Capítulo IX

A VITÓRIA

"ORDEM N.° 1
"ÀS TROPAS DO DESTACAMENTO DE PULKOVO
"13 de novembro de 1917, às nove horas e trinta e oito minutos.
"Após encarniçada batalha, as tropas do destacamento de Pulkovo
derrotaram completamente as tropas contra-revolucionárias, que,
abandonando suas posições em desordem, retiraram-se por trás de Tsárskoie -
Tseló, em direção a Pavlovsk e Gatchina.
"Nossos postos avançados ocupam o extremo noroeste de Tsárskoie -
Tseló, e a Estação Aleksándrovskaia. O destacamento de Kolpino estava à
nossa esquerda e o de Krásnoie -Tseló à nossa direita.
"As forças de Pulkovo devem ocupar Tsárskoie -Tseló e fortificar todas
as vias de comunicação, principalmente do lado de Gatchina. Ordeno,
igualmente, que se ocupe Pavlovsk, que deve ser fortificada pelo sul, e a
estrada de ferro até o Don.
"As tropas devem tomar as providências necessárias para a fortificação
das posições que ocupam, por trincheiras e outros meios defensivos. Devem
manter-se em ligação constante com os destacamentos de Kolpino e de
Krásnoie -Tseló, assim como com o Estado-Maior do Comando-Geral da
Defesa de Petrogrado.
"O comandante-em-chefe das forças em operações contra as tropas
contra-revolucionárias de Kerenski, Tenente-Coronel Muraviov."
Terça-feira, de manhã. Mas seria possível? Dois dias antes, no campo de
Petrogrado, havia apenas bandos sem chefes, sem viveres, sem artilharia,
vagando à toa, sem nenhuma orientação. Que teria fundido essas massas
desorganizadas e sem disciplina, de guardas vermelhos e de soldados sem
oficiais, num exército obediente aos chefes por eles mesmos escolhidos, num
exército temperado para receber o choque da artilharia e o assalto da
cavalaria cossaca?
Os povos sublevados transtornam todas as regras da arte militar. Basta
lembrar os exércitos esfarrapados da Revolução Francesa, em Valmy, e
Wissenburg. As forças soviéticas tinham pela frente o bloco dos junkers, dos
cossacos, dos grandes proprietários, da nobreza, dos Cem Negros, a
perspectiva de restauração do czar, da Okhrana, das prisões siberianas e,
além disso, a terrível ameaça do imperialismo alemão... A vitória era o fim
da opressão e o começo de uma era nova e feliz!
Domingo à noite, enquanto os comissários do Comitê Militar
Revolucionário voltavam, desesperados, do campo de batalha, a guarnição
de Petrogrado elegia seu Comitê dos Cinco, seu estado-maior de combate:
três soldados e dois oficiais, todos inimigos jurados da contra-revolução. O
Tenente-Coronel Muraviov, antigo patriota, era um homem capaz. Mas os
revolucionários precisavam vigiá -lo. Em Kolpino, Obukhovo, Pulkovo,
Krásnoie -Tseló, formavam-se destacamentos provisórios. Os efetivos desses
destacamentos, aumentados com as unidades extraviadas, que iam sendo
pouco a pouco incorporadas, compunham-se de soldados, marinheiros,
guardas vermelhos, infantaria, cavalaria e artilharia, tudo misturado, e ainda
de carros blindados.
Ao amanhecer, entrou-se em contato com as patrulhas cossacas de
Kerenski. Em cada encontro, uma descarga, uma ordem de rendição. No ar
frio e parado, elevava-se o fragor da batalha. Nos bandos errantes,
acampados ao redor das fogueiras, os homens diziam: — Começou. — E
logo marchavam para o combate. Por todas as estradas e caminhos, os
trabalhadores, em grupo, apressavam o passo. Surgiam, assim, como por
milagre, de todos os pontos, multidões exasperadas. Os comissários iam ao
seu encontro, distribuindo posições a ocupar, ou trabalho a executar. Desta
vez, a guerra era sua, a guerra e o mundo, o seu mundo. E os chefes
escolhidos por eles mesmos. As vontades múltiplas e incoerentes da massa
fundiam-se numa vontade única.
Os combatentes dessas jornadas, mais tarde, contaram como os
marinheiros, depois de queimarem o último cartucho, se atiraram ao assalto;
como os operários, sem treino militar, resistiram à carga dos cossacos e os
desmontaram à baioneta; como a multidão anônima, que durante a noite
havia se reunido no campo de combate, cresceu, formou um oceano que
cobriu o inimigo. Segunda-feira, antes da meia -noite, os cossacos já estavam
dispersos e, em fuga, abandonando a artilharia. O exército do proletariado,
avançando em toda a frente, entrou em Tsárskoie -Tseló, antes que o inimigo
tivesse podido destruir a grande estação de telégrafo, de onde os comissários
do Smólni irradiaram, imediatamente, para o mundo inteiro, um hino de
vitória.
"A TODOS OS SOVIETES DE DEPUTADOS OPERÁRIOS E
SOLDADOS
"A 12 de novembro, num encarniçado combate travado perto de
Tsárskoie-Tseló, o exército revolucionário desbaratou completamente as
forças contra-revolucionárias de Kerenski e de Kornilov. Em nome do
Governo Revolucionário, ordeno que todos os regimentos continuem a luta
contra os inimigos da democracia revolucionária e que adotem as medidas
necessárias para a prisão de Kerenski e para impedir a repetição de aventuras
semelhantes, que ameaçam as conquistas da revolução e a vitória do
proletariado. Viva o exército revolucionário!...
"Muraviov."
Notícias das províncias:
Em Sebastópol, o soviete local tomou o poder. Depois de formidável
comício, as tripulações dos encouraçados que se encontravam no porto
obrigaram os oficiais a jurar que obedeceriam ao novo governo. Em Nijni-
Novgorod, o soviete estava também no poder. As notícias de Kazan
anunciavam combates nas ruas entre junkers de uma brigada de artilharia e a
guarnição bolchevique.
Em Moscou, recomeçara uma luta desesperada. Os junkers e os guardas
brancos, que ocupavam o Kremlin e o centro da cidade, estavam sendo
assaltados por todos os lados pelas tropas do Comitê Militar Revolucionário.
A artilharia soviética fora instalada na Praça Skobeliev, de onde
bombardeava a Duma Municipal, a Chefatura de Polícia e o Hotel Metropol.
Na Tviérskaia e na Nikítskaia, o povo arrancava as pedras das ruas para
fazer barricadas. Os bairros dos grandes bancos e das casas do alto comércio
estavam sob uma chuva de balas. Não havia luz nem comunicação
telefônica. A população burguesa achava-se refugiada nos subterrâneos. O
último boletim dizia que o Comitê Militar Revolucionário havia dirigido um
ultimatum ao Comitê de Salvação Pública, exigindo a rendição, sob pena de
bombardearem o Kremlin.
— Bombardearem o Kremlin? — diziam. — Não terão coragem... De
Vologdá até Tchita, no outro extremo da Sibéria, de Pskov até Sebastópol,
no mar Negro, nas grandes e nas pequenas aldeias, as chamas da guerra civil
já se levantavam bem alto. O governo do povo, em Petrogrado, recebeu as
felicitações de mil fábricas, de mil comunas camponesas, dos regimentos,
dos exércitos, dos navios que se achavam em pleno oceano.
O governo cossaco de Novotcherkask telegrafou a Kerenski:
"O governo das tropas cossacas convida o Governo Provisório e os
membros do Conselho da República a virem, se for possível, a
Novotcherkask, onde poderemos organizar, conjuntamente, a luta contra os
bolcheviques".
A Finlândia começava também a agitar-se. O Soviete de Helsinque e o
Tsentrobalt (Comitê Central da Esquadra do Báltico) proclamaram o estado
de sítio e declararam que todas as tentativas dirigidas contra a ação das
forças bolcheviques ou qualquer resistência armada oposta às ordens do
Conselho dos Comissários do Povo seriam severamente reprimidas. Ao
mesmo tempo, a União dos Ferroviários da Finlândia declarou a greve geral
em todo o país, pleiteando a aplicação imediata das leis votadas pela dieta
socialista de junho de 1917, dissolvida por ordem de Kerenski.
Na manhã seguinte, bem cedo, dirigi-me ao Smólni. Quando passava
pela vereda de madeira que conduz à parte externa do edifício, caíram do céu
pardacento os primeiros flocos de neve, leves e hesitantes.
— Neve! — gritou um soldado que se achava de guarda, com um gesto
de alegria. — É o que há de melhor para a saúde!
No interior, os compridos corredores escuros e as salas silenciosas
pareciam abandonados. Não se via ninguém no enorme edifício. De repente,
um barulho surdo e estranho chegou aos meus ouvidos. Olhando em torno,
vi, no chão, ao longo das paredes, homens que dormiam. Criaturas rudes,
operários e soldados, verdadeiros bonecos de barro, estendidos isoladamente
ou amontoados, indiferentes à morte. Alguns estavam enrolados em panos
ensangüentados. No chão, ao abandono, fuzis e cartucheiras. Ante meus
olhos, repousava o exército do proletariado!
Na cantina do primeiro andar, havia um ajuntamento tão grande, que mal
se podia passar. O ar estava viciado. Através dos vidros embaçados, filtravase
uma pálida claridade. Por cima do mostrador, em cima da mesa, junto a
um samovar, entre xícaras com restos de chá, descobri um exemplar do
último Boletim do Comitê Militar Revolucionário, com a página final cheia
de traços irregulares. Era a homenagem da lembrança que um soldado
prestava aos camaradas tombados na luta contra Kerenski, no momento em
que o sono o dominou. No papel pareciam ter corrido lágrimas...
