Sexta-feira, 24 de Dezembro de 1943

Querida Kitty:
Já te tenho dito muitas vezes que o ambiente aqui
depende da nossa disposição. E eu, a tal respeito, estou
cada vez pior. Pode aplicar-se-me o dito: "alegria celeste,
tristeza mortal". Sinto uma "alegria celeste" quando me
lembro como estou bem aqui em comparação com outros
judeus. "Tristeza mortal"... invade-me, sim, quando ouço
contar que a vida lá fora continua. Hoje esteve cá a
sra. Koophuis e contou que a sua filha Corrie faz desporto,
passeia numa canoa com amigos e representa num teatro
de amadores. Não sou invejosa, mas quando oiço falar
em tais coisas, apetecia-me tomar parte nelas, pelo menos
uma vez; queria divertir-me como todos os outros, não ter
preocupações, ser feliz, rir! Justamente nesta época tão
bonita, em que há as férias do Natal e do Ano Novo
estamos aqui como párias. Bem sei que não devia escrever
tais coisas, por parecer que sou ingrata e exagerada. Mas
mesmo que tu penses agora mal de mim... não posso
guardar tudo isto e cito mais uma vez aquela frase que
escrevi no princípio: "O papel é paciente!"
Quando chega alguém de fora, ainda com a frescura
do cheiro a vento nas roupas e com a cara vermelha do
frio, apetecia-me enterrar a cabeça nos cobertores para não
pensar sempre no mesmo : "Quando é que poderemos ir
lá para fora e respirar o ar e a liberdade?!" Mas não me
posso esconder, pelo contrário, tenho de me mostrar direitinha
e corajosa e, contudo, os pensamentos não se deixam
dominar, vêm e tornam a vir. Acredita, quando se está
fechada há ano e meio, chegam momentos em que se julga
não se poder suportar mais. Ainda que eu seja injusta e
ingrata, não sou capaz de negar o que sinto! Apetecia-me dançar, assobiar, andar de
bicicleta, ver o Mundo, gozar
a minha juventude, ser livre. Digo-te isto a ti, mas não
o posso dizer a mais ninguém porque se todas as oito
pessoas cá no anexo se lamentassem e mostrassem caras
infelizes, aonde iríamos então parar?
Por vezes penso:
"Será possível que alguém me compreenda Ou só
vêem em mim a adolescente que não quer outra coisa
senão divertir-se?" Não sei e não posso falar sobre isto com
ninguém, pois era capaz de desatar a chorar. Todavia...
Seria um alívio poder chorar uma vez à vontade A despeito
de todas as teorias, de todos os esforços, sinto a cada
passo a falta de uma mãe que me compreenda. Por isso
penso sempre, ao trabalhar ou ao escrever, que quero ser,
mais tarde, para os meus filhos, aquela mãe que eu desejava
ter, essa "mamsi" que não arranja logo uma tragédia com
tudo o que se diz sem intenção, mas que toma antes a
sério o que preocupa os seus filhos intimamente. Estou a
sentir que não me exprimo como queria, mas a palavra
"mamsi" já diz tudo. Sabes o que descobri para chamar
a mãe com um nome parecido com Mamsi? Chamava-lhe
muitas vezes "Mansa" e depois ficou Mansi, o que é
uma "Mamsi" incompleta. Muito gostava eu de poder
honrá-la com mais um tracinho no "n. Mas a mãe de
nada suspeita, o que é bom, porque se soubesse ficaria
infeliz.
Basta! Já aliviei o coração da minha "tristeza mortal",
e sinto-me melhor.
Tua Anne

Sábado, 25 de Dezembro de 1943

Querida Kitty:
Hoje, primeiro dia de Natal, tenho de pensar constantemente
no Pim e naquilo que ele me contou, o ano passado,
do seu primeiro grande amor. Nessa altura não
penetrei tão bem como hoje o significado das suas palavras.
Oh! se ele me falasse outra vez naquilo, mostrar-lhe-ia
que agora o còmpreendo.
Creio que o Pim, que tantos segredos conhece dos
outros, precisou de desabafar, pelo menos uma vez; pois
o Pim não costuma falar de si e suponho que nem a Margot
suspeita do que ele sofreu.
Pobre Pim, a mim não engana ele, eu sei que ainda
não se pôde esquecer! Nunca se poderá esquecer. É uma
pessoa equilibrada. Oxalá eu seja parecida com ele, mas
sem precisar de passar pelo que ele passou.
Tua Anne.

Segunda-feira, 27 de Dezembro de 1943

Querida Kitty:
Pela primeira vez tive uma prenda pelo Natal. As
raparigas, o Koophuis e o Kraler fizeram-me uma surpresa
encantadora. A Miep fez um bolo enfeitado com "PapEl"
conseguiu arranjar meio quilo de bolachas de antes
da guerra. Além disso, o Peter, a Margot e eu recebemos
um frasco de "yogurth" e os adultos uma garrafa de cerveja.
Tudo estava embrulhado com graça e todos os pacotinhos
traziam escrita uma quadra.
Os dias de Natal passaram tão depressa!
Tua Anne

Quarta-feira, 29 de Dezembro de 1943

Querida Kitty:
Ontem à noite, estive muito triste. Tive a visão da
avòzinha e da Lies! Avòzinha, querida avòzinha! Não
compreendemos bem quanto ela sofria. Só pensava em
nós, mostrando-se sempre muito compreensiva em face
dos nossos problemas. Sofria de uma grave doença.
Sabê-lo-ia ela e nunca falou nisso para não nos afligir?
A avòzinha era sempre amável e boa e ninguém a procurava
sem ouvir um conselho ou uma consolação, ou
sem receber uma ajuda. Mesmo quando eu estava insuportável,
a avòzinha encontrava sempre para mim uma desculpa.
Avòzinha, dize, gostaste muito de mim ou também
não me compreendeste? Oh! Não sei.
Como a avòzinha se deve ter sentido só, tão só, embora
estivéssemos todos junto dela. Sim, porque uma pessoa
pode sentir-se só, mesmo no meio de muita gente amiga,
se souber que não ocupa um lugar muito especial no coração
de alguém. E a Lies? Ainda viverá? O que estará a fazer?
Meu Deus, não a deixes morrer, faze com que ela volte
para junto de nós. Pensando em ti, Lies, compreendo
qual podia ter sido o meu destino e ponho-me muitas
vezes no teu lugar! Mas, então, porque é que me afligem
tanto as condições em que vivo aqui no anexo? Não devia
eu sentir-me alegre e satisfeita, excepto quando penso na
Lies e nos outros que sofrem como ela?
Sou egoísta e cobarde! Não sei porque é que os meus
sonhos e pensamentos só giram à volta das coisas tristes,
até quase me apetecer gritar. De certo não tenho bastante confiança em Deus! Afinal Ele
deu-me tanta coisa que não
mereço e eu só faço asneiras.
"Quando pensamos no próximo, devíamos chorar".
A dizer a verdade não devíamos fazer mais nada do que
chorar. Resta-nos pedir a Deus que faça um milagre e
que salve aquela pobre gente!
E eu rezo do fundo do meu coração.
Tua Anne.

Domingo, 2 de Janeiro de 1944.

