Sexta-feira, 18 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
Sempre que vou lá para cima é com a ideia de o ver
a "ele". A minha vida agora é mais bela porque tem de
novo um sentido e todos os dias me espera uma alegria.
E, ao menos, o objecto da minha amizade encontra-se
sempre nesta casa, não tenho de recear rivais (com excepção
da Margot). Não julgues que estou apaixonada. Não é
bem isso. Mas sinto que entre mim e o Peter ainda se
desenvolverá algum sentimento muito belo, que fará de
nós amigos e confidentes. Sempre que posso, vou ter com
ele. Agora já não é como dantes quando ele não sabia o
que me havia de dizer. Pelo contrário: já estou a sair
da porta e ele ainda a falar.
A mãe não vê com bons olhos que eu vá tantas vezes
lá para cima. Disse que eu não devia incomodar o Peter,
que o devia deixar em paz. Não compreende ela que se
trata da minha vida íntima? Sempre que vou ao quarto
dele, ela olha-me de um modo estranho. E quando volto
pergunta-me de onde venho. Não suporto isto, acho
detestável.
Tua Anne.
Sábado, 19 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
Já é outra vez sábado e sabes o que isto quer dizer.
De manhã houve silêncio. Ajudei um bocado mas com
"ele" só falei de fugida. às duas e meia fui com um cobertor
para o escritório particular, para poder ler ou escrever na
escrivaninha com calma. Passado pouco tempo eu não
podia mais: enterrei a cabeça nos braços e comecei a chorar.
As lágrimas corriam, sentia-me muito infeliz. Ai! Se "ele"
tivesse ido consolar-me! Eram quatro horas quando voltei
cá para cima. Tive de ir buscar batatas e pensei que ia agora
encontrá-lo. Mas enquanto eu dava um jeito ao cabelo,
no quarto de banho, ouvi-o descer com o Boschi ao
armazém.
Chorei outra vez e fugi para o W.C. levando ainda
comigo o espelho de cabo: Aí fiquei, muito triste, e o meu
avental vermelho encheu-se de manchas de tantas lágrimas.
-Assim não chego a cativá-lo-pensei.-Se calhar, ele
nem se importa comigo nem tem nenhuma necessidade
de se abrir e se confiar. Pensará ele em mim de uma maneira
superficial? Só me resta seguir o meu caminho, sózinha
sem o Peter. De novo sem esperança e sem consolo.
Gostava de encostar, ao menos uma vez, a cabeça no
seu ombro, para não me sentir tão desesperada e tão só.
Talvez ele me não ache nada de especial e olhe para os
outros do mesmo modo simpático. O seu olhar quente
e suave só terá existido na minha imaginação? Oh, Peter,
se me pudesses ouvir ou ver! Mas eu não podia suportar
uma verdade que me desiludisse.
Enquanto nos meus olhos ainda havia lágrimas, já
no meu íntimo surgia uma nova esperança.
Tua Anne.
Domingo, 20 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
Nós fazemos ao domingo o que a outra gente faz à
semana. Enquanto os outros andam a passear, todos catitas,
andamos nós a tratar das limpezas.
Oito horas: sem consideração pelos dorminhocos, o
Dussel levanta-se. Vai ao quarto de banho, depois desce,
volta para cima e lava-se durante uma hora.
Nove e meia: Abrimos as cortinas, acendemos os fogões
e os van Daans lavam-se.
Dez e um quarto: Os van Daans estão a assobiar.
O quarto de banho está livre. Os nossos dorminhocos
levantam-se. Andam depressa de um lado para o outro.
Sucessivamente, a Margot, a mãe e eu, a fazermos as
nossas abluções. Está um frio de rachar, e ainda bem que
temos calças compridas. O pai é o último a lavar-se.
Onze e meia: pequeno almoço. Nem quero falar disso.
Já basta ouvir falar tanto de comida nesta casa.
Meio-dia e um quarto: cada um faz o que lhe apetece.
O pai, vestindo uma bata, anda dejoelhos a escovar o tapete
e fá-lo com tanto entusiasmo que todo o quarto fica envolto
numa nuvem de pó. O Dussel vira a cama dele e
assobia o concerto de violino de Beethoven. Ouvem-se os
passos da mãe no sótão. Estende a roupa lavada. O sr. van
Daan põe o chapéu na cabeça e desaparece para o andar
de baixo; o Peter, com o Mouchi ao colo, quase sempre
vai também. A sra. van Daan põe um avental comprido,
veste um colete de lã preta, calça as galochas, envolve a
cabeça num grosso xaile vermelho, pega numa trouxa
de roupa e despede-se com uma vénia muito bem ensaiada.
A Margot e eu lavamos a louça e arrumamos o quarto.
Tua Anne.
Quarta-feira, 26 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
O tempo está desde ontem maravilhoso e sinto-me
verdadeiramente espevitada. Vou todas as manhãs ao
sótão onde o Peter trabalha e onde respiro ar fresco. Do meu
lugar favorito no chão vejo um pedaço de céu azul e o
castanheiro sem folhas, em cujos ramos cintilam gotinhas,
e vejo as gaivotas que, no seu voo planado, parecem de
prata.
O Peter, com a cabeça encostada à viga, e eu, sentada,
respiramos o ar puro, olhamos lá para fora. Há entre nós
qualquer coisa que não queremos afugentar com palavras.
Olhámos assim muito tempo lá para fora e quando o
Peter se teve de ir embora para rachar a lenha, eu sabia
que ele era um óptimo rapaz. Subiu a escadinha estreita,
segui-o, e durante um quarto de hora, enquanto ele trabalhava,
não pronunciámos uma única palavra. Vi bem
que se esforçava por me mostrar que tem força.
Mas vi também, através da janela aberta, um pedaço
de Amesterdão: olhei sobre os telhados até à linha do
horizonte que de tão azul e de tão límpido quase se não
distinguia do céu.
-Enquanto ainda há disto, pensei, um Sol tão brilhante,
um céu sem nuvens e tão azul, e enquanto me é
dado ver e viver tamanha beleza, não devo estar triste.
Para qualquer pessoa que se sinta só ou infeliz, ou
que esteja preocupada, o melhor remédio é sair para o
ar livre, ir para qualquer parte, onde possa estar só
com o céu e com a natureza, e com Deus. Então compreende
que tudo é como deve ser e que Deus quer ver os homens
felizes no meio da natureza, simples e bela. Enquanto
assim for-e julgo que será sempre assim-sei que há uma
consolação para todas as dores e em todas as circunstâncias.
Creio que a natureza alivia os sofrimentos.
Talvez eu possa, em breve, partilhar esta felicidade
suprema com alguém que sinta as coisas como eu.
Estamos privados de muita coisa e há muito tempo.
Sinto-o como tu. Não estou a falar de coisas exteriores,
as que temos ainda chegam. Não, falo daquilo que se
passa dentro de nós. Tal como tu, eu queria liberdade
e ar, mas creio agora que temos boa compensação disto
que nos falta. Foi o que compreendi, de repente, hoje de
manhã, quando estava sentada junto da janela; quero
dizer, uma compensação íntima. Ao olhar lá para fora
e ao reconhecer Deus na natureza, senti-me feliz, apenas
feliz. Oh, Peter, enquanto esta felicidade está em nós,
esta felicidade da natureza, da saúde e de muitas coisas
mais, enquanto formos capazes de conservar tudo isto
em nós, a felicidade voltará sempre de novo. Fortuna,
fama, tudo podes perder, mas a felicidade do coração,
ainda que por vezes esteja obscurecida, torna a vir enquanto
viveres. Enquanto puderes erguer os olhos para o céu,
sem medo, saberás que tens o coração puro, e isto significa
felicidade.
Tua Anne.
Domingo, 27 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
De manhã até à noite não posso pensar senão no Peter.
Adormeço com a sua imagem nos olhos, sonho com ele
e quando acordo sinto o seu olhar em mim.
Parece-me que o Peter e eu não somos tão diferentes
como podia parecer à primeira vista. A ambos nos falta
uma mãe. A dele é demasiado superficial, gosta do "flirt"
e não se preocupa com a vida íntima do filho. A minha
pensa em mim, mas não possui o tacto com que as mães
devem compreender as coisas.
Ambos lutamos contra o que se passa dentro de nós.
Falta-nos ainda a segurança, somos acanhados e frágeis,
não suportamos que alguém toque o nosso íntimo com
grosseria. Quando isso acontece comigo, a minha primeira
reacção é: "quero ir-me embora,. Mas como é impossível,
escondo os meus sentimentos e porto-me tão mal que
toda a gente desejava que eu realmente me fosse embora.
O Peter, por sua vez, fecha-se na sua concha, não
fala, sonha e esconde-se, cheio de receios.
Mas como e onde nos havemos de juntar? Não sei
durante quanto tempo poderei dominar este meu desejo.
Tua Anne
Segunda-feira, 28 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
Já está a ser um pesadelo! Estou sempre junto dele;
não devo deixar transparecer nada, tenho de parecer
despreocupada e alegre, ao passo que, no meu íntimo
tudo é desespero.
Agora Peter Wessel e Peter van Daan formam um
Peter só. E este Peter é bom e eu amo-o e quero-o para
mim. A mãe está insuportável, o pai sempre gentil e,
por isso, mais insuportável ainda, a Margot pretende tornar-se
amável, e eu só queria que me deixassem em paz.
O Peter não veio ter comigo quando eu estava no
sótão. Saiu para se pôr a carpinteirar. A cada martelada
eu ia perdendo mais a coragem e ficando mais triste.
Do outro lado toca o carrilhão: "O corpo erecto! O
coração ao alto!
Estou a ser uma sentimentalona, bem sei. Estou desesperada
e não tenho juízo, também sei!
Oh! Ajuda-me!
Tua Anne.
Quarta-feira, 2 de Março de 1944
Querida Kitty:
As minhas preocupações passaram Para segundo plano
e isto por causa de um roubo. Estes roubos já não têm
graça nenhuma, mas o que se há-de fazer se os ladrões
sentem um prazer especial em honrar a firma Kolen & Go.
com a sua visita? Desta vez a coisa foi mais complicada
do que em Julho do ano passado. Quando o sr. van Daan
desceu ontem, como de costume, ao escritório do Kraler
viu que as portas envidraçadas e a porta do escritório
estavam abertas. Surpreendido, resolveu dar uma volta
para inspeccionar o resto e ainda mais surpreendido ficou
ao ver o cáos no escritório principal.
-Ladrões!- até aí para se certificar disso correu, escada
abaixo até à porta de entrada. Mas a porta e o fecho de
segurança estavam intactos.
- Peter e a Elli foram desleixados - pensou então.
Ficou algum tempo no escritório do Pai e depois fechou
as Portas, a luz, subiu e não se ralou mais com as
portas abertas nem do estranho cáos no escritório.
e de manhã o Peter bateu cedo à nossa porta e
deu-nos a notícia desagradável de que a porta da rua
estava largamente aberta e de que tinham desaparecido do
armário o aparelho de projecção e a nova pasta do Kraler
O Peter recebeu ordens para fechar a porta da rua e,
só agora o sr. van Daan nos contou as suas observações da
noite anterior. Ficámos muito preocupados.
Esta história só tem uma explicação : o ladrão possui
uma chave igual à chave de segurança, pois a porta
não estava arrombada. Decerto meteu-se dentro da casa
muito cedo, fechou a porta atrás de si e, ao ouvir o sr.
van Daan, escondeu-se. Depois de este ter subido, desatou
a fugir o mais depressa que pôde, com as coisas roubadas
e, com a atrapalhação, esqueceu-se de fechar a porta da
rua. Mas quem será o homem que possui a chave? E porque
é que não entrou no armazém? Será mesmo um dos
próprios empregados do armazém? E se ele nos denunciar?
agora que ouviu e provàvelmente viu o sr. van Daan?
Tudo isto é quase sinistro, porque nunca sabemos se e
e quando o ladrão virá de novo abrir a porta. Ou será
possível que ele próprio se tenha assustado por ter
visto alguém dentro da casa?
Tua Anne.
Quinta-feira, 3 de Março de 1944
Querida Kitty:
A Margot e eu estivemos hoje no sótão. Mas o prazer
não foi o mesmo, embora eu saiba que em muitas coisas
ela sente como eu.
Ao lavar a louça, a Elli confessou à minha mãe e à
sra. van Daan o seu desespero. E queres saber como
as duas a consolaram? Sabes qual foi o conselho que a
mãe lhe deu? Que devia pensar em todos aqueles que
estão agora a perecer no Mundo! Mas quando uma pessoa
está desesperada, pode valer-lhe de alguma coisa pensar
nas misérias dos outros? Foi o que eu disse, mas responderam-me :
-Não sabes ainda nada destas coisas.
Os adultos são tapados, são estúpidos. Como se a
Margot, o Peter, a Elli e eu não sentíssemos todos o mesmo!
Só o amor de uma mãe ou o amor de um grande amigo
nos pode consolar. As nossas mães não têm uma centelha
de compreensão para nós sequer, e acho que a sra. van
Daan ainda tem mais um bocado do que minha mãe.