"Aleksiei Vinogradov D. Leonski
"D. Moskvin D. Preobrajenski
"S. Stolbikov V. Laidanski
"A. Voskressenski M. Bertchikov
"Todos eles foram chamados às fileiras a 15 de novembro de 1916.
"Somente três ainda vivem: Mikhail Bertchikov, Aleksiei Voskressenski
e Dmítri Leonski.
"Dormi, águias das batalhas!
"Descansem em paz vossas almas!
"Irmãos! Bem mereceis
"Repouso e felicidade eternos!..."
Somente o Comitê Militar Revolucionário não dormia. Ao contrário,
trabalhava sem descanso. Skripnik saiu do aposento do fundo e anunciou que
Gotz fora detido, mas que negara categoricamente ter assinado, com
Avksentiev, a proclamação do Comitê para a Salvação da Rússia e da
Revolução. O comitê, por outro lado, tinha repudiado o apelo à guarnição.
Skripnik acrescentou que ainda existia certa hostilidade entre os regimentos
da cidade. O Regimento de Volinski, por exemplo, negara-se a lutar contra
Kerenski.
Diversos destacamentos de tropas "neutras", conduzidos por Tchernov,
encontravam-se em Gatchina, onde procuravam dissuadir Kerenski de
marchar sobre Petrogrado.
Skripnik pôs-se a rir.
— Agora já não podem existir "neutros". A vitória está em nossas mãos!
— Iluminava-lhe o rosto, de traços pronunciados, uma exaltação quase
religiosa. — Chegaram da frente mais de sessenta delegados, trazendo-nos a
certeza da colaboração de todos os exércitos, com exceção da frente romena,
da qual nada sabemos. Os comitês do Exército interceptam todas as notícias
de Petrogrado, mas já organizamos um serviço regular de correios.
No pavimento térreo, encontramos Kamenev, que acabava de chegar.
Embora extenuado pela sessão noturna da Conferência para a Formação de
um Novo Governo, estava satisfeito.
— Já os socialistas revolucionários inclinam-se a favor da nossa
admissão ao novo governo — disse-me. — Os grupos da direita estão
aterrorizados com tribunais revolucionários e pedem, espantados, que, antes
de tudo, e sobretudo, os dissolvamos. Aceitamos a proposta do Vikjel
referente à formação de um governo socialista homogêneo; tratamos,
atualmente, dessa questão. É o fruto da nossa vitória. Quando éramos os
mais fracos, nada queriam conosco; agora, todo mundo é partidário de um
acordo com os sovietes. Entretanto, o que necessitamos é de uma vitória
verdadeiramente decisiva. Kerenski quer armistício, mas será preciso que
capitule.
Tal era o estado de espírito dos chefes bolcheviques. A um jornalista
estrangeiro, que solicitava uma declaração, Trótski disse:
— A única declaração possível, neste momento, é a que fazemos pela
boca dos nossos canhões!
Dissimulava-se, contudo, nesse ambiente de vitória, grave inquietação,
motivada pelo problema financeiro. Ao invés de abrir os bancos, seguindo as
ordens do Comitê Militar Revolucionário, o Sindicato de Empregados de
Bajicos, após uma reunião, declarara greve. O Smólni pedira cerca de trinta e
cinco milhões de rublos ao Banco do Estado, mas o caixa fechara o guichê e
não concordara em fazer pagamentos senão aos representantes do Governo
Provisório. Serviam-se os reacionários do Banco do Estado como de uma
arma política. Quando o Vikjel pediu dinheiro para pagar os ordenados do
pessoal das estradas de ferro, disseram-lhe que se dirigisse ao Smóln i...
Transportei-me ao Banco do Estado, a fim de visitar o novo comissário,
um bolchevique ucraniano chamado Petróvitch, que procurava pôr ordem no
caos em que os grevistas o tinham deixado. Nos escritórios do imenso
estabelecimento, os voluntários, operários, soldados, marinheiros,
abobalhados, gaguejando, suando em bicas, empalideciam sobre os enormes
livros.
O edifício da Duma estava abarrotado de gente. Ainda se lançavam
desafios isolados ao novo governo, mas já eram raros. Um apelo fora
dirigido aos camponeses pelo Comitê Agrário Central, ordenando-lhes que
não reconhecessem o decreto sobre a terra adotado pelo Congresso dos
Sovietes, com o pretexto de que provocaria a desordem e a guerra civil. O
Prefeito Schreider anunciou que, em vista da insurreição bolchevique, era
preciso adiar sine die as eleições à Assembléia Constituinte.
Duas preocupações pareciam dominar os espíritos, indignados pela
ferocidade da guerra civil: pôr termo ao derramamento de sangue e constituir
um novo governo. Já não se falava de "esmagar os bolcheviques", e
tampouco de os excluir do novo governo, exceto nos meios socialistas
populistas e no Soviete dos Camponeses. O Comitê Central do Exército, o
mais acirrado inimigo do Smólni, chegou a telefonar a Moguilev: — Se, para
a constituição do novo ministério, for preciso fazer um pacto com os
bolcheviques, nós consentiremos que sejam admitidos no gabinete, porém
em minoria.
O Pravda chamava ironicamente a atenção dos leitores para os
"sentimentos humanitários" de Kerenski, publicando sua mensagem ao
Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução:
"De acordo com as propostas do Comitê de Salvação e de todas as
organizações democráticas que o apóiam suspendi qualquer ação militar
contra os rebeldes, e deleguei poderes ao comissário adjunto ao comandanteem-
chefe, Stankievitch, para que inicie as negociações. Tomem as medidas
necessárias para evitar inúteis derramamentos de sangue".
O Vikjel enviou o seguinte telegrama a toda a Rússia:
"A conferência entre o Sindicato dos Ferroviários e os representantes dos
partidos e das organizações em luta, que reconhecem a necessidade de um
acordo, reprova, categoricamente, o terrorismo político da guerra civil,
mormente entre as facções da democracia revolucionária, e declara que o
mesmo, sob qualquer forma que seja, está, neste momento, em contradição
com o sentido e o objetivo das negociações entabuladas para a formação de
um novo governo".
A conferência enviou algumas delegações à frente, a Gatchina. Parecia
imediato o encontro da solução definitiva no decorrer dos seus trabalhos.
Tinham resolvido, até, eleger um conselho provisório do povo, composto de
uns quatrocentos membros, dos quais setenta e cinco representando o
Smólni, setenta e cinco o antigo Tsik, e o resto repartido entre a Duma
Municipal, os sindicatos, os comitês agrários e os partidos políticos.
Tchernov fora nomeado para a presidência do conselho. Segundo se dizia,
Lênin e Trótski seriam excluídos...
Por volta de meio-dia, encontrava-me de novo no Smólni, falando com o
motorista de uma ambulância que se dirigia à frente revolucionária. Pedi-lhe
que me deixasse acompanhá-lo. Consentiu. Era voluntário da universidade.
Pelo caminho, conversava comigo num alemão horrível: — Also, gutl Wir
nach die Kazernen zu essen gehen! — Quando chegamos a Kirotchnaia,
entramos num pátio enorme, cercado por edifícios militares. Subimos por
uma escada escura e chegamos a uma habitação baixa, iluminada por um
única janela. Sentados à grande mesa de madeira, cerca de vinte soldados
estavam tomando sopa de le gumes, com colheres de pau, servida em pratos
de folha. Conversavam e riam ao mesmo tempo, com grande animação.
— Saúdo o Comitê do 6.° Batalhão de Engenharia! — exclamou meu
companheiro, apresentando-me como socialista norte-americano.
Todos se levantaram para cumprimentar-me. Um velho soldado apertoume
contra o peito, beijando-me calorosamente. Deram-me uma colher de pau
e sentei-me à mesa. Trouxeram-me um prato cheio de kacha ¹, um enorme
pedaço de pão de centeio e os inevitáveis samovares. E todos começaram a
fazer-me perguntas sobre os EUA. Era verdade que os homens vendiam o
voto por dinheiro? Como, então, conseguiam aquilo que desejavam? E o
Tammany ²? Era certo que, num país livre, um punhado de indivíduos podia
dominar uma cidade inteira e explorá-la em proveito próprio? Por que o
povo suportava tanta coisa?... Na Rússia, mesmo sob a dominação czarista,
coisas assim não seriam possíveis. Sem dúvida, sempre existira a corrupção.
Mas comprar uma cidade inteira, com seus habitantes, num país livre! Então
o povo não tinha nenhum sentimento revolucionário?
1 Mingau, papa, sopa. (N. do E.)
2 Tammany ou Tammany Hall: sede da direção do Partido Democrata em Nova York,
nome que havia se convertido em sinônimo de todas as prevaricações e de todos os crimes em
conseqüência da revelação de numerosos casos de participação nesses atos repreensíveis de
dirigentes democratas de Nova York. (N. do E.)
Procurei explicar-lhes que, no meu país, o povo trata de realizar as
reformas por meio de leis.
— Perfeitamente — exclamou um jovem sargento chamado Baklanov,
que falava francês. — Entretanto, com o poder que a classe capitalista tem
no seu país, ela dominará a legislação e a justiça. Como pode o povo, em tais
condições, obter reformas? Desejaria convencer-me, visto que não conheço
sua pátria, mas parece incrível...
