse. E tu estavas lá,
Guilherme, e podias ajudar-me naquela santa empresa, e não quiseste...
- Mas a santa empresa para que me convidava era mandar para a fogueira Bentivenga,
Jacomo e Giovannuccio - disse lentamente Guilherme.
- Estavam a ofuscar a memória dela com as suas perversões. E tu eras inquisidor!
- E foi precisamente então que pedi para me libertarem daquele encargo. A história
não me agradava. Serei franco: também não me agradou o modo como induziste
Bentivenga a confessar os seus erros. Fingiste querer entrar na sua seita, se é que era
uma seita, extorquiste-lhe os segredos e mandaste-o prender.
- Mas é assim que se procede contra os inimigos de Cristo! Eram hereges, eram
pseudo-apóstolos, tresandavam ao enxofre de frei Dolcino!
- Eram os amigos de Clara.
- Não, Guilherme, não toques nem sequer com uma sombra na memória de Clara!
- Mas circulavam no seu grupo...
- Eram menoritas, diziam-se espirituais, e afinal eram frades da comunidade! Mas tu
sabes que foi claro, no inquérito, que Bentivenga de Gubbio se proclamava apóstolo, e
depois com Giovannuccio de Bevagna seduzia as monjas dizendo-lhes que o inferno não
existia, que se podem satisfazer desejos carnais sem ofender a Deus, que se pode
receber o corpo de Cristo (perdoa-me, Senhor!) depois de ter estado deitado com uma
monja, que o Senhor preferiu Madalena à Virgem Inês, que aquilo que o vulgo chama
demônio é o próprio Deus, porque o demônio é a sabedoria e Deus é precisamente
sabedoria! E foi a beata Clara que, depois de lhes ter ouvido dizer estas coisas teve
aquela visão em que o próprio Deus lhe disse que aqueles homens eram malvados
sequazes do Spiritus Libertatis!

- Eram menoritas com a mente inflamada pelas mesmas visões de Clara, e muitas
vezes vai apenas um passo entre visão extática e frenesim de pecado - disse Guilherme.
Ubertino apertou-lhe as mãos e os olhos velaram-se-lhe outra vez de lágrimas:
- Não digas isso, Guilherme. Como podes confundir o momento do amor extático, que
te queima as vísceras com o perfume do incenso, e o desregramento dos sentidos que
sabe a enxofre? Bentivenga instigava a tocar os membros de um corpo nu, afirmava que
só assim se obtém a libertação do império dos sentidos, homo nudus cum nuda iacebat...
- Et non commiscebantur ad invicem...
- Mentiras! Procuravam o prazer, se o estímulo carnal se fazia sentir, eles não
reputavam pecado que para o aquietar homem e mulher fizessem juntos, e um tocasse e
beijasse o outro em todas as partes, e aquele juntasse o seu ventre nu ao ventre nu
desta!
Confesso que o modo como Ubertino estigmatizava o vício alheio não me induzia a
pensamentos virtuosos. O meu mestre deve ter-se apercebido que eu estava perturbado
e interrompeu o santo homem.
- És um espírito ardente, Ubertino, no amor de Deus como no ódio contra o mal.
Aquilo que queria dizer é que há pouca diferença entre o ardor dos Serafins e o ardor de
Lucífer, porque nascem ambos de uma inflamação extrema da vontade.
- Oh, a diferença existe, e eu conheço-a! - disse inspirado Ubertino. - Tu queres dizer
que entre querer o bem e querer o mal vai um pequeno passo, porque se trata sempre de
dirigir a mesma vontade. Isso é verdade. Mas a diferença está no objeto, e o objeto é
limpidamente reconhecível. Dum lado Deus, do outro o diabo.
- E eu temo já não saber distinguir, Ubertino. Não foi a tua Angela de Foligno que
contou que um dia, arrebatada em espírito, esteve no sepulcro de Cristo? Não disse que
primeiro lhe beijou o peito e o viu jazer com os olhos fechados, depois lhe beijou a boca
e sentiu subir daqueles lábios um inenarrável odor de doçuras, e depois de uma breve
pausa pousou a sua face sobre a face de Cristo e Cristo aproximou a sua mão da face dela
e estreitou-a contra si e (assim disse ela) o seu regozijo foi altíssimo?...
- Que tem a ver isso com o ímpeto dos sentidos? – perguntou Ubertino. - Foi uma
experiência mística, e o corpo era o de Nosso Senhor.
- Talvez me tenha habituado a Oxford - disse Guilherme -, onde até a experiência
mística era de outro gênero...
- Toda na cabeça - sorriu Ubertino.
- Ou nos olhos. Deus sentido como luz, nos raios do Sol, nas imagens dos espelhos, na
difusão das cores sobre as partes da matéria ordenada, nos reflexos do dia sobre as
folhas molhadas... Não está este amor mais próximo do de Francisco quando louva Deus
nas suas criaturas, flores, ervas, água, ar? Não creio que deste tipo de amor possa vir
insídia alguma. Porém, não me agrada um amor que transfere para o colóquio com o
Altíssimo os arrepios que se sentem nos contatos da carne...
- Tu blasfemas, Guilherme! Não é a mesma coisa. Há um salto, imenso, para baixo,
entre o êxtase do coração amante de Jesus Crucificado e o êxtase corrupto dos pseudoapóstolos
de Montefalco...
- Não eram pseudo-apóstolos, eram irmãos do Livre Espírito, tu próprio o disseste.
- E que diferença faz? Tu não soubeste tudo daquele processo, eu próprio não me
atrevi a pôr nas atas certas confissões, para não aflorar sequer por um instante com a
sombra do demônio a atmosfera de santidade que Clara tinha criado naquele lugar. Mas
soube de certas coisas, de certas coisas, Guilherme! Reuniam-se pela calada da noite
numa cave, pegavam num menino recém-nascido, atiravam-no uns aos outros, até que
ele morria, de pancadas... ou de outra coisa... E quem o recebia vivo pela última vez,
para morrer nas suas mãos, tornava-se o chefe da seita... E o corpo do menino era
dilacerado e misturado com farinha, para fazer hóstias blasfemas.