Eu gostaria de ter dito à pobre Elli algumas palavras,
dessas palavras que confortam, como sei por experiência
própria. Mas o pai interveio e afastou-me. São tão estúpidos, todos eles! Nós não temos
direito a ter uma opinião!
Eles são imensamente modernos! Então a gente não sabe
pensar? Pode obrigar-se alguém a não falar, mas nunca
a não ter uma opinião. Não é possível proibir-se isto a
ninguém, seja qual for a idade. A Elli, ao Peter, à Margot
e a mim só o amor autêntico, abnegado, pode valer,
mas o amor assim não nos é dado. Nenhum de todos estes
sábios idiotas nos compreende aqui, porque nós somos
muito mais sensíveis, muito mais avançados nas nossas
ideias do que eles imaginam.
Presentemente, a mãe anda a criticar-me a torto e
a direito. Tem ciumes da sra. van Daan, com quem agora
falo mais do que com ela.
Hoje de tarde consegui apanhar o Peter. Conversámos
pelo menos uns três quartos de hora. O Peter tem muita
dificuldade em falar de si próprio, mas pouco a pouco
há-de fazê-lo. Contou-me que os pais se zangavam a cada
passo por causa da política, dos cigarros e de outras coisas
que tais. Estava embaraçado. Depois falei-lhe dos meus pais.
O Peter tem grande entusiasmo por meu pai, disse que
era um tipo "bestial". Assim falámos da nossa família.
Ficou admirado quando eu lhe disse que não gostávamos
muito dos seus pais.
- Peter - disse-lhe -, sabes que sou sempre franca.
Porque é que não te devia de contar? Conhecemos os
defeitos dos teus pais!
E depois ainda lhe disse :
- Peter, eu gostava de ajudar-te. Não será possível?
Tu andas metido entre os dois e sei que isto te faz mal.
- Sim, gostava que me ajudasses, agradecer-te-ia toda
a vida.
- Mas talvez seja melhor tu falares com meu pai,
podes ser franco com ele; nunca denuncia ninguém.
- Ah, sim, deve ser um camarada a valer.
-Gostas dele, não gostas?
Fez que sim com a cabeça e depois eu disse:
- Ele também gosta muito de ti.
Ficou corado, o que me enterneceu. Que felicidade
lhe dei com tão poucas palavras!
- Mas isso é verdade? - Perguntou.
- Pois claro-disse eu-, já lho ouvi dizer não sei
quantas vezes.
O Peter é um tipo "bestial", exactamente como o pai.
Tua Anne
Sexta-feira, 9 de Março de 1944
Querida Kitty:
Hoje, quando se acenderam as velas, fiquei contente,
senti-me calma. Vi a avó, envolvida pela luz. A avó
é quem me protege e preserva e quem me dá, sempre de
novo, alegria e satisfação.
Mas... agora há mais uma pessoa que domina os meus
pensamentos: é o Peter. Quando hoje fui buscar as batatas
e estava, com a panela cheia, ao pé da escada, ele
perguntou-me :
- Que fizeste hoje de tarde?
Sentei-me num degrau e conversámos. Só às cinco e um
quarto (uma hora depois de ter subido) desci com as batatas.
O Peter não falou dos seus pais. Falámos de livros e
dos tempos passados. Quase me podia apaixonar por ele!
Tocou no assunto. Depois de ter descascado as batatas,
fui ter com ele. Estava calor e eu disse :
- Para saberes a temperatura basta olhares para mim
e para a Margot. O frio torna-nos pálidas e com o calor
ficamos coradas.
- Apaixonada?-perguntou.
- Eu apaixonada? Mas porquê?-respondi eu cheia
de candura.
- E porque não?-perguntou.
Depois descemos para jantar.
Que queria ele dizer com aquilo? Hoje perguntei-lhe,
finalmente, se não achava as minhas conversas maçadoras.
Disse :
-Acho-as engraçadas.
E não disse mais nada. Não sei se estava a ser muito
tímido.
Oh, Kitty! Estou a portar-me como uma apaixonada
que não consegue falar senão do seu namorado. Mas,
podes crer, o Peter é um amor de rapaz! Quando lhe
poderei eu dizer isto? Claro que não será antes de ele
me achar também um amor de rapariga. Eu não sou uma
gatinha que se possa tocar sem luvas, bem sei. A verdade
é que o Peter gosta do seu sossego, e será difícil eu saber
se gosta de mim.
De qualquer forma estamos a conhecer-nos melhor
um ao outro e eu só queria que tivéssemos coragem para
nos abrirmos ainda mais. Quem sabe, talvez isto se dê
mais depressa do que estou a imaginar. Olha-me várias
vezes como quem me compreende e eu respondo piscando
os olhos. E então ficamos ambos felizes e divertidos!
Devo parecer uma tola a falar assim da nossa felicidade,
mas estou convencida de que ele pensa exactamente
como eu!
Tua Anne
Sábado, 10 de Março de 1944
Querida Kitty:
Este sábado é, desde há meses e meses, o primeiro que
não se passou aborrecido, triste e desesperado. E isto por
causa do Peter.
Quando hoje de manhã fui ao sótão para estender
o meu avental lavado, estava lá o pai, que estuda todos os
dias com o Peter. Perguntou-me se eu não queria ficar
a estudar com eles. Claro que quis e falámos primeiro
francês. Expliquei umas coisas ao Peter e depois passámos
para o inglês. O pai leu-nos umas passagens de um livro
de Dickens e, confesso, senti-me no sétimo céu, assim
sentada ao lado do pai e tão próxima do Peter.
às onze desci. Quando meia hora depois voltei para
cima, o Peter já me esperava junto da escada. Conversámos
até à uma menos um quarto. Sempre que pode, isto é, quando ninguém está a ouvir, ele
diz-me depois do almoço :
- Até logo, Anne.
Ah, como me sinto contente! Ele gostará de mim?
Seja como for, o Peter é um óptimo rapaz e acho que nos
havemos de entender muito bem.
A sra. van Daan gosta de nos ver juntos. Mas hoje
perguntou um tanto trocista:
- Posso deixar-vos sós lá em cima?
- claro que pode, - protestei - A senhora quer ofender-me?
De manhã à noite folgo em ver o Peter.
Tua Anne
Segunda-feira, 12 de Março de 1944
Querida Kitty:
Leio no rosto do Peter que pensa tanto em mim como
eu nele. Ontem à noite aborreci-me terrivelmente quando
a sra. van Daan disse, toda trocista:
- Olhem o grande pensador!
O Peter corou, ficou encavacado, e a mim apeteceu-me
saltar à cara da senhora.
Porque é que falam sem ser preciso? Não calculas
como sofro por vê-lo assim tão só. compreendo-o como
se fosse eu própria a viver a sua vida, sinto-lhe o
desespero quando discutem e se zangam junto dele, noto o
vazio em que ele mergulha. Pobre Peter! Como tu
necessitas de amor!
Disse-me que não precisava de amigos: ainda trago
nos ouvidos a dureza destas palavras. Como está enganado!
Julgo que não acredita no que disse. Quer por força
parecer uma pessoa indiferente, não mostrar os seus
sentimentos.
Quanto tempo te quererás assim enganar, Peter? Não se
seguirá a este esforço sobre-humano uma tremenda reacção?
Oh, Peter, se me deixasses ajudar-te! Os dois juntos
vencíamos a nossa solidão.
Ando sempre a cismar, mas não o digo a ninguém.
Sinto-me feliz quando o vejo a ele e quando vejo o Sol
brilhar.
Ontem, ao lavar o cabelo, estava terrivelmente endiabrada.
Sabia que ele se encontrava no quarto ao lado.
Não tenho culpa : mas quanto mais calada e mais séria
estou no íntimo mais espalhafato tenho de fazer. Quem
será o primeiro a descobri-lo e a quebrar a armadura?
Ainda bem que os van Daans não têm uma filha! A minha
conquista não seria tão difícil, tão bela e tão esplêndida
se não fosse a atracção do sexo oposto!
Tua Anne
P. S. Bem sabes que te escrevo tudo com a máxima
franqueza. Por isso vou ainda confessar-te que só vivo
agora dos nossos encontros. Quem me dera saber se ele
também me espera com a mesma ansiedade. Fico radiante
quando sinto as suas tímidas tentativas de uma aproximação.
Sei que ele gostava tanto como eu de abrir, finalmente,
o coração. Não adivinha que é precisamente a sua
falta de jeito que me encanta.
Tua Anne
Terça-feira, 13 de Março de 1944
Querida Kitty :
Quando me ponho a pensar na minha vida de 1942,
tudo me parece irreal. Essa vida era vivida por uma
outra Anne, diferente desta que tem, agora, tanto juízo.
Era uma vida boa, ai!, se era! Tantos admiradores como
os dedos das mãos, por aí vinte amigos e conhecidos,
a aluna favorita de quase todos os professores, amimalhada
pelos pais, sempre doces e guloseimas, dinheiro que
chegava - que mais queres? Talvez queiras perguntar-me
como eu conseguia que todos gostassem tanto de mim.
Se o Peter diz que tenho "charme" talvez não tenha bem
razão. Os professores gostavam mas era das minhas respostas
vivas, das minhas observações cómicas, da minha
cara sempre a sorrir e do meu olhar crítico, divertido e
ameno, não era mais nada. Eu gostava do "flirt", era
brincalhona e alegre. Mas tinha também algumas boas
qualidades que me davam a garantia de não cair em
desgraça com ninguém : era trabalhadora, franca e sincera.
Nunca impedia que alguém, fosse quem fosse, copiasse
os meus exercícios, não era vaidosa e repartia sempre os
meus doces com os outros. Quem sabe se a admiração de
que gozava não faria de mim uma pessoa petulante? Talvez
não tenha sido nada mau que eu, de repente- no auge
da festa, digamos - fosse bruscamente atirada para a
realidade; mas sempre me levou mais de um ano a habituar-me
a não ser admirada.
Como é que me chamavam na escola, onde eu estava
sempre à frente em todas as partidas e brincadeiras? "A cabecilha". E eu nunca tinha mau
génio ou má disposição.
Por isso não era de admirar que todos gostassem de
me acompanhar e fossem simpáticos e atenciosos.
Agora vejo essa Anne como uma rapariguita simpática
mas superficial, que nada tem de comum comigo. O Peter
disse, e muito bem:
-Quando eu te encontrava, via-te sempre com dois
ou três rapazes e com um bando de raparigas, sempre a
rir e divertida. Eras o centro.
O que resta dessa rapariga? Ainda não me esqueci
de rir e de dar respostas. Ainda sei criticar as pessoas e, talvez até melhor do que antes, sei
namoriscar se... me apetecer. Gostava de voltar a viver assim, só por uma tarde, uns dias,
ou uma semana, despreocupada, mas no fim da semana
estaria saturada e ficaria grata à primeira pessoa que me
aparecesse a falar em coisas sérias. Não preciso de
admiradores mas sim de amigos; não preciso de adoradores
em troca de um sorriso mas sim de alguém que dê valor à
minha maneira de ser e ao meu carácter. Sei que assim
terei menos gente à minha volta. Mas não importa, o
principal é que me fiquem algumas pessoas de carácter.
E, vistas bem as coisas, eu não era inteiramente feliz
naquele tempo. Sentia-me muitas vezes só, mas como
andava sempre atarefada, não reflectia nisso e divertia-me
o mais que podia. Consciente ou inconscientemente, tentava
com as brincadeiras encher o vazio. Agora prefiro
trabalhar. Aquele período findou irrevogàvelmente: o
tempo da escola, despreocupado e descuidado, não volta
mais. Também não quero que volte, ultrapassei-o. Agora,
até quando estou alegre, uma parte de mim mesma conserva
sempre a sua seriedade.
Vejo a minha vida até ao princípio deste ano como
que através de uma lente impiedosa. Em casa, uma vida
cheia de sol; 1942, a vinda para aqui, a transição brusca,
as discussões, as acusações. Não tinha capacidade para
digerir tanta coisa, apanhei um choque e só consegui
manter-me mais ou menos firme manifestando atitudes
de rebeldia.
Primeira parte de 1943 : a minha constante vontade
de chorar, a solidão, o lento reconhecimento de todos os
meus defeitos e de todas as minhas faltas, que eram grandes,
sem dúvida, mas que os outros é que queriam fazer muito
maiores ainda.
Falava a torto e a direito e fiz tentativas para conquistar
o Pim só para mim, mas não o consegui. Então
vi-me perante o difícil problema de me modificar para não
ouvir mais censuras, para não me sentir esmagada, sob o
seu peso, até ao desespero.
A segunda parte do ano já foi melhor. Como me ia
tornando uma adolescente, já viam em mim uma pessoa
mais ajuizada. Comecei a reflectir e a escrever histórias.
Concluí que já ninguém tinha o direito de me empurrar
como se fosse uma bola. Queria formar-me segundo a
minha própria vontade. Reconheci também que o pai
não podia ser o meu confidente em todas as coisas. Só
queria confiar inteiramente em mim própria.