Disse-lhe que pretendia ir a Tsárskoie -Tseló.
— Eu também — replicou bruscamente Baklanov.
— E eu... E eu...
Todos resolveram, no mesmo instante, partir para Tsárskoie -Tseló.
Nesse momento, alguém bateu. A porta abriu-se e apareceu o coronel.
Ninguém se levantou, mas ele foi acolhido com alegria.
— Pode-se entrar?
— Oh, pois não! Entre! — responderam cordialmente. Alto, de porte
distinto, com seu gorro de pele bordado a ouro, o coronel entrou, sorridente.
— Parece-me que ouvi falar, camaradas, que iam a Tsárskoie -Tseló.
Posso acompanhá-los?
Baklanov refletiu.
— Creio que hoje nada há a fazer aqui — respondeu. — Sim, camarada,
teremos muito prazer em que vá conosco.
O coronel agradeceu e, sentando-se à mesa, serviu-se de uma xícara de
chá. Em voz baixa, a fim de não magoá-lo, Baklanov explicou-me:
— Sou o presidente do Comitê do Batalhão. Temos a direção absoluta,
salvo para as operações. Aí, entregamos o comando ao coronel. Todos
obedecem às suas ordens. Mas ele é o responsável perante o comitê. No
quartel, nada pode fazer sem nos consultar. De certo modo, é o nosso agente
executivo.
Foram distribuídas armas: revólveres e fuzis. Podíamos encontrar os
cossacos. Comprimidos no carro-ambulância, ao lado de três enormes
pacotes de jornais destinados à frente, rodamos pela Liteini e, em seguida,
pela Zagorodni. Eu estava sentado ao lado de um rapaz com galões de
tenente, que parecia ralar com a mesma facilidade todas as línguas européias.
Fazia parte do Comitê do Batalhão.
— Não sou bolchevique — afirmou, com energia. — Minha família
pertence à antiga nobreza. Sou, digamos, um cadete.
— Então como é que...? — interrompi, surpreendido.
— Tomo parte no comitê, perfeitamente. Não oculto minhas opiniões
políticas, mas ninguém se inquieta, pois sabem que não estou disposto a
resistir à vontade da maioria. Neguei-me a tomar parte na atual guerra civil,
porque não desejo pegar em armas contra meus irmãos russos.
— Provocador! Kornilovista! — gritaram-lhe os outros em tom de
chacota, dando-lhe palmadas nas costas.
Depois de atravessarmos o arco do triunfo da Porta de Moscou, colossal
monumento de pedra escura, enfeitado de hie róglifos dourados, de enormes
águias imperiais e nomes de czares, seguimos pela estrada ampla e reta,
branca de neve. Estava cheia de guardas vermelhos. Cantando e gritando,
seguiam para a frente revolucionária. Outros voltavam, cobertos de lama,
com a cara terrosa. A maioria tinha aspecto infantil. Viam-se, também,
mulheres com pás, fuzis e cartucheiras atravessados no peito, em diagonal;
outras, com braçadeiras da Cruz Vermelha. Eram, quase todas, mulheres dos
cortiços, curvadas e gastas pelo trabalho. Havia ainda mineiros de rosto
severo e crianças que levavam embrulhos de comida para os pais,
caminhando todos sobre a lama esbranquiçada, de vários centímetros de
espessura, que cobria a estrada. Passamos pela artilharia, que se dirigia para
o sul, com estrépito de ferro velho. Passavam vários caminhões cheios de
homens armados. Ambulâncias carregadas de feridos voltavam do campo de
batalha. Numa carreta de camponês, que rodava lentamente, um rapazinho,
ferido no ventre, ia recolhido, pálido e gemendo de dor. Nos campos, ao lado
da estrada, mulheres cavavam trincheiras e colocavam redes de arame
farpado.
Nuvens escuras corriam para o nordeste. Repentinamente, apareceu um
sol lívido. Do outro lado da planície pantanosa, via -se Petrogrado. À direita,
resplandeciam cúpulas com flechas brancas, douradas e multicores. À
esquerda, altas chaminés desprendiam rolos de fumaça escura e, ao fundo,
avistava-se o golfo da Finlândia.
Em ambas as margens da estrada, havia igrejas e mosteiros. Amiúde,
distinguia -se um monge, que espiava em silêncio o exército proletário.
A estrada fazia uma bifurcação em Pulkovo. Fizemos alto no meio de
uma multidão, na qual se fundiam três correntes humanas. Os amigos
encontravam-se e, contentes, felicitavam-se mutuamente, descrevendo a
batalha. Algumas ruas apresentavam sinais de balas e a terra fora pisada uma
légua em redor. Ali o combate fora encarniçado. A pouca distância, alguns
cavalos cossacos, sem cavaleiros, corriam em círculos, procurando feno, pois
o capim havia muito desaparecera. Um guarda vermelho procurava montar,
mas era uma queda atrás da outra, para alegria de muitas daquelas crianças
grandes.
A estrada da esquerda, pela qual se haviam retirado os cossacos
sobreviventes, levava, margeando o aclive, a um casario de onde se
descortinava grandiosa paisagem sobre a imensidade da planície, pardacenta
como um mar sem vento e dominada por uma aglomeração de nuvens e pela
cidade imperial, que despejava milhares de homens pelas estradas. Ao fundo,
à esquerda, ficava a pequena colina de Krásnoie -Tseló, o campo de parada
de verão da Guarda e a Mansão Imperial. Apenas quebravam a monotonia da
planície alguns mosteiros e conventos rodeados de muralhas, grandes
fábricas isoladas, e edifícios cor de terra: os asilos de órfãos.
— Aqui — disse o motorista ao subir uma colina nua — morreu Viera
Slútskaia, a deputada bolchevique na Duma, hoje de manhã. Ia de automóvel
com Zalkind e outros mais. Tinham estabelecido uma trégua e dirigiam-se
para a frente. Iam conversando e rindo, quando, bruscamente, do trem
blindado em que viajava Kerenski, partiu um tiro que matou
instantaneamente Slútskaia.
Chegamos a Tsárskoie -Tseló cheios de entusiasmo pelo grande êxito do
proletariado. O palácio onde se achava instalado o soviete era centro de
grande atividade. Guardas vermelhos e marinheiros ocupavam o pátio, e
sentinelas guardavam as portas. Carteiros e comissários entravam e saíam.
Na sala do soviete, em volta do samovar, um grupo de operários,
soldados, marinheiros e oficiais discutia ruidosamente, enquanto bebiam chá.
A um canto, dois operários procuravam desajeitadamente utilizar-se de um
duplicador. Na mesa do centro, Dibenko, debruçado sobre um mapa,
marcava com um lápis azul e vermelho as posições que deviam ser
ocupadas. A mão que tinha livre brincava, como de costume, com um
revólver de aço oxidado. Bruscamente, foi sentar-se à máquina de escrever,
batendo no teclado com um dedo. De tempos em tempos, voltava a mexer no
cilindro do revólver.
Numa cama, junto à parede, estava um jovem operário. Dois guardas
vermelhos achavam-se perto dele, mas ninguém mais fazia caso. Tinha um
ferimento no peito, do qual jorrava grande quantidade de sangue. Os olhos
fechados e o rosto cercado de uma barba de adolescente, já apresentava a
palidez da morte. Respirava com dificuldade, lentamente, repetindo com voz
débil, apenas perceptível: "Mir búdiet! Mir búdiet!" (A paz chegará! A paz
chegará!)
Dibenko ergueu os olhos ao chegarmos.
— Ah! — disse, dirigindo-se a Baklanov. — Camarada, vá ao gabinete
do comandante para assumir o comando. Espere, que lhe dou uma ordem de
serviço.
Sentou-se à máquina e começou a bater, procurando as letras.
Fui ao Palácio de Catarina, acompanhando o novo comandante de
Tsárskoie -Tseló. Baklanov estava excitado e compenetrado de sua
importância. Na elegante sala branca, que eu já conhecia, diversos soldados
vermelhos examinavam o local, revistando tudo com curiosidade. Meu velho
amigo, o coronel, de pé ante a janela, mordia o bigode. Acolheu-me como a
um irmão que se torna a encontrar. O francês da Bessarábia continuava
sentado à mesa, ao lado da porta. Os bolcheviques haviam-lhe ordenado que
ficasse e continuasse o trabalho.
— Que vou fazer? — murmurava. — Os homens como eu não se podem
bater nem de um lado nem de outro, numa guerra como esta, apesar da
repugnância que me inspira a ditadura das massas... Só sinto estar tão longe
de minha mãe e da Bessarábia.
O coronel teve de entregar oficialmente o comando a Baklanov.
— Eis aqui — disse nervosamente — as chaves do expediente.
Um guarda vermelho o interrompeu:
— Onde está o dinheiro? — perguntou brutalmente. O coronel pareceu
surpreendido.
— O dinheiro? Que dinheiro? Ah, se se refere ao cofre, ei-lo tal como o
achei ao assumir o comando, faz três dias. As chaves? — O coronel deu de
ombros. — Não tenho as chaves.
O guarda vermelho pôs-se a rir, maliciosamente.
— Isso é muito cômodo — disse.
— Vamos abrir — disse Baklanov. — Vão buscar um machado. O
camarada norte-americano fará saltar a tampa e anotará o que encontrar.
Brandi o machado. O cofre estava vazio.
— É preciso prendê-lo — gritou o guarda vermelho com ódio. — É um
partidário de Kerenski.