- Ubertino - disse firmemente Guilherme -, essas coisas foram ditas, há muitos séculos,
pelos bispos armênios, da seita dos paulicianos, e dos bogomilos.
- E que importa? O demônio é obtuso, segue um ritmo nas suas insídias e nas suas
seduções, repete os próprios ritos à distancia de milênios, ele é sempre o mesmo,
precisamente por isso se reconhece como o inimigo! Juro-te, acendiam velas, na noite de
Páscoa, e levavam meninas para a cave. Depois apagavam as velas e atiravam-se a elas,
mesmo que estivessem ligadas a eles por laços de sangue... E se deste amplexo nascia
um menino, recomeçava o rito infernal, todos em torno de um vaso cheio de vinho, a
que chamavam barrilete, a embriagarem-se, e cortavam em pedaços o menino, e
deitavam-lhe o sangue numa taça, e atiravam meninos ainda vivos para o fogo, e
misturavam as cinzas do menino, o seu sangue, e bebiam-no!
- Mas isso escrevia-o Miguel Psello no livro sobre as operações dos demônios, há
trezentos anos! Quem te contou essas coisas!
- Eles, Bentivenga e os outros, e sob tortura!
- Há só uma coisa que excita os animais mais do que o prazer, é a dor. Sob tortura
vives como sob o efeito de ervas que provocam visões. Tudo o que ouviste contar, tudo o
que leste, volta à tua mente como se fosses arrebatado não para o céu mas para o
inferno. Sob tortura dizes não só aquilo que o inquisidor quer mas também aquilo que
imaginas que lhe pode dar prazer, porque se estabelece uma ligação (esta sim,
verdadeiramente diabólica) entre ti e ele... São coisas que conheço, Ubertino, também
eu fiz parte daqueles grupos de homens que crêem produzir a verdade com o ferro
incandescente. Pois bem, fica sabendo que a incandescência da verdade é de outra
chama. Sob tortura, Bentivenga pode ter dito as mentiras mais absurdas, porque já não
era ele que falava mas a sua luxúria, os demônios da sua alma.