Depois do Ano Novo, a segunda transformação... o
meu sonho. Foi através dele que descobri o meu desejo
de um rapaz e não de uma rapariga, o desejo de um amigo.
Descobri também a felicidade no meu íntimo e a minha
armadura exterior feita de superficialidade e de alegria.
Pouco a pouco acalmei e comecei a sentir uma ânsia sem
limites de tudo o que é bom e belo.
Quando, à noite, estou na cama e remato a oração
com estas palavras: "Agradeço-te o bem, o amor e a
beleza", então todo o meu ser rejubila. Ponho-me a pensar
em tudo o que foi "o bem" : a nossa fuga para aqui, a
minha saúde; e no "amor": o Peter e tudo aquilo que é
tão delicado e sensível que ambos ainda não ousamos
tocar-lhe, mas que um dia virá-o futuro, a felicidade.
E penso na "beleza" que envolve o Mundo: a natureza,
a arte, a grandeza e tudo o que a isto está ligado.
Não penso na miséria mas em tudo o que é terno e maravilhoso.
É nisto que reside em grande parte a diferença
entre a mãe e eu. Quando alguém está triste, ela aconselha:
"lembra-te da miséria que vai pelo Mundo e sê
grata por tu não a sofreres". Eu digo: "vai e procura os
campos, a natureza e o Sol: vai, procura a felicidade em
ti e em Deus. Pensa no que é belo e que se realiza em ti
e à tua volta, sempre e sempre de novo".
Acho o conselho da mãe errado, pois, o que pode fazer
alguém que se sente infeliz? Perder-se na miséria? Acho que alguma coisa de belo resta aos
próprios. tÉr-se-á
perdido a liberdade e alguma coisa de nós. Mas devemos
agarrar-nos e reencontrar-nos-emos a ti e a Deus,
de novo. Aquele que é feliz, espalha felicidade.
Aquele que teima na infelicidade, que perde o equilíbrio
e a confiança, perde-se na vida.
Tua Anne
Domingo, 18 de Março de 1944
Querida Kitty:
Ultimamente não tenho tido paciência para estar
sentada à minha mesa. Gosto de conversar com o Peter
e só tenho receio de que ele se mace com isso. Já me contou
muitas coisas da sua vida, dos seus pais e de si próprio.
Mas eu ainda queria que ele me contasse mais.
Depois pergunto a mim mesma porque é que espero
tanto dele. Antigamente ele achava-me insuportável e eu
pagava-lhe na mesma moeda. Mas as coisas mudaram.
Se com ele, no entanto, ainda nos
pudermos tornar amigos íntimos, suportaria muito melhor esta vida de isolamento. Não
quero excitar-me mais. Estou a pensar de mais nele e não
tenho o direito de te vir importunar a ti, só por me sentir
tão obcecada.
Sábado, à tarde, fiquei, depois de uma série de notícias
tristes, tão mal disposta e confusa que me deitei na cama.
Só Queria dormir e não pensar em nada. Dormi até às
quatro horas depois tive de ir ao quarto do Pai.
foi fácil respondér às perguntas da mãe porque fora
que me tinha deitado. Disse que tinha dores de cabeça
e não menti. É que eu tinha dores de cabeça... na alma.
Suponho que gente normal, raparigas normais, adolescentes
da minha idade, me achariam provàvelmente
absurda por eu me lamentar tanto. Mas a ti digo tudo o
que me preocupa, e depois, durante o dia, sou atrevida,
para não precisar de responder às perguntas e para
evitar aborrecimentos.
A Margot é carinhosa comigo e talvez gostasse de
ser a minha confidente, mas não lhe posso dizer tudo.
É simpática e boa e bomita, mas um bocadinho académica quando conversamos sobre
coisas profundas. Ela procura
compreender-me, não há dúvida nenhuma, reflecte mesmo
sobre a sua irmã maluquinha, fixa-me com os olhos de
examinadora quandu digo isto ou aquilo e, provàvelmente,
pensa com os seus botões :
-Estará ela a representar ou será sincera?
Estamos sempre juntas e eu não queria ter a minha
confidente sempre tão próximo.
Quando sairei eu deste labirinto de pensamentos?
Quando haverá calma e paz no meu coração?
Tua Anne
Terça-feira, 19 de Março de 1944
Querida Kitty:
Talvez te entretenha a ti - a mim isto já não me
interessa - se te contar o que hoje vamos comer. Neste
momento estou (a mulher da limpeza encontra-se lá em baixo nos
escritórios) à mesa dos van Daans, coberta com um oleado.
Aperto o nariz e a boca com um lenço perfumado-o
perfume ainda é do tempo de antes do "mergulho". Esta
maneira de contar deve parecer-te aborrecida. Vou
começar outra vez. Como os nossos fornecedores foram
apanhados por causa dos cartões "negros" do racionamento
e outras coisas no género, já não temos cartões e, portanto,
nenhumas gorduras. A Miep e o Koophuis estão doentes,
a Elli não pode sair para fazer as compras e, por consequência, a nossa disposição é
desconsoladora e a comida
também. Para amanhã já não temos um pedacinho de
pingue, para já não falar de manteiga ou de margarina.
Acabaram-se as batatas fritas ao pequeno almoço (para
substituir o pão). Agora comemos papinhas. A sra. van Daan
tem medo de que morramos de fome e, felizmente, conseguiu
arranjar um bocadinho de leite "negro". O nosso almoço:
feijão de conserva de barrica! Daí as minhas providências
que tomei com o lenço. É incrível como o feijão cheira
mal depois de ter estado guardado durante um ano. Todo
o quarto cheira a uma mistura de ameixas podres, desinfectante
e ovos podres. Brrr! Só de pensar que tenho de
comer aquilo, já fico enjoada. Ainda por cima as nossas
batatas têm uma doença esquisita e de cada balde cheio
de "pommes de terre" metade é atirada para o lixo. Ao
descascá-las entretemo-nos a diagnosticar as mais variadas
doenças e já vimos casos de cancro, varíola e sarampo.
Podes crer que não é fácil viver-se "mergulhado" no quarto ano de guerra. Quem nos dera
que esta miséria acabasse!
Com franqueza, eu ainda aguentava a má comida, se o
resto fosse mais agradável. Mas o mal está em que todos
nós, com a vida monótona que levamos, ficamos nervosos.
Aqui tens as opiniões de cinco "mergulhados" sobre a
nossa vida:
Sra. van Daan:-Estou farta de fazer de criada de
cozinha. Mas quando não tenho nada que fazer aborreço-me.
Portanto, ponho-me a cozinhar. Mas cozinhar sem
gorduras é inconcebível, só o cheiro põe-me doente. Ainda
por cima todos me agradecem o trabalho com má cara
e a resmungar. Sou o carneiro preto do rebanho e tenho
culpa de todo o mal que acontece. Além disso, penso que
a guerra está a caminhar mal e se calhar os alemães ainda
vão vencer. Tenho medo de que morramos todos de fome.
E ainda querem que eu esteja bem disposta.
Sr. van Daan:-Preciso de fumar, de fumar, de fumar.
Assim suporto tudo: a política, a comida e o mau génio
da minha Kerli. Masjá que não tenho cigarros, apetecia-me,
ao menos, um bocado de carne. Estou sempre a dizer que
vivemos miseràvelmente, nada me serve, há discussões por
tudo e por nada e acho a Kerli estúpida.
A sra. Frank:-Mas a comida não é assim coisa tão
importante. Só queria uma fatia de pão de centeio. Estou
com fome. Se eu fosse a sra. van Daan já tinha desabituado
o meu marido de fumar tanto. Faz o favor, dê-me um cigarro
para acalmar os nervos. Os ingleses têm os seus defeitos
mas a guerra está a caminhar bem. Ainda bem que posso
falar à vontade e que não estou presa na Polónia.
Sr. Frank:-Acho que tudo vai bem, não preciso de
nada. Do que necessitamos é de calma, de paciência. Logo
que me não faltem as batatas estou satisfeito, mas não se
esqueçam de guardar algumas da minha ração para a Elli.
O sr. Dussel:-Tenho de concluir a tese antes de mais
nada. A política? Essa vai às mil maravilhas! Acho impossível
que nos descubram aqui. Eu...
Eu, eu, eu...
Tua Anne
Quarta-feira, 15 de Março de 1944
Querida Kitty:
Todo o santo dia ouço : se acontecer isto ou aquilo
teremos as maiores dificuldades... e se aquela rapariga
ficar doente, já não temos mais ninguém no Mundo... e se...
Já sabes a lenga-lenga. Pelo menos já deves conhecer
bastante esta gente do anexo para poderes adivinhar o
que andam a dizer.
A causa desses "se, se..." é a seguinte: o sr. Kraler
foi convocado para um "campo de trabalho", a Elli está
terrivelmente constipada, a Miep ainda se não levantou
da gripe e o sr. Koophuis teve outra vez uma hemorragia
e desmaiou! Um chorrilho de desgraças.
O pessoal do armazém tem feriado amanhã. Se a Elli
tiver de ficar em casa, a porta ficará fechada e temos de
fazer muito pouco ruído para que os vizinhos não desconfiem.
O Henk deve vir à uma hora para olhar pelos
"abandonados" e para representar o papel de guarda de
jardim zoológico. Hoje, à hora do almoço, contou-nos,
pela primeira vez desde há bastante tempo, coisas do grande
mundo lá de fora. Devias ter visto como o ouvimos todos
com o máximo interesse. Há um quadro que se chama
"Avòzinha conta histórias". O nosso grupo deve ter tido
o mesmo aspecto. Falou, falou, com muitos pormenores
e pormenorinhos, e não se esqueceu de contar-nos coisas
sobre comidas e do médico da Miep por quem perguntámos.
-Médico? Não me falem desse médico! Hoje de manhã
telefonei-lhe, mas só consegui que um assistentezinho viesse
ao telefone. Pedi-lhe uma receita contra a gripe. Disse-me
que, entre as oito e as nove, podia ir buscá-la. Quando se
trata de uma gripe mais grave, suponho que o médico vem pessoalmente ao telefone para
dizer: "Mostre a língua...
diga aaahhh... sim, senhor, ouço bem, tem a garganta
inflamada. Vou transmitir a receita à farmácia. Depois
pode ir lá buscar o remédio. Bom dia!" Lindo serviço, não
há dúvida. Consultas exclusivamente pelo telefone!
Mas podemos acusar os médicos? Ao fim e ao cabo
cada pessoa só tem duas mãos e, infelizmente, existem
agora muitos doentes e muito poucos médicos. Mas não
pudemos deixar de nos rir, quando o FIenk representou
aquela conversa ao telefone. Imagino como é diferente,
agora, a sala de espera de um médico. Decerto já não
desprezam só os doentes da "caixa", como era costume.
Agora devem desprezar-se as pessoas que não sofrem de
nada a sério mas que gostam de se queixar. Provàvelmente
falam-lhes assim:
-Que é que queres? Vai para o fim da bicha, que
temos agora de tratar primeiro os autênticos doentes.
Tua Anne
Quinta-feira, 16 de Março de 1944
Querida Kitty:
O tempo está maravilhoso, indescritivelmente maravilhoso. Hei-de ir ao sótão.
Agora sei por que sou mais irriquieta do que o Peter.
Ele tem um quarto só para ele, onde pode sonhar, pensar,
dormir. Eu sou empurrada de um quarto para o outro.
Raras vezes estou sozinha no quarto que partilho com o
Dussel, e tenho sempre tanto desejo de estar só! Por isso
fujo a cada passo lá para cima. Uma vez ali e contigo,
Kitty, posso, por pouco tempo, ser eu mesma. Mas não
me vou queixar, pelo contrário, vou ser corajosa. Os
outros, felizmente, nada percebem do que se passa comigo,
porque é que sou mais fria para com a mãe, menos meiga
com o pai. Falo muito pouco com a Margot sobre as minhas
coisas. Tenho de conservar a minha segurança exterior.
Não é preciso que os outros fiquem a conhecer a confusão
do meu íntimo, uma espécie de luta entre o desejo e a
razão. Até agora a razão tem sido sempre vencedora, mas
não chegará o dia em que sucumba? às vezes tenho medo
disso, outras vezes desejo que assim aconteça.
É pena não poder falar sobre estas coisas com o Peter,
mas eu sei que é a ele que compete começar. Entristece-me
não poder continuar as minhas conversas dos sonhos
durante o dia e que as aventuras sonhadas não se tornem
realidade. Sim, Kitty, é verdade, a Anne não regula bem.
Mas não te esqueças : vivo numa época louca e em circunstâncias loucas. Que sorte a minha
poder escrever o
que penso e sinto. Se não fosse isto, sufocava, de certeza.
O que pensará o Peter de tudo isto? Oxalá possa
dizer-mo em breve! Deve ter adivinhado alguma coisa, porque aquela Anne que ele conhecia
até há pouco não
lhe agradava com certeza. Pode ele, que tanto aprecia a
calma e a paz, simpatizar com a minha vivacidade e inquietação?
Será ele o único no Mundo que conseguiu ver o
que está por detrás da minha máscara de pedra? Não é
velha regra o amor nascer muitas vezes da compaixão
e as duas coisas confundirem-se? Será o meu caso? É que
tenho tanta pena dele como de mim própria.