Mas Baklanov não era da mesma opinião.
— Não, não — disse. — Foi o kornilovista que estava aqui antes dele.
Este não é o culpado.
— É, sim! — exclamou o outro. — Eu lhe digo que é um partidário de
Kerenski. Se você não o quer prender, nós o faremos e o levaremos a Pedro e
Paulo. É o lugar dele.
Os demais soldados vermelhos assentiram e o coronel, que lançava
olhares tristes para nós, foi levado.
Em frente ao Palácio do Soviete, um caminhão fazia os últimos
preparativos a fim de seguir para a frente. Guardas vermelhos, diversos
marinheiros, um ou dois soldados, comandados por um operário espadaúdo e
forte, subiram. Saíam do quartel-general guardas vermelhos com braçadas de
pequenas granadas de grubita — explosivo dez vezes mais violento e cinco
vezes mais sensível que a dinamite, segundo diziam —, que colocavam no
caminhão. Amarraram à parte posterior do veículo, com cordas e arames, um
canhão carregado de três polegadas. Partimos a toda velocidade. O pesado
carro balançava de um lado para o outro. O canhão dançava sobre as rodas e
as granadas rodavam por baixo de nossos pés, chocando-se ruidosamente de
encontro às paredes do caminhão.
Um gigantesco guarda vermelho, chamado Vladímir Nikoláievitch,
atormentava-me com perguntas sobre os EUA. Por que tinham os Estados
Unidos entrado na guerra? Estavam os operários norte-americanos dispostos
a derrubar os capitalistas? Que sabíamos sobre o processo Mooney? E cem
outras perguntas sumamente embaraçosas, gritadas para dominar o estrondo
do caminhão. Agarrávamo-nos uns aos outros para nos equilibrarmos dentro
do carro, entre as granadas.
Às vezes, uma patrulha tentava deter-nos. Os soldados corriam para o
meio da estrada e gritavam: "Stói!" (Alto!), brandindo os fuzis, mas não lhes
dávamos importância.
— Vão para o diabo! — respondiam os guardas vermelhos. Não
podemos perder tempo! Não estão vendo que somos guardas vermelhos?
E seguíamos, altivamente, em nossa corrida, enquanto Vladimir
Nikoláievitch insistia com suas perguntas a propósito da internacionalização
do Canal do Panamá, etc...
As uns dez quilômetros de Tsárskoie-Tseló passamos por um
destacamento de marinheiros que vinha de volta. Paramos.
Onde é a frente de combate, companheiros? O marinheiro que
comandava a tropa cocou a cabeça:
Esta manhã estava a quinhentos metros daqui. Agora esse bicho não está
em parte alguma. Já andamos tanto e não conseguimos encontrá-la.
Subiram ao caminhão e continuamos. Mais dois quilômetros de
caminhão e Vladímir Nikolá ievitch, escutando atentamente, mandou o
motorista parar.
— Ouviram os tiros? — perguntou.
Silêncio profundo durante alguns minutos. Pouco depois, à esquerda,
ressoaram de repente outros três estampidos. Espesso bosque margeava a
estrada de ambos os lados. Tornamos a empreender a marcha, lentamente,
falando em voz baixa. À altura do lugar em que dispararam, descemos e
penetramos, cautelosamente, no bosque.
Enquanto isso, os camaradas desatavam o canhão e o assentavam em
posição. Apontaram-no, o mais próximo possível, por trás de nós.
Reinava silêncio no bosque. Haviam caído as folhas e os troncos tinham
uma cor pálida sob o sol fraco e oblíquo de outono. Nada se movia. Sob
nossos pés, rangia o gelo dos pequenos charcos. Seria uma emboscada?
Andamos sem encontrar coisa alguma até onde as árvores rareavam.
Paramos. A pequena distância, numa clareira, estavam três soldados,
despreocupados, sentados ao pé do fogo.
Vladímir Nikoláievitch dirigiu-se para eles:
— Bom dia, camaradas! — gritou com a segurança que dão um canhão,
vinte fuzis e uma carpa de grubita, prontos a entrar em ação.
Os soldados deram um pulo, assustados.
— Por que dispararam três tiros, há pouco? Tranqüilizado, um deles
respondeu:
— Oh, fomos nós, camaradas! Atiramos em dois coelhos...
O caminhão retomou o caminho para Romanovo. Na primeira
encruzilhada, fomos abordados por dois soldados, que nos fizeram parar.
— Camaradas, os salvo-condutos. Os guardas vermelhos protestaram.
— Somos guardas vermelhos! Não precisamos de salvo-condutos!
Vamos embora! Não amolem!
— Isto não está direito, camaradas! Devemos respeitar a disciplina
revolucionária. Suponham que os contra-revoluciona-rios cheguem e digam:
"Não precisamos de salvo-condutos!" Os camaradas não os conhecem.
Começou a discussão. Um por um, soldados e marinheiros apresentaram
os papéis. Todos eram iguais, salvo o meu, tirado do Estado-Maior
Revolucionário do Smólni. As sentinelas instaram para que eu descesse. Os
guardas vermelhos protestaram com energia, mas os marinheiros não
quiseram saber de nada.
— Sabemos perfeitamente que este camarada é um verdadeiro
revolucionário. Mas há ordens do comitê que devem ser obedecidas. É a
disciplina revolucionária.
A fim de não criar dificuldades, desci. O caminhão partiu. Todos me
faziam acenos de despedida. Os soldados conduziram-me, então, para junto
de uma parede. De repente compreendi que ia ser fuzilado! Tudo era deserto.
O único sinal de vida era a fumaça que saía de uma casinha de madeira. Os
soldados tomaram distância. Fui atrás deles, procurando justificar-me.
— Mas, camaradas, vejam aqui o selo do Comitê Militar
Revolucionário!
Ambos olharam atentos para o meu salvo-conduto.
— Mas este não é igual aos outros! — disse um deles com teimosia.
— Não sabemos ler, camarada! Tomei-os pelo braço.
— Vamos até aquela casa! Deve haver alguém que nos possa auxiliar.
Ficaram indecisos.
— Não! — disse um. O outro me examinou.
— Por que não? — murmurou. — Afinal, matar um homem inocente é
crime.
Dirigimo-nos para a casinha e batemos à porta. Atendeu-nos uma mulher
gorda, que retrocedeu, assustada:
— Não sei de nada... Não vi ninguém... — balbuciou. Uma das
sentinelas estendeu o salvo-conduto. Ela soltou um grito.
— Queremos somente que nos leia este papel, camarada. Tomando o
papel, nervosa, leu rapidamente: "O portador deste salvo-conduto é John
Reed, representante da social-demo-cracia norte-americana, um
internacionalista... " Os soldados não se conformaram.
— Tem que vir conosco ao Comitê do Regimento — decidiram.
No crepúsculo, cada vez mais denso, pusemo-nos a caminhar pela
estrada úmida. De tempos em tempos, encontrávamos grupos de soldados.
Estes paravam, rodeando-me, ameaçando-me com os olhos, passando de
mão em mão meu salvo-conduto. Comentavam meu fuzilamento.
Era já noite quando chegamos ao quartel de fuzileiros em Tsárskoie -
Tseló. As sentinelas começaram a fazer ávidas perguntas. Um espião? Um
provocador? Subimos uma escada em caracol e desembocamos numa vasta
sala sem ornamentação. Uma estufa enorme ocupava o centro. Estendidos no
chão, havia vários soldados. Uns jogavam cartas, outros conversavam,
discutiam, cantavam ou dormiam. No teto, via -se um grande rombo feito
pelos canhões de Kerenski.
Parei à porta. Imediatamente fez-se grande silêncio nos grupos. Todos se
voltaram para mim. Pouco a pouco, começaram a levantar-se, olhando-me
com ódio.
— Camaradas! Camaradas! — gritou um dos meus guardas. — Comitê!
Comitê!
Os homens agruparam-se à minha volta, gesticulando. Um moço de
braçadeira vermelha abriu passagem:
— Que é que há? — perguntou com rudeza. As sentinelas contaram o
caso.
— Onde está o salvo-conduto?
Depois de lê -lo cuidadosamente e examinar-me, sorriu e devolveu-me o
papel.
— Camaradas, é um nosso companheiro norte-americano. Sou presidente
do comitê e desejo-lhe boas-vindas ao nosso regimento.
Um suspiro geral de desafogo e todos correram para cumprimentar-me.
— Ainda não jantou? Nós já jantamos. Vou levá-lo aos oficiais. Alguns
conhecem seu idioma.
Conduziram-me por um pátio até a porta de outro edifício. Precisamente
naquele momento entrava um jovem de feições aristocráticas, com as divisas
de tenente. O presidente apresentou-me a ele e, depois de um cumprimento,
afastou-se. — Chamo-me Stiepan Gueórguievitch Morovski, ao seu dispor
— disse o tenente num excelente francês.
Uma suntuosa escada, iluminada, partindo do vestíbulo ricamente
decorado, conduzia ao segundo andar, onde se encontravam as salas de
bilhar, de jogo e uma biblioteca. Entramos no refeitório. No centro, sentados
a uma comprida mesa, estavam cerca de vinte oficiais vestidos em grande
gala, com as espadas e punhos de ouro e prata, as cruzes e fitas das ordens
imperiais.
Todos se ergueram amavelmente à minha chegada, oferecendo-me lugar
ao lado do coronel, homem de estatura e aspecto imponentes, com barba
grisalha. Os ordenanças serviam o jantar. O ambiente era igual ao dos
refeitórios dos oficiais da Europa. Onde estava, pois, a revolução?