- Luxúria!
- Sim, há uma luxúria da dor, como há uma luxúria da adoração e até uma luxúria da
humildade. Se bastou tão pouco aos anjos rebeldes para mudarem o seu ardor de
adoração e humildade em ardor de soberba e de revolta, que dizer de um ser humano?
Pronto, agora já sabes, foi este pensamento que me atingiu no decurso das minhas
inquisições. E foi por isto que renunciei àquela atividade. Faltou-me a coragem de
inquirir sobre as fraquezas dos malvados, porque descobri que são as mesmas fraquezas
dos santos.
Ubertino tinha escutado as últimas palavras de Guilherme como se não compreendesse
aquilo que ele dizia. Pela expressão do seu rosto, cada vez mais inspirado de afetuosa
comiseração, compreendi que ele considerava Guilherme presa de sentimentos muito
culpáveis, que ele perdoava porque muito o amava. Interrompeu-o e disse em tom
bastante amargo:
- Não importa. Se sentias isso, fizeste bem em parar. É preciso combater as tentações.

Porém, faltou-me o teu apoio, e podíamos ter desbaratado aquele bando de malvados. E,
pelo contrário, sabes o que aconteceu, eu próprio fui acusado de ser demasiado fraco
com eles, e fui suspeito de heresia. Também tu foste demasiado fraco no combate ao
mal. O mal, Guilherme: não cessará nunca esta condenação, esta sombra, esta lama que
nos impede de tocar a fonte? - Aproximou-se ainda mais de Guilherme, como se tivesse
receio que alguém o ouvisse - Também aqui, também entre estas paredes consagradas à
oração, sabes?
- Sei, o Abade falou-me, pediu-me até que o ajudasse a fazer luz sobre isso.
- Então espia, escava, olha com olho de lince em duas direções, a luxúria e a
soberba...
- A luxúria?
- Sim, a luxúria. Havia qualquer coisa de... de feminino, e portanto de diabólico,
naquele jovem que morreu. Tinha olhos de rapariga que busca o comércio com um
incubo. Mas disse-te também a soberba, a soberba da mente, neste mosteiro consagrado
ao orgulho da palavra, à ilusão da sabedoria...
- Se sabes alguma coisa, ajuda-me.
- Não sei nada. Não há nada que eu saiba. Mas certas coisas sentem-se com o coração.
Deixa falar o teu coração, interroga os rostos, não escutes as línguas... Mas, vamos lá,
porque havemos de falar destas tristezas e atemorizar este nosso jovem amigo? - Olhoume
com os seus olhos azuis, aflorando a minha face com os seus dedos longos e brancos,
e quase tive o instinto de me retrair; contive-me, e fiz bem, porque o teria ofendido, e a
sua intenção era pura. - Fala-me antes de ti - disse, dirigindo-se de novo a Guilherme. -
Que fizeste desde então? Passaram-se...
- Dezoito anos. Voltei para as minhas terras. Estudei ainda em Oxford. Estudei a
natureza.
- A natureza é boa, porque é filha de Deus - disse Ubertino.
- E Deus deve ser bom, se gerou a natureza - sorriu Guilherme. - Estudei, encontrei
amigos muito sábios. Depois conheci Marsílio, atraíram-me as suas idéias sobre o império,
sobre o povo, sobre uma nova lei para os reinos da terra, e assim acabei naquele grupo
dos nossos confrades que estão aconselhando o imperador. Mas estas coisas sabe-las,
tinha-te escrito. Exultei quando em Bobbio me disseram que estavas aqui. Julgávamos-te
perdido. Mas agora que estás conosco poderás ser-nos de grande auxílio dentro de alguns
dias, quando chegar Miguel. Será um duro embate.
- Não terei a dizer muito mais do que já disse há cinco anos em Avinhão. Quem vem
com Miguel?
- Alguns que foram ao capítulo de Perugia, Arnaldo de Aquitania, Hugo de Newcastle...
- Quem? - perguntou Ubertino.
- Hugo de Novocastro, desculpa-me, uso a minha língua mesmo quando falo em bom
latim. E depois Guilherme Alowick. E por parte dos franciscanos avinhonenses podemos
contar com Jeronimo, o tolo de Caffa, e talvez venham Berengário Talloni e Bonagrazia
de Bérgamo.
- Esperemos em Deus - disse Ubertino -, estes últimos não quererão inimizar-se
demasiado com o papa. E quem estará para defender as posições da cúria, quero dizer,
entre os duros de coração?
- Pelas cartas que recebi, imagino que virão Lourenço Decoalcone...
- Um homem maligno...
- João d’Anneaux...
- Esse é sutil em teologia, livra-te dele.
- Dele nos livraremos. E finalmente João de Baune.
- Haver-se-á com Berengário Talloni.
- Sim, creio mesmo que nos divertiremos - disse o meu mestre de ótimo humor.