Não sei, palavra que não sei, como hei-de começar a
falar nisto! E se eu não sei muito menos ele, a quem tanto
custa exprimir-se. Se lhe pudesse escrever! Então ficaria
a saber o que lhe queria dizer. Mas falar é muito difícil!
Tua Anne
Sexta-feira, 17 de Março de 1944
Querida Kitty:
Uff! Pelo anexo passa uma onda de alívio. O Kraler
está livre, a Elli não consentiu que a sua constipação
piorasse e a impedisse de cumprir os seus deveres. Tudo
voltou à velha ordem. Só a Margot e eu estamos um tanto cansadas dos nossos pais. Não
me compreendas mal, por favor.
Bem sabes que não me entendo, neste momento, muito
bem com a mãe, mas do pai gosto sempre na mesma, e
a Margot gosta de ambos. Mas a gente na nossa idade
queria, por vezes, decidir sózinha sobre as suas coisas e
a sua vida, e não depender sempre dos outros. Se vou para
cima, perguntam o que vou lá fazer; não me deixam comer
sal às refeições; todas as noites, é garantido, a mãe pergunta-me se ainda não me quero
despir. Cada livro que me
apetece ler tem de ser primeiro apreciado por eles. Bem
sei que a censura não é rigorosa e posso ler quase tudo,
mas o que nos aborrece é o controle constante e também
as observações e as anotações. Pelo que me respeita, já
não sou a criancinha "beijinho aqui, beijinho ali", e acho
todos os diminutivos de carinho bastante artificiais. Em
poucas palavras: durante algum tempo aguentar-me-ia
bem sem os pais, sempre cheios de cuidados carinhosos.
Ontem a Margot disse :
- É quase ridículo! A gente já nem pode apoiar a
cabeça na mão sem que perguntem logo se temos dores
de cabeça ou se não nos sentimos bem!
É uma desilusão para nós duas verificarmos que muito
pouco resta do nosso convívio familiar tão íntimo. A causa
disto é haver entre nós relações um pouco erradas. Com
isto quero dizer que eles nos tratam como crianças e não
se lembram de que estamos mentalmente mais desenvolvidas do que as outras raparigas da
nossa idade. Embora
eu só tenha catorze anos, sei muito bem o que quero e
sei também quem tem razão. Tenho a minha opinião, as
minhas concepções, os meus princípios. Talvez isto soe a
vaidade, mas já não me sinto criança, sinto-me despegada
seja de quem for. Sei que discuto melhor do que a mãe,
que sou mais objectiva e não tão exagerada, sei que tenho
mais ordem nas minhas coisas e que sou mais habilidosa e,
por isso-, se quiseres, ri-te de mim!-em muitas coisas
superior a ela. Para amar alguém, a primeira condição é
poder admirar-admirar e respeitar. Tudo seria melhor
se o Peter fosse meu. A ele posso admirá-lo em muitas
coisas. É bom rapaz, um rapaz às direitas!
Tua Anne
Domingo, 19 de Março de 1944
Querida Kitty:
Ontem foi um dia importante para mim. Tinha resolvido
falar abertamente com o Peter. Antes de nos sentarmos
à mesa, perguntei-lhe baixinho:
-Estudas estenografia logo à tarde, Peter?
-Não, senhora-disse ele.
-Gostava de falar contigo.
-Está bem.
Por atenção, ainda fiquei, depois de termos lavado a
louça, um bocado com os pais dele. Depois fui ter com
o Peter. Ele estava do lado esquerdo da janela, eu pus-me
à direita. Fala-se melhor na penumbra do que em plena
luz. Creio que o Peter é da mesma opinião.
Falámos sobre tantas coisas que não me é possível
escrever tudo, mas foi maravilhoso, nunca vivi nada tão
maravilhoso desde que entrei nesta casa. Alguma coisa
vou reproduzir-te. Falámos dos eternos conflitos cá em
casa, que eu agora vejo com olhos diferentes, e do afastamento
íntimo dos nossos pais. Contei-lhe coisas do meu pai,
da minha mãe, da Margot e de mim. De repente, ele
perguntou-me :
- Vocês beijam-se quando dizem "boa-noite" uns aos
outros?
- Pois claro, beijamo-nos muitas vezes. Vocês não?
-Nós não. Poucas vezes tenho dado beijos a alguém.
- E no dia dos teus anos?
- Ah sim, nesse dia beijamo-nos.
Dissemos que era impossível falar sobre os nossos problemas
aos pais, e ele confessou que os dele queriam muito
ser os seus confidentes mas que não podiam sê-lo. Contei-lhe
que chorava de noite, na cama, quando tinha desgostos e ele disse-me que ia para o sótão
praguejar. Também lhe
contei que a Margot e eu só agora nos chegámos a conhecer
bem, mas que não podemos confiar tudo uma à outra
por estarmos próximas de mais. E falámos de muito mais
coisas e ele era exactamente como eu tinha imaginado.
Depois voltámos a falar de 1942, de como tínhamos
sido tão diferentes e que, ao princípio, não gostávamos um
do outro. Nessa altura ele achava-me espevitada e desagradável
e eu não encontrava nada nele que me interessasse.
Parecia-me incompreensível que ele nem sequer procurasse
namoriscar mas agora estou contente por isso mesmo.
Disse-me que procurava isolar-se, e eu expliquei-lhe que
entre a minha vivacidade e a sua calma quase não havia
diferença porque eu desejava tanto o sossego como ele e
só encontrava um bocado de paz junto do meu diário.
Ele ainda disse ter sido uma felicidade os meus pais virem
com as filhas para o anexo, e eu disse-lhe que me sentia
feliz por ele estar cá e que o compreendo na sua solidão e
nas suas relações com os pais e que gostaria de o ajudar.
- Mas tu estás constantemente a ajudar-me.
- Eu ajudar-te, em quê?-perguntei espantada.
- Com a tua alegria.
Foi a coisa mais bonita que me podia ter dito. Foi
mesmo maravilhoso. Sei agora que me aprecia como boa
camarada e, para já, sinto-me satisfeita. É-me difícil
explicar em palavras a minha felicidade e gratidão. E
tenho de te pedir desculpa, Kitty, por o meu estilo não
estar hoje à altura.
Escrevi tudo conforme me vinha à cabeça. Tenho a
sensação de partilhar com o Peter um segredo. Todas as
vezes que olha para mim, ri-se ou pisca os olhos, e é como
se tudo se iluminasse à minha volta. Oxalá que nada se
modifique e que ainda possamos passar juntos muitas horas
felizes.
Da tua grata e feliz
Anne
Segunda-feira, 20 de Março de 1944
Querida Kitty :
Hoje de manhã o Peter perguntou-me se não ia ter
com ele à tardinha e acrescentou que não o estorvava.
Disse que no quarto dele tanto havia lugar para um como
para dois. Respondi-lhe que não podia ir todas as tardes
porque os outros não achavam bem, mas ele disse que
não me devia importar com isso. Então prometi ir no
sábado e pedi-lhe que me avisasse sempre que houvesse
luar.
- Combinado-disse ele-, quando houver luar vamos
lá para baixo contemplá-lo.
Entretanto, caiu uma sombra sobre a minha felicidade.
Já desconfiava há bastante tempo de que a Margot também
gosta do Peter. Não sei se gosta muito mas, de qualquer
maneira, não me sinto à vontade. Sempre que vou para
junto do Peter, causo-lhe decerto um desgosto.
Acho muito delicado da parte dela procurar não mostrar
a sua dor. Se fosse eu, ficava fora de mim de ciúmes.
Mas a Margot diz que me não apoquente e que não tenha
pena dela.
- Mas não acho agradável que fiques assim de fora,
como uma terceira pessoa.
- Estou habituada-disse ela um tanto amargamente.
Ainda não tive coragem de contar isto ao Peter. Talvez
lhe conte qualquer dia. Por agora, temos de fazer outras
confidências. A mãe ontem ralhou-me. Mereci-o bem,
pois levei longe de mais a minha indiferença para com
ela. Hei-de fazer os possíveis para me dominar; vou tentar
ser amável e não responder torto. Também o Pim está
menos afectuoso. Pretende não tratar-me como uma criança e cai no extremo oposto: é frio
de mais. Vamos a ver o
que sai disto tudo!
Basta. Quero estar sempre a olhar para o Peter, estou
a transbordar.
Uma prova da generosidade da Margot: recebi hoje,
20 de Março de 1944, esta carta:
Anne, quando ontem te disse que não tinha ciúmes de ti só
fui 50 por cento sincera. A verdade é esta: não tenho ciúmes nem de ti nem do Peter, mas
tenho pena de mim por não ter encontrado ainda ninguém-e não vejo jeito de encontrar por
enquanto - com quem possa falar abertamente sobre o que penso e sinto. Não vos invejo
por terdes confiança um no outro. Isso compensa-te um pouco de tudo aquilo de que estás
privada aqui e que outras raparigas possuem como coisa natural.
Por outro lado sei que não me teria aproximado tanto do
Peter como tu, pois só posso fazer confidências a alguém muito
intimo, a uma pessoa que me compreenda sem ser preciso entrar
em grandes pormenores. E esse alguém tinha de ser
intelectualmente superior a mim, e não é o caso do Peter. Mas
compreendo que vocês dois se entendam muito bem. Por
isso não penses que me estás a roubar qualquer coisa ou que eu fique prejudicada, porque
não é assim.
Tu e o Peter só lucram com o vosso convívio.
A minha resposta:
Querida Margot, a tua carta foi muito gentil mas, mesmo
assim, não me sinto apaziguada e não sei se é que isto alguma
vez pode acontecer.
Não tenho tanta intimidade com o Peter como estás a
imaginar. Simplesmente sentimo-nos mais à vontade quando falamos ao fim da tarde, junto
da janela aberta, do que durante o dia, à luz do Sol.
É mais fácil murmurar os sentimentos do que dizê los em voz alta.
Suponho que sentes pelo Peter uma espécie de afeição de irmã
e que gostarias de o ajudar tal qual como eu. Talvez ainda
venhas a ajudá-lo sem que vocês tenham a intimidade que nós
sonhamos. A confiança tem de ser recíproca. Julgo que é esta a
razão por que não me posso abrir com o pai inteiramente.
Não falemos mais sobre o assunto. Se houver alguma coisa
a dizer, escreve-me. É-me mais fácil exprimir-me por escrito.
Talvez não saibas quanto te admiro. Oxalá que eu tenha dentro
de mim um pouco de bondade do pai e da tua, pois nisto é que
sois muito parecidos.
Tua Anne
Quarta-feira, 22 de Março de 1944.
Querida Kitty:
Ontem recebi esta carta da Margot:
Querida Anne:
A tua carta deu-me a impressão de que sentes remorsos quando
vais ter com o Peter para trabalhar ou falar com ele. Mas não
tens motivos para isso. O Peter não é pessoa que pudesse
servir-me de confidente. Tens razão quando dizes que o vês
como um irmão, mas... como um irmão mais novo! Dá-me sempre a
ideia de que tanto ele como eu estamos a estudar-nos
mutuamente para verificar, se nós, talvez um dia, ou talvez
nunca, poderemos conviver como irmãos. Mas por enquanto ainda
é cedo.
,Não tenhas pena de mim, por fanor. Goza a amizade que,
felizmente, encontraste.
Entretanto acho a vida cada vez mais bela. Acredita,
Kitty, o velho anexo ainda há-de assistir a um verdadeiro
grande amor. Não quero saber, por ora, se, mais tarde,
casarei com o Peter, porque não sei como ele será quando
adulto. Também não sei se depois ainda gostaremos tanto
um do outro. Que o Peter agora gosta de mim, já não
tenho dúvidas. Mas não sei bem que espécie de amor é
o seu. Ser uma boa camarada, aprecia-me como rapariga
ou como irmã? Ainda não consegui descobrir.
Quando me disse, ao falar nas zangas entre os seus
pais, que o ajudo muito, fiquei satisfeita e compreendi
que a nossa amizade tinha dado um grande passo em frente.
Ontem perguntei-lhe o que faria ele se aqui vivessem uma
dúzia de Annes que, a cada passo, fossem ter com ele.
Respondeu:
- Se fossem todas como tu, não seria nada mau.
Recebe-me sempre muito bem e vê-se que gosta de
me ver aparecer. Está a estudar francês com mais entusiasmo,
até estuda à noite na cama, depois das dez horas.
Oh, quando penso no sábado, nas nossas conversas, na
delícia de cada momento, sinto-me, pela primeira vez,
satisfeita comigo própria. Não me arrependo de nenhuma
das palavras que pronunciei, ao contrário do que sucede
quase sempre. Ele é muito bonito quando se ri e também
quando está calado, e é simpático e bom. A meu ver deve
ter ficado espantado ao verificar que, afinal, não sou a
rapariga mais superficial que existe na Terra mas sim uma
criatura sonhadora como ele e com as mesmas dificuldades
a vencer.