— Os senhores, com certeza, não são bolcheviques, não? — perguntei ao
Tenente Morovski.
Vi sorrisos em todos os rostos, mas surpreendi olhares fortuitos para o
lado dos ordenanças.
— Não — respondeu ele. — Há só um oficial bolchevique no regimento,
e não está aqui. Viajou para Petrogrado. O coronel é menchevique. O
Capitão Kherlov, aquele que ali está, é cadete. Eu sou socialista
revolucionário da direita. Em sua maior parte, os oficiais do Exército não são
bolcheviques, mas sim, como eu, democratas, mas opinam que se deve
seguir a massa dos soldados.
Depois da ceia vieram uns mapas, que o coronel estendeu sobre a mesa.
Todos se agruparam ao redor.
— Aqui — disse o coronel, mostrando com o lápis — estavam nossas
posições, hoje de manhã. Vladímir Kirílovitch, onde está a sua companhia?
O Capitão Kherlov pôs o dedo no mapa:
— De acordo com as ordens recebidas, ocupamos as margens da estrada,
entrincheirando-nos. Karsavin rendeu-se às cinco horas. — Nesse momento,
a porta abriu-se e entrou o presidente do Comitê do Regimento,
acompanhado de um soldado.
Juntaram-se ao grupo que rodeava o coronel.
— Está certo — disse o coronel. — Os cossacos retrocederam dez
quilômetros em nosso setor. Não julgo necessário ocupar posições
avançadas. Conservem esta noite a linha atual, reforçando as posições.
— Com licença... — interrompeu o presidente do comitê. — As ordens
que temos são para avançar com a maior rapidez possível, e prepararmo-nos
para travar combate com os cossacos ao norte de Gatchina, amanhã cedo. É
necessária uma vitória esmagadora. Queira tomar as devidas providências.
Fez-se curto silêncio. O coronel voltou a examinar o mapa.
— Perfeitamente, Stiepan Gueórguievitch, se assim achar melhor... —
disse, mudando o tom da voz.
Traçando rapidamente novas linhas com lápis azul, deu suas ordens, que
um sargento taquigrafava. Este saiu, voltando minutos depois com cópias
das ordens, escritas a máquina. O presidente do comitê tomou então uma das
cópias e começou a examiná-la.
— Muito bem — disse, erguendo-se.
Pegou a cópia e guardou-a no bolso. Assinou a outra, carimbando-a com
um sinete redondo que tinha consigo, e entregou-a ao coronel.
Era mesmo a revolução!
Voltei ao Palácio do Soviete no carro do estado-maior do regimento.
Sempre a mesma multidão de operários, soldados e marinheiros, que
entrava e saía, sempre a mesma aglomeração de caminhões, de automóveis
blindados, de canhões, na entrada; e, por toda parte, a alegria transbordante
da vitória há tanto tempo esperada. Meia dúzia de guardas vermelhos,
rodeando um monge, abria passagem. Era o Padre Ivan, que, segundo se
dizia, abençoara os cossacos quando entraram na cidade. Depois, soube que
o fuzilaram.
Dibenko saiu dando ordens, levando na mão o enorme revólver. Junto ao
passeio, esperava-o um automóvel com o motor funcionando. Instalou-se
sozinho no assento posterior. Ia para Gatchina, bater-se contra Kerenski.
Chegou ao cair da tarde. O que Dibenko disse aos cossacos ninguém o
soube, mas o fato é que o General Krasnov e o Estado-Maior, com alguns
milhares de cossacos, renderam-se, aconselhando Kerenski a fazer o mesmo.
Com respeito a Kerenski, vou reproduzir o depoimento do General
Krasnov, na manhã de 14 de novembro:
"Gatchina, 14 de novembro de 1917.
"Hoje, pelas três horas da madrugada, chamou-me o Co-mandante-Geral
Kerenski. Estava agitadíssimo e nervoso.
" 'General', disse-me, 'o senhor me atraiçoou! Seus cossacos falam em
prender-me e entregar-me aos marinheiros.'
" 'Sim', respondi-lhe, 'é isso o que se diz. E eu sei que o senhor não conta
com simpatias em parte alguma.'
" 'Mas isso mesmo me dizem os oficiais.'
" 'Realmente, os oficiais mostram-se particularmente descontentes com o
senhor.'
" 'Que devo fazer? Só me resta suicidar-me..
" 'Se é um homem honrado, deve ir imediatamente a Pe-trogrado com
uma bandeira branca e apresentar-se ao Comitê Militar Revolucionário, a
fim de parlamentar com ele, na sua qualidade de chefe do governo.'
" 'Está bem. Assim farei, general.'
" 'Dar-lhe-ei uma escolta, e farei com que o acompanhe um marinheiro.'
" 'Não, não, nada de marinheiros. Sabe que Dibenko está aqui?'
" 'Não sei quem é Dibenko.'
" 'É meu inimigo.'
" 'Isso não tem importância. Uma vez que o senhor jogou uma grande
cartada, deve saber afrontar as responsabilidades.'
" 'Naturalmente. Sairei esta mesma noite.'
" 'Por quê? Dará a impressão de que foge. Vá tranqüilamente, à vista de
todos, para que vejam que não se trata de uma fuga.'
" 'Está bem. Mas preciso que o senhor me dê uma escolta segura.'
" 'Certo.'
"Saí. Chamei o cossaco Russakov, do 10.° Regimento do Don, e ordeneilhe
que escolhesse dez companheiros para escoltar o comandante-geral.
Meia hora depois, vieram anunciar-me que não acharam Kerenski e que este
havia fugido. Dei o sinal de alarma e mandei que o procurassem, supondo
que não teria podido fugir de Gatchina e que deveria estar escondido em
algum lugar. Mas foi impossível encontrá-lo."
Eis como fugiu Kerenski, sozinho, disfarçado de marinheiro, perdendo o
resto da popularidade que ainda poderia ter entre as massas russas...
Voltei a Petrogrado ao lado do motorista de um caminhão, conduzido por
um operário e carregado de guardas vermelhos. Como não tínhamos
petróleo, as lanternas estavam apagadas. O exército proletário que ia
repousar e as reservas que vinham revezá-lo obstruíram a estrada. Dentro da
escuridão da noite, surgiram enormes caminhões, colunas de artilharia,
carros sem luz, como o nosso. Não obstante, corríamos a uma velocidade
endiabrada, arrojando-nos à direita e à esquerda, escapando aos encontros,
que pareciam inevitáveis, derrapando, seguidos por inúmeros pedestres.
No horizonte, resplandeciam as luzes da capital, incomparavelmente
mais bela do que de dia, semelhante a uma jazida de pedras preciosas
cortando a planície desnuda.
O velho operário tinha uma das mãos no volante e com a outra indicavame
alegremente a capital, que refulgia ao longe.
— Você é minha! — gritou com o semblante iluminado. — Agora você
é minha, Petrogrado!

Capítulo X

MOSCOU (Moscovo)

O Comitê Militar Revolucionário continuava de vitória em vitória, com
uma força de vontade sobre-humana!
"14 de novembro.
"A TODOS OS COMITÊS DO EXÉRCITO, DE CORPOS, DE DIVISÕES E DE
REGIMENTOS; A TODOS OS SOVIETES DE DEPUTADOS
OPERÁRIOS, SOLDADOS E CAMPONESES; A TODOS EM GERAL.
"Em conseqüência de um acordo entre os cossacos, os junkers, os
soldados, os marinheiros e os operários, ficou resolvido entregar Aleksandr
Fiódorovitch Kerenski à justiça do povo. Prendam Kerenski e exijam, em
nome das organizações acima citadas, que ele seja trazido imediatamente a
Petrogrado, para ser julgado pelo tribunal todo-poderoso. "Assinado: Os
cossacos da l.a Divisão de Cavalaria do Ussuri; o Comitê dos Junkers do
Destacamento de Franco-Atiradores do distrito de Petrogrado; o delegado do
5.° Exército. "O Comissário do Povo: Dibenko."
O Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução, a Duma, o Comitê
Central do Partido Socialista Revolucionário, que disputavam
orgulhosamente Kerenski como um dos seus, protestaram violentamente,
declarando que só a Assembléia Constituinte poderia julgá-lo.
Na noite de 16 de novembro, vi desfilarem pela Avenida Zagorodni dois
mil guardas vermelhos, precedidos por uma banda militar tocando a
Marselhesa. Como esse hino combinava com os estandartes vermelhosangue,
que flutuavam sobre as cabeças sombrias dos trabalhadores, para
saudar o regresso dos irmãos que voltavam, depois de defender a Capital
Vermelha! Homens e mulheres, com as compridas baionetas oscilando na
extremidade dos fuzis, caminhando pelas ruas lamacentas, escorregadias,
mal-iluminadas, sob o frio da noite, no meio de uma multidão de burgueses,
aparentando indiferença e desprezo, mas no fundo nada tranqüilos.
Todo mundo estava contra essa massa revolucionária: negociantes,
especuladores, proprietários de terras, oficiais, políticos profissionais,
professores, estudantes, profissionais liberais, comerciantes, empregados. Os
outros partidos socialistas detestavam os bolcheviques com um ódio
implacável. Os sovietes contavam com o apoio dos humildes operários,
marinheiros, soldados não desanimados pela guerra, camponeses sem terra e
de um reduzido número de intelectuais.