Ubertino olhou-o com um sorriso duvidoso.
- Nunca percebo quando vós, ingleses, falais seriamente. Não há nada de divertido
numa questão tão grave. Está em jogo a sobrevivência da ordem, que é a tua e que no
fundo do coração é ainda a minha. Mas eu hei-de esconjurar Miguel para que não vá a
Avinhão. João quere-o, procura-o, convida-o com demasiada insistência. Desconfiai
daquele velho francês. Oh, Senhor, em que mãos caiu a tua Igreja! - Voltou a cabeça
para o altar. - Transformada em meretriz, amolecida pelo luxo, revolve-se na luxúria
como uma serpente no cio! Da pureza nua do estábulo de Belém, lenho como foi lenho o
lignum vitae da cruz, às bacanais de ouro e de pedra, olha, nem aqui, viste o portal, nos
subtraímos ao orgulho das imagens! Então enfim próximos os dias do Anticristo, e eu
tenho medo, Guilherme! - Olhou em torno, fixando o olhar desvairado entre as naves
obscuras, como se o Anticristo fosse aparecer de um momento para o outro, e eu na
verdade esperava avistá-lo. – Os seus lugares-tenentes já aqui estão, mandados como
Cristo mandou os apóstolos pelo mundo! Estão calcando aos pés a Cidade de Deus,
seduzem com o engano, a hipocrisia e a violência. Será então que Deus deverá mandar os
seus servos, Elias e Enoch, que ele conservou ainda em vida no paraíso terrestre para que
um dia confundam o Anticristo, e virão profetizar vestidos de burel, e pregarão a
penitência com o exemplo e com a palavra...
- Já vieram, Ubertino - disse Guilherme, mostrando o seu saio de franciscano.
- Mas ainda não venceram; é o momento em que o Anticristo, cheio de furor, mandará
matar Enoch e Elias e os seus corpos para que todos os possam ver e tenham medo de
querer imitá-los. Tal como queriam matar-me a mim...
Naquele momento, aterrado, eu pensava que Ubertino era vítima de uma espécie de
divina mania, e temi pela sua razão. Agora, à distancia no tempo, sabendo aquilo que
sei, isto é, que alguns anos depois foi misteriosamente morto numa cidade alemã, e
nunca se soube por quem, fico mais aterrado ainda, porque evidentemente naquela noite
Ubertino profetizava.
- Sabes, o abade Joaquim tinha dito a verdade. Chegamos à sexta era da história
humana, em que aparecerão dois Anticristos, o Anticristo místico e o Anticristo
propriamente dito; isto é o que acontece agora na sexta época, desde que apareceu
Francisco a configurar na sua própria carne as cinco chagas de Jesus Crucificado.
Bonifácio foi o Anticristo místico, e a abdicação de Celestino não foi válida, Bonifácio foi
a besta que veio do mar cujas sete cabeças representam as ofensas aos pecados capitais
e os dez cornos as ofensas aos mandamentos, e os cardeais que o rodeavam eram os
gafanhotos cujo corpo é Appolyon! Mas o número da besta, se lhe leres o nome em letras
gregas, é Benedicti! - Fixou-me para ver se eu tinha compreendido e levantou um dedo
admoestando-me. - Bento XI foi o Anticristo propriamente dito, a besta que ascende da
terra! Deus permitiu que tal monstro de vício e de iniqüidade governasse a sua Igreja
para que as virtudes do seu sucessor resplandecessem de glória!
- Mas, padre santo - objetei com um fio de voz, enchendo-me de coragem -, o seu
sucessor é João!
Ubertino pôs a mão na fronte como para afastar um sonho molesto. Respirava com
dificuldade, estava cansado.
- Pois. Os cálculos estavam errados, estamos ainda esperando o papa angélico... Mas
entretanto apareceram Francisco e Domingos. - Levantou os olhos ao céu e disse como
rezando (mas tive a certeza que estava recitando uma página do seu grande livro sobre a
árvore da vida): - Quorum primus seraphico calculo purgatus et ardore celico
inflammatus totum incendere videbatur. Secundus vero verbo predicationis fecundus
super mundi tenebras clarius radiavit... Sim, se estas foram as promessas, o papa