Tua Anne
7ª parte »»»
Querida Kitty:
Sempre que vou lá para cima é com a ideia de o ver
a "ele". A minha vida agora é mais bela porque tem de
novo um sentido e todos os dias me espera uma alegria.
E, ao menos, o objecto da minha amizade encontra-se
sempre nesta casa, não tenho de recear rivais (com excepção
da Margot). Não julgues que estou apaixonada. Não é
bem isso. Mas sinto que entre mim e o Peter ainda se
desenvolverá algum sentimento muito belo, que fará de
nós amigos e confidentes. Sempre que posso, vou ter com
ele. Agora já não é como dantes quando ele não sabia o
que me havia de dizer. Pelo contrário: já estou a sair
da porta e ele ainda a falar.
A mãe não vê com bons olhos que eu vá tantas vezes
lá para cima. Disse que eu não devia incomodar o Peter,
que o devia deixar em paz. Não compreende ela que se
trata da minha vida íntima? Sempre que vou ao quarto
dele, ela olha-me de um modo estranho. E quando volto
pergunta-me de onde venho. Não suporto isto, acho
detestável.
Tua Anne.
Sábado, 19 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
Já é outra vez sábado e sabes o que isto quer dizer.
De manhã houve silêncio. Ajudei um bocado mas com
"ele" só falei de fugida. às duas e meia fui com um cobertor
para o escritório particular, para poder ler ou escrever na
escrivaninha com calma. Passado pouco tempo eu não
podia mais: enterrei a cabeça nos braços e comecei a chorar.
As lágrimas corriam, sentia-me muito infeliz. Ai! Se "ele"
tivesse ido consolar-me! Eram quatro horas quando voltei
cá para cima. Tive de ir buscar batatas e pensei que ia agora
encontrá-lo. Mas enquanto eu dava um jeito ao cabelo,
no quarto de banho, ouvi-o descer com o Boschi ao
armazém.
Chorei outra vez e fugi para o W.C. levando ainda
comigo o espelho de cabo: Aí fiquei, muito triste, e o meu
avental vermelho encheu-se de manchas de tantas lágrimas.
-Assim não chego a cativá-lo-pensei.-Se calhar, ele
nem se importa comigo nem tem nenhuma necessidade
de se abrir e se confiar. Pensará ele em mim de uma maneira
superficial? Só me resta seguir o meu caminho, sózinha
sem o Peter. De novo sem esperança e sem consolo.
Gostava de encostar, ao menos uma vez, a cabeça no
seu ombro, para não me sentir tão desesperada e tão só.
Talvez ele me não ache nada de especial e olhe para os
outros do mesmo modo simpático. O seu olhar quente
e suave só terá existido na minha imaginação? Oh, Peter,
se me pudesses ouvir ou ver! Mas eu não podia suportar
uma verdade que me desiludisse.
Enquanto nos meus olhos ainda havia lágrimas, já
no meu íntimo surgia uma nova esperança.
Tua Anne.
Domingo, 20 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
Nós fazemos ao domingo o que a outra gente faz à
semana. Enquanto os outros andam a passear, todos catitas,
andamos nós a tratar das limpezas.
Oito horas: sem consideração pelos dorminhocos, o
Dussel levanta-se. Vai ao quarto de banho, depois desce,
volta para cima e lava-se durante uma hora.
Nove e meia: Abrimos as cortinas, acendemos os fogões
e os van Daans lavam-se.
Dez e um quarto: Os van Daans estão a assobiar.
O quarto de banho está livre. Os nossos dorminhocos
levantam-se. Andam depressa de um lado para o outro.
Sucessivamente, a Margot, a mãe e eu, a fazermos as
nossas abluções. Está um frio de rachar, e ainda bem que
temos calças compridas. O pai é o último a lavar-se.
Onze e meia: pequeno almoço. Nem quero falar disso.
Já basta ouvir falar tanto de comida nesta casa.
Meio-dia e um quarto: cada um faz o que lhe apetece.
O pai, vestindo uma bata, anda dejoelhos a escovar o tapete
e fá-lo com tanto entusiasmo que todo o quarto fica envolto
numa nuvem de pó. O Dussel vira a cama dele e
assobia o concerto de violino de Beethoven. Ouvem-se os
passos da mãe no sótão. Estende a roupa lavada. O sr. van
Daan põe o chapéu na cabeça e desaparece para o andar
de baixo; o Peter, com o Mouchi ao colo, quase sempre
vai também. A sra. van Daan põe um avental comprido,
veste um colete de lã preta, calça as galochas, envolve a
cabeça num grosso xaile vermelho, pega numa trouxa
de roupa e despede-se com uma vénia muito bem ensaiada.
A Margot e eu lavamos a louça e arrumamos o quarto.
Tua Anne.
Quarta-feira, 26 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
O tempo está desde ontem maravilhoso e sinto-me
verdadeiramente espevitada. Vou todas as manhãs ao
sótão onde o Peter trabalha e onde respiro ar fresco. Do meu
lugar favorito no chão vejo um pedaço de céu azul e o
castanheiro sem folhas, em cujos ramos cintilam gotinhas,
e vejo as gaivotas que, no seu voo planado, parecem de
prata.
O Peter, com a cabeça encostada à viga, e eu, sentada,
respiramos o ar puro, olhamos lá para fora. Há entre nós
qualquer coisa que não queremos afugentar com palavras.
Olhámos assim muito tempo lá para fora e quando o
Peter se teve de ir embora para rachar a lenha, eu sabia
que ele era um óptimo rapaz. Subiu a escadinha estreita,
segui-o, e durante um quarto de hora, enquanto ele trabalhava,
não pronunciámos uma única palavra. Vi bem
que se esforçava por me mostrar que tem força.
Mas vi também, através da janela aberta, um pedaço
de Amesterdão: olhei sobre os telhados até à linha do
horizonte que de tão azul e de tão límpido quase se não
distinguia do céu.
-Enquanto ainda há disto, pensei, um Sol tão brilhante,
um céu sem nuvens e tão azul, e enquanto me é
dado ver e viver tamanha beleza, não devo estar triste.
Para qualquer pessoa que se sinta só ou infeliz, ou
que esteja preocupada, o melhor remédio é sair para o
ar livre, ir para qualquer parte, onde possa estar só
com o céu e com a natureza, e com Deus. Então compreende
que tudo é como deve ser e que Deus quer ver os homens
felizes no meio da natureza, simples e bela. Enquanto
assim for-e julgo que será sempre assim-sei que há uma
consolação para todas as dores e em todas as circunstâncias.
Creio que a natureza alivia os sofrimentos.
Talvez eu possa, em breve, partilhar esta felicidade
suprema com alguém que sinta as coisas como eu.
Estamos privados de muita coisa e há muito tempo.
Sinto-o como tu. Não estou a falar de coisas exteriores,
as que temos ainda chegam. Não, falo daquilo que se
passa dentro de nós. Tal como tu, eu queria liberdade
e ar, mas creio agora que temos boa compensação disto
que nos falta. Foi o que compreendi, de repente, hoje de
manhã, quando estava sentada junto da janela; quero
dizer, uma compensação íntima. Ao olhar lá para fora
e ao reconhecer Deus na natureza, senti-me feliz, apenas
feliz. Oh, Peter, enquanto esta felicidade está em nós,
esta felicidade da natureza, da saúde e de muitas coisas
mais, enquanto formos capazes de conservar tudo isto
em nós, a felicidade voltará sempre de novo. Fortuna,
fama, tudo podes perder, mas a felicidade do coração,
ainda que por vezes esteja obscurecida, torna a vir enquanto
viveres. Enquanto puderes erguer os olhos para o céu,
sem medo, saberás que tens o coração puro, e isto significa
felicidade.
Tua Anne.
Domingo, 27 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
De manhã até à noite não posso pensar senão no Peter.
Adormeço com a sua imagem nos olhos, sonho com ele
e quando acordo sinto o seu olhar em mim.
Parece-me que o Peter e eu não somos tão diferentes
como podia parecer à primeira vista. A ambos nos falta
uma mãe. A dele é demasiado superficial, gosta do "flirt"
e não se preocupa com a vida íntima do filho. A minha
pensa em mim, mas não possui o tacto com que as mães
devem compreender as coisas.
Ambos lutamos contra o que se passa dentro de nós.
Falta-nos ainda a segurança, somos acanhados e frágeis,
não suportamos que alguém toque o nosso íntimo com
grosseria. Quando isso acontece comigo, a minha primeira
reacção é: "quero ir-me embora,. Mas como é impossível,
escondo os meus sentimentos e porto-me tão mal que
toda a gente desejava que eu realmente me fosse embora.
O Peter, por sua vez, fecha-se na sua concha, não
fala, sonha e esconde-se, cheio de receios.
Mas como e onde nos havemos de juntar? Não sei
durante quanto tempo poderei dominar este meu desejo.
Tua Anne
Segunda-feira, 28 de Fevereiro de 1944
Querida Kitty:
Já está a ser um pesadelo! Estou sempre junto dele;
não devo deixar transparecer nada, tenho de parecer
despreocupada e alegre, ao passo que, no meu íntimo
tudo é desespero.
Agora Peter Wessel e Peter van Daan formam um
Peter só. E este Peter é bom e eu amo-o e quero-o para
mim. A mãe está insuportável, o pai sempre gentil e,
por isso, mais insuportável ainda, a Margot pretende tornar-se
amável, e eu só queria que me deixassem em paz.
O Peter não veio ter comigo quando eu estava no
sótão. Saiu para se pôr a carpinteirar. A cada martelada
eu ia perdendo mais a coragem e ficando mais triste.
Do outro lado toca o carrilhão: "O corpo erecto! O
coração ao alto!
Estou a ser uma sentimentalona, bem sei. Estou desesperada
e não tenho juízo, também sei!
Oh! Ajuda-me!
Tua Anne.
Quarta-feira, 2 de Março de 1944
Querida Kitty:
As minhas preocupações passaram Para segundo plano
e isto por causa de um roubo. Estes roubos já não têm
graça nenhuma, mas o que se há-de fazer se os ladrões
sentem um prazer especial em honrar a firma Kolen & Go.
com a sua visita? Desta vez a coisa foi mais complicada
do que em Julho do ano passado. Quando o sr. van Daan
desceu ontem, como de costume, ao escritório do Kraler
viu que as portas envidraçadas e a porta do escritório
estavam abertas. Surpreendido, resolveu dar uma volta
para inspeccionar o resto e ainda mais surpreendido ficou
ao ver o cáos no escritório principal.
-Ladrões!- até aí para se certificar disso correu, escada
abaixo até à porta de entrada. Mas a porta e o fecho de
segurança estavam intactos.
- Peter e a Elli foram desleixados - pensou então.
Ficou algum tempo no escritório do Pai e depois fechou
as Portas, a luz, subiu e não se ralou mais com as
portas abertas nem do estranho cáos no escritório.
e de manhã o Peter bateu cedo à nossa porta e
deu-nos a notícia desagradável de que a porta da rua
estava largamente aberta e de que tinham desaparecido do
armário o aparelho de projecção e a nova pasta do Kraler
O Peter recebeu ordens para fechar a porta da rua e,
só agora o sr. van Daan nos contou as suas observações da
noite anterior. Ficámos muito preocupados.
Esta história só tem uma explicação : o ladrão possui
uma chave igual à chave de segurança, pois a porta
não estava arrombada. Decerto meteu-se dentro da casa
muito cedo, fechou a porta atrás de si e, ao ouvir o sr.
van Daan, escondeu-se. Depois de este ter subido, desatou
a fugir o mais depressa que pôde, com as coisas roubadas
e, com a atrapalhação, esqueceu-se de fechar a porta da
rua. Mas quem será o homem que possui a chave? E porque
é que não entrou no armazém? Será mesmo um dos
próprios empregados do armazém? E se ele nos denunciar?
agora que ouviu e provàvelmente viu o sr. van Daan?
Tudo isto é quase sinistro, porque nunca sabemos se e
e quando o ladrão virá de novo abrir a porta. Ou será
possível que ele próprio se tenha assustado por ter
visto alguém dentro da casa?
Tua Anne.
Quinta-feira, 3 de Março de 1944
Querida Kitty:
A Margot e eu estivemos hoje no sótão. Mas o prazer
não foi o mesmo, embora eu saiba que em muitas coisas
ela sente como eu.
Ao lavar a louça, a Elli confessou à minha mãe e à
sra. van Daan o seu desespero. E queres saber como
as duas a consolaram? Sabes qual foi o conselho que a
mãe lhe deu? Que devia pensar em todos aqueles que
estão agora a perecer no Mundo! Mas quando uma pessoa
está desesperada, pode valer-lhe de alguma coisa pensar
nas misérias dos outros? Foi o que eu disse, mas responderam-me :
-Não sabes ainda nada destas coisas.
Os adultos são tapados, são estúpidos. Como se a
Margot, o Peter, a Elli e eu não sentíssemos todos o mesmo!
Só o amor de uma mãe ou o amor de um grande amigo
nos pode consolar. As nossas mães não têm uma centelha
de compreensão para nós sequer, e acho que a sra. van
Daan ainda tem mais um bocado do que minha mãe.
