Sexta-feira, 28 de Abril de 1944

Querida Kitty:
Nunca me pude esquecer do meu sonho com o Peter
Wessel. Ainda hoje, ao lembrar-me, parece-me sentir a
face do Peter contra a minha, essa sensação que tanto me
maravilhou. Ao estar com o Peter daqui experimentava a
mesma sensação, sim, mas nunca tão forte até... ontem,
ao anoitecer, quando estávamos, como de costume, abraçados
no sofá. De repente a Anne de todos os dias transformou-se
numa outra Anne, naquela que não é divertida
nem travessa mas que quer ser terna e afável.
Estava muito junto dele e a comoção tomou conta de
mim. As lágrimas vieram-me aos olhos, cairam-me cara
abaixo e molharam a bata dele. Terá notado? Nem o
mais leve movimento o traíu. Sente ele o mesmo que eu?
Quase não falava. Saberá que convive com duas Annes
diferentes? Tantas perguntas por responder!
às oito e meia ergui-me e fui à janela onde costumamos
despedir-nos. Ainda eu tremia, ainda era a Anne número 2.
Ele foi ter comigo, eu deitei-lhe os braços ao pescoço e
beijei-lhe a face esquerda. Quando lhe quis beijar a outra,
as nossas bocas encontraram-se. Como numa vertigem,
estreitámo-nos, um contra o outro, uma vez e outra vez,
para nunca mais acabar!
Peter tem necessidade de ternura. Pela primeira vez
na vida descobriu uma rapariga e, pela primeira vez, compreendeu que estas "maçadoras",
afinal, têm também um
coração e que são muito diferentes quando se está a sós
com elas. Pela primeira vez na vida deu amizade e entregou-se
a outrem. Nunca antes tinha tido um amigo ou
uma amiga. Agora encontrámo-nos. Eu também não o conhecia a ele, nunca tinha tido um
confidente, e agora
tudo isto se realizou.
Mas eis uma pergunta que me tortura:
-Está isto certo? Procedo bem em ser tão transigente,
tão apaixonada, tão impulsiva e cheia de desejos, tal como
o Peter? Está certo que uma rapariga não saiba dominar-se?
Só há uma resposta: sentia dentro de mim profunda
ânsia, sentia-me só, e agora encontrei consolo e alegria.
Da parte da manhã Peter e eu somos as pessoas de
sempre; e mesmo durante o dia. Mas ao anoitecer não
podemos conter o desejo da felicidade e da alegria de nos
encontrarmos. Então somos um do outro. Todas as noites,
depois do último beijo, queria fugir, desaparecer, não ver
mais aqueles olhos, estar longe, longe, longe, totalmente
só na escuridão!
Mas depois de ter descido os catorze degraus, onde é
que me encontro? à luz crua da sala, entre vozes e risos;
perguntam-me isto ou aquilo e tenho de fazer tudo para que
ninguém note em mim qualquer coisa. O meu coração
ainda está impressionado de mais para esquecer um acontecimento como o de ontem à
noite. A meiguice e a brandura
talvez sejam qualidades raras na Anne mas, mesmo assim,
não se deixam afugentar de um instante para o outro.
O Peter atingiu-me como nunca nada me tinha atingido,
a não ser o meu sonho. O Peter revolveu o meu íntimo,
chamou-o à superfície. E não é natural que qualquer
pessoa no meu caso necessite reencontrar o sossego para
tranquilizar de novo o seu íntimo? Oh, Peter!, o que
fizeste de mim? O que queres de mim? Aonde vamos nós
parar? Oh! Agora é que compreendo a Elli. Agora que
vivo estas coisas, compreendo as dúvidas dela. Se ele fosse
mais velho e quisesse casar comigo, que lhe responderia?
Sê franca, Anne! Não eras capaz de casar com ele, mas
deixá-lo também te custa! O carácter do Peter ainda não
alcançou a harmonia intrior. O Peter tem pouca energia,
pouca força de vontade e pouca força moral. Ainda é uma
criança, intimamente não tem mais idade do que eu; o
que ele procura, antes de mais nada, é a calma e a felicidade.
E eu? Tenho, de facto, só catorze anos? Não passo
de uma rapariguita estúpida? Não tenho ainda experiência
nenhuma? Tenho experiência, sim senhora, tenho mais
experiência do que os outros; vivi coisas que muito poucos
da minha idade viveram. Tenho medo de mim própria,
tenho medo de que o meu desejo me arrebate, e então o
que há-de ser de mim mais tarde, quando conviver com
outros rapazes? Oh, como tudo isto é difícil! O coraÇão
e o juízo, e sempre a luta entre os dois. Cada um deles
fala no momento próprio, mas sei eu de certeza quais são
os momentos próprios?
Tua Anne

Terça-feira, 2 de Maio de 1944

Querida Kitty:
No sábado, à noite, perguntei ao Peter se achava que
devia dizer ao pai o que se passa entre nós, e depois de
ponderar um bocado ele achou que sim. Estou contente
por isso, pois prova-me a pureza dos seus sentimentos.
Logo depois de eu ter descido, fui buscar água com o pai,
e já na escada disse-lhe:
- Pai, com certeza compreendes que o Peter e eu,
quando estamos juntos, não ficamos sentados a um metro
de distância um do outro. Achas mal?-O pai não me
respondeu imediatamente. Depois disse:
- Não, não acho mal, Anne, mas aqui, onde o espaço
é tão restrito, deves ter mais cuidado...
Ainda chegou a dizer mais algumas coisas no mesmo
sentido e depois subimos. No domingo de manhã chamou-me
para me dizer :
- Anne, pensei naquilo que me disseste (comecei a ter
medo). Vistas bem as coisas, não está certo aqui no anexo!
Julgava que vocês eram bons camaradas. O Peter está
apaixonado por ti?
- Não, não é isso-disse eu.
- Sabes Anne, eu compreendo-vos muito bem, mas
acho que deves manter um pouco de distância, não deves
encorajá-lo demasiadamente. Não devias ir tantas vezes
lá para cima. Nestas coisas o homem é a parte activa e a
mulher pode detê-lo. Lá fora, na liberdade, todas estas
coisas são diferentes. Convives com outros rapazes e raparigas, podes dar passeios, praticar
desportos e outras
coisas no género. Mas se vocês aqui estão sempre juntos e se
um dia isso não te agradar por mais tempo, tudo se tornará
complicado. Vocês vêem-se a cada passo, praticamente a todos os momentos : sê prudente,
Anne, e não te prendas tanto.
- Não me prendo demasiado, pai, e o Peter é correcto,
é muito bom rapaz.
-Sim, é bom rapaz, mas não tem um carácter firme;
tão fàcilmente se deixa influenciar para o bom como para
o mau. Oxalá se mantenha correcto, porque no fundo
é boa pessoa.
Ainda conversámos um pouco e depois combinámos
que o pai fosse falar com ele também. No domingo à tarde,
quando eu estava lá em cima, o Peter perguntou :
- Então falaste ao teu pai, Anne?
- Falei - disse eu - e vou-te contar tudo. Ele não acha
mal nenhum em estarmos tão juntos um do outro, mas
pensa que isto pode dar lugar a mal-entendidos.
- Já combinámos que nunca havemos de discutir e
estou resolvido a cumprir.
- Também eu, Peter, mas o pai tinha imaginado que
éramos apenas bons camaradas. Achas que já não podemos
ser bons camaradas?
- Porque não? Que te parece?
- Parece-me que podemos. Eu disse ao pai que tenho
confiança em ti. E é a verdade, Peter. Tenho tanta confiança
em ti como no pai, e penso que o mereces, não é
verdade?
- Espero que sim.
Corou e ficou atrapalhado.
- Creio em ti, Peter, creio que tens um bom carácter
e que farás o teu caminho na vida.
Falámos ainda de várias coisas e eu depois disse :
- Quando sairmos daqui, já sei que não vais fazer
caso de mim.
Ele disse com ardor:
- Não digas tal coisa, Anne! Oh! não, tu não tens
direito de me julgar assim.
Depois chamaram-me.
Na segunda-feira contou-me que o pai falou com ele.
- O teu pai pensa que a nossa camaradagem podia
acabar em namoro, e eu disse que podia ter confiança
em nós.
O pai quer que eu não vá tantas vezes lá para cima, mas não estou de acordo. Não só
porque gosto de estar com
o Peter mas também por lhe ter dito que tenho confiança
nele. E já que tenho esta confiança quero provar-lha.
E eu não lha poderia provar se manifestasse desconfiança,
ficando cá em baixo.
Não, hei-de ir!
Entretanto, o "drama Dussel" acabou. No sábado, ao
jantar, pediu desculpa num discurso bem estudado, em
holandês. O sr. van Daan ficou logo derretido. Julgo que
o Dussel levou o dia inteiro a ensaiar "a lição". O seu
aniversário, no domingo, correu com calma. Nós, os
Franks, demos-lhe uma garrafa de vinho de rgIg, os van
Daans (que já estavam agora de bem com ele e lhe podiam
oferecer uma prenda) deram-lhe um copo de "Piccadilly"
e um maço de lâminas, o Kraler veio com um frasco de
compota de limão, a Miep com um livro e a Elli com uma
planta. E ele regalou-nos a todos com um ovo para cada.
Tua Anne

Quarta-feira, 3 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Primeiro, as novidades da semana. A política está em
férias, não aconteceu nada, mas mesmo absolutamente
nada. Pouco a pouco começo a acreditar que a invasão
está para breve. Impossível deixarem os russos a esfalfarem-se
sózinhos. Aliás, da Rússia, também não há novidades.
O sr. Koophuis vem, de novo, todos os dias ao escritório.
Arranjou uma mola nova para o sofá do Peter e
agora não tem outro remédio senão fazer de estofador,
apesar da falta de jeito. Também arranjou um pó contra
as pulgas dos gatos. Já te contei que o Boschi se foi embora.
Desde quinta-feira desapareceu sem deixar vestígios.
Decerto lá estará no céu dos gatos, pois provàvelmente
algum "amigo dos animais" deliciou-se com ele para o
almoço. Pode ser que o seu pêlo ainda dê uma touquinha
de criança. O Peter ficou muito triste.
Desde sábado que lanchamos às onze e meia. Ao
pequeno almoço comemos uma papa com que temos de
aguentar-nos. Assim poupamos uma refeição. Ainda é
difícil conseguir-se hortaliça. Hoje tivemos salada cozida
que já estava bastante estragada. Sempre salada, ou crua
ou cozida, e espinafres e, a acompanhar, batatas de má
qualidade. Uma combinação deliciosa!
Há mais de dois meses que eu não tinha tido o meu
"incómodo". Finalmente, no sábado apareceu. Apesar de
todas as contrariedades e mal-estar, sinto-me contente.
Tu talvez não possas compreender que aqui surja
tantas vezes a pergunta desesperada: porquê e para quê
é esta guerra? Porque é que os homens não podem viver
em paz? Para quê tantas destruições?
Estas perguntas são legítimas, mas até agora ninguém
soube encontrar-lhes uma resposta satisfatória. Porque é
que na Inglaterra se constroem aviões cada vez maiores,
bombas cada vez mais pesadas e, ao mesmo tempo, se
reconstroem filas de casas? Porque é que se gastam todos
os dias milhões para a guerra, se não há dinheiro para a
medicina, os artistas e os pobres? Porque é que há homens
a passar fome se, em outros continentes, apodrecem
víveres? Porque é que os homens são tão insensatos?
Não acredito que a culpa da guerra caiba exclusivamente aos que governam e aos
capitalistas. Não, o homem
da rua também tem a sua culpa, pois não se revolta.
O homem nasce com o instinto da destruição, do massacre,
da fúria, e enquanto toda a Humanidade não sofrer uma
metamorfose total, haverá sempre guerras. O que se construiu e cultivou e o que cresceu
será destruído, e à Humanidade só resta recomeçar.
Tenho estado muitas vezes abatida mas nunca me
senti aniquilada. Considero a nossa vida de "mergulhados"
uma aventura perigosa que é, ao mesmo tempo, romântica e interessante. Sempre me
propus viver uma vida diferente
da das raparigas em geral, do mesmo modo como também
não me agrada para o futuro a vida banal das donas de
casa. Isto aqui é um bom princípio com muitas coisas
cheias de interesse e, mesmo nos momentos mais perigosos,
vejo o cómico da situação e não posso deixar de me rir.
Sou jovem e com certeza ainda há em mim boas qualidades por despertar; sou jovem e
forte e vivo conscientemente esta grande aventura. Porque hei-de lamentar-me todo o dia?
Muito me deu a natureza: alegria e força. Cada vez
mais sinto como o meu espírito se desenvolve, sinto a libertação que se está aproximando,
sinto como é bela a natureza e como é boa a gente que me rodeia. Porque hei-de estar
desesperada?
Tua Anne