angélico terá de vir.
- E assim seja, Ubertino - disse Guilherme. - Entretanto, eu estou aqui para impedir
que seja expulso o imperador humano. Do teu papa angélico falava também frei
Dolcino...
- Não voltes a pronunciar o nome dessa serpente! – gritou Ubertino, e pela primeira
vez o vi transformar-se, de amargurado que estava, em irritado. - Ele sujou a palavra de
Joaquim de Calábria e fez dela fonte de morte e imundície! Mensageiro do Anticristo, se
por acaso os houve. Mas tu, Guilherme, falas assim porque na verdade não crês no
advento do Anticristo e os teus mestres de Oxford ensinaram-te a idolatrar a razão
endurecendo as capacidades proféticas do teu coração!
- Enganas-te, Ubertino - respondeu com muita seriedade Guilherme. - Tu sabes que
venero, mais do que qualquer outro entre os meus mestres, Roger Bacon...
- Que devaneava sobre máquinas voadoras - motejou amargamente Ubertino.
- Que falou clara e limpidamente sobre o Anticristo, descobriu-lhe os sinais na
corrupção do mundo e no enfraquecimento da sabedoria. Mas ensinou que há só um
modo de nos prepararmos para a sua vinda: estudar os segredos da natureza, usar o
saber para melhorar o gênero humano. Podes preparar-te para combater o Anticristo
estudando as virtudes curativas das ervas, a natureza das pedras, e até projetando as
máquinas voadoras de que sorris.
- O Anticristo do teu Bacon era um pretexto para cultivar o orgulho da razão.
- Santo pretexto.
- Nada que sirva de pretexto é santo. Guilherme, sabes que te amo. Sabes que confio
muito em ti. Castiga a tua inteligência, aprende a chorar sobre as chagas do Senhor,
deita fora os teus livros.
- Ficarei só com o teu - sorriu Guilherme.
Ubertino sorriu também e ameaçou-o com o dedo:
- Inglês tonto. E não te rias demasiado dos teus semelhantes. Ou melhor, aqueles que
não podes amar, teme-os. E tem cuidado com a abadia. Este lugar não me agrada.
- Quero justamente conhecê-lo melhor - disse Guilherme, despedindo-se. - Vamos,
Adso.
- Eu digo-te que não é bom, e tu dizes que queres conhecê-lo. Ah! - disse Ubertino,
abanando a cabeça.
- A propósito - disse ainda Guilherme já a meio da nave -, quem é aquele monge que
parece um animal e fala a língua de Babel?
- Salvador? - voltou-se Ubertino, que já se tinha ajoelhado. - Creio que fui eu a doá-lo
a esta abadia... Juntamente com o despenseiro. Quando deixei o saio franciscano voltei
por algum tempo ao meu velho convento de Casale, e ali encontrei outros frades em
angústias, porque a comunidade os acusava de serem espirituais da minha seita.. . assim
se exprimiam. Empenhei-me em seu favor, obtendo que pudessem seguir o meu
exemplo. E dois, Salvador e Remígio, encontrei-os precisamente aqui, quando cá cheguei
o ano passado. Salvador... Na verdade, parece um bicho. Mas é serviçal.
Guilherme hesitou um instante.
- Ouvi-o dizer penitenciagite.
Ubertino calou-se. Moveu uma mão como para afastar um pensamento molesto.
- Não, não creio. Sabes como são estes irmãos laicos. Gente do campo, que ouviu
talvez algum pregador ambulante, e não sabe o que diz. A Salvador terei outra coisa a
censurar: é um bicho guloso e luxurioso. Mas nada, nada contra a ortodoxia. Não, o mal
da abadia é outro, procura-o em quem sabe de mais, não em quem não sabe nada. Não
construas um castelo de suspeitas sobre uma palavra.
- Jamais o farei - respondeu Guilherme. - Deixei de ser inquisidor precisamente para
não fazer isso. Porém, agrada-me escutar também as palavras, e depois penso nelas.
- Tu pensas de mais. Rapaz - disse, dirigindo-se a mim -, não tires demasiados maus
exemplos do teu mestre. A única coisa em que se deve pensar, e dou-me conta disso no
fim da minha vida, é na morte. Mors est quies viatoris, finis est omnis laboris. Deixai-me
rezar.