Nas mais distantes localidades da imensa Rússia, sobre a qual se
espraiava a onda desencadeada pelos combates de rua, a notícia da derrota de
Kerenski repercutiu como um eco formidável da vitória proletária: em
Kazan, em Sarátov, em Novgórod, em Vinnitsa — onde o sangue havia
corrido como rio pelas ruas —, em Moscou, onde os bolcheviques tinham
dirigido o fogo da sua artilharia contra a última fortaleza da burguesia, o
Kremlin.
— Bombardearam o Kremlin! — A notícia corria célere, de boca em
boca, pelas ruas de Petrogrado, provocando uma espécie de pavor. Os
viajantes que chegavam de Moscou, a "mãezinha" Moscou, a branca, de
cúpulas douradas, narravam coisas horripilantes: os mortos contavam-se por
milhares; a Tviérskaia e a Kúsnetski estavam sendo devoradas pelas chamas;
a Catedral de São Basílio, o Bem-Aventurado, transformara-se num montão
de destroços fumegantes; a Catedral da Assunção estava sendo derrubada; a
Porta do Salvador, do Kremlin, fora arrombada e a Duma Municipal
arrasada. Nenhum dos atos que os bolcheviques haviam praticado até então
se aproximava desse sacrilégio espantoso, cometido no próprio coração da
Santa Rússia. Aos fiéis, parecia -lhes ouvirem o estrondo do canhão, que
cuspia metralha no rosto da Santa Igreja Ortodoxa, reduzindo a pó o
santuário da nação russa...
No dia 15 de novembro, na sessão do Conselho dos Comissários do
Povo, Lunatcharski, comissário da Instrução Pública, começou bruscamente
a chorar, e saiu da sala correndo e gritando:
— Não posso mais! Não posso assistir a esta espantosa destruição de
tantos monumentos tão belos e tradicionais...
No mesmo dia, os jornais publicavam sua carta, pedindo demissão:
"Acabo de saber, por testemunhas oculares, tudo o que se passou em
Moscou.
"Estão destruindo a Catedral de São Basílio, o Bem-Aventurado, e a
Catedral da Assunção. Bombardearam o Kremlin, onde estão reunidos os
mais preciosos tesouros artísticos de Petrogrado e de Moscou. Há milhares
de vítimas. A luta atinge o auge da selvageria.
"Até onde as coisas poderão ir? Que pode ainda acontecer?
"Não posso suportar tudo isto. Os últimos acontecimentos encheram-me
de angústia. Sinto-me impotente para pôr termo a tantos horrores. Não posso
mais trabalhar. Estou sob o domínio de idéias que me tornam louco.
"Por esse motivo, retiro-me do Conselho dos Comissários do Povo.
Reconheço a gravidade da minha resolução, mas não posso agüentar mais..."
No mesmo dia, os guardas brancos e os junkers do Kremlin renderam-se
e tiveram permissão para retirar-se livremente. Foi assinado o seguinte
tratado:
"1. O Comitê de Segurança Pública, de hoje. em diante, deixa de existir.
"2. A Guarda Branca entrega as suas armas e fica dissolvida. Os oficiais
conservam suas espadas. As escolas ficarão apenas com as armas
indispensáveis à instrução militar. Todas as demais armas em poder dos
junkers serão entregues. O Comitê Militar Revoluc ionário garante-lhes a
liberdade e a inviolabilidade das pessoas.
"3. O desarmamento previsto pelo Parágrafo 2° será executado por uma
comissão composta de delegados do Comitê Militar Revolucionário, de
oficiais e de representantes das organizações que participaram das
negociações de paz.
"4. A partir do momento em que este tratado de paz for assinado, as duas
partes devem imediatamente ordenar a suspensão de todas as hostilidades e
adotar as providências necessárias para a execução rigorosa do que ficou
estabelecido.
"5. Depois da assinatura do tratado, todos os presos devem ser postos
imediatamente em liberdade."
Havia dois dias que os bolcheviques estavam senhores da cidade. Os
cidadãos saíam dos porões, espantados, arrastando-se Para apanhar os
mortos. As barricadas foram demolidas. Não obstante isso, os boatos e as
invencionices fantásticas sobre a destruição de Moscou eram cada vez mais
numerosos... Ouvi tantas narrativas pavorosas, que resolvi ir ver
pessoalmente o que estava se passando em Moscou.
Petrogrado, apesar de tudo, apesar de ter servido durante um século de
sede do governo, ainda hoje continua sendo uma cidade artificial. Moscou é
a verdadeira Rússia, a Rússia do passado e a Rússia do futuro. Em Moscou,
onde a vida é mais intensa, poderíamos saber quais os verdadeiros
sentimentos do povo perante a revolução.
Na semana anterior, o Comitê Revolucionário de Petrogrado, com o
simples apoio dos ferroviários, conseguira apoderar-se da linha Nicolau, e
fizera seguir para o sudoeste um trem abarrotado de marinheiros e guardas
vermelhos. Recebemos do Smólni os salvo-condutos, sem os quais ninguém
podia sair da capital. Quando o trem entrou na estação, uma chusma de
soldados miseravelmente vestidos, com enormes sacos de víveres, tomou de
assalto as portinholas e janelas, quebrando os vidros, invadindo os
corredores e compartimentos, subindo em cima dos vagões.
Eu e mais dois companheiros conseguimos entrar numa cabina. Mas uns
vinte soldados a invadiram quase ao mesmo tempo. Só havia quatro lugares.
Discutimos, protestamos. O condutor procurava defender-nos, mas os
soldados zombavam de suas observações. Era só o que faltava! Eles não iam
se incomodar por causa de burgueses. Mas, quando mostramos nossos salvocondutos
do Smólni, logo mudaram de atitude.
— Venham, camaradas! — gritou um deles. — São camaradas norteamericanos.
Percorreram trinta mil quilômetros para ver a revolução e,
naturalmente, devem estar cansados.
Os soldados apressaram-se a desculpar-se em tom cortês e amistoso,
abandonando nossa cabina. Pouco depois, ouvimos o barulho que faziam
invadindo outra cabina ocupada por dois corpulentos russos, confortável e
elegantemente vestidos, que haviam untado as mãos do condutor e fechado
as portas por dentro para viajarem sozinhos.
Saímos da estação às sete horas da noite. Nosso trem, com um número
interminável de vagões, ia arrastado por uma pequena locomotiva, que
empregava lenha como combustível. Constantemente parava. Os soldados,
que viajavam no teto dos carros, batiam com os saltos dos sapatos e
cantavam tristes canções camponesas. No corredor, completamente
intransitável, durante toda a noite se discutiu encarniçadamente sobre
política. De vez em quando, por costume, o condutor passava para pedir os
bilhetes. Mas, afora nós, ninguém tinha passagens. Ao fim de uma hora de
esforços inúteis, levantava os braços para o céu e batia em retirada. O ar
estava irrespirável, carregado de fumaça e de odores bem desagradáveis... Se
os vidros das janelas e das portas não estivessem quebrados, com toda a
certeza, no fim da viagem, chegaríamos mortos por asfixia...
Ao amanhecer, só se via, estendendo-se até o horizonte, a estepe coberta
de neve. O frio era terrível. Mais ou menos ao meio-dia, apareceu uma
camponesa com uma cesta cheia de pedaços de pão e um grande bule de
café, que ela dizia bem quente, mas que, na verdade, estava gelado. E depois,
até a noite, nada além do nosso trem, atulhado, desarticulado, parando
constantemente, e a visão de várias estações, onde uma multidão faminta se
atirava a um restaurante com sortimento bem pobre, limpando-o num
momento.
Numa dessas paradas, encontrei Nóguin e Rikov, os comissários
dissidentes, que voltavam a Moscou a fim de explicar aos seus próprios
sovietes o motivo da renúncia. Pouco mais adiante, apareceu Bukhárin,
pequeno, com a sua barba avermelhada e os olhos de fanático, que, segundo
se dizia, estava "mais à esquerda do que o próprio Lênin".
Na estação de Moscou, não havia quase ninguém. Dirigimo-nos à
agência da estação para garantir com o comissário nossas passagens de volta.
Encontramos um homem jovem, com o posto de tenente. Quando viu nossos
salvo-condutos do Smólni, ficou furioso, dizendo que não era bolchevique,
mas representante do Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução.
Fato característico: no me io da desordem geral, os vencedores haviam se
esquecido da estação principal...
Defronte, não havia nenhum automóvel ou qualquer veículo de que nos
pudéssemos servir. Mais longe um pouco, despertamos um izvoztchik de
aspecto divertido, que dormia sentado, hirto, na boléia do seu pequeno trenó.
— Quanto você cobra para nos levar daqui ao centro da cidade?
O izvoztchik cocou a cabeça:
— Os barini não vão encontrar lugar em nenhum hotel — respondeu. —
Mas, se me derem cem rublos, poderei levá-los.
Antes da revolução, pagava-se dois rublos por uma corrida. Protestamos.
Ele limitou-se, porém, a encolher os ombros.
— Atualmente, os senhores não encontrarão muita gente com coragem
de dirigir um trenó. É preciso ter coragem.
Por mais que regateássemos, não deixou a viagem por menos de
cinqüenta rublos. Enquanto deslizávamos sobre a neve pelas ruas silenciosas
e iluminadas, contou-nos suas aventuras durante os seis dias de combate.