Sexta-feira, 5 de Maio de 1944

Querida Kitty:
O pai não está contente comigo. Julgava que eu,
depois da nossa conversa no domingo, tinha resolvido não
subir todas as noites lá para cima. Não concorda com a
nossa "beijoquice".
Detesto esta palavra. Bem basta a gente ter de falar
no assunto, não vejo necessidade de o escarnecer.
Ainda hoje hei-de voltar a falar com o pai. A Margot
deu-me alguns bons conselhos. Eis o que quero, mais ou
menos, dizer-lhe:
"Parece-me, pai, que exiges de mim uma explicação
e vou dar-ta. É possível que estejas desapontado comigo
e me julgasses menos impulsiva. Com certeza gostavas que
eu fosse como as outras raparigas aos catorze anos ou,
melhor, como elas deviam ser. Mas enganas-te! Desde que
viemos para aqui, em Julho de 1942, até há poucas semanas,
a minha vida não tem sido fácil. Se tu soubesses quantas
vezes chorei de noite, como era infeliz, como me sentia
só, então compreenderias melhor porque é que quero
estar lá em cima. Não foi de um dia para o outro que
consegui chegar a viver sem o apoio da mãe ou seja de quem
for. Tem-me custado lutas duras e muitas lágrimas o ter-me
tornado tão independente como agora sou. Podes rir-te,
talvez não acredites, mas as coisas são como são. Tenho
a consciência de ser alguém que sabe responder por si
própria e que não se sente responsável para convosco.
Digo-te isto para que não penses que tenho segredos,
porque, de resto, só me considero responsável perante mim
mesma! Quando me debatia com tantas dificuldades,
vocês - e também tu - fecharam os olhos e os ouvidos.
Não me ajudaste, pelo contrário, só me advertias para eu não fazer tanto alarido. Eu era
barulhenta porque não
queria ser infeliz, eu era travessa porque queria abafar
a voz que há dentro de mim. Representei uma comédia,
durante ano e meio, dia após dia, sem me queixar, sem
perder a linha; lutei até agora e venci. Sou independente
de corpo e de espírito, não preciso da mãe, saí fortalecida
de todas as lutas.
"E agora que alcancei o meu fim, agora que me impus,
hei-de seguir sózinha o meu caminho, o caminho que me
parece ser o melhor. Não podes, nem deves, considerar-me
uma rapariga de catorze anos. A nossa tragédia tem-me
envelhecido, e hei-de agir conforme me parece bem. Tu,
que és a bondade em pessoa, não me podes impedir de ir
lá para cima. Ou tu me proíbes tudo ou tens de ter confiança
em mim em todas as circunstâncias. Só te peço:
deixa-me em paz!"
Tua Anne

Sábado, 6 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Ontem, antes de jantar, meti uma carta no bolso do
pai. Escrevi-lhe o que ontem te expliquei. Depois de a
ter lido, ficou, durante todo o serão, desconcertado. Foi a
Margot quem mo disse, pois eu estava a ajudar lá em cima
a lavar a louça. Pobre Pim, eu devia ter sabido o resultado
de uma carta assim. Ele é tão sensível! Avisei logo o Peter
para não lhe perguntar mais nada. O Pim não voltou a
falar comigo sobre o caso. Ainda virá a fazê-lo?
As coisas aqui vão andando. As novidades que nos vão
dando sobre as pessoas lá de fora e sobre os preços são
quase inacreditáveis: duzentos e cinquenta gramas de chá
custam trezentos e cinquenta florins; meio quilo de café
oitenta florins; meio quilo de manteiga trinta e cinco; um
ovo quarenta e cinco. Por cem gramas de tabaco búlgaro
dão-se catorze florins. Todos fazem negócios "negros".
Todos os garotos têm qualquer coisa que vender. O moço
de recados da nossa padaria arranja-nos linha para pontear,
muito pouca e muito fininha, por noventa cêntimos; é o
leiteiro quem arranja os falsos cartões de víveres; um
cangalheiro negoceia em queijo. Todos os dias se registam
assaltos, assassínios e roubos em que, além dos criminosos
profissionais, estão muitas vezes envolvidos polícias e
guardas. Todos querem arranjar alguma coisa para acalmar
o estômago, e como o aumento dos salários é proibido, as
pessoas recorrem à intrujice.
A polícia de menores não tem mãos a medir. Não se
passa um dia sem que desapareçam raparigas de quinze,
dezasseis, dezassete anos ou mais.
Tua Anne

Domingo, de manhã, 7 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Ontem à tarde, tive uma longa conversa com o pai.
Chorei terrivelmente e o pai chorou comigo. Sabes o que
me disse?
-Já recebi muitas cartas na minha vida, mas esta foi
a mais feia! Tu, Anne, tu a quem os pais dedicaram tanto
amor, sempre prontos a defender-te fosse do que fosse, tu
pretendes não ter obrigações para connosco? Tu julgas-te
posta de parte e abandonada? Foste muito injusta para
connosco, Anne. Talvez não quisesses dizer bem isso, mas
escreveste-o. Não, Anne, nós não merecemos uma tal
acusação.
Oh, sim, fui injusta-nunca cometi acção tão horrível
em toda a minha vida! Só pretendi fazer figura com todo
aquele palavriado e, com todas as minhas lágrimas, só
pretendi chamar a atenção do pai sobre mim. É certo que
sofri. Mas culpar o Pim, que é bom, que tudo tem feito
por mim e continua a fazer, foi ignóbil da minha parte.
Ainda bem que ele me tirou da minha torre de marfim,
que o meu orgulho ficou derrotado, pois eu já estava, de
novo, a ser muito presunçosa. Porque nem tudo o que faz
a menina Anne é bem feito, nem de longe! Causar uma tal
dor a uma pessoa a quem se diz amar, e ainda por cima
intencionalmente, é um acto baixo, muito baixo! E o
que mais me envergonha é a maneira como o pai me
perdoou. Disse que vai queimar a carta e é tão meigo
comigo como se tivesse sido ele que se portou mal. Oh, Anne,
tens que aprender ainda tanta coisa! Será melhor começares
já a aprender, em vez de olhares de alto para os outros,
ou de os culpar!
Vivi momentos difíceis. Mas não os vive toda a gente da minha idade? Representei muitas
vezes uma comédia mas nem sequer tive consciência disso. Sentia-me só, é verdade, mas
nunca verdadeiramente desesperada. Devo ter vergonha e tenho muita vergonha!
O que está feito, está feito, mas é sempre tempo de
evitar que o mesmo aconteça outra vez. Hei-de tornar a
começar pelo princípio e isto não deve ser difícil porque
tenho o Peter. Se ele me ajudar serei capaz! Já não estou
só, ele ama-me e eu a ele; tenho os meus livros, as histórias
que escrevi, o meu diário; não sou feia de todo, não sou
estúpida; tenho um feitio alegre e gostava muito de possuir
um bom carácter!
Sim, Anne, tu bem sabias que a tua carta era dura
de mais e que não correspondia à verdade, mas, apesar
disso, sentiste-te orgulhosa dela. De ora em diante o pai
há-de ser para mim outra vez o exemplo a seguir e, assim,
hei-de corrigir-me por força.
Tua Anne

Segunda-feira, 8 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Pensando bem, nunca te contei nada da nossa família,
pois não? Mas vou fazê-lo agora mesmo.
Os pais do meu pai eram muito ricos. O avô venceu
pelo seu esforço e a avó descendia de uma família rica
e distinta. Assim, meu pai gozou uma juventude de "filho
de pais ricos": saraus elegantes, todas as semanas, festas,
bailes, raparigas bonitas, jantares, uma casa grande...
Mas o dinheiro perdeu-se todo depois da outra guerra
mundial, durante a inflação. O pai teve, portanto, uma
boa educação e, por isso, riu-se muito ontem à mesa, porque,
pela primeira vez numa vida de 55 anos, rapou uma
travessa.
Também a mãe é filha de gente rica e, escutamos de
boca aberta, quando ela nos conta de festas de casamento
com duzentos e cinquenta convidados, de grandes bailes
e grandes jantares. A nós já ninguém nos pode chamar
ricos, mas tenho boas esperanças de que as coisas se modifiquem depois da guerra. Para
ser franca, não me interessa
lá muito uma vida tão simples como a que a mãe e a Margot
ambicionam. Eu, por mim, gostava de passar um
ano em Paris e outro em Londres para poder estudar
as diferentes línguas e também história de arte. Agora
compara tu os meus desejos com os da Margot, que quer
ser enfermeira-parteira na Palestina. Gosto de imaginar
vestidos bonitos e gente interessante, quero ver e viver
muitas coisas-já te falei disso-, e um pouco de dinheiro
far-me-á jeito.
Hoje de manhã a Miep contou-nos de uma festa de
pedido de casamento em que ela tomou parte. A noiva
e o noivo são de famílias ricas e tudo estava um primor.
A Miep causou-nos inveja quando falou da boa comida
que serviram: sopa de legumes com bolinhas de carne
pãezinhos de queijo, "hors díveloeuvre" com ovos, "roast
beaf", bolos, vinho e cigarros e tudo em abundância, claro
arranjado no mercado negro. Só a Miep bebeu dez "brandies" - nada mau para uma
antialcoólica. Se a Miep chegou
a isso então gostava de saber quantos engoliu o marido.
Claro que toda a gente ficou um pouco "animada". Entre
os convidados havia dois polícias militares que tiraram
fotografias. Parece que a Miep nunca se esquece dos seus
"mergulhados". Tomou nota dos nomes e das direcções
destes homens para o caso de acontecer alguma coisa e
ela ter de recorrer aos "bons holandeses". Fez-nos crescer
a água na boca ao contar-nos daquelas comidas deliciosas,
a nós que só comemos algumas colheres de papa ao pequeno
almoço e depois não sabemos durante horas o que havemos
de fazer à nossa fome, que comemos todos os dias espinafres
mal cozidos (por causa das vitaminas) e batatas
meio estragadas, que enchemos o estômago com salada,
crua ou cozida, com espinafres e outra vez espinafres.
Talvez ainda fiquemos tão fortes como o Popeye, embora
isso nos pareça quase impossível.
Se a Miep nos tivesse levado àquela festa, não teríamos
deixado ficar nada para os outros convidados. Podes
crer que comíamos as palavras da Miep quando nos agrupámos
à volta dela e aquilo dava a impressão de que nunca
tínhamos ouvido falar de boa comida e de gente elegante.
Sendo nós netos de milionários. Não há dúvida de que
acontecem coisas estranhas neste Mundo!
Tua Anne

REGULAMENTOS PARA OS SERVIÇOS DO SENHOR DOUTOR

De manhã : Sete e quinze às sete e trinta
Ao almoço: à uma hora.
Depois : o tempo que quiser.

