Capítulo XI

A CONQUISTA DO PODER

"DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DOS POVOS DA RÚSSIA
"Em julho deste ano, o Primeiro Congresso dos Sovietes proclamou o
direito dos povos da Rússia de disporem de si próprios.
"O Segundo Congresso dos Sovietes, em novembro, confirmou e definiu
claramente esse direito inalienável dos povos da Rússia.
"De acordo com a vontade daqueles dois congressos, o Conselho dos
Comissários do Povo resolveu estabelecer, como base de sua ação, os
seguintes princípios:
"1. Igualdade e soberania dos povos da Rússia.
"2. Direito dos povos da Rússia de disporem de si próprios, até a
separação completa e a formação de Estados independentes.
"3. Supressão de todas as restrições e privilégios de caráter nacional ou
religioso.
"4. Liberdade de desenvolvimento para todas as minorias nacionais e
grupos étnicos que vivem em território russo.
"Os decretos estabelecendo esses princípios serão promulgados depois
da organização da Comissão das Nacionalidades.
"Em nome da República Russa, o comissário das
Nacionalidades, Iossif Djugatchivili Stálin
"O presidente do Conselho dos Comissários do Povo,
V. Uliánov Lênin 15 de novembro de 1917."
A Rada central de Kíev proclamou imediatamente a independência da
República da Ucrânia. O governo finlandês apresentou ao senado de
Helsinque o decreto da independência da Finlândia. Na Sibéria, no Cáucaso,
surgiram repúblicas independentes. Na Polônia, o Comitê Supremo da
Guerra logo convocou todos os soldados poloneses que serviam no Exército
russo, suprimiu seus comitês e os submeteu a uma disciplina de ferro.
Todos esses "movimentos" e "governos", sem exceção de nenhum, todas
as "repúblicas" que surgiram resultaram da atividade antibolchevique das
classes dominantes.
Apesar desses acontecimentos desfavoráveis, apesar dessas
transformações, o Conselho dos Comissários do Povo trabalhava sem
descanso para a edificação da nova ordem socialista. Seus decretos sobre o
controle operário das fábricas e sobre os seguros sociais, sobre os comitês
agrários dos cantões, sobre a abolição dos títulos nobiliárquicos e dos graus,
sobre a supressão dos antigos trib unais e a criação de novos de caráter
popular foram promulgados, uns atrás dos outros.
O novo governo, a todo momento, recebia delegações de soldados e
marinheiros trazendo felicitações entusiásticas que lhes eram enviadas pelo
Exército e pela Marinha.
Certo dia, diante do Smólni, assisti à chegada de um regimento que, em
farrapos, voltava das trincheiras. Os soldados, esquálidos, magros, pálidos,
aglomerados em frente à porta principal do edifício, olhavam para ele como
se lá dentro estivesse o próprio Deus. Alguns apontavam, rindo, para as
águias imperiais dos portões. Nesse momento, chegaram também alguns
destacamentos da Guarda Vermelha. Todos os soldados os observaram
atentamente, como se olha para uma coisa de que já se ouviu falar, mas que
ainda não se viu. Os soldados, em seguida, dirigiram-se sorrindo para os
guardas vermelhos, batendo-lhes nas costas amigavelmente, dirigindo-lhes
palavras de admiração, ou gracejando.
Já não existia mais o Governo Provisório. A 5 de novembro, em todas as
igrejas da capital, os sacerdotes não rezaram mais por ele... Mas, como disse
Lênin, no Tsik, começava-se apenas a conquista do poder. Desarmada, sem
poder lutar militarmente, a oposição, senhora ainda da vida econômica do
país, continuou a combater, desorganizando sistematicamente a produção e,
com a genialidade própria dos russos quando agem coletivamente, criando
todo tipo de obstáculo para dificultar a marcha dos sovietes e, assim,
enfraquecê-los pelo descrédito.
A greve dos funcionários, além de ter sido bem organizada, roí apoiada,
financeiramente, pelos bancos e estabelecimentos comerciais. Os
bolcheviques não conseguiram apoderar-se do mecanismo governamental
sem primeiro vencer dificuldades de toda espécie.
Trótski apresentou-se no Ministério do Exterior. Os funcionários
declararam que não o reconheciam como ministro e fecharam as salas. Foi
necessário arrombar as portas. Diante disso, solicitaram demissão. Trótski
exigiu as chaves dos arquivos. Mas só as recebeu depois da chegada dos
serralheiros, que foi preciso chamar para forçar as fechaduras. Verificou-se,
então, que Neratov, antigo subsecretário do ministério, havia desaparecido,
levando consigo os tratados secretos.
Chliápnikov tentou tomar posse do seu cargo, no Ministério do Trabalho.
Fazia muito frio, mas não havia ninguém para acender as estufas. Entre
centenas de funcionários presentes nenhum quis dizer onde ficava o gabinete
ministerial.