— Eu estava conduzindo ou esperando freguês numa esquina. De
repente: pum!, um obus; pum! outro obus; ratrat! a metralhadora... Parti a
galope e aqueles diabos começaram a disparar em todas as direções. Por fim,
chego a uma viela tranqüila e começo a cochilar... Pum! um obus; ratrat! E
tudo começava de novo... Ah! Aqueles diabos, aqueles dia bos! Brrrr!
No centro, as ruas, com seu tapete de neve, repousavam numa quietude
de convalescença. Os focos elétricos brilhavam aqui e acolá. Poucos
transeuntes, passando apressados pelas calçadas. Um vento gelado, que
atravessava os ossos, varria as ruas cobertas de neve. Entramos no primeiro
hotel que encontramos. O escritório da agência estava iluminado por duas
velas.
— Temos alguns quartos bem confortáveis. Mas os vidros das janelas
foram quebrados pelas balas. Se os senhores não têm medo de ar fresco...
Ao longo da Tviérskaia, as vitrinas das casas comerciais estavam
destroçadas. No interior das lojas, as balas dos obuzes, perfurando os
telhados, haviam produzido grandes estragos. Andamos de hotel em hotel.
Todos estavam repletos, ou, então, os proprie tários, sob a impressão dos
recentes acontecimentos, mostravam-se de tal modo apavorados que nos
respondiam nervosamente: — Não, não, não temos quartos vazios, não
temos quartos vazios! — Nas ruas principais, onde ficavam os grandes
bancos e as maiores casas comerciais, a artilharia bolchevique havia
disparado a torto e a direito. — Quando não sabíamos onde estavam os
guardas brancos e os junkers — disse-me mais tarde um funcionário
bolchevique —, bombardeávamos seus talões de cheque...
Por fim, fomos aceitos no Grande Hotel Nacional, porque éramos
estrangeiros. O Comitê Militar Revolucionário havia prometido respeitar as
casas de estrangeiros. O gerente do hotel mostrou-nos, nos andares de cima,
várias janelas arrebentadas pelas granadas.
— Brutos! — gritou, com o punho fechado em atitude ameaçadora,
como se estivesse vendo os bolcheviques na sua frente. — Mas que esperem
um pouco e verão! Vão ver o que é bom! Dentro de poucos dias, esse
ridículo governo virá abaixo. E então ajustaremos as contas!
Depois de comermos num restaurante vegetariano, que ostentava na
porta uma placa com os seguintes dizeres: "Não como ninguém", e que tinha
na parede um retrato de Tolstói, saímos para percorrer a cidade.
O Quartel-General do Soviete de Moscou estava instalado no antigo
Palácio do Governador, imponente edifício todo branco situado na Praça
Skobeliev. Alguns soldados vermelhos montavam guarda. Subimos pela
enorme escadaria, parando para ler, em diversos lugares, os anúncios de
comícios e os manifestos dos partidos políticos, que cobriam as paredes.
Atravessamos uma série de salas de teto alto, decoradas com painéis de
molduras douradas. Chegamos, afinal, ao enorme salão de recepções, com
esplêndidos lustres de cristal e cornijas douradas. Chegou-nos aos ouvidos
um barulho de vozes, acompanhado pelo ruído característico de muitas
máquinas de costura. As mesas e o chão estavam cobertos por enormes peças
de pano vermelho e preto. Cerca de cinqüenta mulheres costuravam
bandeiras e estandartes para os funerais dos mortos da revolução. Nas
fisionomias carregadas daquelas mulheres, estampava-se a dor. Trabalhavam
caladas. Muitas estavam com os olhos vermelhos de tanto chorar. O Exército
Vermelho tivera perdas consideráveis.
Rogov, homem de expressão inteligente, barbudo e de óculos, vestindo a
blusa negra dos operários, estava sentado à mesa, num canto da sala.
Convidou-nos a tomar parte no cortejo fúnebre, ao lado do Comitê Central
Executivo, na manhã seguinte.
— Os socialistas revolucionários e os mencheviques não são capazes de
aprender coisa alguma desta vida! É de desesperar! — exclamou. — A tática
do "compromisso" já se tornou para eles uma segunda natureza. Vejam
vocês: acabam de propor que realizemos os funerais em comum com os
junkers!
Atravessou a sala um homem cuja fisionomia não me era estranha. Logo
o reconheci: era Melnitchanski, que vestia um capote rasgado e usava uma
chapka.
Conhecera-o quando era o relojoeiro George Melcher, em Bayonne
(Nova Jersey), por ocasião da greve da Standard Oil. Disse-me que era o
secretário do Sindicato Metalúrgico de Moscou. Durante os combates, fora
um dos comissários do Comitê Militar Revolucionário.
— Vê como estou? — exclamou, mostrando seu lamentável aspecto. —
Achava-me no Kremlin, quando os junkers me fizeram prisioneiro pela
primeira vez. Atiraram-me num subterrâneo; despojaram-me do capote, de
todo o dinheiro que possuía, do relógio e até de um anel que usava neste
dedo. Deixaram-me como estou.
Contou-me uma série de pormenores sobre a sangrenta batalha de seis
dias que havia dividido Moscou em dois campos. Ali, ao contrário do que se
tinha passado em Petrogrado, a Duma Municipal assumira a direção dos
junkers e dos guardas brancos.
Rudnev, o prefeito, e o alcaide menor, presidente da Duma Munic ipal,
tomaram a direção do Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução e
das operações militares. Riabtsev, o comandante militar da cidade, homem
de formação democrática, vacilou a princípio e por pouco não se submeteu
ao Comitê Militar Revolucionário. Mas acabou cedendo no sentido da
tomada do Kremlin pelas tropas contra-revolucionárias.
— Se ocuparem o Kremlin, os bolcheviques não terão coragem de
disparar contra vocês! — dissera aos guardas brancos e aos junkers.
Um regimento da guarnição, completamente desmoralizado por haver
ficado muito tempo inativo, sob a influência dos partidos contrarevolucionários,
realizou um comício para resolver que atitude devia tomar.
Resolveu ficar neutro. Os soldados não queriam mais combater. Tinham
criado amor ao seu novo trabalho: eram, ultimamente, vendedores
ambulantes de balas de goma e de sementes de girassol...
— O mais terrível — continuou Melnitchanski — é que fomos obrigados
a organizar tudo, em plena luta. Nossos adversários sabiam exatamente o que
queriam. Tinham objetivos bem fixados. Do nosso lado, os soldados tinham
o seu soviete, e os operários, o seu... Só depois de uma luta terrível é que foi
possível resolver a quem caberia o comando. Certos regimentos discutiram
durante dias inteiros. Só depois de terminadas essas longas discussões é que
se resolveram a entrar em ação. Quando, repentinamente, os oficiais nos
abandonaram, ficamos sem estado-maior para dirigir as operações.
Contou-me também algumas passagens interessantes dos últimos
acontecimentos. Num dia frio e escuro, estava ele na esquina da Nikítskaia.
As descargas das metralhadoras varriam as ruas. Ao seu lado, estava reunido
um bando de crianças, essas pobres criaturas que vendem jornais. Não
pareciam impressionar-se com o tiroteio. Davam gritos agudos, como se
estivessem brincando. Quando a fuzilaria diminuiu, procuraram atravessar a
rua correndo... Muitos deles, atingidos pelos projéteis, caíram mortos. Mas
os outros continuaram correndo pela rua de um lado para outro, rindo,
brincando, numa absoluta inconsciência do perigo!
Ao cair da tarde, dirigi-me ao Clube da Nobreza, onde ia ser realizada
uma reunião dos bolcheviques, para ouvir Nóguin, Rikov e outros
comissários dissidentes.
A sessão realizava-se na sala de espetáculos. No antigo regime, naquela
sala, artistas amadores representavam as últimas novidades de Paris, ante
uma assistência formada por oficiais e formosas damas da alta sociedade,
cobertas de jóias. Os intelectuais chegaram primeiro, porque moravam perto,
em ruas centrais. Nóguin começou a falar. Seu ponto de vista foi aprovado,
sem reservas, por todos os presentes. Depois, vieram os operários. Os bairros
proletários ficavam nos extremos da cidade e os bondes não estavam
circulando. À meia -noite, mais ou menos, retumbaram nas escadas passos
pesados. Vimos entrar, aos grupos de dez ou vinte, grandes homens, altos e
barbudos, muito malvestidos. Acabavam de sair do combate. Tinham
guerreado durante uma semana, num ambiente infernal, vendo cair ao seu
lado os camaradas.
A sessão foi aberta oficialmente. Nóguin, quando quis falar, foi recebido
com uma tempestade de sarcasmos e gritos de cólera. Quis defender-se, mas
os operários não lhe davam ouvidos. Ele abandonara seu posto no Conselho
dos Comissários do Povo, em plena batalha! Resolveu-se também que a
imprensa burguesa não voltaria mais a circular em Moscou. A própria Duma
Municipal fora dissolvida. Bukhárin levantou-se furioso e falou, com uma
lógica imperturbável, desfechando golpe sobre golpe. A assembléia ouvia
atentamente suas pala vras, com olhos brilhantes. Foi aprovada, por maioria
esmagadora, uma resolução aprovando a atitude do Conselho dos
Comissários do Povo. Assim falava Moscou.