Terça-feira, 9 de Maio de 1944

Querida Kitty :
Acabei a história Ellen, a fada. Passei-a a limpo
para um papel bonito, enfeitei-a a tinta vermelha, encadernei-a, e agora parece mesmo uma
coisa bonita. Mas não
achas pouco para o aniversário do pai? Não sei bem.
A mãe e a Margot fizeram-lhe poemas.
Hoje, à hora do almoço, o sr. Kraler trouxe-nos a
notícia de que a sra. B., que, em tempos, foi propagandista
da firma, quer vir passar, a partir da semana que vem,
a sua hora de almoço no escritório. Imagina: se ela fizer
isso, ninguém poderá subir, as batatas têm de ser entregues
a uma outra hora, a Elli não poderá comer aqui,,
nós não poderemos utilizar o W.C., nem mexer-nos,
etc, etc.
Estivemos todos a inventar pretextos para a fazer
desistir. O sr. van Daan disse que talvez bastasse deitar-lhe
um purgante no café.
- Não, - disse o sr. Koophuis, - isso não, por favor. Então
ela nunca mais sairá do "trono".
Todos se riram muito.
- Do "trono"? perguntou a sra. van Daan.-O que
quer dizer?
Explicámos-lhe.
- É assim que se diz? - perguntou ela cheia de candura.
- Agora, imagina tu - segredou-me a Elli a rir-que
ela vai aos armazéns Bijenkorf perguntar onde fica o trono!
O Dussel está todos os dias, pontualmente, ao meio dia
e meia hora no "trono" - para usar a linda expressão.
Enchi-me de coragem e escrevi hoje num pedaço de
papel.
Colei o papel na porta do W. C. enquanto ele estava
lá dentro. Ainda devia ter acrescentado:
"Em caso de infracção, haverá bloqueio", pois a porta
do W. C. tanto pode fechar-se por dentro como por fora.
Ai Kitty, o tempo está tão bonito. Quem me dera poder sair!
Tua Anne

Quarta-feira, 10 de Maio de 1944

Querida Kitty :
Ontem, quando estávamos no sótão a estudar francês,
pareceu-me, de repente, ouvir correr água. Perguntei ao
Peter o que seria aquilo, mas ele, em vez de responder,
correu imediatamente à mansarda, pois já estava a adivinhar
a causa do desastre. Pegou no Mouchi e levou-o
sem piedade ao lugar próprio. O Mouchi fugiu para baixo.
Por uma questão de comodidade, o Mouchi tinha escolhido
um lugar no meio do serrim, mas o chichi passou
pelas tábuas e pingou, quase todo, na pipa das batatas.
As batatas e o serrim, que o pai foi buscar ontem,
cheiravam terrivelmente mal. Pobre Mouchi. Não sabias
que te tivemos de privar da tua turfa no caixote, por
já não haver nenhuma à venda.
Tua Anne

Quinta-feira, 11 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Uma história que te vai fazer rir.
O Peter precisava de cortar o cabelo. A sua mãe,
como de costume, quis fazer de cabeleireira. O Peter
desapareceu no seu quarto e às sete e meia em ponto voltou
de calção de banho e de sapatos de ginástica.
- Vens comigo? - perguntou a mãe.
- Vou, mas estou à procura da tesoura.
O Peter ajudou-a a procurar, mas remexeu de mais
na caixa de "toilette" da sra. van Daan.
- Não me ponhas tudo em desordem - censurou ela.
Não percebi o que é que ele respondeu, mas deve ter
sido coisa malcriada, porque a senhora deu-lhe uma
palmada no rabo; ele pagou-lhe na mesma moeda e, quando
ela se preparava para lhe chegar outra, ele fugiu. às
gargalhadas.
- Anda comigo, minha velhinha! - gritou.
Ela ficou onde estava. Então o Peter agarrou-lhe nos
punhos e arrastou-a pelo quarto fora. Ela chorava, ria,
ralhava e tentou defender-se. Mas não lhe serviu de nada.
O Peter arrastou-a até junto da escada, onde a soltou.
A sra. van Daan voltou ao quarto e, suspirando alto,
deixou-se cair numa cadeira.
- O rapto da mãe - disse eu rindo.
- Mas ele magoou-me!
Fui ver-lhe os pulsos que estavam vermelhos e quentes e
refresquei-lhos com água: O Peter, à espera dela na escada,
impacientou-se. Com uma correia na mão, como um
domador de feras, apareceu à porta. Mas a sra. van
Daan não ia. Ficou sentada à escrivaninha. e pôs-se a procurar
o lenço. Depois disse:
- Primeiro, tens de pedir desculpa.
- Está bem - disse ele - peço desculpa porque se está
a fazer tarde.
Contra sua vontade ela riu-se, levantou-se e foi até à
porta. Mas ainda achou necessário dar-nos uma explicação,
ao meu pai, à minha irmã e a mim, que estávamos
a lavar a louça.
- Ele não era assim em casa. Se se tivesse atrevido, eu
dava-lhe uma bofetada que o teria deitado pela escada
abaixo(!). Nunca costumava ser tão malcriado, apanhava
muitas surras. Agora está a sofrer as consequências da
educação moderna. Ai!, filhos modernos! Eu teria lá tido
coragem de puxar assim pela minha mãe! O sr. Frank
fazia coisas destas à sua mãe?
Estava excitada, corria de um lado para o outro; fez
ainda algumas perguntas e só depois de se ter demorado
bastante tempo é que foi com o filho para cima. Mas passados
cinco minutos voltou a correr, toda zangada, tirou o
avental e deitou-o ao chão. Perguntei-lhe se já tinha concluido o serviço. Respondeu-me que
precisava de ir depressa
lá para baixo. Como um turbilhão desceu a escada, suponho
que para se deixar cair nos braços do seu Putti. Só às oito
voltou com ele. Foram buscar o Peter, que teve de ouvir
um grande sermão. Choviam palavras como "garoto malcriado",
"grosseirão", "mau exemplo", "olha a Anne...",
"a Margot é que...". Não consegui perceber mais nada.
Amanhã já não pensam mais nisso.
Tua Anne

P. S. Terça e quarta à noite falou a nossa querida
rainha. Vai passar umas férias fora, para voltar com novas
forças. Oxalá volte depressa. Disse entre outras coisas:
"Em breve, depois de eu ter regressado... a libertação não
demora... heroísmo e tarefas pesadas".
Seguia-se um discurso do ministro Gerbrandy. Depois
remataram a emissão com a reza de um sacerdote que
pediu a Deus para proteger os judeus e todos os presos
nos campos de concentração, nas prisões e na Alemanha.
Tua Anne

Sexta-feira, 12 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Talvez te pareça fantástico mas estou tão ocupada
neste momento que o tempo não me chega para levar a
cabo os meus trabalhos. Queres saber o que ainda tenho
a fazer? Aí vai: até àmanhã preciso de acabar a leitura
da primeira parte da biografia de Galileu, pois o livro
tem de ser entregue na biblioteca. Comecei ontem, mas
hei-de lê-lo todo. Na próxima semana quero ler: "Palestina, uma encruzilhada" e o segundo
volume do "Galileu".
Ontem acabei a primeira parte da biografia do Carlos V
e agora torna-se urgente pôr ordem nos meus apontamentos
e nas datas genealógicas. Tirei, de vários livros, três
páginas cheias de palavras estrangeiras que quero decorar. A
minha colecção de "estrelas" de cinema está numa desordem
aflitiva e tem de ser arranjada. Mas só isto me levaria
alguns dias e como o "Professor Anne, conforme já foi
dito, está a sufocar com trabalho, o caos daquela colecção
tem de ser fatalmente abandonado à sua sorte por mais
algum tempo.
Teseu, Édipo, Peleu, Orfeu, Jasão e Hércules estão
à minha espera. Os seus feitos históricos confundem-se
ainda na minha cabeça como uma trama de fios embrulhados
e multicolores. Também Byron e Fídias precisam
de ser estudados para eu não perder a ligação. O mesmo
acontece com as guerras dos sete e dos nove anos; ando
a misturar tudo. Mas que queres que faça quando se
tem uma memória tão fraca como a minha? E agora
podes imaginar como serei aos oitenta anos! É verdade :
ia-me esquecendo da bíblia. Espero que não demorarei
muito a chegar à história da Susana no banho. E que
querem dizer com os crimes de Sodoma e Gomorra? Ai! tanta coisa por perguntar, tanta
coisa por aprender! A Lieselotte
von der Pfalz até a abandonei por completo.
Vês, Kitty, que estou a transbordar?
E agora outra coisa: Já sabes há muito que o meu
maior desejo é vir a ser jornalista e, mais tarde, escritora
famosa. Serei capaz de realizar esta minha ambição? Ou
será tudo isto uma mania de grandeza ou até uma loucura?
Só o futuro o dirá. Mas assuntos não me faltam. Hei-de
publicar um livro depois da guerra: O anexo. Se serei
ou não bem sucedida, não se pode prever, mas o meu
diário servir-me-á de base. Além da história do anexo,
tenho outras ideias. Hei-de falar nelas mais longamente
quando tiverem tomado forma.
Tua Anne

Sábado, 13 de Maio de 1944

Querida Kitty :
Ontem, o aniversário do pai coincidiu com os seus
dezanove anos de casado. A mulher-a-dias não apareceu
lá em baixo no escritório, e o Sol brilhava como ainda
não tinha brilhado neste ano. O castanheiro está coberto
de flores e acho-o ainda mais belo do que no ano passado.
O Koophuis deu ao pai a biografia de Lineu, o Kraler
um livro sobre História Natural, e o Dussel Amsterdam
e Water; os van Daan deram um cesto tão estupendamente
enfeitado que nem um artista o faria melhor, contendo
três ovos, uma garrafa de cerveja, um frasco de
yoghurt e uma gravata verde. O nosso frasco de compota
quase desaparecia ao lado daquilo. As rosas que lhe ofereci
cheiravam muito bem mas os cravos da Miep e da Elli
não têm cheiro nenhum, embora sejam lindíssimos. O pai
não se pode queixar. Vieram cinquenta pastéis, que coisa
maravilhosa! O pai, por sua vez, ofereceu doce e uma
garrafa aos senhores e "yoghurt" às senhoras. Foi uma festa
em cheio!
Tua Anne

Terça-feira, 16 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Já que há tanto tempo não tenho falado neste assunto,
vou reproduzir-te hoje uma discussão que tiveram ontem
o sr. e a sra. van Daan.
A sra. van Daan: Os alemães devem ter reforçado o
Muro do Atlântico. Com certeza farão tudo o que puderem
para impedir que os ingleses desembarquem. É espantoso
que os alemães tenham tanta força.
O sr. van Daan: É verdade, é horrível.
Ela: Sim... sim!
Ele: Ao fim e ao cabo os alemães ainda ganham a
guerra. São tão fortes!
Ela: Provàvelmente. Ainda não me convenci do contrário.
Ele: É melhor eu não dizer mais nada.
Ela: Mas tu respondes-me sempre. Não consegues ficar
calado.
Ele: Afinal as minhas respostas não dizem nada.
Ela: Mas mesmo assim queres responder e queres ter
sempre razão. As tuas profecias estão longe de bater certo.
Ele: Até agora nunca me enganei.
Ela: É mentira. Previste a invasão para o ano passado,
nos teus cálculos a Finlândia já devia ter concluido a paz,
a Itália teria ficado liquidada no Inverno e os russos já
teriam tomado Lwow. Oh! Não, eu cá não dou nada
pelas tuas profecias.
Ele (levanta-se): Cala a boca! hás-de ver que tenho
tido sempre razão, ao passo que tu fartas-te de dizer tanta
asneira que já não posso mais com isto. O que eu devia
fazer era esfregar-te o nariz na tua própria estupidez.
Cai o pano

P. S. Apeteceu-me rir e à mãe também. O Peter quase
não conseguiu conter uma gargalhada. Oh! estes estúpidos
adultos. Deviam mas é começar a aprender as coisas
em vez de andar a criticar constantemente as crianças!
Tua Anne