Querida Kitty:
Hoje de manhã, ao folhear o meu diário, encontrei
várias cartas em que falo da mãe, num tom impulsivo,
quase irado. Assustei-me e perguntei a mim própria:
"Isto és tu, a Anne, que fala assim com tanto ódio?"
Com o livro aberto na mão, fiquei algum tempo sentada
a tentar descobrir a razão desse ódio, dessa ira. Fiz os
possíveis para compreender a Anne daqueles dias e para
a desculpar, pois a minha consciência não acalma enquanto
eu não conseguir explicar-te como foi que cheguei a fazer
tamanhas acusações. Sofria e ainda sofro de depressões e,
nestas alturas, sou-falando em linguagem figurada-como
um mergulhador debaixo de água, que vê tudo deformado.
Via tudo subjectivamente e nem tentava reflectir com
calma sobre aquilo que os outros diziam. Se o tivesse feito,
teria, com certeza, compreendido melhor o sentido dos
argumentos dos meus antagonistas e teria procedido de
outro modo e sem magoar ninguém com o meu temperamento impetuoso.
Só me via a mim, fechava-me na minha concha, não
fazia caso dos outros e sentia alívio ao confiar ao papel
as minhas alegrias, a minha troça e, também, a minha
tristeza. Este diário é para mim de grande valor por se
ter tornado o meu livro de memórias. Mas muitas das suas
páginas podia agora riscá-las ou escrever por baixo "já
passou".
Muitas vezes ficava furiosa com a mãe e ainda agora
me acontece o mesmo. Ela não me compreendia, é uma
verdade, mas eu também não a compreendia. Sou sua
filha e ela é boa e carinhosa para mim. Mas como lhe
criava tantas vezes situações desagradáveis, é compreensível que me ralhasse. Pois, por
isso mesmo e ainda por
tantas coisas que ela sofria, é que não pôde deixar de
ficar nervosa e irritada. Eu não compreendia isso, ofendia-a,
era insolente e agressiva e então ela ficava triste. E assim
havia sempre entre nós algum mal-entendido e desgostos,
o que não era agradável para nenhuma de nós. Mas tudo
isso passou!
Que eu não quisesse admitir essas coisas e tivesse tido
pena de mim própria, também se compreende. As minhas
atitudes eram arrebatamentos de maldade, das quais, numa
vida normal, me teria libertado de maneira completamente
diferente e sem testemunhas... Teria, por exemplo, sózinha
no meu quarto, batido fortemente com os pés no chão,
desabafando sem que ela percebesse o que se passava no
meu coração.
Aquele tempo em que a mãe chorava por minha causa
já passou. Sou mais sensata, mais razoável e os nervos da
mãe também acalmaram. A maior parte das vezes calo-me
quando ela me arrelia, e ela faz o mesmo. Assim, as coisas
córrem bastante melhor. Amar a mãe incondicionalmente,
como fazem tantas crianças, não me é possível; qualquer
coisa em mim se revolta contra isso. Mas acalmo a minha
consciência com a convicção de que sempre é melhor
escrever estas coisas no papel do que magoar os sentimentos
de minha mãe.
Tua Anne

Quarta-feira, 5 de Janeiro de 1944

Querida Kitty:
Hoje vou confiar-te duas coisas o que, talvez, me leve
um pouco de tempo. Mas é-me indispensável desabafar,
e só contigo gosto de o fazer, pois tu guardas silêncio, aconteça o que acontecer. Em
primeiro lugar, trata-se da mãe.
Bem sabes que me tenho queixado dela muitas vezes e
que me tenho esforçado sempre por ser boa para ela.
De repente descobri o que não me agrada na mãe. Ela
própria tem-nos dito que vê em nós antes amigas do que
filhas. Isso é uma coisa bonita, mas uma amiga não pode
substituir a mãe. Eu queria ter na mãe um exemplo, um
modelo a seguir, queria poder erguer para ela os olhos.
Pressinto que a Margot pensa de outra maneira a tal
respeito e que nunca podia compreender as minhas ideias,
e o pai evita falar no assunto. Na minha imaginação uma
mãe tem de ser, antes de mais nada, alguém com muito
tacto, principalmente quando se trata dos filhos. Não deve
fazer como faz minha mãe, que se ri quando eu choro
lágrimas que não são de dor física mas de dor íntima.
Há uma coisa-pode parecer incompreensível-que
nunca lhe perdoarei. Quando um dia tive de ir ao dentista,
a mãe e a Margot acompanharam-me e acharam bem que
eu levasse a bicicleta. Mas quando, acabado o tratamento,
estávamos à porta do dentista, as duas disseram-me que
ainda iam ao centro da cidade fazer compras e ver umas
coisas-já não sei bem o que era. Eu queria ir também,
mas não me deixaram por causa da bicicleta. Fiquei
furiosa e as lágrimas vieram-me aos olhos, mas as duas
começaram a rir. Então perdi a cabeça e, no meio da rua,
deitei-lhes a língua de fora. Por acaso passou uma mulher
do povo que me olhou horrorizada. Fui sózinha para casa
e chorei muito.
É estranho, mas essa ferida que a mãe, há tanto tempo,
me causou, arde ainda todas as vezes que penso nisso ou
quando me zango com a mãe.
Falar do segundo assunto custa-me muito, pois trata-se
de mim própria. Li ontem um artigo de Sis Heyster sobre
o corar. Aquilo parecia ser escrito para mim, embora eu
não core tão fàcilmente. Mas o resto aplica-se-me perfeitamente.
Diz ela que uma rapariga, ao entrar na puberdade,
fica mais calma e mais pensativa e que se debruça
sobre o milagre do seu corpo. É precisamente o que acontece
comigo ùltimamente e agora até tenho vergonha da
Margot e dos pais. Mas a Margot que, em outras ocasiões,
é muito mais acanhada do que eu, não faz cerimónias com
estas coisas.
Dou-me conta das transformações exteriores do meu
corpo e, mais ainda, daquilo que está a ficar tão diferente
no meu íntimo. E como não falo sobre isto com ninguém,
tento compreender sòzinha.
De todas as vezes que tenho o "incómodo" - e já me
veio três vezes - tenho a sensação, apesar das dores e de
tudo o que é desagradável e repugnante, de trazer comigo
um segredo muito delicado. Alegro-me quando vivo de
novo este meu segredo. Diz Sis Heyster que as raparigas
da minha idade ainda não têm segurança mas que pouco
a pouco se vão revelando e começam a ter ideias, pensamentos
e hábitos próprios. Vim para o anexo quando
tinha treze anos e, por isso, fui obrigada a reflectir mais
cedo sobre o Mundo e a fazer a descoberta de mim mesma
como de um ser humano que deseja ser independente.
Por vezes, de noite, não posso deixar de tocar nos meus
seios e de sentir o bater calmo e seguro do meu coração.
Já antes de vir para aqui sentia, inconscientemente,
coisa parecida, pois uma vez, quando dormi com uma
amiga minha, perguntei-lhe se, como prova de amizade,
não podíamos tocar nos seios uma da outra, mas ela
recusou-se. Eu gostava de lhe dar beijos e beijei-a
muitas vezes.
Sempre que vejo uma figura de mulher nua, como, por
exemplo a Vénus, fico como em êxtase. É uma coisa tão
bela que tenho de me dominar para não desatar a chorar!
Ai! Quem me dera ter uma amiga!
Tua Anne