Eu gostaria de ter dito à pobre Elli algumas palavras,
dessas palavras que confortam, como sei por experiência
própria. Mas o pai interveio e afastou-me. São tão estúpidos, todos eles! Nós não temos
direito a ter uma opinião!
Eles são imensamente modernos! Então a gente não sabe
pensar? Pode obrigar-se alguém a não falar, mas nunca
a não ter uma opinião. Não é possível proibir-se isto a
ninguém, seja qual for a idade. A Elli, ao Peter, à Margot
e a mim só o amor autêntico, abnegado, pode valer,
mas o amor assim não nos é dado. Nenhum de todos estes
sábios idiotas nos compreende aqui, porque nós somos
muito mais sensíveis, muito mais avançados nas nossas
ideias do que eles imaginam.
Presentemente, a mãe anda a criticar-me a torto e
a direito. Tem ciumes da sra. van Daan, com quem agora
falo mais do que com ela.
Hoje de tarde consegui apanhar o Peter. Conversámos
pelo menos uns três quartos de hora. O Peter tem muita
dificuldade em falar de si próprio, mas pouco a pouco
há-de fazê-lo. Contou-me que os pais se zangavam a cada
passo por causa da política, dos cigarros e de outras coisas
que tais. Estava embaraçado. Depois falei-lhe dos meus pais.
O Peter tem grande entusiasmo por meu pai, disse que
era um tipo "bestial". Assim falámos da nossa família.
Ficou admirado quando eu lhe disse que não gostávamos
muito dos seus pais.
- Peter - disse-lhe -, sabes que sou sempre franca.
Porque é que não te devia de contar? Conhecemos os
defeitos dos teus pais!
E depois ainda lhe disse :
- Peter, eu gostava de ajudar-te. Não será possível?
Tu andas metido entre os dois e sei que isto te faz mal.
- Sim, gostava que me ajudasses, agradecer-te-ia toda
a vida.
- Mas talvez seja melhor tu falares com meu pai,
podes ser franco com ele; nunca denuncia ninguém.
- Ah, sim, deve ser um camarada a valer.
-Gostas dele, não gostas?
Fez que sim com a cabeça e depois eu disse:
- Ele também gosta muito de ti.
Ficou corado, o que me enterneceu. Que felicidade
lhe dei com tão poucas palavras!
- Mas isso é verdade? - Perguntou.
- Pois claro-disse eu-, já lho ouvi dizer não sei
quantas vezes.
O Peter é um tipo "bestial", exactamente como o pai.
Tua Anne
Sexta-feira, 9 de Março de 1944
Querida Kitty:
Hoje, quando se acenderam as velas, fiquei contente,
senti-me calma. Vi a avó, envolvida pela luz. A avó
é quem me protege e preserva e quem me dá, sempre de
novo, alegria e satisfação.
Mas... agora há mais uma pessoa que domina os meus
pensamentos: é o Peter. Quando hoje fui buscar as batatas
e estava, com a panela cheia, ao pé da escada, ele
perguntou-me :
- Que fizeste hoje de tarde?
Sentei-me num degrau e conversámos. Só às cinco e um
quarto (uma hora depois de ter subido) desci com as batatas.
O Peter não falou dos seus pais. Falámos de livros e
dos tempos passados. Quase me podia apaixonar por ele!
Tocou no assunto. Depois de ter descascado as batatas,
fui ter com ele. Estava calor e eu disse :
- Para saberes a temperatura basta olhares para mim
e para a Margot. O frio torna-nos pálidas e com o calor
ficamos coradas.
- Apaixonada?-perguntou.
- Eu apaixonada? Mas porquê?-respondi eu cheia
de candura.
- E porque não?-perguntou.
Depois descemos para jantar.
Que queria ele dizer com aquilo? Hoje perguntei-lhe,
finalmente, se não achava as minhas conversas maçadoras.
Disse :
-Acho-as engraçadas.
E não disse mais nada. Não sei se estava a ser muito
tímido.
Oh, Kitty! Estou a portar-me como uma apaixonada
que não consegue falar senão do seu namorado. Mas,
podes crer, o Peter é um amor de rapaz! Quando lhe
poderei eu dizer isto? Claro que não será antes de ele
me achar também um amor de rapariga. Eu não sou uma
gatinha que se possa tocar sem luvas, bem sei. A verdade
é que o Peter gosta do seu sossego, e será difícil eu saber
se gosta de mim.
De qualquer forma estamos a conhecer-nos melhor
um ao outro e eu só queria que tivéssemos coragem para
nos abrirmos ainda mais. Quem sabe, talvez isto se dê
mais depressa do que estou a imaginar. Olha-me várias
vezes como quem me compreende e eu respondo piscando
os olhos. E então ficamos ambos felizes e divertidos!
Devo parecer uma tola a falar assim da nossa felicidade,
mas estou convencida de que ele pensa exactamente
como eu!
Tua Anne
Sábado, 10 de Março de 1944
Querida Kitty:
Este sábado é, desde há meses e meses, o primeiro que
não se passou aborrecido, triste e desesperado. E isto por
causa do Peter.
Quando hoje de manhã fui ao sótão para estender
o meu avental lavado, estava lá o pai, que estuda todos os
dias com o Peter. Perguntou-me se eu não queria ficar
a estudar com eles. Claro que quis e falámos primeiro
francês. Expliquei umas coisas ao Peter e depois passámos
para o inglês. O pai leu-nos umas passagens de um livro
de Dickens e, confesso, senti-me no sétimo céu, assim
sentada ao lado do pai e tão próxima do Peter.
às onze desci. Quando meia hora depois voltei para
cima, o Peter já me esperava junto da escada. Conversámos
até à uma menos um quarto. Sempre que pode, isto é, quando ninguém está a ouvir, ele
diz-me depois do almoço :
- Até logo, Anne.
Ah, como me sinto contente! Ele gostará de mim?
Seja como for, o Peter é um óptimo rapaz e acho que nos
havemos de entender muito bem.
A sra. van Daan gosta de nos ver juntos. Mas hoje
perguntou um tanto trocista:
- Posso deixar-vos sós lá em cima?
- claro que pode, - protestei - A senhora quer ofender-me?
De manhã à noite folgo em ver o Peter.
Tua Anne
Segunda-feira, 12 de Março de 1944
Querida Kitty:
Leio no rosto do Peter que pensa tanto em mim como
eu nele. Ontem à noite aborreci-me terrivelmente quando
a sra. van Daan disse, toda trocista:
- Olhem o grande pensador!
O Peter corou, ficou encavacado, e a mim apeteceu-me
saltar à cara da senhora.
Porque é que falam sem ser preciso? Não calculas
como sofro por vê-lo assim tão só. compreendo-o como
se fosse eu própria a viver a sua vida, sinto-lhe o
desespero quando discutem e se zangam junto dele, noto o
vazio em que ele mergulha. Pobre Peter! Como tu
necessitas de amor!
Disse-me que não precisava de amigos: ainda trago
nos ouvidos a dureza destas palavras. Como está enganado!
Julgo que não acredita no que disse. Quer por força
parecer uma pessoa indiferente, não mostrar os seus
sentimentos.
Quanto tempo te quererás assim enganar, Peter? Não se
seguirá a este esforço sobre-humano uma tremenda reacção?
Oh, Peter, se me deixasses ajudar-te! Os dois juntos
vencíamos a nossa solidão.
Ando sempre a cismar, mas não o digo a ninguém.
Sinto-me feliz quando o vejo a ele e quando vejo o Sol
brilhar.
Ontem, ao lavar o cabelo, estava terrivelmente endiabrada.
Sabia que ele se encontrava no quarto ao lado.
Não tenho culpa : mas quanto mais calada e mais séria
estou no íntimo mais espalhafato tenho de fazer. Quem
será o primeiro a descobri-lo e a quebrar a armadura?
Ainda bem que os van Daans não têm uma filha! A minha
conquista não seria tão difícil, tão bela e tão esplêndida
se não fosse a atracção do sexo oposto!
Tua Anne
P. S. Bem sabes que te escrevo tudo com a máxima
franqueza. Por isso vou ainda confessar-te que só vivo
agora dos nossos encontros. Quem me dera saber se ele
também me espera com a mesma ansiedade. Fico radiante
quando sinto as suas tímidas tentativas de uma aproximação.
Sei que ele gostava tanto como eu de abrir, finalmente,
o coração. Não adivinha que é precisamente a sua
falta de jeito que me encanta.
Tua Anne
Terça-feira, 13 de Março de 1944
Querida Kitty :
Quando me ponho a pensar na minha vida de 1942,
tudo me parece irreal. Essa vida era vivida por uma
outra Anne, diferente desta que tem, agora, tanto juízo.
Era uma vida boa, ai!, se era! Tantos admiradores como
os dedos das mãos, por aí vinte amigos e conhecidos,
a aluna favorita de quase todos os professores, amimalhada
pelos pais, sempre doces e guloseimas, dinheiro que
chegava - que mais queres? Talvez queiras perguntar-me
como eu conseguia que todos gostassem tanto de mim.
Se o Peter diz que tenho "charme" talvez não tenha bem
razão. Os professores gostavam mas era das minhas respostas
vivas, das minhas observações cómicas, da minha
cara sempre a sorrir e do meu olhar crítico, divertido e
ameno, não era mais nada. Eu gostava do "flirt", era
brincalhona e alegre. Mas tinha também algumas boas
qualidades que me davam a garantia de não cair em
desgraça com ninguém : era trabalhadora, franca e sincera.
Nunca impedia que alguém, fosse quem fosse, copiasse
os meus exercícios, não era vaidosa e repartia sempre os
meus doces com os outros. Quem sabe se a admiração de
que gozava não faria de mim uma pessoa petulante? Talvez
não tenha sido nada mau que eu, de repente- no auge
da festa, digamos - fosse bruscamente atirada para a
realidade; mas sempre me levou mais de um ano a habituar-me
a não ser admirada.
Como é que me chamavam na escola, onde eu estava
sempre à frente em todas as partidas e brincadeiras? "A cabecilha". E eu nunca tinha mau
génio ou má disposição.
Por isso não era de admirar que todos gostassem de
me acompanhar e fossem simpáticos e atenciosos.
Agora vejo essa Anne como uma rapariguita simpática
mas superficial, que nada tem de comum comigo. O Peter
disse, e muito bem:
-Quando eu te encontrava, via-te sempre com dois
ou três rapazes e com um bando de raparigas, sempre a
rir e divertida. Eras o centro.
O que resta dessa rapariga? Ainda não me esqueci
de rir e de dar respostas. Ainda sei criticar as pessoas e, talvez até melhor do que antes, sei
namoriscar se... me apetecer. Gostava de voltar a viver assim, só por uma tarde, uns dias,
ou uma semana, despreocupada, mas no fim da semana
estaria saturada e ficaria grata à primeira pessoa que me
aparecesse a falar em coisas sérias. Não preciso de
admiradores mas sim de amigos; não preciso de adoradores
em troca de um sorriso mas sim de alguém que dê valor à
minha maneira de ser e ao meu carácter. Sei que assim
terei menos gente à minha volta. Mas não importa, o
principal é que me fiquem algumas pessoas de carácter.
E, vistas bem as coisas, eu não era inteiramente feliz
naquele tempo. Sentia-me muitas vezes só, mas como
andava sempre atarefada, não reflectia nisso e divertia-me
o mais que podia. Consciente ou inconscientemente, tentava
com as brincadeiras encher o vazio. Agora prefiro
trabalhar. Aquele período findou irrevogàvelmente: o
tempo da escola, despreocupado e descuidado, não volta
mais. Também não quero que volte, ultrapassei-o. Agora,
até quando estou alegre, uma parte de mim mesma conserva
sempre a sua seriedade.
Vejo a minha vida até ao princípio deste ano como
que através de uma lente impiedosa. Em casa, uma vida
cheia de sol; 1942, a vinda para aqui, a transição brusca,
as discussões, as acusações. Não tinha capacidade para
digerir tanta coisa, apanhei um choque e só consegui
manter-me mais ou menos firme manifestando atitudes
de rebeldia.
Primeira parte de 1943 : a minha constante vontade
de chorar, a solidão, o lento reconhecimento de todos os
meus defeitos e de todas as minhas faltas, que eram grandes,
sem dúvida, mas que os outros é que queriam fazer muito
maiores ainda.
Falava a torto e a direito e fiz tentativas para conquistar
o Pim só para mim, mas não o consegui. Então
vi-me perante o difícil problema de me modificar para não
ouvir mais censuras, para não me sentir esmagada, sob o
seu peso, até ao desespero.
A segunda parte do ano já foi melhor. Como me ia
tornando uma adolescente, já viam em mim uma pessoa
mais ajuizada. Comecei a reflectir e a escrever histórias.
Concluí que já ninguém tinha o direito de me empurrar
como se fosse uma bola. Queria formar-me segundo a
minha própria vontade. Reconheci também que o pai
não podia ser o meu confidente em todas as coisas. Só
queria confiar inteiramente em mim própria.