Sexta-feira, 19 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Ontem senti-me horrivelmente mal, tive dores de barriga
e todos os males imagináveis. Hoje já estou melhor.
Tenho fome, mas não posso comer os feijões escuros. Com
o Peter tudo vai bem; o pobre do rapaz ainda sente mais
necessidade de ternura do que eu. Continua a corar todas
as vezes que nos despedimos com um beijo de boas-noites
e depois pede-me mais outro. Serei para ele uma substituta
melhorada do Boschi? Mas não faz mal. Ele sente-se
tão feliz por ter a certeza de que alguém o ama!
Depois desta conquista difícil, domino um tanto a situação,
mas não penses que por isso o meu amor enfraqueceu.
Não enfraqueceu; o meu íntimo é que voltou a fechar-se.
Se ele quiser arrombar a fechadura outra vez, precisará
de uma alavanca muito forte!
Tua Anne

Sábado, 20 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Quando, ontem, de noite, vinha a descer do quarto
do Peter, vi a linda jarra com os cravos no chão, a mãe
de joelhos a limpar a água e a Margot a pescar os meus
papéis.
- Que aconteceu? - perguntei apreensiva, procurando
abranger com os olhos todos os estragos. Tudo a nadar:
as minhas pastas das árvores genealógicas, os cadernos, os
livros. Estava quase a chorar e tão impressionada fiquei
que nem consigo lembrar-me do que lhes disse. A Margot
contou-me depois que proferi palavras como "danos incalculáveis, horrível, medonho,
irreparável!" O pai deu uma
gargalhada, a mãe e a Margot também, mas a mim só
me apetecia chorar por causa do tempo perdido que tinha
dedicado àqueles apontamentos tão cuidadosamente
elaborados.
Mas, vistas bem as coisas, os danos "incalculáveis" não
eram assim tão grandes e, sentada no chão, separei com
cautela os papelinhos colados uns aos outros e, depois,
pendurei-os na corda da roupa. Aquilo era um espectáculo
patusco e deu-me vontade de rir: Maria de Médicis
ao lado de Carlos V, e Guilherme de Orange ao lado de
Maria Antonieta.
- Isto é uma profanação-gracejou o sr. van Daan.
Pedi ao Peter que tomasse conta da minha papelada,
e desci.
- Que livros é que ficaram estragados? - perguntei à
Margot, que estava a examinar o meu tesouro de livros.
- O de álgebra-respondeu ela.
Mas infelizmente o livro de álgebra não estava totalmente
estragado. Quem me dera que ele tivesse caído mesmo dentro da jarra. Nunca tive tanta
antipatia por um livro. Logo ao abri-lo, lêem-se os nomes de umas vinte raparigas que já
estudaram por ele; é um livro velho, amarelecido, cheio de rabiscos e de correcções.
Quando tiver um dos meus dias de atrevida e travessa, hei-de rasgar
este estafermo em mil pedaços.
Tua Anne

Segunda-feira, 22 de Maio de 1944

Querida Kitty:
O pai perdeu, em 20 de Maio, numa aposta com a
sra. van Daan cinco frascos de yoghurt. A invasão, de
facto, ainda não veio. Não é exagero se te disser que toda
a cidade de Amesterdão, toda a Holanda, mais : toda
a costa ocidental da Europa até à Espanha, só fala e discute,
dia e noite, sobre a invasão. Tudo aposta... tudo tem
esperança.
A tensão aumenta e está a tornar-se insuportável. Afinal
nem todas as pessoas que nós julgávamos bons holandeses,
mantêm a sua confiança nos ingleses. Não se conformam
com o famoso "bluff" inglês, oh, não! Os homens querem
ver grandes façanhas, actos heróicos. Ninguém consegue
ver um palmo diante do nariz, ninguém se quer lembrar
de que os ingleses estão a defender a sua própria terra,
todos julgam que eles têm obrigação de salvar, o mais
depressa possível, a Holanda. Mas quais são as obrigações
dos ingleses para connosco? Que fizeram os holandeses
para merecer um auxílio tão nobre, como esperam com
tanta certeza? Os holandeses que não se admirem se se
enganarem. Ao fim e ao cabo, os ingleses não têm feito
mais má figura do que todos os outros países e países vizinhos
que estão agora ocupados. Os ingleses não precisam
de se desculpar quando os acusamos de terem dormido
durante todos aqueles anos em que os alemães se armaram,
pois os outros países, em especial os que estão mais
próximos da fronteira alemã, também estiveram a
dormir. Não adiantamos nada em fazer como a avestruz,
isto já o reconheceram os ingleses e o resto do Mundo,
e é por isso que os aliados, todos juntos e cada um por si,
e a Inglaterra sobretudo, se vêem obrigados a fazer pesados
sacrifícios. Não há país nenhum que tenha vontade de
sacrificar os seus homens só para o bem de um outro país,
e a Inglaterra não é diferente dos mais. A invasão, a
libertação, a liberdade, tudo virá um dia, mas a Inglaterra
e a América é que hão-de fixar as datas e não os
habitantes dos países ocupados.
Reina o anti-semitismo nos círculos onde antigamente nem se pensava em tal coisa. Isto
impressionou-nos profundamente. A causa deste ódio contra os judeus talvez se
compreenda e se explique, mas a verdade, é que se trata de um equívoco. Os cristãos
censuram os judeus e dizem que eles se rebaixam perante os alemães, que denunciam os
seus protectores e que muitos cristãos têm, por culpa dos judeus, sofrido terríveis
provações. Pode ser que haja alguma verdade nisto mas, como em todas as coisas, há o
reverso da medalha. O que fariam os cristãos se estivessem no lugar dos judeus? Será fácil
a alguém manter-se firme e correcto com os métodos usados pelos
alemães? Todos sabem que é quase impossível. Então,
porque é que se exige o impossível dosjudeus? Nos grupos
ilegais da resistência corre o boato de que os judeus
alemães, em tempos emigrados para a Holanda e agora
deportados para a Polómia, nunca mais poderão regressar
aqui. Tinham direito de asilo na Holanda, mas logo que
Hitler tenha desaparecido, serão forçados a voltar para a
Alemanha. Ao ouvir coisas assim, surge a pergunta: Para
que se faz esta guerra tão dura e tão longa? Diz-se sempre
que lutamos todos juntos pela verdade, pela liberdade e
pelos direitos do homem. E afinal a discórdia começa
enquanto ainda se luta, e já outra vez o judeu é inferior
aos outros? Oh! como é triste que o velho dito se verifique
mais uma vez : "Os actos de um cristão são da sua própria
responsabilidade. Mas tudo o que faz qualquer judeu recai
sobre todos os judeus!".
Com franqueza não compreendo que os holandeses,
este povo bom, honesto e leal, nos condene assim, a nós
que somos o povo mais oprimido, mais infeliz de todos os
povos do Mundo. Só me resta esperar isto: que o ódio aos
judeus seja apenas passageiro e que os holandeses voltem
a mostrar-se como são na realidade! Oxalá voltem a não
vacilar no seu sentido de justiça. Porque o anti-semitismo
é uma injustiça!!!
Gosto da Holanda. Esperei sempre que um dia me
servisse de pátria, a mim, que já não tenho pátria. E continuo
a ter esta esperança!
Tua Anne

Quinta-feira, 25 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Todos os dias acontecem coisas desagradáveis. Hoje
de manhã prenderam o nosso bom hortaliceiro, que tinha
escondido em casa dois judeus. Foi um golpe muito duro
para nós, não só por causa daqueles judeus que estão agora
à beira do abismo, mas também por causa do pobre hortaliceiro.
O Mundo está às avessas. Pessoas correctas e boas são
enviadas para os campos de concentração, para as prisões
e para as celas solitárias, enquanto a ralé governa sobre os
velhos, os jovens, os ricos e os pobres. Um é apanhado
porque se dedicava ao mercado negro, outro porque
protegia judeus ou outros "mergulhados". Ninguém sabe
o que o espera amanhã.
Também para nós o hortaliceiro significa uma perda
tremenda. A Miep e a Elli não podem carregar com o
saco de batatas e a nossa única saída é comer menos.
Como conseguiremos isso, ainda o hás-de vir a saber, mas
desde já te digo, não vai ser divertido. A mãe propõe
suprimir o pequeno almoço e comer ao almoço a papa,
e à noite batatas fritas e, talvez, uma ou duas vezes por
semana, um pouco de salada e de legumes. Isto quer
dizer: passar fome. Mas todas estas privações são
preferíveis a sermos descobertos.
Tua Anne

Sexta-feira, 26 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Finalmente posso sentar-me tranquilamente à minha
mesinha, junto da janela ligeiramente entreaberta, e
escrever-te.
Há meses que não me sinto tão desgraçada como hoje,
nem depois do assalto estive assim tão infeliz, moral e
fisicamente. De um lado o hortaliceiro, o problema dos
judeus que está a ser o tema do dia cá em casa, a invasão
que se faz esperar, a péssima alimentação, a tensão nervosa,
a má disposição, a minha decepção com o Peter; por outro
lado : o pedido de casamento da Elli, Pentecostes, flores,
os anos do sr. Kraler, bolos, relatórios sobre filmes,
cabarés e concertos. Estes contrastes, estes terríveis
contrastes.
um dia rimo-nos das situações cómicas que a nossa vida
de "mergulhados" traz consigo, no dia seguinte temos medo
e não raras vezes lê-se, nos nossos rostos, o receio, a tensão
nervosa, o desespero. A Miep e o Kraler, mais do que
quaisquer outros, suportam, por via de nós, grandes encargos.
A Miep por lhe causarmos muito trabalho, o Kraler por
ter assumido uma responsabilidade colossal que, por vezes,
lhe pesa de mais e o põe tão nervoso que quase não consegue
pronunciar uma palavra. O Koophuis e a Elli também
se encarregam bem das nossas coisas, muito bem até, mas
são capazes de se esquecer, de se abstrair do anexo, mesmo
que seja apenas por umas horas, por um ou dois dias.
Eles têm outras preocupações, o Koophuis por causa da
sua saúde, a Elli por causa do noivo com quem nem tudo
vai às mil maravilhas; e, além disso, tem distracções, visitas
e a vida toda que para eles corre de uma maneira normal.
Podem libertar-se por vezes dessa tensão de nervos que a
nós nunca nos abandona. Já há dois anos que aqui estamos
- e por quanto tempo seremos ainda capazes de resistir
a esta pressão insuportável que, de dia para dia, vai crescendo?
A canalização está entupida; não podemos deixar
correr a água senão gota a gota; só podemos ir ao W.C.
munidos de uma escova; guardamos a água suja numa das
grandes panelas em que se fervem as conservas. Por
enquanto a coisa remedeia, mas o que é que vai ser se o
picheleiro não vier compor os canos? O serviço municipal
de higiene só virá a este prédio para a semana.
A Miep mandou-nos um pão grande com uvas e junto
um papel onde se lia: "Uma alegre festa de Pentecostes".
Parece quase um escárnio, pois a nossa disposição e o nosso
medo são tudo menos "alegres". Estamos cada vez com mais
medo desde que aconteceu aquilo ao hortaliceiro, de todos
os lados se ouve, outra vez, "chut, chut", andamos de um
lado para o outro sem fazer ruído. No hortaliceiro a polícia
arrombou a porta; aqui pode fazer o mesmo. E se aqui...
não, não quero falar nisto! Mas a pergunta não se deixa
afastar fàcilmente, pelo contrário: aquele medo por que
passei uma vez ergue-se de novo na minha frente em toda
a sua monstruosidade.
Esta noite, às oito horas, deixei a sala onde estávamos
todos reunidos à volta do rádio e desci sòzinha ao W.C.
Quis ser corajosa mas foi difícil. Sinto-me mais segura cá
em cima do que em baixo, onde a casa me parece tão
grande e calada e onde estou sòzinha com os ruídos misteriosos
que vêm de cima e os toques das buzinas que vêm
da rua. Começo a tremer, não consigo demorar-me e tenho
de fazer esforços para não pensar na nossa situação. Pergunto-me muitas vezes se não teria
sido melhor, para todos
nós, não termos "mergulhado" e estarmos mortos sem
precisar de sofrer toda esta miséria, sobretudo sem termos
exposto os nossos protectores a tantos perigos também.
Mas, no fundo, não queremos aceitar tal ideia, porque
ainda amamos a vida, não nos esquecemos ainda da voz
da natureza, ainda esperamos, esperamos que aconteça
algo de bom. Que Deus faça com que aconteça alguma
coisa e, se for necessário, que haja grandes bombardeamentos;
nada nos pode desgastar mais do que esta inquietação.
Que venha o fim., mesmo que seja duro, mas, ao
menos, que fiquemos a saber se vencemos ou se morremos.
Tua Anne

Quarta-feira, 31 de Maio de 1944

Querida Kitty:
Sábado, domingo, segunda e terça fez tanto calor que
não consegui segurar a pena na mão; por isso não te
pude escrever. Na sexta, a canalização voltou a ficar
avariada e no sábado compuseram-na. à tarde recebemos a
visita da sra. Koophuis que nos contou muitas coisas da
Gorrie.
A Gorrie e o Jopie são membros do "Jockey-Club".
No domingo apareceu a Elli para ver se a casa não foi
assaltada, e ficou a almoçar connosco.
Na segunda-feira (segundo feriado do Pentecostes) o
Henk van Santen fez de guarda ao esconderijo e na terça,
pudemos, finalmente, abrir outra vez um pouco as janelas.
É raro haver dias tão quentes nos feriados do Pentecostes.
Mas para nós, cá no anexo, não é bom estar tanto calor.
Vou dar-te uma ideia.