Já noite alta, percorri as ruas desertas; atravessando a Porta da Ibéria, saí
na imensa Praça Vermelha, diante do Kremlin. A Catedral de São Basílio, o
Bem-Aventurado, erguia -se, no meio da noite, com as cúpulas cheias de
torneados e de escamas, brilhando fantasticamente na escuridão. Parecia não
ter sofrido nenhum estrago. Ao longo da praça, elevava-se a massa escura
das torres e das muralhas do Kremlin. No alto das muralhas resplandecia um
débil clarão de fogos invisíveis e, através da praça, chegavam até meus
ouvidos ruídos de vozes, de picaretas e pás. Atravessei a praça.
Ao lado da muralha, erguia -se uma montanha de pedras e de terra. Subi
ao alto e vi enormes fossas de uns dez ou quinze pés de profundidade e cerca
de cinqüenta metros de largura, que centenas de operários e soldados
estavam cavando, à luz de grandes archotes.
Um jovem estudante disse-me em alemão:
— É o Túmulo Fraternal. Amanhã, enterraremos aqui os quinhentos
proletários que tombaram combatendo pela revolução*.
* Este cemitério ainda é conservado. Viça entre o túmulo de Lênin e as muralhas do
Kremlin. Na própria base das muralhas do Kremlin, foram enterrados muitos
revolucionários. As cinzas de John Reed também repousam ai. (N. do E.)
Desci à fossa. Ninguém falava. As picaretas e as pás trabalhavam
febrilmente. A montanha de terra crescia. Por cima de nossas cabeças,
miríades de estrelas brilhavam na noite. E o antigo Kremlin dos czares
levantava para os céus suas formidáveis muralhas.
— Neste lugar sagrado — disse o estudante —, o lugar mais sagrado de
toda a Rússia, vamos enterrar aquilo que para nós é mais sagrado. Aqui,
onde dormem os czares, descansará agora o nosso czar: o povo!
Tinha um braço na tipóia. Recebera uma bala no combate. Olhando para
seu braço ferido, continuou:
— Vocês, estrangeiros, desprezam-nos porque suportamos durante muito
tempo uma monarquia medieval. Mas hoje já se sabe que o czar não era o
único tirano do mundo... Hoje, já se sabe que o capitalismo europeu é
também uma tirania talvez pior que o czarismo, porque em todos os países
do mundo o capitalismo é imperador! A tática da Revolução Russa mostra
ao mundo inteiro o caminho, o verdadeiro caminho da libertação.
Quando me retirava, os trabalhadores, esgotados, e, apesar do frio,
inteiramente empapados de suor, começavam a saltar com dificuldade para
fora da fossa. Chegava outra turma, caminhando através da praça. Sem dizer
uma só palavra, ela desceu, apanhou as ferramentas deixadas pelos
companheiros e continuou o trabalho que estes haviam começado.
Durante a noite inteira, os voluntários do povo revezaram-se sem cessar.
Quando a fria luz da manhã se estendeu sobre a grande praça coberta por
alvo lençol de neve, as fossas da Tumba Fraternal já estavam terminadas.
Acordei ainda noite fechada e, em plena escuridão, dirigimo-nos para a
Praça Skobeliev. Não se via vivalma na grande cidade. Mas chegava aos
meus ouvidos um ligeiro murmúrio de agitação, ora longínquo, ora mais
perto, semelhante ao sussurro do vento, quando começa a soprar. Em frente
ao Quartel-Gene-ral do Soviete, na pálida luz da madrugada, vi um pequeno
grupo de homens e mulheres sobraçando bandeiras vermelhas com letras
douradas. Era o Comitê Central Executivo de Moscou. A claridade
aumentava. Já era dia. O débil murmúrio cresceu, tornando-se um zumbido
surdo e poderoso. A cidade acordava. Descemos pela Tviérskaia, com as
bandeiras desfraldadas ao vento. As igrejas estavam fechadas e às escuras,
inclusive a da Virgem da Ibéria, que todos os czares, antes de serem
coroados, visitavam e que estava sempre, noite e dia, cheia de gente,
constantemente iluminada pelos círios dos fiéis, fazendo brilhar o ouro, a
prata e as pedrarias dos ícones.
Ouvi dizer que, desde Napoleão, era a primeira vez que seus círios se
apagavam.
A Santa Igreja Ortodoxa também virará o rosto a Moscou, transformada
em ninho das "sacrílegas víboras" que haviam bombardeado o Kremlin.
Todas as igrejas ficaram às escuras, silenciosas e tristes. Os sacerdotes
haviam desaparecido e o funeral vermelho, assim, não era assistido por
nenhum padre. Não havia sacramento para os mortos, nem orações à beira
do túmulo dos excomungados... Tikhon, metropolita de Moscou, iria, dentro
em breve, excomungar os sovietes...
As casas comerciais também estavam fechadas. Encerravam-se as
classes ricas em suas casas, mas por outros motivos: esse dia era o dia do
povo; o ruído da sua chegada lembrava o fragor da torrente.
Pela Porta da Ibéria, já estava correndo um rio humano e a imensa Praça
Vermelha mostrava-se desde cedo coberta de milhares de pontos escuros. Na
Capela da Ibéria, todos os que passavam costumavam persignar-se. Mas a
multidão que passava parecia não a ver.
Abri caminho através da compacta assistência. Dirigi-me para a muralha
do Kremlin e subi num monte de terra, acompanhado por diversas pessoas.
Ao meu lado, entre muitos outros vi Muralov, o soldado que fora eleito
comandante de Moscou, um homenzarrão barbudo, de fisionomia serena e
aspecto simples.
Ondas de povo e milhares e milhares de seres, com o sofrimento gravado
nas fisionomias, precipitavam-se pelas ruas, invadindo a Praça Vermelha.
Chegou uma banda militar. E o som da Internacional fez com que todos,
espontaneamente, começassem a cantar. O canto ergueu-se da multidão,
como uma onda que se alteasse sobre a água, em tom solene, majestoso. Da
muralha do Kremlin, pendiam até o solo gigantescas bandeiras vermelhas
com inscrições em letras douradas e brancas: "Aos primeiros mártires da
Revolução Social Universal!" "Viva a fraternidade dos trabalhadores do
mundo inteiro!"
Um vento frio varria a praça, fazendo tremular os estandartes. Os
operários das fábricas chegavam dos bairros distantes, trazendo seus mortos.
De onde estava, via passar os cortejos, com seus pendões cor de sangue,
como manchas escuras que se movessem através da praça. Os caixões de
madeira, toscos, sem verniz, pintados de preto, vinham nos ombros daqueles
homens rudes, que tinham os rostos banhados de lágrimas. Atrás deles, as
mulheres soluçavam e gemiam. Outras caminhavam rígidas, pálidas como
mortas. Alguns caixões eram bordados a ouro e prata. Ou então, sobre eles,
havia apenas um quepe de soldado. Em muitos também se viam coroas de
flores artificiais.
O cortejo avançava lentamente para o meu lado, por entre a multidão que
se abria e novamente se fechava por trás dele. Sob a porta, começou em
seguida um interminável desfile de bandeiras de todos os matizes de
vermelho, com inscrições douradas ou prateadas e laços de crepe nas
extremidades. Passaram também algumas bandeiras anarquistas, negras, com
letreiros brancos. A banda de música tocava a marcha fúnebre
revolucionária. No meio do formidável coro da massa destacavam-se as
vozes roucas e entrecortadas de soluços dos homens que transportavam os
ataúdes com as cabeças descobertas.
Companhias de soldados, também carregando seus mortos, misturavamse
com os operários das fábricas. Em seguida, esquadrões de cavalaria, em
passo de parada; baterias de artilharia com as peças cobertas de véus negros
e vermelhos — ao que parecia, para sempre. Em suas bandeiras lia -se: "Viva
a IIª Internacional" ou "Queremos uma paz honesta, geral e democrática.”
Vagarosamente, os homens que levavam os féretros chegaram às bordas
do túmulo. Transportando suas cargas, escalaram os montões de terra e
desceram ao fundo das fossas. Havia entre eles muitas mulheres, dessas
mulheres do povo, corpulentas e robustas. Acompanhando os mortos, outras
mulheres ainda jovens, mas aniquiladas pelos sofrimentos; mulheres velhas,
com as faces enrugadas, lançando gritos agudos de animais feridos querendo
atirar-se na fossa atrás de seus filhos ou maridos, debatendo-se, quando mãos
piedosas procuravam contê-las. É assim que os pobres amam.
O cortejo fúnebre, entrando pela Porta da Ibéria e saindo da praça pela
Nikólskaia, desfilou o dia inteiro, como um rio de bandeiras vermelhas, com
palavras de esperança e fraternidade, com profecias audaciosas, varando uma
multidão de cinqüenta mil almas, debaixo dos olhares do mundo inteiro e da
posteridade.
Os caixões foram depositados, um por um, nas fossas. Chegou o
crepúsculo. As bandeiras continuavam ondulando ao vento. A banda tocava
a marcha fúnebre e a massa formidável cantava. Coroas, com estranhas
flores multicores, pendiam dos galhos das árvores desfolhadas. Duzentos
homens apanharam as pás. E, então, comecei a ouvir as surdas pancadas da
terra caindo sobre os caixões, ao som dos cânticos.
As luzes se acenderam. Chegaram as últimas bandeiras e as últimas
mulheres, soluçando e deitando para trás um derradeiro olhar de
extraordinária intensidade.
Compreendi, de repente, que o religioso povo russo não precisava de
sacerdotes para lhe abrir o caminho do céu, porque já começava a edificar na
terra um reino melhor que o paraíso prometido.
E morrer por esse reino era uma glória, a maior de todas as glórias!

7ª parte »»»