Quinta-feira, 6 de Janeiro de 1944

Querida Kitty:
O meu desejo de falar com alguém tornou-se tão forte,
ùltimamente, que escolhi, não sei porquê, o Peter como
vítima. Quando eu estava lá em cima com ele sentia-me
bem. Mas como é modesto e incapaz de pedir a alguém
para o deixar em paz, mesmo se se sentir molestado, eu
nunca tinha coragem de me demorar com receio de que
me pudesse achar aborrecida.
Discretamente, faço agora tentativas para ficar mais
um bocadinho para conversarmos e ontem, por acaso,
houve um pretexto bom, pois o Peter tem a mania das
palavras cruzadas e se pudesse não faria mais nada em
todo o dia. Ajudei-o, e assim ficámos à mesa, um em
frente do outro, ele na cadeira, eu no divã.
Sempre que eu olhava para os seus olhos escuros e
observava o sorriso bailar-lhe à volta da boca, tinha uma
sensação estranha. Adivinhava-lhe o íntimo. Lia-lhe no
rosto a insegurança, o desamparo e, ao mesmo tempo, um
laivo de certeza de se saber homem. O seu embaraço
enterneceu-me e precisei de o olhar de novo nos olhos.
Apeteceu-me pedir-lhe :
- Conta-me tudo o que sentes e não tenhas medo de
que eu seja indiscreta. Contigo nunca o serei!
Mas a tarde foi passando e nada de especial aconteceu
a não ser que lhe falei a respeito do corar mas, evidentemente, não lhe disse tudo o que
escrevi aqui. Só falei
nisso por causa dele, para ele sentir mais segurança. quando
de noite, na cama, pensei em tudo aquilo, a situação
parecia-me desagradável e achei então um exagero da
minha parte cobiçar assim as boas graças do Peter. Acho
esquisito a gente tentar tanta coisa para satisfazer um desejo. Dou-me a mim como prova.
Resolvi procurar mais
vezes o Peter e fazê-lo falar. Não julgues que estou apaixonada por ele, não, nem pensar
nisso. Se os van Daans,
em vez de um filho, tivessem uma filha, eu faria as mesmas
tentativas para conseguir a sua amizade.
Hoje de manhã acordei às sete horas e lembrei-me
nitidamente do que sonhei. Estava eu sentada à mesa, em
frente do Peter... Folheávamos um livro ilustrado.
O sonho tinha sido tão nítido que até ainda me lembro
das gravuras. Mas não acabou aqui. Os nossos olhares
encontravam-se e eu via os olhos do Peter, tão belos, de
um castanho aveludado. Depois o Peter disse, baixinho
e carinhoso :
-Se eu soubesse, já te teria procurado há mais tempo.
Virei-me bruscamente porque estava muito comovida.
Então senti a face do Peter junto da minha e senti-me
tão bem, ai! tão bem!
Quando acordei parecia-me sentir ainda o seu contacto
e tive a sensação de que os seus queridos olhos castanhos
tinham penetrado até ao fundo do meu coração e que
tinham compreendido quanto eu gostava dele, e ainda
gosto. Os meus olhos encheram-se de lágrimas, fiquei
triste por ele estar tão longe de mim, mas também fiquei
contente por sentir com tanta força que ainda gosto do
Peter. Estranho: tenho aqui visões tão nítidas. Uma noite
apareceu-me a avó paterna com tanta nitidez que lhe consegui
ver as rugazinhas aveludadas na pele. Depois veio a avó materna como anjo da guarda e
depois a Lies, que para mim é o
símbolo da infelicidade das minhas amigas e de todos os
judeus. Ao rezar por ela incluo sempre os judeus e todos
os homens perseguidos e infelizes.
E agora apareceu-me o Peter, o meu querido Peter!
Nunca o tinha visto tão claramente na minha imaginação.
Não tenho dele nenhuma fotografia, nem é preciso, pois
tenho-o bem gravado na memória! Como é bom e simpático!
Tua Anne.

Sexta-feira, 7 de Janeiro de 1944

Querida Kitty:
Que estúpida que sou. Nunca me lembrei de te contar
a história dos meus admiradores.
Ainda eu era pequena, andava no jardim-escola,
quando simpatizei com Karl Samson. Ele já não tinha
pai e vivia com a mãe em casa de uma tia. Bobby, o filho
desta, era um rapazinho esperto, esbelto e moreno, que
conseguia sempre chamar a atenção sobre si mais do que
o Karl, gordinho e patusco. Mas eu não me importava
com o aspecto exterior e fui amiga do Karl, durante anos.
Éramos camaradas autênticos.
Depois o Peter Wessel entrou na minha vida e foi a
minha primeira paixão. Ainda nos vejo-de mãos dadas -
a correr pelas ruas, ele com um fato de linho, eu com
um vestido de Verão.
Quando ele foi para o liceu passei eu para a última
classe da escola primária. Ia buscar-me à escola ou eu ia
buscá-lo a ele ao liceu. O Peter era um lindo rapaz, alto,
esbelto, bem feito, com uma cara calma, séria e inteligente.
Tinha cabelo escuro, a pele tostada, grandes e belos olhos
castanhos e um nariz afilado. Do que eu mais gostava nele
era do sorriso que lhe dava um ar de maroto.
Passei as férias grandes com a família, fora. Quando
regressámos o Peter tinha mudado de casa, morava agora
com um rapaz mais velho do que ele e de quem era muito
amigo. Decerto esse rapaz fez-lhe ver que eu não passava,
afinal, de uma criança e o Peter não quis saber mais de
mim. Eu, ao princípio, nem queria acreditar, tanto gostava
dele! Por fim tive de me conformar, pois, se fosse a
andar atrás dele, chamavam-me maluca.
Os anos iam passando. O Peter andava com raparigas da sua idade, e a mim nem sequer
me cumprimentava já,
mas eu não conseguia esquecê-lo. Quando entrei para o
liceu judaico, muitos dos rapazes apaixonaram-se por
mim. Achava aquilo engraçado, mas não sentia nada
de especial por nenhum deles. Mais tarde era o Harry
quem andava atrás de mim. Mas como já disse: nunca
mais me apaixonei.
Há um provérbio que diz: "O tempo cura todos os
males". Parecia que era assim mesmo, e eu imaginava
que me ia esquecendo do Peter e que já nem gostava dele.
Mas a recordação vivia tão fortemente no meu subconsciente
que, um dia, tive de confessar a mim mesma o ciúme que
sentia de todas as raparigas do seu círculo. Por força quis
então achá-lo pouco simpático.
Hoje de manhã compreendi, no entanto, que nada se
modificou, antes pelo contrário: á medida que os anos
iam passando e eu me desenvolvia, o amor pelo Peter
crescia em mim. Compreendo que ele me tenha achado
infantil, mas não posso deixar de sentir uma certa dor
por me ter esquecido tão depressa. Vi-o muito nitidamente
diante de mim e sei que nunca ninguém poderá encher da
mesma maneira o meu coração.
O sonho confundiu-me. Quando o pai me beijou esta
manhã, apeteceu-me gritar: "Ai!, se fosses antes o Peter!"
Só posso pensar nele e durante todo o dia repito de mim
para mim :
-Oh, Peter, meu querido Peter!
Ninguém me pode ajudar. Tenho de continuar a viver
e a pedir a Deus que me deixe reencontrar o Peter logo
que eu fique em liberdade. Então há-de ler nos meus
olhos que o amo e há-de dizer :
-Oh! Anne, se eu soubesse já te tinha procurado há
mais tempo!
O pai disse-me uma vez, ao falar comigo sobre sexualidade, que eu ainda não podia
compreender este desejo,
esta ânsia. Mas eu sabia que podia compreender, e agora
compreendo sem dúvida! Nada me é tão caro como tu,
meu Peter!
Contemplei a minha cara no espelho e achei-a transformada. Os meus olhos são agora
muito claros e profundos,
a pele é rosada como a não tinha há muitas semanas, e a
boca parece-me mais meiga. Tenho um ar de pessoa feliz
e, todavia, há qualquer tristeza no meu olhar que afugenta
o sorriso dos meus lábios. Não, não posso ser feliz, porque
sei que os pensamentos do Peter não estão comigo. Mas
sinto os seus queridos olhos fixos em mim e a sua face,
suave e fresca, contra a minha.
Oh! Peter, Peter, como me hei-de libertar da tua imagem?
Qualquer outro que venha a tomar o teu lugar
não passará de um substituto mesquinho! É a ti que amo,
e de tal forma te amo que o amor não coube no meu
coração e rompeu para se me revelar em toda a sua imensa
plenitude.
Ainda há uma semana, mesmo ainda ontem, se me
tivessem perguntado com quem eu queria casar-me, teria
respondido:-Não sei.-Mas agora queria gritar alto para
que me ouvissem:
-Quero o Peter, só o Peter! Amo-o com todo o meu
coração, com toda a minha alma-mas não quero que ele
toque senão no meu rosto.
Estive hoje no sótão junto da janela aberta e imaginei
conversar com ele. Acabámos por chorar os dois e senti
nitidamente a sua boca e o seu rosto cheios de ternura
por mim.
-Oh, Peter, pensa em mim! Vem, meu querido, querido
Peter!
Tua Anne.