Sábado:
- Que tempo maravilhoso! - exclamaram todos logo
pela manhã cedo.
- Quem dera que não houvesse tanto calor - disseram
à hora do almoço quando asjanelas têm de estar fechadas.

Domingo:
- O calor é insuportável. A manteiga derrete. Não há
um cantinho fresco em toda a casa, o pão está seco, o leite
estragado, e não se podem abrir as janelas: Ai de nós,
somos párias e estamos aqui a sufocar enquanto os outros
festejam o Pentecostes.

Segunda-feira:
- Doem-me tanto os pés, não tenho roupa leve, não
posso lavar a louça com um calor destes.
Assim falou a sra. van Daan. Foi horrível. Também
não gosto do calor e hoje estou contente por correr um
ventinho e por brilhar o Sol ao mesmo tempo.
Tua Anne

Segunda-feira, 5 de Junho de 1944

Querida Kitty:
Outro acontecimento desagradável: nós, os Frank, zangámo-nos
com o Dussel, e por causa de uma coisa sem
importância-a distribuição da manteiga. O Dussel ficou
derrotado. Agora há grande amizade entre ele e a sra. van
Daan, uma espécie de "flirt" com beijinhos e sorrisos.
Ao Dussel fez-lhe mal a Primavera.
Roma foi tomada pelo Quinto Exército, sem devastações
nem bombardeamentos.
Pouca hortaliça, poucas batatas. Tempo mau. O estreito
de Galais e a costa francesa constantemente bombardeados.
Tua Anne

Terça-feira, 6 de Junho de 1944

Querida Kitty:
"This is the day", disse ao meio-dia a rádio inglesa e
com razão! "This is the day". Começou a invasão! De
manhã, às oito horas, os ingleses noticiaram: bombardeamentos
pesados sobre Calais, Boulogne, Le Havre e Gherbourg
e, como de costume, sobre o estreito de Calais.
Mais: medidas de segurança para todos os habitantes
das zonas ocupadas. Todos os habitantes de uma zona que
abrange até trinta e cinco quilómetros da costa devem
preparar-se para bombardeamentos pesados. Se for possível,
os ingleses lançarão folhetos com uma hora de antecedência.
Segundo as notícias alemãs, tropas de para-quedistas
conseguiram lançar-se na costa francesa. A B. B. C. anuncia:
"A marinha alemã combate contra os barcos ingleses do
desembarque".
Discussões no anexo às nove horas, hora do pequeno
almoço :
- Será isto um desembarque de ensaio como aquele
de Dieppe, há dois anos?
às dez horas, emissão inglesa em alemão, holandês,
francês e outras línguas: "The invasion has begun!" Trata-se
portanto de uma invasão autêntica. Emissão inglesa às
onze horas, em alemão : discurso do comandante-chefe,
o general Dwight Eisenhower.
Emissão inglesa - língua inglesa-meio dia: "This is
the day". O general Eisenhower fala ao povo francês:
- Still fighting will come now. But after this the victory.
The year 1944 is the year of complete victory, good luck!
Emissão inglesa à uma hora: onze mil aviões voam
continuamente de um lado para o outro para desembarcar
tropas e lançar bombas atrás das linhas. Quatro mil barcos
e outras pequenas embarcações despejam, entre Cherbourg e Le Havre, sem interrupção,
tropas e material. Tropas
inglesas e americanas estão já a lutar àrduamente. Discursos
de Gerbrandy, do Primeiro-Ministro da Bélgica, do
rei Haakon da Noruega, de De Gaulle da França, do rei
da Inglaterra, sem esquecer, claro está, o de Churchill.
O anexo está como que em delírio. Será então verdade
que a libertação, há tanto ansiada, a tão discutida libertação, sempre está a aproximar-se?
Não será isto maravilhoso de mais, fantástico de mais para se tornar realidade? O ano de
1944 trará, de facto, a vitória? Não o sabemos ainda, mas a esperança anima-nos, dá-nos
nova coragem,
torna-nos fortes, pois precisamos de coragem para podermos
suportar o medo, as privações, o sofrimento; agora o
essencial é conservarmo-nos calmos e firmes. Mais do que
nunca, tenho de cerrar os dentes para não gritar. Agora
são a França, a Rússia, a Itália e também a Alemanha
que podem gritar de tanto sofrer, mas nós ainda não temos
esse direito!
Oh! Kitty, o mais maravilhoso disto tudo é que tenho
o pressentimento de que amigos estão a aproximar-se!
Os horríveis alemães oprimiram-nos e ameaçaram-nos
tanto tempo, que só o pensar, agora, que se aproximam
amigos, nos restitui a confiança. Agora não se trata só dos
judeus. Agora trata-se da Holanda e de toda a Europa.
A Margot diz que eu talvez já possa voltar à escola em
Setembro ou Outubro.
Tua Anne

P. S. Hei-de informar-te sempre das últimas novidades:
Durante a noite e logo de manhã cedo, desembarcaram
bonecos de palha atrás das linhas alemãs, que explodiram
logo que tocaram o chão. Desembarcaram também muitos
pára-quedistas; estavam pintados de preto para se confundirem
com a escuridão da noite. De manhã desembarcaram
dos primeiros navios, depois de a costa ter sido bombardeada
durante a noite com cinco milhões de quilos de
bombas. Vinte mil aviões estiveram hoje em acção. Tudo
vai bem, embora o tempo esteja mau. O exército e o povo
têm "one will and one hope".
Tua Anne

Sexta-feira, 9 de Junho de 1944

Querida Kitty:
A invasão corre às mil maravilhas. Os aliados tomaram
Bayeux, uma aldeia na costa francesa, e lutam agora por
Calais. Compreende-se bem que querem cercar a peninsula
onde fica Cherbourg. Todas as noites os correspondentes
de guerra relatam as dificuldades, a coragem e o entusiasmo
do exército. Também ouvimos falar os feridos que
tiveram de voltar para a Inglaterra. Apesar do mau tempo,
os aviões levantam sempre voo. Pela B. B. c. ficámos a
saber que Churchill quis tomar parte na invasão, mas que
o general Eisenhower e os outros generais o aconselharam
a desistir dessa ideia. Imagina tu a coragem daquele homem
que já tem setenta anos de idade.
Aquijá não reina tanta excitação; mas esperamos todos
que a guerra acabe finalmente no fim deste ano. E já não
será sem tempo! As lamentações da sra. van Daan estão-se
a tornar insuportáveis. Agora que já não nos pode massacrar
com a invasão, queixa-se todo o dia do mau tempo.
Apetecia-me metê-la num balde de água fria.
Tua Anne

Terça-feira, 13 de Junho de 1944

Querida Kitty:
O meu aniversário passou mais uma vez. Tenho agora
quinze anos. Recebi muitas coisas :
A História de Arte, de Springer, em cinco volumes; um
jogo de roupas interiores; dois cintos; um lenço; dois
frascos de yoghurt; um frasco de compota; um bolo; um
livro de Botânica, do pai e da mãe. A Margot deu-me uma
pulseira dupla, os van Daans um livro, o Dussel ervilhas
de cheiro; a Miep e a Elli rebuçados e cadernos. E ainda
a melhor surpresa: o livro Maria Teresa e três fatias de
queijo autêntico, do sr. Kraler. Do Peter recebi um belo
ramo de begónias; o pobre do rapaz andou a ver se lhe
conseguiam arranjar coisa diferente, mas não foi possível.
A invasão continua em pleno progresso, apesar do mau
tempo, das ventanias medonhas e das chuvas torrenciais
sobre o mar.
Churchill, Smuts, Eisenhower e Arnold visitaram ontem
as aldeias francesas que foram conquistadas e libertadas
pelos ingleses. Churchill esteve num torpedeiro que bombardeou
a costa. Este homem, como tantos outros, parece
não ter medo. Que coisa tão invejável!
Daqui do anexo não podemos sondar o moral dos holandeses.
Sem dúvida as pessoas estão contentes por a "indolente"
Inglaterra sempre deitar a mão. Todos aqueles
holandeses que, embora odiando os alemães, continuam a
olhar de cima para os ingleses e a tratar a Inglaterra de
cobarde e o seu governo de "regime dos homens velhos",
têm de ser sacudidos com força. Talvez os seus cérebros
desarranjados voltem assim a ter todas as suas circunvoluções
no sítio.
Tua Anne

Quarta-feira, 14 de Junho de 1944

Querida Kitty:
Muitos desejos, muitos pensamentos, muitas acusações
e censuras se confundem na minha cabeça como fantasmas.
Podes crer, não sou tão presunçosa como algumas pessoas
julgam; conheço melhor os meus inúmeros defeitos do que
qualquer outra pessoa. Só há uma diferença: é que eu sei,
além disso, que tenho vontade de me corrigir e que, em
certa medida, já me tenho corrigido. Muitas vezes pergunto-me porque é que tanta gente
me acha presunçosa e
pouco modesta. Sou assim tão presunçosa? É defeito só
meu, ou não serão os outros também presunçosos? Esta
última frase soa maluquinha, mas não a risco porque não
; é tão maluquinha como parece. A sra. van Daan, a minha
acusadora número um, é conhecida como pouco inteligente, vamos mesmo dizê-lo com
toda a franqueza: como
"estúpida". E as pessoas estúpidas, de uma maneira geral,
não perdoam que os outros saibam mais alguma coisa do que elas.
A sra. van Daan acha-me estúpida por eu não ser tão
lenta de compreensão como ela; acha-me pouco modesta
por ela o ser ainda menos; acha os meus vestidos curtos
de mais por os dela serem ainda mais curtos. E, afinal,
acha-me impertinente porque ela mete-se, muito mais do
que eu, a tomar parte em discussões sobre assuntos de que
não percebe patavina. Um dos ditos de que mais gosto
é este : "Em cada censura há uma ponta de verdade".
Por isso vou confessar que sou, por vezes, impertinente.
Ora, o que tenho de mais incómodo no meu carácter é
ser eu a pessoa que mais me critica e censura. Como a
mãe ajunta a isto a sua porção de conselhos, o montão dos
sermões torna-se tão indescritivelmente alto que eu,
desesperada por não conseguir dominá-lo, me torno insuportável
e malcriada, e a isso segue-se, como é natural, a minha
velha queiXa: "Ninguém me compreende". Estas palavras
estão ancoradas em mim e, mesmo que possa parecer
incrível, também nela há uma ponta de verdade. Por vezes
torturo-me com tantas acusações contra mim própria
que seria preciso uma voz reconfortante para me ajudar
a repor tudo na medida certa e sã e que também se preocupasse
um pouco com a minha vida interior. Mas, infelizmente,
procurei muito e nunca encontrei. Sei que pensas
agora no Peter, não é verdade, Kit? Sim, o Peter ama-me não como um apaixonado mas
como um amigo, a sua dedicação
cresce de dia para dia, mas não sei explicar esse
mistério que nos separa. Por vezes penso que o meu violento
desejo de estar com ele é exagerado. Mas a verdade
é que eu, depois de não ter estado lá em cima durante
dois dias, sinto tão grandes saudades como nunca tive.
O Peter é gentil e bom mas não posso negar que muita
coisa nele me causa decepção. Não gosto da maneira como
ele reprova a religião; as suas conversas sobre comidas e
coisas semelhantes não me agradam. Mas tenho a certeza
de que, conforme combinámos, nunca nos havemos de
zangar. O Peter é pacífico, tem bom génio e cede fàcilmente.
Aceita melhor as minhas observações do que as
da mãe e faz esforços enormes por manter a ordem nas suas
coisas. Mas porque é que não se abre comigo, porque é
que não me deixa tocar o seu íntimo? A sua natureza é
muito mais reservada do que a minha, bem sei-sei-o por
experiência - mas até as pessoas mais reservadas têm
o desejo irresistível de se confiar a alguém, mesmo que
seja uma única vez. O Peter e eu passámos os dois anos
mais importantes para a nossa formação aqui no anexo;
falámos muitas vezes sobre o passado, o presente e o futuro,
mas, como eu já disse, sinto a falta de qualquer coisa de
mais autêntico; e eu tenho a certeza de que essa coisa existe.
Tua Anne