PRIMEIRO DIA

CERCA DE NONA

Onde Guilherme tem um diálogo doutíssimo com Severino, o ervanário.
Voltamos a percorrer a nave central e saímos pelo portal que nos dera entrada. Tinha
ainda as palavras de Ubertino, todas, a zumbir na minha cabeça.
- É um homem... estranho - ousei dizer a Guilherme.
- É, ou foi, em muitos aspectos, um grande homem. Mas precisamente por isso é
estranho. Só os homens pequenos é que parecem normais. Ubertino podia ter-se tornado
um dos hereges que contribuiu para mandar queimar ou um cardeal da santa igreja
romana. Andou muito perto de ambas as perversões. Quando falo com Ubertino tenho a
impressão que o inferno é o paraíso visto do outro lado.
Não compreendi o que queria dizer:
- De que lado? - perguntei.
- Pois é - admitiu Guilherme -, trata-se de saber se existem partes e se existe um
todo. Mas não me dês ouvidos. E não olhes mais para aquele portal - disse, batendo-me
levemente na nuca enquanto eu me voltava atraído pelas esculturas que tinha visto à
entrada. - Por hoje já te assustaram bastante. Todos.
Enquanto me voltava para a saída, vi diante de mim outro monge. Podia ter a mesma
idade de Guilherme. Sorriu-nos e saudou-nos com urbanidade. Disse que era Severino de
Sant Emmerano, e que era o padre ervanário, que cuidava dos balnea, do hospital e dos
hortos, e que estava à nossa disposição se quiséssemos orientar-nos melhor no recinto da
abadia.

Guilherme agradeceu-lhe e disse que já tinha notado, ao entrar, o belíssimo horto que
lhe parecia conter não só ervas comestíveis mas também plantas medicinais, pelo que se
podia ver através da neve.
-No verão ou na primavera, com a variedade das suas ervas, e cada uma adornada das
suas flores, este horto canta melhor os louvores do Criador - disse Severino à maneira de
desculpa. – Mas também nessa estação o olho do ervanário vê através dos ramos secos as
plantas que virão e pode dizer-te que este horto é mais rico do que qualquer herbário, e
mais variegado, por mais belas que sejam as miniaturas deste. E depois também no
Inverno crescem as ervas boas, e outras tenho-as recolhidas e prontas nos vasos que
tenho no laboratório. Assim, com as raízes da azedinha curam-se os catarros, e com o
decocto de raízes de altéia fazem-se compressas para as doenças da pele, com a bardana
cicatrizam-se os eczemas, triturando e moendo o rizoma da bistorta curam-se as
diarréias e alguns males das mulheres, a pimenta é um bom digestivo, a tussilagem faz
bem à tosse, e temos uma boa genciana para digerir, e o regoliz, e o zimbro para fazer
uma boa infusão, o sabugo cuja casca serve para fazer um decocto para o fígado, a
saponária para macerar as raízes em água fria, para o catarro, e a valeriana cujas
virtudes certamente conheceis.
- Tendes ervas diversas e que se dão em climas diversos. Como assim?
- Por um lado, devo-o à misericórdia do Senhor, que colocou o nosso planalto a cavalo
de uma cadeia que vê o mar ao sul, e dele recebe os ventos quentes, e a setentrião a
montanha, mais alta, donde recebe os bálsamos silvestres. E, por outro lado, devo-o ao
hábito da arte, que indignamente adquiri por vontade dos meus mestres. Certas plantas
crescem mesmo em clima adverso se lhe cuidares o terreno circunstante, a nutrição e o
crescimento.
- Mas também tendes plantas boas só para comer? - perguntei.
- Meu jovem potro esfomeado, não há plantas boas para comer que não sejam boas
também para curar, desde que tomadas na justa medida. Só o excesso as torna causa de
doença. Por exemplo, a abóbora. É de natureza fria e úmida, e mitiga a sede, mas comêla
estragada provoca diarréia, e deves apertar as vísceras com uma mistura de salmoura
e mostarda. E as cebolas? Quentes e úmidas, poucas, aumentam a potência do coito,
naturalmente para aqueles que não pronunciaram os nossos votos, demasiadas provocam
peso na cabeça e são combatidas com leite e vinagre. Boa razão - acrescentou com
malícia - para que um jovem monge as coma sempre com parcimônia. Come antes alho.
Quente e seco, é bom contra os venenos. Mas não exageres, faz expelir demasiados
humores do cérebro. Os feijões, pelo contrário, produzem urina e engordam, duas coisas
muito boas. Mas provocam sonhos maus. Muito menos porém do que certas outras ervas,
porque também as há que provocam visões más.