Depois do Ano Novo, a segunda transformação... o
meu sonho. Foi através dele que descobri o meu desejo
de um rapaz e não de uma rapariga, o desejo de um amigo.
Descobri também a felicidade no meu íntimo e a minha
armadura exterior feita de superficialidade e de alegria.
Pouco a pouco acalmei e comecei a sentir uma ânsia sem
limites de tudo o que é bom e belo.
Quando, à noite, estou na cama e remato a oração
com estas palavras: "Agradeço-te o bem, o amor e a
beleza", então todo o meu ser rejubila. Ponho-me a pensar
em tudo o que foi "o bem" : a nossa fuga para aqui, a
minha saúde; e no "amor": o Peter e tudo aquilo que é
tão delicado e sensível que ambos ainda não ousamos
tocar-lhe, mas que um dia virá-o futuro, a felicidade.
E penso na "beleza" que envolve o Mundo: a natureza,
a arte, a grandeza e tudo o que a isto está ligado.
Não penso na miséria mas em tudo o que é terno e maravilhoso.
É nisto que reside em grande parte a diferença
entre a mãe e eu. Quando alguém está triste, ela aconselha:
"lembra-te da miséria que vai pelo Mundo e sê
grata por tu não a sofreres". Eu digo: "vai e procura os
campos, a natureza e o Sol: vai, procura a felicidade em
ti e em Deus. Pensa no que é belo e que se realiza em ti
e à tua volta, sempre e sempre de novo".
Acho o conselho da mãe errado, pois, o que pode fazer
alguém que se sente infeliz? Perder-se na miséria? Acho que alguma coisa de belo resta aos
próprios. tÉr-se-á
perdido a liberdade e alguma coisa de nós. Mas devemos
agarrar-nos e reencontrar-nos-emos a ti e a Deus,
de novo. Aquele que é feliz, espalha felicidade.
Aquele que teima na infelicidade, que perde o equilíbrio
e a confiança, perde-se na vida.
Tua Anne
Domingo, 18 de Março de 1944
Querida Kitty:
Ultimamente não tenho tido paciência para estar
sentada à minha mesa. Gosto de conversar com o Peter
e só tenho receio de que ele se mace com isso. Já me contou
muitas coisas da sua vida, dos seus pais e de si próprio.
Mas eu ainda queria que ele me contasse mais.
Depois pergunto a mim mesma porque é que espero
tanto dele. Antigamente ele achava-me insuportável e eu
pagava-lhe na mesma moeda. Mas as coisas mudaram.
Se com ele, no entanto, ainda nos
pudermos tornar amigos íntimos, suportaria muito melhor esta vida de isolamento. Não
quero excitar-me mais. Estou a pensar de mais nele e não
tenho o direito de te vir importunar a ti, só por me sentir
tão obcecada.
Sábado, à tarde, fiquei, depois de uma série de notícias
tristes, tão mal disposta e confusa que me deitei na cama.
Só Queria dormir e não pensar em nada. Dormi até às
quatro horas depois tive de ir ao quarto do Pai.
foi fácil respondér às perguntas da mãe porque fora
que me tinha deitado. Disse que tinha dores de cabeça
e não menti. É que eu tinha dores de cabeça... na alma.
Suponho que gente normal, raparigas normais, adolescentes
da minha idade, me achariam provàvelmente
absurda por eu me lamentar tanto. Mas a ti digo tudo o
que me preocupa, e depois, durante o dia, sou atrevida,
para não precisar de responder às perguntas e para
evitar aborrecimentos.
A Margot é carinhosa comigo e talvez gostasse de
ser a minha confidente, mas não lhe posso dizer tudo.
É simpática e boa e bomita, mas um bocadinho académica quando conversamos sobre
coisas profundas. Ela procura
compreender-me, não há dúvida nenhuma, reflecte mesmo
sobre a sua irmã maluquinha, fixa-me com os olhos de
examinadora quandu digo isto ou aquilo e, provàvelmente,
pensa com os seus botões :
-Estará ela a representar ou será sincera?
Estamos sempre juntas e eu não queria ter a minha
confidente sempre tão próximo.
Quando sairei eu deste labirinto de pensamentos?
Quando haverá calma e paz no meu coração?
Tua Anne
Terça-feira, 19 de Março de 1944
Querida Kitty:
Talvez te entretenha a ti - a mim isto já não me
interessa - se te contar o que hoje vamos comer. Neste
momento estou (a mulher da limpeza encontra-se lá em baixo nos
escritórios) à mesa dos van Daans, coberta com um oleado.
Aperto o nariz e a boca com um lenço perfumado-o
perfume ainda é do tempo de antes do "mergulho". Esta
maneira de contar deve parecer-te aborrecida. Vou
começar outra vez. Como os nossos fornecedores foram
apanhados por causa dos cartões "negros" do racionamento
e outras coisas no género, já não temos cartões e, portanto,
nenhumas gorduras. A Miep e o Koophuis estão doentes,
a Elli não pode sair para fazer as compras e, por consequência, a nossa disposição é
desconsoladora e a comida
também. Para amanhã já não temos um pedacinho de
pingue, para já não falar de manteiga ou de margarina.
Acabaram-se as batatas fritas ao pequeno almoço (para
substituir o pão). Agora comemos papinhas. A sra. van Daan
tem medo de que morramos de fome e, felizmente, conseguiu
arranjar um bocadinho de leite "negro". O nosso almoço:
feijão de conserva de barrica! Daí as minhas providências
que tomei com o lenço. É incrível como o feijão cheira
mal depois de ter estado guardado durante um ano. Todo
o quarto cheira a uma mistura de ameixas podres, desinfectante
e ovos podres. Brrr! Só de pensar que tenho de
comer aquilo, já fico enjoada. Ainda por cima as nossas
batatas têm uma doença esquisita e de cada balde cheio
de "pommes de terre" metade é atirada para o lixo. Ao
descascá-las entretemo-nos a diagnosticar as mais variadas
doenças e já vimos casos de cancro, varíola e sarampo.
Podes crer que não é fácil viver-se "mergulhado" no quarto ano de guerra. Quem nos dera
que esta miséria acabasse!
Com franqueza, eu ainda aguentava a má comida, se o
resto fosse mais agradável. Mas o mal está em que todos
nós, com a vida monótona que levamos, ficamos nervosos.
Aqui tens as opiniões de cinco "mergulhados" sobre a
nossa vida:
Sra. van Daan:-Estou farta de fazer de criada de
cozinha. Mas quando não tenho nada que fazer aborreço-me.
Portanto, ponho-me a cozinhar. Mas cozinhar sem
gorduras é inconcebível, só o cheiro põe-me doente. Ainda
por cima todos me agradecem o trabalho com má cara
e a resmungar. Sou o carneiro preto do rebanho e tenho
culpa de todo o mal que acontece. Além disso, penso que
a guerra está a caminhar mal e se calhar os alemães ainda
vão vencer. Tenho medo de que morramos todos de fome.
E ainda querem que eu esteja bem disposta.
Sr. van Daan:-Preciso de fumar, de fumar, de fumar.
Assim suporto tudo: a política, a comida e o mau génio
da minha Kerli. Masjá que não tenho cigarros, apetecia-me,
ao menos, um bocado de carne. Estou sempre a dizer que
vivemos miseràvelmente, nada me serve, há discussões por
tudo e por nada e acho a Kerli estúpida.
A sra. Frank:-Mas a comida não é assim coisa tão
importante. Só queria uma fatia de pão de centeio. Estou
com fome. Se eu fosse a sra. van Daan já tinha desabituado
o meu marido de fumar tanto. Faz o favor, dê-me um cigarro
para acalmar os nervos. Os ingleses têm os seus defeitos
mas a guerra está a caminhar bem. Ainda bem que posso
falar à vontade e que não estou presa na Polónia.
Sr. Frank:-Acho que tudo vai bem, não preciso de
nada. Do que necessitamos é de calma, de paciência. Logo
que me não faltem as batatas estou satisfeito, mas não se
esqueçam de guardar algumas da minha ração para a Elli.
O sr. Dussel:-Tenho de concluir a tese antes de mais
nada. A política? Essa vai às mil maravilhas! Acho impossível
que nos descubram aqui. Eu...
Eu, eu, eu...
Tua Anne
Quarta-feira, 15 de Março de 1944
Querida Kitty:
Todo o santo dia ouço : se acontecer isto ou aquilo
teremos as maiores dificuldades... e se aquela rapariga
ficar doente, já não temos mais ninguém no Mundo... e se...
Já sabes a lenga-lenga. Pelo menos já deves conhecer
bastante esta gente do anexo para poderes adivinhar o
que andam a dizer.
A causa desses "se, se..." é a seguinte: o sr. Kraler
foi convocado para um "campo de trabalho", a Elli está
terrivelmente constipada, a Miep ainda se não levantou
da gripe e o sr. Koophuis teve outra vez uma hemorragia
e desmaiou! Um chorrilho de desgraças.
O pessoal do armazém tem feriado amanhã. Se a Elli
tiver de ficar em casa, a porta ficará fechada e temos de
fazer muito pouco ruído para que os vizinhos não desconfiem.
O Henk deve vir à uma hora para olhar pelos
"abandonados" e para representar o papel de guarda de
jardim zoológico. Hoje, à hora do almoço, contou-nos,
pela primeira vez desde há bastante tempo, coisas do grande
mundo lá de fora. Devias ter visto como o ouvimos todos
com o máximo interesse. Há um quadro que se chama
"Avòzinha conta histórias". O nosso grupo deve ter tido
o mesmo aspecto. Falou, falou, com muitos pormenores
e pormenorinhos, e não se esqueceu de contar-nos coisas
sobre comidas e do médico da Miep por quem perguntámos.
-Médico? Não me falem desse médico! Hoje de manhã
telefonei-lhe, mas só consegui que um assistentezinho viesse
ao telefone. Pedi-lhe uma receita contra a gripe. Disse-me
que, entre as oito e as nove, podia ir buscá-la. Quando se
trata de uma gripe mais grave, suponho que o médico vem pessoalmente ao telefone para
dizer: "Mostre a língua...
diga aaahhh... sim, senhor, ouço bem, tem a garganta
inflamada. Vou transmitir a receita à farmácia. Depois
pode ir lá buscar o remédio. Bom dia!" Lindo serviço, não
há dúvida. Consultas exclusivamente pelo telefone!
Mas podemos acusar os médicos? Ao fim e ao cabo
cada pessoa só tem duas mãos e, infelizmente, existem
agora muitos doentes e muito poucos médicos. Mas não
pudemos deixar de nos rir, quando o FIenk representou
aquela conversa ao telefone. Imagino como é diferente,
agora, a sala de espera de um médico. Decerto já não
desprezam só os doentes da "caixa", como era costume.
Agora devem desprezar-se as pessoas que não sofrem de
nada a sério mas que gostam de se queixar. Provàvelmente
falam-lhes assim:
-Que é que queres? Vai para o fim da bicha, que
temos agora de tratar primeiro os autênticos doentes.
Tua Anne
Quinta-feira, 16 de Março de 1944
Querida Kitty:
O tempo está maravilhoso, indescritivelmente maravilhoso. Hei-de ir ao sótão.
Agora sei por que sou mais irriquieta do que o Peter.
Ele tem um quarto só para ele, onde pode sonhar, pensar,
dormir. Eu sou empurrada de um quarto para o outro.
Raras vezes estou sozinha no quarto que partilho com o
Dussel, e tenho sempre tanto desejo de estar só! Por isso
fujo a cada passo lá para cima. Uma vez ali e contigo,
Kitty, posso, por pouco tempo, ser eu mesma. Mas não
me vou queixar, pelo contrário, vou ser corajosa. Os
outros, felizmente, nada percebem do que se passa comigo,
porque é que sou mais fria para com a mãe, menos meiga
com o pai. Falo muito pouco com a Margot sobre as minhas
coisas. Tenho de conservar a minha segurança exterior.
Não é preciso que os outros fiquem a conhecer a confusão
do meu íntimo, uma espécie de luta entre o desejo e a
razão. Até agora a razão tem sido sempre vencedora, mas
não chegará o dia em que sucumba? às vezes tenho medo
disso, outras vezes desejo que assim aconteça.
É pena não poder falar sobre estas coisas com o Peter,
mas eu sei que é a ele que compete começar. Entristece-me
não poder continuar as minhas conversas dos sonhos
durante o dia e que as aventuras sonhadas não se tornem
realidade. Sim, Kitty, é verdade, a Anne não regula bem.
Mas não te esqueças : vivo numa época louca e em circunstâncias loucas. Que sorte a minha
poder escrever o
que penso e sinto. Se não fosse isto, sufocava, de certeza.
O que pensará o Peter de tudo isto? Oxalá possa
dizer-mo em breve! Deve ter adivinhado alguma coisa, porque aquela Anne que ele conhecia
até há pouco não
lhe agradava com certeza. Pode ele, que tanto aprecia a
calma e a paz, simpatizar com a minha vivacidade e inquietação?