Quinta-feira, 15 de Junho de 1944

Querida Kitty:
Terei eu agora tanto interesse pela natureza por não
poder, há tanto tempo, sair deste buraco? Ainda me
lembro de que antigamente não me fascinavam os pássaros
a cantar, o céu azul e brilhante, as flores e o luar. Por
exemplo, no Pentecostes, quando estava tanto calor, fiz
todos os esforços para me conservar acordada às onze e
meia, para poder absorver sòzinha o luar pela janela;
infelizmente não me serviu de nada, porque a Lua brilhava
com tanta claridade que não pude arriscar-me a abrir a
janela. Uma outra vez, isto já foi há vários meses, estava
eu, por acaso, lá em cima e vi que a janela tinha ficado
aberta. Enquanto ninguém a veio fechar, deixei-me ficar.
A noite chuvosa, a ventania, as nuvens em fuga, tudo isso
tomou totalmente conta de mim; depois de ano e meio
foi pela primeira vez que me vi cara a cara com a noite.
Desde então, o meu desejo de viver outra vez momentos
assim tornou-se mais forte do que o medo dos ratos, dos
ladrões e dos assaltos. Descia, por vezes, sòzinha para o
andar de baixo, para olhar pelajanela do escritório particular
ou da cozinha. Muita gente ama a natureza, muitos dormem,
por vezes, ao relento. Há outros que estão nas prisões
e nos hospitais e anseiam pelo dia em que possam gozar
o ar livre, mas poucos estão como nós, tão fechados e
isolados daquilo que, ao fim e ao cabo, nos pertence a
todos igualmente, aos ricos e aos pobres. Não é em imaginação
que fico mais calma e que me encho de esperança
quando olho o céu, as nuvens, a Lua e as estrelas. É um
remédio melhor do que a valeriana e o bromo. A natureza
torna-me um ser humilde, torna-me capaz de suportar
; melhor todos os golpes. É, no entanto, inevitável que eu
só a possa contemplar - e mesmo assim por excepção - através das janelas sujas com
cortinas cheias de pó, o
que diminui o meu prazer, pois a natureza é a única
coisa que não pode ser imitada ou substituida.
Tua Anne

Sexta-feira, 16 de Junho de 1944

Querida Kitty:
Problemas novos! A sra. van Daan está desesperada.
Fala em balas na cabeça, em prisão, enforcamento, suicídio.
Tem ciumes por o Peter se confiar a mim e não a
ela. Está ofendida por o Dussel não corresponder às suas
coqueterias; tem medo de que o marido gaste todo o
dinheiro do seu casaco de peles; discute, chora, queixa-se, ri
e começa de novo a discutir. O que há-de fazer-se a uma
choramingas desta força? Ninguém a está a tomar a sério.
Ela não tem carácter, queixa-se a toda a gente e veste-se
de uma maneira disparatada; vista por detrás parece
uma menina de liceu, vista de frente é uma peça de museu.
O pior é que o Peter torna-se malcriado com ela, o sr.
van Daan irrita-se e a mãe fica cínica. Uma linda situação,
não há dúvida! Para isto há só um remédio que deves
ter sempre presente : ri-te de tudo e não faças caso dos
outros! Pode parecer egoísta mas, na realidade, é a única
defesa para aqueles que são obrigados a consolar-se a si próprios.
O Kraler foi novamente convocado para trabalhos de
sapador. Está a ver se consegue safar-se com um atestado
médico e uma carta da firma. O Koophuis tem de fazer
outra operação ao estômago. Ontem, às 11 horas, todas
as ligações telefónicas particulares foram cortadas.
Tua Anne

Sexta-feira, 23 de Junho de 1944

Querida Kitty:
Nada de especial a relatar. Os ingleses começaram com
a grande ofensiva sobre Cherbourg. O Pim e o sr. van
Daan são de opinião de que estaremos livres em Outubro.
Os russos também estão activos; ontem começaram a
sua ofensiva em Witebsk, precisamente três anos depois
da invasão dos alemães.
Já quase não temos batatas; doravante, vão ser
contadas e divididas em rações iguais; depois cada um que
se arranje.
Tua Anne

Terça-feira, 27 de Junho de 1944

Querida Kitty:
Boa disposição, tudo está a caminhar da melhor maneira.
Cherbourg, Witebsk e Slobin caíram hoje. Muitos prisioneiros,
muitos despojos. Na batalha de Cherbourg
morreram cinco generais alemães e dois ficaram prisioneiros.
Agora os ingleses podem desembarcar quantas coisas
quiserem, pois já têm um porto. Toda a península de Gotentin,
depois de três semanas, nas mãos dos ingleses. É de
respeito! Nestas três semanas, desde o "D-day", ainda não
houve um único dia sem chuvas e ventanias, tanto aqui
como na França, mas nem esta má sorte impede os ingleses
e os americanos de mostrarem a sua força, e que força!
Já se vê, a "Vz", a arma milagrosa, também entrou em
acção, mas tais foguetes pouco mais significam do que
pequenos danos na Inglaterra e grandes relatos nos jornais
dos "boches". Aliás, se na terra dos "boches"
souberem que o "perigo bolchevique" está a aproximar-se,
hão-de tremer como varas verdes.
Todas as mulheres e crianças alemãs que não trabalham
na "Wehrmacht" são evacuadas das regiões da costa
para Groningen, Friesland e Gelderland. Mussert declarou que vestirá o uniforme, caso a
invasão venha até aqui.
O gorducho quererá lutar? Poderia tê-lo feito há mais
tempo, na Rússia. A Finlândia que tinha recusado, em
tempos, as propostas de paz, rompeu de novo as negociações.
Hão-de se arrepender, os idiotas.
Como estarão as coisas no dia 27 de Julho? O que é
que pensas?
Tua Anne

Sexta-feira, 30 de Junho de 1944

Querida Kitty:
Mau tempo ou: bad weather at a stretch to the 30th
of June. Está bem assim? Oh, sim, já sei muito inglês. Estou
a ler An ideal Husband (com o dicionário).
As notícias de guerra são excelentes. Bobruisk, Mogilew
e Orscha caíram. Muitos prisioneiros. Aqui tudo "all right",
a disposição também. Os nossos hiperoptimistas estão a
delirar. A Eli mudou de penteado. A Miep tem uma
semana de férias. Aqui tens as últimas novidades.
Tua Anne

Quinta-feira, 6 de Julho de 1944

Querida Kitty:
Amargura-se-me o coração quando ouço dizer ao Peter
que ainda poderá vir a ser, mais tarde, um criminoso ou
um especulador. Bem sei que ele diz aquilo por brincadeira,
mas tenho a impressão de que tem medo da sua própria
fraqueza de carácter. Tanto a Margot como o Peter repetem-me
constantemente :
-Ah! se eu fosse tão forte e corajosa como tu, se tivesse
tanta força de vontade, tanta persistência...
Será de facto uma boa qualidade isto de eu não me
deixar influenciar? Estará certo que siga quase exclusivamente
o caminho que me dita a minha consciência?
Com toda a franqueza, custa-me compreender que alguém
possa dizer "sou fraco" e se deixe ficar fraco na mesma.
Se a gente conhece os seus defeitos porque não tenta então
corrigi-los? Resposta do Peter:
- Porque assim é muito mais cómodo.
Esta resposta desencorajou-me bastante. Cómodo! Quer
ele dizer que uma vida de preguiça e de auto-ilusão é
uma vida cómoda? Oh, não, não, recuso-me a acreditar
nisso. Não é possível que a moleza e... o dinheiro sejam
tão aliciantes. Pensei muito tempo no que havia de lhe
responder, em como poderei levar o Peter a ter confiança
em si próprio e, principalmente, a corrigir-se. Mas não
sei se serei bem sucedida.
Julgava maravilhoso possuir a confiança de alguém,
mas só agora vejo como é difícil identificar-me com os
pensamentos de outrem e dar um conselho justo, tanto
mais que os conceitos de "cómodo" e de "dinheiro" são
para mim novos e um tanto estranhos. O Peter começa
a encostar-se a mim e acho que não devia ser assim. Não
é fácil para um rapaz como o Peter aguentar-se sobre as
próprias pernas, mas ainda lhe custará mais na medida
em que se for tornando um homem consciente à procura
de um caminho na vida, através de um mar de problemas.
Sinto-me como se andasse à roda de mim mesma procurando
uma justificação para o medonho conceito de "cómodo".
Como poderei eu explicar-lhe, a ele, que aquilo que aparentemente é tão cómodo e tão
bonito, o arrastará para
o abismo, esse abismo onde já não há nem amigos, nem
beleza, nem apoio, o abismo donde é quase impossível
tornar a subir?
Todos vivemos sem saber porquê e para quê, todos procuramos
ser felizes, todos vivemos de um modo diferente
e no entanto somos todos iguais. Nós, os três jovens, fomos
educados num ambiente elevado, temos a capacidade
de aprender e de conseguir alguma coisa, temos igualmente
razão para esperar uma vida bela, mas... depende
de nós merecê-la. Para isso é necessário esforço, não basta
buscar a comodidade.
Merecer a felicidade quer dizer trabalhar para ela,
ser bom e não se deixar seduzir por especulações ou pela
preguiça. Talvez a preguiça "pareça" coisa agradável, mas
o trabalho dá satisfação. Não compreendo as pessoas que
não gostam de trabalhar, mas não é este o caso do Peter.
Ao Peter só lhe falta uma finalidade, um objectivo firme;
ele acha-se estúpido e inferior para conseguir coisa de
jeito.
Pobre rapaz, ainda não conheceu a sensação agradável
que é dar felicidade aos outros e isso não lhe posso eu
ensinar. Não tem religião, troça de Jesus, renega o nome
de Deus. Embora eu não seja ortodoxa, sinto uma dor profunda
ao aperceber-me do seu desdém, do seu abandono,
da pobreza da sua alma.
Aqueles que têm uma religião podem sentir-se felizes,
pois não é dada a todos a fé nas coisas celestes. Nem é
preciso ter medo do castigo depois da morte. Há muita
gente que não admite o Purgatório, o Inferno ou o Céu,
mas uma religião-e não importa qual-mantém os homens
no caminho recto. Não se trata do medo de Deus mas
sim da estima da nossa própria honra e da nossa consciência.
Como seria bela e boa toda a Humanidade se, antes
de adormecer à noite, evocasse os acontecimentos do dia que passou, se reflectisse no que
foi bom e no que foi
mau.
Assim, quase sem dar por isso, tentamos corrigir-nos
constantemente, e depois de certo tempo alguma coisa
conseguimos. Este método toda a gente o pode utilizar,
não custa nada, está ao alcance de quem quiser. Quem
o não conhece deve aprender e experimentar: "Uma consciência
tranquila torna-nos fortes!"
Tua Anne