Quarta-feira, 12 de Janeiro de 1944.

Querida Kitty:
Há quinze dias voltou a Elli. A Miep e o Henk não
puderam vir durante dois dias porque comeram alguma
coisa que lhes fez mal ao estômago.
A maior novidade que tenho a dar-te é que me interesso
agora pelo "ballet" e treino-me a dançar todas as noites.
A Mansa transformou-me um vestido de renda azul-claro
num ultramoderno vestido de "ballet". Uma fita passa no
decote e cruza sobre o peito. Um laçarote enorme remata
tudo. Mas em vão tentei transformar os meus sapatos de
ginástica em sandálias de "ballet". Os meus membros, que
tinham ficado quase rígidos, começam a tornar-se flexíveis
como eram dantes. Um exercício estupendo, é assim:
sentada no chão e segurando em cada mão um calcanhar,
levantar as duas pernas sem dobrar os joelhos. Para fazer
isto sento-me em cima de uma almofada para não torturar
tanto o meu pobre cóccix.
Os adultos estão a ler um livro: Manhã sem nuvens.
A mãe acha-o muito bom. Focam-se nele problemas da
juventude. Cheia de ironia pensei de mim para mim:
-E se tu tratasses antes de compreender os jovens
com quem vives? Julgo que a mãe está convencida de que
a Margot e eu vivemos nas melhores relações do mundo
com os nossos pais e que ninguém compreende tão bem
os filhos como ela. Mas em boa verdade isso só sucede
com a Margot e, creio-o bem, porque ela não tem pensamentos
e problemas como eu. Não tenciono fazer ver à mãe que no íntimo de uma das suas filhas
as coisas se
passam de uma maneira muito diferente do que ela imagina.
Ficaria admirada mas não seria capaz de resolver nada a
meu respeito. Sentir-se-ia apenas triste, e não vale a pena
dar-lhe este desgosto, principalmente porque tudo, ao
fim e ao cabo, ficaria na mesma.
A mãe bem sente na Margot uma dedicação maior do
que em mim. Mas está convencida de que também eu me
modificarei. A Margot tem agora para mim muitos carinhos. Parece-me tão diferente! Já não
troça de mim e
é uma amiga a valer. Já não vê em mim apenas a miudinha com quem não se pode falar a
sério.
É curioso : por vezes olho para mim como se fosse
outra pessoa a olhar-me. Estou contemplando esta Anne
com serenidade e calma e folheio o livro da minha vida
como se fosse pessoa estranha. Antigamente, na nossa casa,
quando eu ainda não cismava tanto, estava convencida
de que não pertencia ao pai, nem à mãe, nem à Margot,
julgava-me uma espécie de ovo de cuco. Representava
sòzinha o papel de uma órfã e acabava por achar-me
ridícula nesta figura tão triste quando, na realidade,
levava uma boa vida. Depois seguiu-se um tempo em que
me esforçava por ser amável: todas as manhãs, quando
ouvia alguém subir a escada do nosso quarto, fazia votos
para que fosse a mãe para nos dar os bons-dias. Cumprimentava-a com meiguice e ficava
muito contente por ela
olhar para mim com carinho. às vezes ela, por causa disto
ou daquilo, não estava tão simpática e, então, eu ia para
a escola muito triste e desconsolada. Quando regressava,
pelo caminho, arranjava desculpas para ela, pensava que
decerto tinha preocupações; e entrava em casa bem disposta
e alegre, ansiosa por contar as minhas aventuras... até
suceder a mesma coisa e eu ir, de novo, triste e pensativa
para a escola. Por vezes resolvia mostrar o meu desapontamento. Mas ao voltar para casa
tinha sempre tantas
coisas para contar, que me esquecia. Só queria a todo o
custo que a mãe me desse atenção.
Depois veio um período em que já não me importava
de ouvir os passos na escada. Sentia-me só, enterrava a
cabeça na almofada e chorava. Aqui é tudo muito pior.
Tu bem o sabes. Mas Deus deu-me uma ajuda na minha miséria: o Peter! Pego no medalhão
que trago sempre
comigo, beijo-o e penso:
-Que tenho eu que ver com toda esta trapalhada?
Tenho o meu Peter. E o meu segredo.
Desta maneira hei-de vencer muitas coisas. Haverá
quem adivinhe o que se passa na alma de uma adolescente?
Tua Anne

Sábado, 15 de Janeiro de 1944

Querida Kitty:
Não faz sentido eu repetir-te constantemente, com todos
os pormenores, as zangas e as disputas. Só te quero contar
que guardamos agora muitas coisas separadas, o pingue,
a carne e a manteiga, por exemplo, e fritamos as nossas
batatas à parte. Conseguimos mais um bocado de pão de
centeio suplementar, porque às quatro horas da tarde os
nossos estômagos já não aguentavam com a fome.
Aproxima-se o aniversário da mãe. Já recebeu açúcar
do Kraler para o dia da festa, e agora a sra. van Daan
está com inveja por ele não lhe ter dado nenhum a ela
no dia dos seus anos. Não é lá prazer nenhum assistir todos
os dias a cenas de choros e ouvir gritos de raiva. Podes
crer, Kitty, estamos cheios até não poder mais.
A mãe exprimiu o desejo de não ver os van Daans
durante quinze dias. Mas é um desejo que ninguém lhe
pode satisfazer. Eu pergunto-me se será sempre assim na
vida: as pessoas obrigadas a viver juntas durante muito
tempo acabam por ter conflitos. Ou temos nós pouca
sorte neste caso especial? A maioria dos homens será na
verdade egoísta e mesquinha? Em certa medida, acho bem
adquirir aqui alguns conhecimentos humanos, mas agora
já me chega e sobra. A guerra ainda não acabou, e as
nossas disputas, a fome de ar e de liberdade continuam.
Temos de tentar "to make the best of it".
Para que estou eu aqui a fazer sermões? Se continuo
assim, ainda dou numa velha seca e casmurra! E gostava
tanto de ser uma moça a valer!
Tua Anne.