Será ele o único no Mundo que conseguiu ver o
que está por detrás da minha máscara de pedra? Não é
velha regra o amor nascer muitas vezes da compaixão
e as duas coisas confundirem-se? Será o meu caso? É que
tenho tanta pena dele como de mim própria.
Não sei, palavra que não sei, como hei-de começar a
falar nisto! E se eu não sei muito menos ele, a quem tanto
custa exprimir-se. Se lhe pudesse escrever! Então ficaria
a saber o que lhe queria dizer. Mas falar é muito difícil!
Tua Anne
Sexta-feira, 17 de Março de 1944
Querida Kitty:
Uff! Pelo anexo passa uma onda de alívio. O Kraler
está livre, a Elli não consentiu que a sua constipação
piorasse e a impedisse de cumprir os seus deveres. Tudo
voltou à velha ordem. Só a Margot e eu estamos um tanto cansadas dos nossos pais. Não
me compreendas mal, por favor.
Bem sabes que não me entendo, neste momento, muito
bem com a mãe, mas do pai gosto sempre na mesma, e
a Margot gosta de ambos. Mas a gente na nossa idade
queria, por vezes, decidir sózinha sobre as suas coisas e
a sua vida, e não depender sempre dos outros. Se vou para
cima, perguntam o que vou lá fazer; não me deixam comer
sal às refeições; todas as noites, é garantido, a mãe pergunta-me se ainda não me quero
despir. Cada livro que me
apetece ler tem de ser primeiro apreciado por eles. Bem
sei que a censura não é rigorosa e posso ler quase tudo,
mas o que nos aborrece é o controle constante e também
as observações e as anotações. Pelo que me respeita, já
não sou a criancinha "beijinho aqui, beijinho ali", e acho
todos os diminutivos de carinho bastante artificiais. Em
poucas palavras: durante algum tempo aguentar-me-ia
bem sem os pais, sempre cheios de cuidados carinhosos.
Ontem a Margot disse :
- É quase ridículo! A gente já nem pode apoiar a
cabeça na mão sem que perguntem logo se temos dores
de cabeça ou se não nos sentimos bem!
É uma desilusão para nós duas verificarmos que muito
pouco resta do nosso convívio familiar tão íntimo. A causa
disto é haver entre nós relações um pouco erradas. Com
isto quero dizer que eles nos tratam como crianças e não
se lembram de que estamos mentalmente mais desenvolvidas do que as outras raparigas da
nossa idade. Embora
eu só tenha catorze anos, sei muito bem o que quero e
sei também quem tem razão. Tenho a minha opinião, as
minhas concepções, os meus princípios. Talvez isto soe a
vaidade, mas já não me sinto criança, sinto-me despegada
seja de quem for. Sei que discuto melhor do que a mãe,
que sou mais objectiva e não tão exagerada, sei que tenho
mais ordem nas minhas coisas e que sou mais habilidosa e,
por isso-, se quiseres, ri-te de mim!-em muitas coisas
superior a ela. Para amar alguém, a primeira condição é
poder admirar-admirar e respeitar. Tudo seria melhor
se o Peter fosse meu. A ele posso admirá-lo em muitas
coisas. É bom rapaz, um rapaz às direitas!
Tua Anne
Domingo, 19 de Março de 1944
Querida Kitty:
Ontem foi um dia importante para mim. Tinha resolvido
falar abertamente com o Peter. Antes de nos sentarmos
à mesa, perguntei-lhe baixinho:
-Estudas estenografia logo à tarde, Peter?
-Não, senhora-disse ele.
-Gostava de falar contigo.
-Está bem.
Por atenção, ainda fiquei, depois de termos lavado a
louça, um bocado com os pais dele. Depois fui ter com
o Peter. Ele estava do lado esquerdo da janela, eu pus-me
à direita. Fala-se melhor na penumbra do que em plena
luz. Creio que o Peter é da mesma opinião.
Falámos sobre tantas coisas que não me é possível
escrever tudo, mas foi maravilhoso, nunca vivi nada tão
maravilhoso desde que entrei nesta casa. Alguma coisa
vou reproduzir-te. Falámos dos eternos conflitos cá em
casa, que eu agora vejo com olhos diferentes, e do afastamento
íntimo dos nossos pais. Contei-lhe coisas do meu pai,
da minha mãe, da Margot e de mim. De repente, ele
perguntou-me :
- Vocês beijam-se quando dizem "boa-noite" uns aos
outros?
- Pois claro, beijamo-nos muitas vezes. Vocês não?
-Nós não. Poucas vezes tenho dado beijos a alguém.
- E no dia dos teus anos?
- Ah sim, nesse dia beijamo-nos.
Dissemos que era impossível falar sobre os nossos problemas
aos pais, e ele confessou que os dele queriam muito
ser os seus confidentes mas que não podiam sê-lo. Contei-lhe
que chorava de noite, na cama, quando tinha desgostos e ele disse-me que ia para o sótão
praguejar. Também lhe
contei que a Margot e eu só agora nos chegámos a conhecer
bem, mas que não podemos confiar tudo uma à outra
por estarmos próximas de mais. E falámos de muito mais
coisas e ele era exactamente como eu tinha imaginado.
Depois voltámos a falar de 1942, de como tínhamos
sido tão diferentes e que, ao princípio, não gostávamos um
do outro. Nessa altura ele achava-me espevitada e desagradável
e eu não encontrava nada nele que me interessasse.
Parecia-me incompreensível que ele nem sequer procurasse
namoriscar mas agora estou contente por isso mesmo.
Disse-me que procurava isolar-se, e eu expliquei-lhe que
entre a minha vivacidade e a sua calma quase não havia
diferença porque eu desejava tanto o sossego como ele e
só encontrava um bocado de paz junto do meu diário.
Ele ainda disse ter sido uma felicidade os meus pais virem
com as filhas para o anexo, e eu disse-lhe que me sentia
feliz por ele estar cá e que o compreendo na sua solidão e
nas suas relações com os pais e que gostaria de o ajudar.
- Mas tu estás constantemente a ajudar-me.
- Eu ajudar-te, em quê?-perguntei espantada.
- Com a tua alegria.
Foi a coisa mais bonita que me podia ter dito. Foi
mesmo maravilhoso. Sei agora que me aprecia como boa
camarada e, para já, sinto-me satisfeita. É-me difícil
explicar em palavras a minha felicidade e gratidão. E
tenho de te pedir desculpa, Kitty, por o meu estilo não
estar hoje à altura.
Escrevi tudo conforme me vinha à cabeça. Tenho a
sensação de partilhar com o Peter um segredo. Todas as
vezes que olha para mim, ri-se ou pisca os olhos, e é como
se tudo se iluminasse à minha volta. Oxalá que nada se
modifique e que ainda possamos passar juntos muitas horas
felizes.
Da tua grata e feliz
Anne
Segunda-feira, 20 de Março de 1944
Querida Kitty :
Hoje de manhã o Peter perguntou-me se não ia ter
com ele à tardinha e acrescentou que não o estorvava.
Disse que no quarto dele tanto havia lugar para um como
para dois. Respondi-lhe que não podia ir todas as tardes
porque os outros não achavam bem, mas ele disse que
não me devia importar com isso. Então prometi ir no
sábado e pedi-lhe que me avisasse sempre que houvesse
luar.
- Combinado-disse ele-, quando houver luar vamos
lá para baixo contemplá-lo.
Entretanto, caiu uma sombra sobre a minha felicidade.
Já desconfiava há bastante tempo de que a Margot também
gosta do Peter. Não sei se gosta muito mas, de qualquer
maneira, não me sinto à vontade. Sempre que vou para
junto do Peter, causo-lhe decerto um desgosto.
Acho muito delicado da parte dela procurar não mostrar
a sua dor. Se fosse eu, ficava fora de mim de ciúmes.
Mas a Margot diz que me não apoquente e que não tenha
pena dela.
- Mas não acho agradável que fiques assim de fora,
como uma terceira pessoa.
- Estou habituada-disse ela um tanto amargamente.
Ainda não tive coragem de contar isto ao Peter. Talvez
lhe conte qualquer dia. Por agora, temos de fazer outras
confidências. A mãe ontem ralhou-me. Mereci-o bem,
pois levei longe de mais a minha indiferença para com
ela. Hei-de fazer os possíveis para me dominar; vou tentar
ser amável e não responder torto. Também o Pim está
menos afectuoso. Pretende não tratar-me como uma criança e cai no extremo oposto: é frio
de mais. Vamos a ver o
que sai disto tudo!
Basta. Quero estar sempre a olhar para o Peter, estou
a transbordar.
Uma prova da generosidade da Margot: recebi hoje,
20 de Março de 1944, esta carta:
Anne, quando ontem te disse que não tinha ciúmes de ti só
fui 50 por cento sincera. A verdade é esta: não tenho ciúmes nem de ti nem do Peter, mas
tenho pena de mim por não ter encontrado ainda ninguém-e não vejo jeito de encontrar por
enquanto - com quem possa falar abertamente sobre o que penso e sinto. Não vos invejo
por terdes confiança um no outro. Isso compensa-te um pouco de tudo aquilo de que estás
privada aqui e que outras raparigas possuem como coisa natural.
Por outro lado sei que não me teria aproximado tanto do
Peter como tu, pois só posso fazer confidências a alguém muito
intimo, a uma pessoa que me compreenda sem ser preciso entrar
em grandes pormenores. E esse alguém tinha de ser
intelectualmente superior a mim, e não é o caso do Peter. Mas
compreendo que vocês dois se entendam muito bem. Por
isso não penses que me estás a roubar qualquer coisa ou que eu fique prejudicada, porque
não é assim.
Tu e o Peter só lucram com o vosso convívio.
A minha resposta:
Querida Margot, a tua carta foi muito gentil mas, mesmo
assim, não me sinto apaziguada e não sei se é que isto alguma
vez pode acontecer.
Não tenho tanta intimidade com o Peter como estás a
imaginar. Simplesmente sentimo-nos mais à vontade quando falamos ao fim da tarde, junto
da janela aberta, do que durante o dia, à luz do Sol.
É mais fácil murmurar os sentimentos do que dizê los em voz alta.
Suponho que sentes pelo Peter uma espécie de afeição de irmã
e que gostarias de o ajudar tal qual como eu. Talvez ainda
venhas a ajudá-lo sem que vocês tenham a intimidade que nós
sonhamos. A confiança tem de ser recíproca. Julgo que é esta a
razão por que não me posso abrir com o pai inteiramente.
Não falemos mais sobre o assunto. Se houver alguma coisa
a dizer, escreve-me. É-me mais fácil exprimir-me por escrito.
Talvez não saibas quanto te admiro. Oxalá que eu tenha dentro
de mim um pouco de bondade do pai e da tua, pois nisto é que
sois muito parecidos.
Tua Anne
Quarta-feira, 22 de Março de 1944.
Querida Kitty:
Ontem recebi esta carta da Margot:
Querida Anne:
A tua carta deu-me a impressão de que sentes remorsos quando
vais ter com o Peter para trabalhar ou falar com ele. Mas não
tens motivos para isso. O Peter não é pessoa que pudesse
servir-me de confidente. Tens razão quando dizes que o vês
como um irmão, mas... como um irmão mais novo! Dá-me sempre a
ideia de que tanto ele como eu estamos a estudar-nos
mutuamente para verificar, se nós, talvez um dia, ou talvez
nunca, poderemos conviver como irmãos. Mas por enquanto ainda
é cedo.
,Não tenhas pena de mim, por fanor. Goza a amizade que,
felizmente, encontraste.
Entretanto acho a vida cada vez mais bela. Acredita,
Kitty, o velho anexo ainda há-de assistir a um verdadeiro
grande amor. Não quero saber, por ora, se, mais tarde,
casarei com o Peter, porque não sei como ele será quando
adulto. Também não sei se depois ainda gostaremos tanto
um do outro. Que o Peter agora gosta de mim, já não
tenho dúvidas. Mas não sei bem que espécie de amor é
o seu. Ser uma boa camarada, aprecia-me como rapariga
ou como irmã? Ainda não consegui descobrir.
Quando me disse, ao falar nas zangas entre os seus
pais, que o ajudo muito, fiquei satisfeita e compreendi
que a nossa amizade tinha dado um grande passo em frente.
Ontem perguntei-lhe o que faria ele se aqui vivessem uma
dúzia de Annes que, a cada passo, fossem ter com ele.
Respondeu:
- Se fossem todas como tu, não seria nada mau.
Recebe-me sempre muito bem e vê-se que gosta de
me ver aparecer. Está a estudar francês com mais entusiasmo,
até estuda à noite na cama, depois das dez horas.
Oh, quando penso no sábado, nas nossas conversas, na
delícia de cada momento, sinto-me, pela primeira vez,
satisfeita comigo própria. Não me arrependo de nenhuma
das palavras que pronunciei, ao contrário do que sucede
quase sempre. Ele é muito bonito quando se ri e também
quando está calado, e é simpático e bom. A meu ver deve
ter ficado espantado ao verificar que, afinal, não sou a
rapariga mais superficial que existe na Terra mas sim uma
criatura sonhadora como ele e com as mesmas dificuldades
a vencer.
Tua Anne
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