- Quais? - perguntei.
- Eh, eh, o nosso noviço quer saber de mais. São coisas que só o ervanário deve saber,
senão qualquer inconsciente poderia andar por aí a ministrar visões, isto é, a mentir com
as ervas.
- Mas basta um pouco de urtiga - disse então Guilherme -, ou de roybra, ou de
olieribus, e está-se protegido contra as visões. Espero que vos tenhais destas boas ervas.
Severino olhou o mestre de soslaio:
- Interessas-te por ervanário?
- Muito pouco - disse modestamente Guilherme. - uma vez tive nas mãos o Theatrum
Sanitatís de Ububchasym de Baldach...
- Abdul Asan al Muchtar ibn Botlan.
- Ou Ellucasim Elimittar, como queiras. Pergunto-me se se poderá encontrar um
exemplar aqui.
- Um dos mais belos, com muitas imagens de preciosa leitura.
-O céu seja louvado. E o De De virtutibus herbarum de Pla-tearius?
- Também esse, e o De plantis de Aristóteles, traduzido por Alfredo de Sareshel.
- Mas devo dizer que não é verdadeiramente de Aristóteles – observou Guilherme.
como se descobriu que não era de Aristóteles o De causis.
- E de qualquer modo, é um grande livro - observou Severino, e o meu mestre
concordou com muito fervor sem perguntar se o ervanário falava do De plantis ou o De
causis, duas obras que eu não conhecia mas que, por aquela conversa, concluí que eram
ambas de primeira grandeza. - Ficarei contente - concluiu Severino - se tiver contigo
alguma honesta conversa sobre as ervas.
- Eu ainda mais do que tu - disse Guilherme -, mas não violaremos a regra do silêncio,
que me parece vigorar na vossa ordem!
- A regra - disse Severino - adaptou-se através dos séculos às exigências das diversas
comunidades. A regra previa a lectio divina mas não o estudo: e no entanto sabes até
que ponto a nossa ordem desenvolveu a pesquisa das coisas divinas e das coisas humanas.
A regra prevê ainda o dormitório comum, mas por vezes é justo, como entre nós, que os
monges tenham a possibilidade de reflexão mesmo durante a noite, e assim cada um
deles tem a sua própria cela. A regra é muito severa quanto ao silêncio, e, mesmo entre
nos, não deve conversar com os seus Irmãos não só o monge que faz trabalhos manuais
mas também aquele que escreve ou que lê. Mas a abadia é antes de mais uma
comunidade de estudiosos, e muitas vezes é útil que os monges comuniquem entre si os
tesouros de doutrina que acumulam. Qualquer conversa que diga respeito aos nossos
estudos é considerada legítima e proveitosa, contanto que não se desenrole no refeitório
ou durante as horas dos ofícios sagrados.

- Tiveste ocasião de falar muito com Adelmo de Otranto? - perguntou bruscamente
Guilherme.
Severino não pareceu surpreendido:
- Vejo que o Abade já te falou - disse. - Não. Com ele não conversava muito. Passava o
tempo a fazer iluminuras. Ouvi-o algumas vezes discutir com outros monges, Venancio de
Salvemec, ou Jorge de Burgos, sobre a natureza do seu trabalho. E depois eu não passo o
dia no scriptorium, mas no meu laboratório - e apontou para o edifício do hospital.
- Compreendo - disse Guilherme. - Portanto, não sabes se Adelmo
tinha tido visões.
- Visões?!
- Como as que provocam as tuas ervas, por exemplo.
Severino pôs-se rígido:
- Disse-te que guardo com muito cuidado as ervas perigosas.
- Não digo isso - apressou-se a precisar Guilherme. - Eu falava de visões em geral.
- Não compreendo - insistiu Severino.
- Pensava que um monge que anda de noite pelo Edifício, onde, segundo admitiu o
Abade, podem acontecer coisas... tremendas a quem ali entre a horas proibidas, bem,
dizia eu, pensava que pudesse ter tido visões diabólicas que o tivessem empurrado para o
precipício.