Sábado, 22 de Janeiro de 1944

Querida Kitty:
Podes tu dizer-me porque é que a maioria das pesoas
esconde tão ciosamente o que lhe vai no íntimo? E como
se explica que eu me porte, junto das outras pessoas, tão
diferentemente do que deveria ser? Deve haver razões
para isso. Mas acho horrível não nos confiarmos inteiramente,
mesmo àqueles que nos são mais queridos. Tenho
a sensação de ter ficado mais velha depois daquele sonho,
de ter agora mais "personalidade". Com certeza ficas
admirada por eu te confessar que até vejo os van Daans
com outros olhos. Não vejo as suas discussões e os seus
atritos só do nosso ponto de vista parcial. Porque será
que estou tão modificada?
Mas escuta. Reflecti sobre tudo isto e cheguei à conclusão
de que o nosso convívio podia ser diferente, se
minha mãe fosse a Mamsi ideal. Bem sei que a sra. van Daan
não é uma pessoa delicada. Mas talvez metade dos conflitos
se pudessem ter evitado se a mãe não fosse tão difícil
nas suas relações com os outros e se tivesse mais tacto nas
conversas, pois a sra. van Daan tem também o seu lado
bom: apesar do egoísmo, da mesquinhez e da mania das
discussões, consegue-se fàcilmente levá-la a ceder. O
principal é que a gente a não irrite nem espicace. Não é
que esta receita dê sempre resultado mas, com um bocado
de paciência, a coisa vai. Questões sobre educação, mimos,
comida, etc., deviam ter sido todas abordadas com franqueza
e amizade. Assim não teríamos chegado a este ponto
nem veríamos só os lados desagradáveis dos outros.
Sei exactamente o que me queres dizer, Kitty!
-Mas, Anne, estas palavras são tuas. Então não tens
recebido tantas censuras dos de lá de cima? Não te
lembras já de todas as injustiças?-Sim, sim, lembro!
Mas, mesmo assim, as palavras são minhas. Quero eu
própria aprofundar tudo e não papaguear o que dizem
os mais velhos... Não! Quero observar os van Daans e
verificar o que é verdade e o que é exagero. Se depois disto
ainda continuar desapontada, concordarei com os pais.
Mas se os van Daans forem melhores do que nos têm
parecido a nós, tentarei emendar a opinião errada do pai
e da mãe; e se mesmo isto não der resultado, hei-de continuar
a manter a minha opinião e o meu parecer. Hei-de
aproveitar, de agora em diante, todas as ocasiões para falar
com a sra. van Daan e não me acanharei de dizer-lhe
sempre o que penso. Pois sempre fui considerada uma
rapariga atrevida.
Não penses sequer que quero agir contra a minha
própria família, mas fazer má-língua e ter preconceitos não
é coisa que me agrade por mais tempo. Até agora,julgava
firmemente que os van Daans eram os culpados de tudo,
mas não nos cabe a nós alguma culpa também? Pode ser
que tenhamos razão em princípio. Mas as pessoas razoáveis
-e julgo que nós somos pessoas razoáveis-devem fazer
os possíveis para conviver com toda a espécie de gente.
Reconheço isto e espero ter ocasião de poder aplicar as
minhas ideias na prática.
Tua Anne.

Segunda-feira, 24 de Janeiro de 1944

Querida Kitty :
Aconteceu-me qualquer coisa de muito estranho. Antigamente
falava-se em casa, em segredo, das coisas sexuais,
e na escola só se falava disso de um modo feio. As raparigas
falavam baixinho e por meias palavras e se alguma não
percebia o que aquilo queria dizer riam-se dela. Eu
achava tudo aquilo esquisito e pensava:
-Porque é que se fala destas coisas em segredo e de
uma maneira tão feia? Mas como não podia modificar
nada, calava-me ou falava do assunto, de longe em longe,
com uma amiga mais íntima. Mais tarde comecei a compreender
tudo e os pais também resolveram explicar-me
as coisas. A mãe disse uma vez :
-Anne, dou-te o conselho de não abordares este tema
com os rapazes e, sempre que eles queiram começar, muda
de assunto.
Ainda me lembro de que respondi:
-Pois claro, mãe, que ideia!
E assim mantive as coisas até agora.
Aqui, nos primeiros tempos, o pai falava-me, de vez
em quando, de coisas que eu antes preferia ter ouvido da
boca da mãe. O resto aprendi-o nos livros e nas conversas.
O Peter van Daan não se atrevia a dizer nada a tal respeito
e só uma vez, muito no princípio, falou no assunto, mas não
era para provocar uma resposta.
A sra. van Daan disse uma vez que nem ela nem o
marido falavam sobre isso com o Peter. Ela nem fazia
ideia até que ponto o Peter sabia dessas coisas. Ontem, quando a Margot, o Peter e eu
estávamos a descascar
batatas, a conversa caiu sobre Boschi, o gato.
-Ainda não sabemos se Boschi é gato ou gata-disse eu.
-Eu sei-disse o Peter-, é gato.
-Lindo gato - retorqui - que está à espera de gatinhos.
Pois umas semanas antes o Peter tinha dito que Boschi
estava grávida porque tinha a barriga muito gorda. Provàvelmente isso era consequência do
costume de roubar
petiscos, pois os tais gatinhos faziam-se esperar. Agora o
Peter quis defender-se.
-Queres vir ver? - disse -Quando eu, outro dia, andava
a brincar com ele, vi nitidamente que era gato.
Não consegui dominar a minha curiosidade e fui com
ele ao armazém. Mas Boschi não havia meio de aparecer.
Esperámos um bocado e depois subimos porque estava
muito frio. à tardinha ouvi o Peter descer. Cheia de
coragem atravessei a casa silenciosa e fui ao armazém.
O Peter estava a brincar com o Boschi, estava precisamente
a pesá-lo na balança.
-Olá, então queres ver agora?
Não fez cerimónias. Agarrou no Boschi pela cabeça,
segurou-lhe as patas, virou-o e a lição começou!
-Aqui é o sexo, aqui alguns cabelos soltos e isto é o
traseiro.
O Boschi deu meia volta e pôs-se em cima das suas
patinhas brancas. Se qualquer outro rapaz me tivesse
mostrado assim "o sexo masculino" eu nunca mais olharia
para ele. Mas o Peter tratou com tanta naturalidade este
tema melindroso que acabei por não achar mal nenhum.
Brincámos com o Boschi, divertimo-nos, falámos bastante
e por fim subimos devagarinho a escada.
- Quase sempre encontro num livro ao acaso aquilo
que gostava de saber. Tu também? - perguntei.
-Mas porquê? Eu cá pergunto ao meu pai. Ele sabe
muita coisa e tem grande experiência.
Estávamos em cima da escada e eu calei-me. Com outro
rapaz não podia ter falado com tanta simplicidade.
Quando a mãe me aconselhou que evitasse falar neste
assunto com rapazes, devia ser justamente isto o que ela
receava. Senti-me todo o dia um tanto confusa ao pensar naquele encontro no armazém.
Mas aprendi que se pode
falar com rapazes de uma maneira ajuizada e sem dizer
piadinhas estúpidas.
Será verdade que o Peter conversa muito com os seus
pais? E será ele, na realidade, como se me mostrou ontem.
Que sei eu dele, afinal?
Tua Anne.