Sábado, 8 de Julho de 1944

Querida Kitty:
O representante principal da firma, o sr. B, esteve em
Beverwijk, onde conseguiu arranjar morangos. Chegaram
aqui cheios de pó e de areia, mas são muitos: caixotes
para o escritório e para nós. Fizemos imediatamente oito
frascos de conservas e oito boiões de compota. Amanhã,
a Miep também vai fazer compota para o escritório.
Ao meio-dia e meia hora, quando já não há mais
estranhos no prédio, e com a porta da rua fechada, vamos
buscar os caixotinhos. O Peter, o pai e o sr. van Daan
desfilam na escada, a Anne traz a água quente, a Margot
os baldes, enfim, todos dão uma ajuda. Com uma sensação
estranha no estômago entrei na cozinha do escritório :
a Miep, a Elli, o Koophuis, o Henk, o pai, o Peter, a
coluna dos "mergulhados" e a do reabastecimento, tudo
à mistura em pleno dia.
Bem sei que ninguém pode olhar cá para dentro através
das cortinas, mas as vozes, as portas a bater, tudo
isto, faz-me tremer de aflição. Pergunto-me se somos de facto
"mergulhados", penso que terei uma sensação semelhante
quando puder um dia entrar, de novo, no mundo exterior.
A panela estava cheia. Subi depressa. Na nossa cozinha
estava o resto da família a tirar os talos dos morangos.
Metiam mais frutos na boca do que no balde. Daí a
pouco-era preciso mais um balde - o Peter desceu à
cozinha do escritório e, nesse momento, a campainha toca
duas vezes. O Peter deixa ficar o balde, sobe para fechar
a porta giratória. Nós, cheios de impaciência! As torneiras
não se podiam abrir, embora os morangos precisassem
urgentemente de ser lavados. Mas a regra dos "mergulhados"
é esta: "Se estiver algum estranho no prédio, todas as torneiras devem estar fechadas por
causa do perigo
dos ruídos". E esta regra cumpre-se rigorosamente.
à uma hora veio o Henk para nos dizer que tinha
sido o carteiro quem tocara a campainha. O Peter corre de
novo escada abaixo. Trrin, a campainha outra vez. E o
Peter volta a subir. Eu ponho-me a escutar, primeiro
encostada à porta camuflada, depois em cima da escada,
sem fazer o menor ruído. O Peter vem também e, por fim,
parecíamos dois ladrões dependurados no corrimão a
escutar o barulho lá debaixo. Não distinguíamos nenhuma
voz que nos fosse estranha. Então o Peter desceu muito
cautelosamente alguns degraus e chamou:
-Elli!
Não veio resposta. Outra vez :
-Elli!
O barulho na cozinha é mais alto do que a voz do
Peter. Ele então desce e eu olho para baixo, cheia de
nervos.
-Sobe depressa, anda, Peter, está cá o fiscal da contabilidade!
Era a voz do sr. Koophuis. Suspirando, o Peter volta,
a porta giratória fecha-se. à uma e meia veio, finalmente,
o Kraler:
-Por amor de Deus! Não vejo senão morangos. Dão-me
morangos ao pequeno almoço, o Henk a comer morangos,
o Koophuis a petiscar morangos, a Miep a cozer morangos,
o cheiro a morangos por toda a parte. Já não podia mais
e por isso resolvi subir até aqui-e o que vejo?-gente a
lavar morangos!
Do resto dos morangos fizeram-se conservas. à noite
as tampas de dois frascos saltaram fora. O pai tira os morangos e faz compota. Na manhã
seguinte outras duas
tampas saltam, à hora do almoço, mais quatro. O sr. van
Daan não esterilizou os frascos suficientemente. E agora o
pai faz todas as noites compota. Comemos papinhas com
morangos, soro de leite com morangos, pão com morangos,
sobremesa de morangos, morangos com açúcar, morangos
com areia... Durante dois dias os morangos andaram a
dançar por toda a parte : morangos, morangos, morangos.
Depois não se viram mais, os frascos de compota ficaram
bem fechados à chave.
-Anda cá ver, Anne, chama a Margot-o hortaliceiro
da esquina mandou nove quilos de ervilhas.
-Acho simpático da parte dele, disse eu, mesmo muito
simpático, mas o trabalho que isto dá... que horror!
-No domingo de manhã vocês todos têm de ajudar
a descascar-anunciou a mãe à mesa. E assim foi. Hoje
de manhã, depois do pequeno almoço, apareceu em cima
da mesa o grande alguidar de esmalte cheio, até acima,
de ervilhas. Debulhar ervilhas pequeninas é um trabalho
aborrecido, mas o que custa é aproveitar as cascas das
vagens. Sei que a maioria das pessoas não faz ideia de
como são saborosas as cascas das ervilhas depois de a gente
lhes ter tirado a película interior. A grande vantagem está
em se poder comer muito mais do que se nos limitássemos
apenas às ervilhas. Tirar as pelezinhas é um trabalho
preciso e minucioso, que, talvez, seja mais próprio para
dentistas ultrameticulosos e burocratas mesquinhos; para
uma rapariga impaciente como eu, torna-se horrível. às
nove e meia começámos; às dez e meia resolvi fazer um
intervalo de uma hora. Os ouvidos zumbem-me: cortar
a ponta, tirar a pelezinha, depois os fios, deitar as ervilhas
no alguidar, etc. Foge-me a vista: verde, verde, bichos, fios,
cascas podres, verde, verde, verde.
Fiquei estúpida e para fazer alguma coisa passei a falar
durante todo o tempo. A dizer asneiras faço rir toda a gente,
mas eu é que fico com a sensação de morrer de aborrecimento.
A cada fiozinho que tiro, mais me convenço de que
nunca quererei ser apenas dona de casa!
Ao meio-dia comemos, finalmente. Mas ao meio-dia
e meia hora começamos de novo a tirar peliculazinhas até
à uma hora e um quarto. Quando chegámos ao fim eu
estava enjoada e os outros também um pouco; dormi
até às quatro horas, mas ainda me sinto toda moída de
tanta ervilha.
Tua Anne

Sábado, 15 de Julho de 1944

Querida Kitty:
Lemos um livro da biblioteca com o título maravilhosamente
provocante : O que pensa você da rapariga moderna?.
Quero falar-te hoje sobre este tema. A autora critica,
dos pés à cabeça, a "juventude de hoje" sem, no
entanto, acusar tudo quanto é jovem de "não servir para
nada". Pelo contrário, ela pensa que a juventude, se quisesse,
podia construir um mundo maior, mais belo e melhor.
Diz que a juventude tem os meios para isso mas que se
preocupa com assuntos superficiais, sem reparar no que
há de essencialmente belo nas coisas. Ao ler certos parágrafos
tive a impressão de ser visada e, por issso, quero desabafar
aqui com alguns pensamentos e defender-me contra aqueles
ataques.
Tenho um traço marcante no meu carácter-todos os
que me conhecemjá deram por ele: a autocrítica. Vejo-me
em todos os meus actos como se se tratasse de uma pessoa
estranha. Enfrento esta Anne com absoluta imparcialidade,
sem pretender desculpá-la e observo o que ela faz de mal
e de bem. Esta autocontemplação nunca me larga, e não
posso pronunciar uma palavra sem pensar logo em seguida:
"devia ter dito isto de outra maneira", ou: "foi bem
dito".
Condeno muitas vezes os meus actos e reconheço cada
vez mais a verdade das palavras de meu pai: "Cada
criança deve educar-se a si própria". Os outros só nos
podem dar conselhos ou indicar-nos o caminho a seguir,
mas a formação definitiva do carácter está nas próprias
mãos de cada indivíduo. A isso devo acrescentar que
tenho uma coragem extraordinária de viver, sinto-me sempre
forte e capaz de suportar seja o que for. Sinto-me tão
livre, tão jovem! Quando me dei conta disto pela primeira
vez fiquei contente, pois não supunha que os golpes que
ninguém está livre de apanhar, me pudessem esmagar
ràpidamente. Mas sobre este assunto já falei muitas vezes.
Deixa-me chegar ao ponto principal: "O pai e a mãe não
me entendem". Deram-me muitos mimos, foram sempre
bons para comigo, defenderam-me, em resumo: fizeram
tudo o que os pais podem fazer. E todavia tenho-me sentido,
muitas vezes, terrivelmente só, posta de parte,
descurada, incompreendida. O pai tem feito tudo para
atenuar os meus protestos, mas em vão; fui eu mesma que me
curei, reconhecendo os erros dos meus actos. Mas como se
explica que o pai não me possa ter dado o necessário
apoio na minha luta? Como se explica que ele tenha
falhado quando me oferecia o seu auxílio? O pai falhou
porque não conseguiu encontrar a maneira de falar comigo,
tratava-me como uma criancinha que só tem preocupações
infantis. Pode parecer tolice eu dizer isto, pois foijustamente o pai quem me inspirou sempre
confiança e me
deu a certeza de que sou inteligente. Mas há uma coisa
em que se esqueceu de pensar: é que a minha luta para
me elevar era mais importante para mim do que tudo o
mais. Eu não queria ouvir: "sintomas típicos... outras
raparigas... isto passa", etc. Não queria ser tratada como
todas as raparigas, mas como um ser com personalidade
própria, como a ANNE. Foi isto o que o Pim não soube
comprender. De resto não me é possível abrir-me com
alguém que não me fale também de si; como sei muito
pouco da vida do Pim, nunca poderá estabelecer-se entre
nós uma intimidade completa. O Pim coloca-se sempre no
ponto de vista do mais velho que também passou por coisas
semelhantes mas que já não pode sentir e viver o que
vive um jovem, embora tente fazê-lo. Tudo isto me levou
a nunca comunicar a ninguém a minha concepção da vida
e as minhas teorias longamente meditadas, a não ser; de
longe em longe, à Margot.
Tudo o que me preocupava escondia-o do pai, não o
deixei partilhar comigo os meus ideais e, conscientemente,
alheei-me dele. Não me foi possível ser diferente, deixei-me
conduzir pelos sentimentos, mas agi de modo a encontrar
sossego. E o meu sossego, e a confiança em mim mesma, que
fui construindo sobre bases oscilantes talvez não resistissem se eu tivesse de suportar
críticas a esta minha obra ainda
não acabada. E nem ao Pim posso permitir que se meta
de permeio. Por mais duro que isto possa soar, afastei-o de
mim, não o deixando partilhar da minha vida interior,
principalmente pela minha irritabilidade. É um ponto que
me preocupa constantemente. Porque é que o Pim me
irrita tanto a ponto de não poder estudar com ele, de me
parecerem artificiais os seus carinhos, de desejar só o meu
sossego e que ele me deixe em paz até eu possuir mais
segurança íntima? A verdade é que ainda me censuro
por causa daquela carta vil que ousei escrever-lhe num
momento de excitação. Oh! Como é difícil ser-se forte e
corajosa em todas as circunstâncias.
Mas esta ainda não é a minha decepção mais grave :
muito mais do que o pai preocupa-me o Peter. Sei bem
que fui eu quem o conquistou a ele e não o contrário;
construí dele uma visão idealizada, vi nele um rapaz
simpático, calado, sensível, precisando de muito amor
e de amizade. Tive necessidade de abrir-me com um
ser vivo, com um amigo que me mostrasse o caminho
a seguir. Consegui que ele, pouco a pouco, fosse atraído
por mim. Finalmente, depois de ter despertado nele sentimentos
amigáveis, passámos a intimidades que me
parecem, agora, inconcebíveis. Falámos sobre muitas coisas
íntimas mas sobre aquelas que me enchem o coração ainda
não dissemos palavra. Não me foi possível, até agora,
fazer uma ideia exacta do Peter; é ele um rapaz superficial,
ou não consegue vir francamente ao meu encontro
por ser tímido? Mas eu cometi um erro grave: eliminei,
logo de entrada, todas as possibilidades de uma grande
amizade entre nós, tentando aproximar-me dele por uma
intimidade exagerada. Ele está ávido de amor e de dia
para dia cada vez gosta mais de mim, bem o sinto. O nosso
convívio satisfá-lo plenamente, mas em mim produz apenas
o efeito de tentativas renovadas para recomeçar e tocar
nos assuntos que tanto gostaria de abordar e de esclarecer.
Atraí o Peter à força, e ele nem se deu conta disso. Agora
agarra-se a mim e, por enquanto, não vejo como o hei-de
sacudir de mim e repô-lo sobre os seus próprios pés. Depois
de me ter apercebido de que ele não pode ser para mim
o amigo que ansiava, esforcei-me para o elevar acima dos
seus pontos de vista limitados e para que não desperdice
a sua juventude. "Pois, no fundo, a juventude é mais
solitária do que a velhice". Encontrei esta frase num livro
e fixei-a, porque encontrei nela a verdade.
É a nossa vida aqui mais difícil de suportar para os
adultos de que para nós? Não, decerto não! As pessoas
com mais idade já têm opiniões formadas sobre todas as
coisas e já não vacilam, não hesitam perante as dificuldades
da sua vida. A nós, os jovens, custa-nos manter-nos firmes
nos nossos pareceres por vivermos numa época em que
mostra pelo seu lado mais horroroso, em que se duvida
da verdade, do direito, de Deus!