- Eu disse que não freqüento o scriptorium, salvo quando preciso de algum livro, mas
habitualmente tenho os meus herbários, que conservo no hospital. Já te disse: Adelmo
era muito íntimo de Jorge, de Venancio e... naturalmente, de Berengário.
Também eu notei uma leve hesitação na voz de Severino. E não escapou ao meu
mestre:
- Berengário? E porquê naturalmente?
- Berengário de Anundel, o ajudante-bibliotecário. Eram coetâneos, foram noviços
juntos, era normal que tivessem coisas de que falar. Era isto o que eu queria dizer.
- Então era isso o que querias dizer - comentou Guilherme. – E admirei-me que não
insistisse naquele ponto. De fato, mudou logo de conversa. - Mas talvez sejam horas de
entrarmos no Edifício. Fazes-nos de guia?
- Com prazer - disse Severino com um alívio mais que evidente. Fez-nos contornar o
horto e levou-nos diante da fachada ocidental do Edifício. - Do lado do horto esta o
portal que dá acesso à cozinha - disse -, mas a cozinha ocupa só a metade ocidental do
primeiro andar, na segunda metade fica o refeitório. E do lado da porta meridional, a
que se chega passando por detrás do coro da igreja, há dois outros portais que conduzem
à cozinha e ao refeitório. Mas entremos mesmo por aqui, porque da cozinha podemos
depois passar, pelo interior, ao refeitório.
Quando entrei na vasta cozinha apercebi-me que o Edifício gerava no seu interior, e a
toda a sua altura, um pátio octogonal; como compreendi depois, tratava-se de uma
espécie de grande poço, privado de acessos, sobre o qual se abriam em cada andar
amplas janelas, como as que davam para o exterior.

A cozinha era um imenso átrio cheio de fumo, onde já muitos servos se apressavam a
dispor os alimentos para a ceia. Sobre uma grande mesa, dois deles preparavam uma
empada de verdura, cevada, aveia e centeio, cortando em pedacinhos nabos, agriões,
rabanetes e cenouras. Ao lado, um outro cozinheiro tinha acabado de cozer alguns peixes
numa mistura de vinho e água, e estava-os cobrindo com um molho composto de sálvia,
salsa, tomilho, alho, pimenta e sal.
Na parede que correspondia ao torreão ocidental abria-se um enorme forno para o
pão, onde já relampejavam chamas avermelhadas. No torreão meridional, uma imensa
chaminé, sobre a qual ferviam panelões e giravam espetos. Pela porta que dava para a
eira atrás da igreja entravam naquele momento os porqueiros trazendo as carnes dos
porcos degolados. Saímos antes por aquela porta e encontramo-nos na eira, na
extremidade oriental do planalto, ao abrigo das muralhas, onde se erguiam muitas
construções. Severino explicou-me que a primeira era o conjunto das estrumeiras, depois
ficavam as estrebarias dos cavalos, depois os estábulos dos bois, e as capoeiras, e o
recinto coberto das ovelhas. Diante das estrumeiras, os porqueiros remexiam numa
grande jarra o sangue dos porcos acabados de degolar, a fim de que não coagulasse. Se
fosse remexido bem e depressa, resistiria depois durante os dias seguintes, graças ao
clima rigoroso, e finalmente fariam com ele chouriços de sangue.

Voltamos a entrar no Edifício e deitamos apenas uma olhadela ao refeitório, que
atravessamos para nos dirigirmos para o torreão oriental. Dos dois torreões, entre os
quais se estendia o refeitório, o setentrional albergava uma chaminé, o outro uma
escada em forma de caracol que levava ao scriptorium, isto é, ao segundo andar. Dali os
monges dirigiam-se todos os dias ao trabalho, ou então por duas escadas, menos
acessíveis mas bem aquecidas, que subiam em espiral por trás da chaminé e do forno da
cozinha.
Guilherme perguntou se encontraríamos alguém no scriptorium mesmo sendo domingo.
Severino sorriu e disse que o trabalho, para o monge beneditino, é oração. Ao domingo,
os ofícios duravam mais tempo, mas os monges afetos aos livros passavam igualmente
algumas horas lá em cima, habitualmente empregadas em frutuosas trocas de
observações douras, conselhos, reflexões sobre as sagradas escrituras.


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