Quinta-feira, 27 de Janeiro de 1944

Querida Kitty:
Ultimamente deu-me a paixão pelas árvores genealógicas,
em especial pelas das casas reais. Se uma vez se
começa a investigar, é preciso recuar cada vez mais no
tempo e, por fim, chega-se a descobertas interessantíssimas.
Os meus estudos estão a ir bem, tenho feito progressos,
já consigo perceber o "Home-Service" das emissões inglesas.
Mas aos domingos passo o tempo a fazer a escolha para a
minha colecção de "estrelas" de cinema, aliás uma colecção
já muito respeitável. O sr. Kraler, amável como é, traz
às segundas-feiras a revista de cinema. Embora os companheiros
cá do anexo, todos pouco dados a este assunto,
achem que isto de comprar uma revista de cinema é
deitar fora o dinheiro, não podem deixar de se admirar
por eu ainda saber, depois de mais de um ano de isolamento,
quem eram os artistas que trabalhavam em determinados
filmes. A Elli, nos dias de folga, vai quase sempre
ao cinema com o namorado, e quando ela me diz quais
são os filmes da semana seguinte, digo-lhe logo quem são
os artistas que entram e as críticas dos filmes. A Mansa
disse outro dia que eu, quando sairmos daqui, já não
preciso de ir ao cinema, visto que já sei o conteúdo, a
qualidade do filme e a distribuição dos papéis.
Quando apareço com um penteado novo, todos olham
para mim com ar de censura e perguntam quem é a
"estrela" que anda assim penteada. E, se lhes digo que
fui eu sòzinha que inventei aquilo, só me acreditam com
grandes reservas. E, já se vê, não me aguento mais de meia
hora com o penteado porque os critiqueiros estragam-me
o prazer. Acabo sempre por ir ao quarto de banho
restabelecer o meu penteado de todos os dias.
Tua Anne.

Sexta-feira, 28 de Janeiro de 1944

Querida Kitty:
Hoje de manhã perguntei, de mim para mim, se tu não
te sentirás como uma vaca que tem de ruminar todas as
notícias velhas e quejá está aborrecida com esta alimentação
monótona, e se não bocejas ao ler estas cartas que te não
dão novidades. Sim, bem sei, estas velhas tretas são enfadonhas, mas podes crer que eu
também já estou maçada!
Quando à mesa se não fala de política ou de boas comidas,
a mãe e a sra. van Daan põem-se a desencantar recordações
da sua juventude. Outras vezes o Dussel delira ao lembrar-se
do guarda-roupa da mulher, sempre cheio de
coisas bem escolhidas, ou falando de cavalos de corrida,
de um barquinho de remos já com rombos, de crianças
milagrosas que já sabiam nadar aos quatro anos de idade,
ou até de dores de músculos e de clientes medrosos. Já
chegámos a este ponto : se um dos oito começa a contar
uma coisa, qualquer outro pode substituí-lo e continuar
sòzinho a história até ao fim. Já conhecemos o final de
todas as anedotas; só quem as conta se ri ainda com elas.
Já passámos, não sei quantas vezes, revista aos fornecedores das nossas ex-donas de casa,
aos carniceiros,
merceeiros e padeiros e, palavra, não sei o que ainda se
poderia ouvir inédito aqui no anexo. Tudo tem barbas!
Mas isto ainda seria suportável se os adultos não
tivessem o hábito desagradável de contar as histórias do
Koophuis, da Miep e do Henk dez vezes de formas diferentes, sempre enfeitadas com
outras invenções. Tenho de
me beliscar debaixo da mesa para não interromper o
narrador entusiasmado, visto que meninas como a Anne
não devem, de maneira nenhuma, corrigir os adultos, mesmo
se estes disserem petas ou começarem a inventar.
O Koophuis e o Henk contam-nos tudo o que sabem
de outra gente escondida e "mergulhada". Isto interessa-nos
imenso e vivemos e sofremos com aqueles que foram
apanhados como se de nós próprios se tratasse. Ficamos
radiantes ao ouvir que algum prisioneiro foi posto em
liberdade.
"Mergulhar" e desaparecer são agora coisas tão correntes
como eram antigamente os chinelos do pai à espera,
no Inverno, diante do fogão.
Organizações como, por exemplo, "A Holanda Livre"
fabricam falsos cartões de identidade, procuram esconderijos
seguros, fornecem os protegidos de dinheiro e de
víveres e arranjam, para os rapazes cristãos "mergulhados",
trabalho com mestres ou em empresas de confiança.
É admirável com que dignidade e altruismo certas pessoas
fazem estes serviços, arriscando a sua própria vida para
prestarem auxílio aos outros. O melhor exemplo são os
nossos protectores que, até agora, nos têm ajudado sem
interrupção, e que nos hão-de levar, se Deus quiser, até
ao fim de tudo isto. Se alguma coisa falhar, eles terão o
mesmo triste destino de todos aqueles que protegem os
judeus. Nunca deixam transparecer que lhes somos um
fardo-e não há dúvida de que somos-. nunca se queixam
das maçadas que lhes estamos a causar. Todos os dias
sobem até aqui, falam com os homens sobre o negócio e
a política, com as senhoras sobre as dificuldades do governo
da casa e connosco, os jovens, sobre livros e jornais. Entram
sempre de cara satisfeita, não se esquecem, nos dias de
festa, das flores e das prendas e estão sempre prontos a
ajudar. Não devemos esquecer nunca, apesar de todas as
heroicidades nos campos de batalha e de toda a luta
contra os opressores, os sacrifícios dos nossos amigos, aqui,
junto de nós, as provas diárias de simpatia e de amor!
Contam-se as histórias mais fantásticas deste Mundo,
mas são quase todas verdadeiras. O Koophuis falou-nos
de um desafio de futebol no Nelderland, onde de um lado
jogavam só "mergulhados" e do outro membros da guarda-nacional.
Em Hilversum houve distribuição de novos cartões de
racionamento. Para que toda aquela gente que vive "mergulhada"
não ficasse privada das rações, os funcionários
do conselho convocaram os "protectores" para uma hora
certa, para lhes entregarem os cartões dos seus "mergulhados".
Mas é preciso cautela: tais façanhas não devem
chegar aos ouvidos dos "boches".
Tua Anne