Aquele que pretende afirmar que os mais velhos sofrem
mais aqui no anexo do que nós, os jovens, não sabe ver
até que ponto os problemas desabam sobre nós, problemas
para os quais talvez ainda não tenhamos bastante idade,
mas que se nos impõem de um modo violento. Em determinada altura julgamos ter
encontrado uma solução mas
esta solução, de uma maneira geral, não resiste aos factos
que são sempre tão diferentes. Eis a dificuldade do nosso
tempo : mal começam a germinar em nós ideais, sonhos,
belas esperanças, logo a realidade cruel se apodera de tudo
isso para o destruir totalmente.
É por milagre que eu ainda não renunciei a todas as
minhas esperanças, na verdade tão absurdas e irrealizáveis.
Mas eu agarro-me a elas, apesar de todos e de tudo, porque
tenho fé no que há de bom no homem. Não me é possível
construir a vida tomando como base a morte, a miséria
e a confusão. Vejo o Mundo transformar-se, pouco a pouco,
num deserto; ouço, cada vez mais forte, a trovoada que se
aproxima, essa trovoada que nos há-de matar; sinto o
sofrimento de milhões de seres e, mesmo assim, quando
ergo os olhos para o Céu, penso que, um dia, tudo isto
voltará a ser bom, que a crueldade chegará ao seu fim e
que o Mundo virá a conhecer de novo a ordem, a paz, a
tranquilidade.

Até lá tenho que manter firme os meus ideais-talvez
ainda os possa realizar nos tempos que hão-de vir.
Tua Anne

Sexta-feira, 21 de Julho de 1944

Querida Kitty:
Estou cheia de esperanças, tudo vai bem! Sim, vai
mesmo muito bem! Notícias sensacionais. Houve um atentado
contra Hitler mas, imagina, os autores não foram
comunistas, judeus ou capitalistas ingleses, mas sim um
general alemão da nobre raça germânica, e, ainda por
cima, um general ainda jovem! A "providência divina"
salvou a vida do Führer e ele escapou-infelizmente,
infelizmente!-com algumas arranhadelas e queimaduras.
Alguns oficiais e generais que andavam com ele morreram
ou ficaram feridos. O autor principal foi fuzilado. Este
atentado é a melhor prova de que muitos oficiais e generais
estão fartos desta guerra e que veriam com prazer o Hitler
afundar-se nos mais profundos precipícios. Querem, depois
da morte de Hitler, instalar uma ditadura militar, fazer
as pazes com os aliados, rearmar-se, para desencadear
uma nova guerra daqui a vinte anos. Talvez a Providência
tenha hesitado, de propósito, em afastar Hitler desde já,
pois aos aliados faz muito mais jeito, e é muito mais vantajoso, que os alemães arianos
puros se matem uns aos
outros; assim haverá depois menos canseira para os russos
e para os ingleses que poderão mais depressa começar a
reconstruir as suas cidades. Mas ainda não chegámos a
este ponto e eu não quero antecipar-me aos factos gloriosos.
Tu decerto estás a notar que tudo o que te estou a dizer
é a realidade nua e crua, uma realidade com os dois pés
fincados no chão, e que eu, excepcionalmente, não estou
a delirar com ideias superiores.
Hitler teve a amabilidade de comunicar ao seu povo
dedicado que os militares, de hoje em diante, terão de
obedecer à Gestapo e que qualquer soldado, se souber que um seu superior esteve
implicado neste atentado tão cobarde e tão baixo, poderá meter-lhe, sem cerimónias, uma
bala na cabeça.

Vai ser bonito. Imagina: ao Hans Dampf doem-lhe
os pés de tanto marchar; o seu superior, o chefe, dá-lhe
um raspanete. O Hans pega na espingarda e grita:
-Tu quiseste matar o nosso Führer, toma a recompensa.
Pum! O orgulhoso chefe que se atreveu a censurar o
pequeno soldado, foi despachado para a vida eterna (ou
será para a morte eterna?). O resultado vai ser este: os
senhores oficiais vão andar sempre com as cuecas sujas
de tanto medo e não se atreverão mais a dizer seja o que
for a um simples soldado.
Compreendes tudo? Ou gaguejei eu ao escrever? Se
assim for não há nada a fazer, pois estou contente de mais
para observar a lógica, contente por ter esperanças de que
em Outubro estarei, de novo, sentada nos bancos da
escola. Olá, não disse eu há pouco que não me devo
antecipar? Não te zangues. Não é por acaso que me chamam "um feixe de contradições".
Tua Anne

Terça-feira, 1 de Agosto de 1944

Querida Kitty:
"Um feixe de contradições". Foi esta a última frase
da minha carta anterior e é a primeira da de hoje. "Um
feixe de contradições", poderás tu explicar-me, com exactidão,
o que isto quer dizer? O que é contradição? Como
todas as palavras, tem dois sentidos : contradição exterior
e contradição interior.
O primeiro sentido é este : não nos conformarmos com
a opinião dos outros, querer saber tudo melhor, querer
ter a última palavra, enfim: qualidades desagradáveis
que já conheces suficientemente. O segundo: qualidades
que também tenho mas que ninguém conhece e que são
o meu segredo.
Já te contei em tempos que não tenho só uma alma mas
sim duas. Uma dá-me a minha alegria exuberante, as
minhas zombarias a propósito de tudo, a minha vontade
de viver e a minha tendência para deixar correr, isto é,
para não me escandalizar com "flirts", abraços ou uma
piada inconveniente. Esta primeira alma está sempre à
espreita e faz tudo para suplantar a outra que é mais
bela, mais pura, mais profunda. Essa alma boa da Anne
ninguém a conhece, não é verdade? E é por isso que tão
pouca gente gosta de mim.
Bem o sei: vêem em mim um palhaço divertido para uma
tarde-depois toda a gente fica cheia de mim para um
mês-sou, no fim de contas, o mesmo que um filme amoroso
para gente sisuda, uma simples distracção, um divertimento,
alguma coisa que se esquece depressa, não precisamente
má mas também nada de especial. Não me é agradável
contar-te isto, mas, por outro lado, porque não o havia
de contar se é a pura verdade? Este meu lado superficial
tentará sempre afastar o outro, o mais profundo, e alcançará,
por isso, a vitória. Não podes fazer ideia de quantas
vezes tenho tentado repelir, espancar ou esconder esta
Anne, que não passa da metade daquilo que se chama
Anne; mas não serve de nada, e bem sei porquê. Tenho
medo de que todos os que me conhecem, tal como costumo
ser, possam descobrir o meu outro lado, o mais belo, o
melhor. Tenho medo de que trocem de mim, me achem
ridícula e sentimental, e não me tomem a sério. Estou
habituada a não ser tomada a sério, mas é justamente a
Anne mais "fácil" que suporta isso; a "mais profunda"
não tem forças para tanto. Empurro por vezes a boa Anne
para a luz da ribalta, mesmo que seja por um escasso
quarto de hora, mas logo que ela tem de falar, contrai-se
e fecha-se de novo na sua concha, passando a palavra à
Anne número 1. E antes que eu me dê conta, já a boa
desapareceu.

É por isso que a Anne terna e simpática nunca vem à
superfície na presença das outras pessoas mas é a sua voz
que domina na solidão. Sei exactamente como gostava de
ser, sei como sou... no íntimo, mas, infelizmente, só sou
assim quando estou sòzinha comigo. E isto é, talvez, não
seguramente, a razão por que chamo à minha natureza
íntima uma natureza feliz e porque os outros chamam
feliz à minha natureza exterior. No meu interior, a Anne
pura é que me indica o caminho; exteriormente, não passo
de um cabritinho que pula de alegria e de animação.
Como eu já disse, vejo e sinto as coisas de um modo
e exteriorizo-as de outro e tenho, por isso, a fama de ser
uma rapariga doida por rapazes, sempre a "flirtar", sempre
impertinente e sempre a ler romances. A Anne alegre
ri-se, dá respostas atrevidas, encolhe os ombros com indiferença
como se isso nada tivesse que ver com ela, mas,
ai de mim!, a Anne calada reage ao contrário. Como sou
sempre franca contigo, vou confessar-te que tenho pena,
que me esforço terrivelmente por me modificar, mas que luto
sempre contra forças superiores às minhas. Dentro de mim uma
voz sussurra: -Vês o resultado? Más opiniões a teu respeito,
caras trocistas e consternadas, gente que te acha antipática, e tudo isto porque não queres
ouvir os conselhos do teu próprio lado bom. Ai! Bem os queria eu ouvir, mas não pode ser;
quando estou calada e séria, todos pensam que estou a representar uma nova comédia.
Para me salvar só me resta dizer uma piadinha. Pior ainda quando se trata da minha família
que imagina logo que estou doente e me impinge pastilhas
contra as dores de cabeça e o nervosismo, que me toma
o pulso a ver se tenho febre, que pergunta como funciona
o aparelho digestivo para, em seguida, censurar o meu
mau génio. Não suporto semelhante coisa. Quando me
tratam desta maneira, torno-me ainda mais impertinente,
fico triste e, por fim, viro o meu coração do avesso-o
lado mau para fora, o bom para dentro-e continuo a
procurar um meio para vir a ser aquela que gostava de
ser, que era capaz de ser, se... sim, se não houvesse mais
ninguém no Mundo.
Tua Anne M. Frank

AQUI TERMINA O DIÁRIO DE ANNE

EPÍLOGO

No dia 5 de Agosto a "Grüne Polizei" assaltou o anexo,
prendeu todos os seus habitantes e também o sr. Kraler
e o sr. Koophuis, levando os primeiros para um campo
de concentração na Alemanha e os segundos para outro
na Holanda.
A Gestapo pilhou o anexo. Mais tarde, a Miep e a
Elli encontraram, entre velhos livros, revistas e jornais a
que os agentes não ligaram importância, o Diário da Anne.
Com excepção de algumas passagens apenas que não
teriam interesse para o leitor, o texto original é publicado
na íntegra.
Dos oito "mergulhados" só o pai sobreviveu. O sr. Kraler
e o sr. Koophuis resistiram às privações nos campos
holandeses e voltaram para junto de suas famílias.
Anne morreu em Março de 1945 no campo de concentração
de Bergen-Belsen, dois meses antes da libertação
da Holanda.