Quinta-feira, 3 de Fevereiro de 1944

Querida Kitty:
Estamos à espera da invasão mais dia menos dia. Se
tu aqui estivesses, viverias, decerto, debaixo da mesma
ansiedade que nós ou, daí, talvez te risses desta gente que
parece quase maluquinha. Os jornais não falam doutra
coisa. As pessoas já não sabem o que hão-de pensar. Lê-se:
"No caso de um desembarque dos Ingleses na Holanda as
forças alemãs defendê-la-ão, mesmo se para tanto,
for necessário inundar todo o país".
Publicam-se mapas em que as zonas em questão estão
sombreadas. Amesterdão está abrangida e já estamos a
pensar no que se há-de fazer quando a água atingir um
metro de altura nas ruas. Ouve-se dizer:
-Como não se pode nem correr nem andar de bicicleta
temos de passar a vau.
-Talvez possamos nadar. Vestidos de fato de banho
e com capacetes de mergulhador, ninguém perceberá que
somos judeus.
-Disparate! Vejo as senhoras a fugir a nado quando
as ratazanas as morderem nas canelas.
(Claro, era um homem a fazer troça das mulheres.
Mas vamos a ver quem grita mais, se são eles ou nós!)
-Nós não conseguiremos salvar-nos com certeza.
O armazém está tão podre que a casa, ao primeiro impulso
da água, vai abaixo,
- Falando a sério: pronto! arranjaremos um barquinho e mais Não é preciso! Cada um pega
num dos velhos caixotes
do açúcar do sótão e depois rema com uma colher
de cozinha.
- Eu vou atravessar sobre andas. Era campeão em
pequeno.
-O Henk van Santen não precisa de nada disso.
E se levar a sua Miep às costas, ela terá boas andas.
Agora podes fazer uma ideia, Kitty. Estas conversas
têm graça. Mas a realidade talvez venha a ser diferente.
Surge um segundo problema ligado ao desembarque. Que
vamos fazer se Amesterdão for evacuada pelos alemães?
-Vamos com eles, sem dar nas vistas.
-Não, de maneira nenhuma! Ficamos aqui, que ainda
é o melhor. Os alemães são capazes de nos obrigar a ir
para a Alemanha e depois não poupam ninguém!
-Está claro, ficaremos aqui. Ao menos estaremos mais
seguros. Temos de convencer Koophuis a vir também para
aqui com a família. Será preciso arranjar serrim para
podermos dormir no chão. A Miep e o Koophuis deviam
trazer já alguns cobertores. Só temos trinta quilos de farinha, não chegará para todos, é
preciso conseguir mais.
O Henk talvez possa arranjar legumes secos. Temos trinta
quilos de feijão e cinco quilos de ervilhas em casa e ainda
cinquenta latas de legumes de conserva.
-Mãe, não será melhor fazer um balanço aos víveres?
-Bem: dez latas de peixe, quarenta de leite, cinco quilos
de leite em pó, três garrafas de azeite, quatro frascos
de manteiga e quatro de carne, quatro frascos de morangos,
dois garrafões de sumo e vinte de puré de tomate, cinco
quilos de flocos de aveia, quatro quilos de arroz. Eis
tudo!
-Não é nada mau. Mas se quisermos alimentar as
visitas e se só tivermos isto para comer, não parece que
seja muita coisa. Carvão e lenha ainda temos que chegue;
velas também. Era bom que cada um tivesse já um saquinho
de pendurar ao pescoço para levar o dinheiro, se for
preciso.
-Acho que devíamos fazer listas daquilo que, em caso
de fuga, faz mais falta e devíamos já encher as mochilas.
Depois duas pessoas deviam estar de guarda, uma na
mansarda, outra no sótão.
- Mas para que nos vão servir os víveres se não tivermos
nem gás, nem água, nem electricidade?
Cozinhamos no fogão da sala. Filtramos a água e fervemo-la. Havemos de limpar uns
garrafões para ter sempre alguma água.
Estas conversas ouço-as todo o santo dia. Invasão
para disputa aqui, para invasão acolá!
sobre a morte pela fome, sobre bombas, sacos de dormir,
bombas incendiárias
certificados de judeus, gases venenosos e assim por
diante.
Para te dar uma ideia mais nítida das preocupações
constantes da gente do anexo, vou reproduzir-te uma
conversa com o Henk.
Anexo: Estamos com medo de que os alemães, numa
eventual retirada, levem toda a população com eles.
Henk: Impossível. Não têm comboios que cheguem.
Anexo: Comboios? Mas o senhor pensa que eles vão
levar a gente de comboio? Nem pensar nisso! Fazem-nos
mas é andar à pata. "per pedes apostolorum, costuma
dizer o Dussel a cada passo).
Henk : Não creio. Vocês são pessimistas de mais
que vantagem teriam eles em arrastar assim toda a população?
Anexo: Sabe o que disse Goebbels: se tivermos que
retirar, fecharemos atrás de nós todas as portas dos países
ocupados.
Henk: Oh! Já disseram tanta coisa!
Anexo: Pensa que os alemães são demasiado nobres ou
humanitários para agir assim? Logo que lhes cheire a
perigo, hão-de arrastar consigo tudo o que encontrarem
pelo caminho.
Henk: Digam o que quiserem. Eu não acredito.
Anexo : É sempre a mesma coisa. As pessoas só vêem
o perigo depois de o terem experimentado no seu
próprio corpo.
Henk: Mas nada se sabe de positivo. Tudo isso são
apenas hipóteses.
Anexo: Mas já passámos por túdo isso, primeiro na
Alemanha, depois aqui. E não vê o que estão a fazer na
Rússia?
Henk: Esqueçam-se, por um instante, do problema dos
judeus. Ninguém sabe o que se está a passar no Leste.
Se calhar a propaganda russa e inglesa exagera tanto
como a alemã.
Anexo : Não pode ser. A rádio inglesa tem dito sempre
a verdade. Mas, supondo mesmo que há exageros, os factos conhecidos já são bastante
eloquentes. Não pode
negar que os alemães estão a matar e a gasear milhões de
inocentes na Polónia e na Rússia, não é verdade?
Não te vou maçar com mais conversas. Faço os possíveis
para me conservar calma e para não me preocupar. Já
cheguei a um ponto em que me é indiferente viver ou
morrer. O Mundo não parará por causa de mim, e eu,
pela minha parte, não posso também fazer parar os acontecimentos. Venha o que vier.
Entretanto, estudo e trabalho e tenho esperança de que tudo acabará em bem.
Tua Anne

Sábado, 12 de Fevereiro de 1944

Querida Kitty:
O Sol brilha, o céu é de um azul intenso, sopra um vento
maravilhoso, e eu... eu tenho saudades. Saudades... de
tudo, da liberdade, dos amigos. Saudades de poder desabafar
e... de estar só comigo. Ai!, se pudesse chorar à
vontade, uma vez só que fosse. Queria aliviar o meu
coração, queria chorar para me sentir melhor, mas sei que
não pode ser. Estou irrequieta, ando de um quarto para
o outro, ponho-me por trás da janela fechada e procuro
respirar o ar de lá de fora através das frinchas, sinto o
coração a bater como se me estivesse a pedir : satisfaz o
meu desejo!
Creio que a culpa é da Primavera. Sinto-a despertar
em todo o meu corpo e em toda a minha alma. Tenho de
99
fazer esforços para me conservar calma, sinto uma grande
confusão, não consigo ler, nem escrever, nem fazer seja
o que for. Só sei que tenho saudades.
Tua Anne.

Domingo, 13 de Fevereiro de 1944

Querida Kitty:
De ontem para hoje muita coisa se tem modificado
. Ontem estava cheia de saudades e ainda estou, em
mim a satisfação já não é a mesma coisa. Hoje de
manhã notei que tudo era diferente. Mas... notei
com satisfação, digo-o com toda a franqueza, o Peter
não tirava de mim os olhos. Não olhava para mim
como de costume, era diferente, não sei dizer nem escrever
como. Sempre pensei que o Peter gostava mas era da
Margot, e agora senti que não é nada disso. Durante todo
o dia não olhei muito para ele, pois sempre que o encarava
ele estava a olhar também. Invadia-me então uma sensação
maravilhosa. Bem sei que isso não está certo, que não
deve repetir-se muitas vezes. Queria tanto estar só! O
peter já percebeu que estou diferente, mas não lhe posso
contar tudo! "Deixem-me em paz", gostava de lhes gritar a
todos. Mas, quem sabe, talvez ainda venha um dia em que estarei mais só do que é meu
desejo.
Tua Anne.

Segunda-feira, 14 de Fevereiro de 1944

Querida Kitty:
No domingo, à noite, estavam todos a ouvir na rádio
o programa "Música imortal dos mestres alemães", só o
Pim e eu é que não. O Dussel estava constantemente a
mexer no botão do aparelho. O Peter ficou aborrecido com
isso, e os outros também. Depois de uma meia hora, o
Peter, que já estava muito nervoso, pediu ao Dussel, num
tom irritado, que acabasse com aquilo. O Dussel respondeu
meio condescendente, meio desdenhoso :
-Eu bem sei o que estou a fazer.
O Peter enfureceu-se, seu pai deu-lhe razão e o Dussel
não teve outro remédio senão ceder. Foi tudo. Não era
coisa de importância mas, pelos vistos, o Peter ficou muito
aborrecido porque quando eu, hoje de manhã, andava a
remexer no caixote dos livros, no sótão, ele começou a
contar-me tudo. Até então eu nem sequer sabia que tinha
havido alguma coisa, e o Peter, como compreendeu que
eu ouvia com interesse, entusiasmou-se.
-Repara - disse-, eu fico quase sempre calado, porque
sei de antemão que não sou capaz de me exprimir bem.
Desato a gaguejar, coro e digo muitas vezes o que não
queria. Por fim desisto por não encontrar as palavras
certas. Assim aconteceu ontem. Queria dizer uma coisa
mas, mal tinha começado, fui perdendo o sangue-frio.
Isto é horrível. Antigamente tinha um mau costume mas,
por vezes, ainda hoje, preferia fazer o mesmo. Quando
me zangava com alguém, em vez de discutir, servia-me
dos meus punhos. Bem sei que não é bom método e, por
isso, é que te admiro. Tu sabes falar bem, dizes sempre a
toda a gente o que tens a dizer e não te acanhas.
-Estás enganado-respondi-, quase nunca digo o que queria dizer. E falo de mais, parece
que nunca mais acabo,
e isto também é mau.
Cá no meu íntimo estava a rir-me de contente, mas
não queria que ele soubesse, pois há muito desejava que
ele me falasse de si. Sentei-me confortàvelmente no chão
numa almofada, cruzei os braços, apoiei o queixo nos
joelhos e olhei para ele. Toda eu era atenção.
Estou radiante por haver alguém nesta casa, que
, consegue enraivecer-se como eu. Via-se bem que o Peter
se sentia aliviado ao criticar o Dussel com expressões fortes
sem ter medo de que eu o denunciasse. E eu, enfim, achei
aquilo estupendo, porque senti renascer em mim o autêntico
sentimento de camaradagem que antigamente
experimentava junto das minhas amigas.
Tua Anne

Quarta-feira, 16 de Fevereiro de 1944

Querida Kitty:
A Margot faz anos. Ao meio-dia e meia hora veio o
Peter para ver as prendas e, contra o costume, ficou bastante tempo. à tarde fui buscar um
pouco de café e também batatas porque achava que a Margot neste dia devia
ser bem tratada. O Peter, ao ver-me passar pelo seu quarto,
tirou logo todos os seus papéis da escada e eu perguntei-lhe
se queria que fechasse o postigo.
-Está bem-disse ele-e, quando voltares, bate que
eu abro imediatamente. Agradeci-lhe e subi. Durante dez
minutos andei a remexer no barril para escolher as batatas
mais pequenas. Depois senti dores nas costas, de estar
tanto tempo curvada, e também senti frio. Não bati, abri
o postigo sózinha. Mas o Peter veio a correr imediatamente para pegar no panelão.
- Andei muito tempo à procura mas não encontrei
batatas mais pequenas - disse eu.
- Viste no barril grande?
- Vi. Remexi-o todo com a mão.
Eu estava agora ao pé da escada e ele olhou, com ar
de quem percebe, para dentro da panela que segurava
na mão. Depois entregou-ma e disse :
- São boas, são óptimas.
E, ao dizê-lo acariciou-me com um olhar tão quente
e tão suave que toda eu me senti por dentro quente e
suave. Compreendi que ele quis ser amável para comigo.
Mas como não sabe fazer grandes discursos, pôs todos os
seus pensamentos no olhar.
Que bem que eu o compreendi! E estava-lhe grata de
todo o meu coração. Ainda agora me sinto contente ao
reviver as suas palavras e o seu olhar.
Quando voltei, a mãe disse que as batatas não chegavam
para o jantar. Ofereci-me logo para subir novamente.
Ao entrar no quarto do Peter pedi desculpa por incomodá-lo
novamente. Levantou-se, pôs-se entre a parede
e a escada e quis, a toda a força, reter-me.
-Agora vou eu ao sótão-disse.
Respondi que não era preciso, que eu não ia escolher
outra vez as batatas mais pequenas. Convenceu-se e soltou-me.
Quando voltei, abriu a fresta e pegou na panela.
Ao sair da porta perguntei-lhe :
- Que estás a fazer?
- Francês-respondeu.
Perguntei se me deixava ver. Lavei as mãos e sentei-me
à sua frente, no divã.
Depois de eu lhe ter explicado algumas coisas, começámos
a conversar. Contou-me que mais tarde, queria ir
trabalhar para as plantações na índia Holandesa. Falou
também da sua vida em casa, do mercado "negro" e, por
fim, disse que era um inútil. Respondi-lhe que ele tinha
mas era um forte complexo de inferioridade. Depois falou
dos judeus. Achava mais cómodo se pudesse ser cristão
e gostava de o ser depois da guerra. Então eu quis saber
se tinha a intenção de se baptizar depois da guerra, mas ele
disse-me que, afinal, não queria, porque depois da guerra
ninguém saberia se ele era cristão ou judeu. Esta atitude
fez-me doer, por um momento, o coração. É pena haver
nele sempre um pedacinho de desonestidade.
Falámos ainda de meu pai, de conhecimentos humanos
e de outras coisas mais. Só o deixei às quatro e meia.
à noite disse-me ainda uma coisa bonita sobre o retrato
de uma "estrela" do cinema que lhe dei uma vez e que tem
pendurado, há para aí ano e meio, no quarto. Como tinha
gostado tanto, ofereci-lhe mais retratos de "estrelas" de
cinema.
- Não-disse ele-, não me dês mais. Prefiro olhar só
para aquela todos os dias, porque já se tornou para mim
uma amiga.
Agora compreendo porque é que ele anda sempre com
o Mouchi ao colo. Tem necessidade de carinho.
mais um assunto em que falou, quase me ia esquecendo.
- Não sei o que é medo - disse - a não ser quando estou
doente. Mas mesmo isto há-de passar.
O seu complexo de inferioridade é muito grande.
Pensa que é estúpido e que nós somos inteligentes. Quando
lhe dou uma ajuda no francês, agradece-me mil vezes.
Hei-de dizer-lhe qualquer dia:
- Deixa-te disso. Em compensação sabes muito mais
inglês e geografia do que eu.
Tua Anne.


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