Aleksandra Kolontai, nomeada a 3 de novembro para o Comissariado da
Assistência Pública, foi saudada com uma greve geral dos funcionários. Só
quarenta se conservaram nos seus postos. Os pobres dos asilos estavam
quase nus. Delegações de inválidos, caindo de fome, órfãos, com as faces
encovadas e lívidas, assaltaram o edifício. Kolontai, com os olhos rasos de
água, foi obrigada a mandar deter os grevistas para obrigá-los a entregar as
chaves das salas e dos cofres. E, quando as recebeu, verificou que o antigo
ministro, a Condessa Pánina, havia levado todo o dinheiro existente,
negando-se a entregá-lo sem uma ordem da Assembléia Constituinte.
No Ministério da Agricultura, no dos Abastecimentos e no da Fazenda,
aconteceu a mesma coisa. Os funcionários, ante a ameaça de perderem seus
lugares, e, com eles, os direitos ao montepio, ou não respondiam, ou
voltavam aos seus postos para sabotar o trabalho. Quase toda a
intelliguêntsia estava contra os bolcheviques. O governo soviético via -se a
braços com enormes tropeços, pois não encontrava ninguém para os serviços
públicos. Os bancos particulares fecharam as portas. Atendiam aos clientes,
fazendo-os entrar, disfarçadamente, pelos fundos dos edifícios. Quando os
comissários bolcheviques apareciam, os empregados dos bancos
desapareciam com os livros e o dinheiro. No Banco do Estado, declararamse
em greve. Só os encarregados do Tesouro e da Casa da Moeda
continuaram a trabalhar. Mas não atendiam às ordens do Smólni. Forneciam,
entretanto, somas enormes ao Comitê para a Salvação da Rússia e da
Revolução e à Duma Municipal.
Por duas vezes, um comissário do povo dirigiu-se ao Banco do Estado,
acompanhado de guardas vermelhos, para retirar grandes quantias destinadas
às despesas do governo. Na primeira vez, encontrou ali membros da Duma
Municipal e dirigentes dos partidos Menchevique e Socialista
Revolucionário, que encheram seus ouvidos com tantos conselhos, que
resolveu retirar-se sem cumprir a missão que recebera. Na segunda vez, o
comissário apresentou uma ordem de pagamento com todas as formalidades.
Mas como no banco verificassem que não trazia data nem selos, e como, na
Rússia, há grande respeito pelos documentos oficiais, novamente o
comissário voltou com as mãos abanando.
Os empregados do crédito público destruíram os livros, onde estavam as
provas das relações financeiras da Rússia com os demais países. Também os
comitês de abastecimento, as prefeituras municipais, os serviços de utilidade
pública, ou foram paralisados ou funcionavam mal. Como as necessidades
da população reclamassem providências urgentes, os bolcheviques
resolveram, então, auxiliar o funcionamento das repartições ou, mesmo,
assumir a direção dos serviços. Na maioria dos casos, porém, não puderam
levar avante seus propósitos, porque os empregados se declararam em greve
geral. Além disso, essa iniciativa bolchevique serviu de pretexto para que a
Duma inundasse a Rússia de telegramas anunciando a "violação da
autonomia municipal" pelos bolcheviques. Nas repartições dos ministérios
da Marinha e da Guerra os antigos funcionários resolveram continuar
trabalhando. Mas os comitês do Exército e o alto comando opunham mil
obstáculos à ação dos sovietes, chegando até a comprometer a ação das
tropas que combatiam na frente.
O Vikjel continuava em oposição ao governo, recusando-se a transportar
forças soviéticas. Era necessário ocupar os trens pela força e prender os
empregados das estradas de ferro. A ação violenta, entretanto, criava o
perigo de uma greve geral do Vikjel, para exigir a liberdade dos presos.
O Smólni nada podia fazer. Em Petrogrado, só havia víveres para três
dias, e os transportes estavam interrompidos. Nas trincheiras, os soldados
passavam fome. O Comitê de Salvação e os comitês centrais enviavam, a
todo momento, para os quatro cantos da Rússia, avisos e proclamações
aconselhando a população a não cumprir os decretos do governo
bolchevique. As embaixadas aliadas mantinham-se absolutamente
indiferentes ou manifestavam-se abertamente hostis ao novo poder.
Os jornais da oposição que eram suspensos reapareciam na manhã
seguinte sob outros nomes; tinham somente palavras de sarcasmo para o
novo regime. Até mesmo o Novata Jizn caracterizava-o como "mescla de
demagogia e de incapacidade".
"Dia a dia", dizia o jornal, "o governo dos Comissários do Povo perde a
visão do que deveria fazer pelo fato de agir de maneira superficial e
precipitada. Tendo conquistado facilmente o poder, os bolcheviques não
sabem agora como o devem usar. Impotentes para dirigirem a antiga
máquina governamental, são, ao mesmo tempo, incapazes de criar um novo
governo que funcione normalmente e que se caracterize pela liberdade
correspondente às teorias socialistas. Ainda há pouco tempo, os
bolcheviques não tinham homens suficientes para dirigir o seu partido em
crescimento; como, então, poderão encontrar homens experientes para
executarem as mais diversas e complexas funções do governo?
"Os atos e manifestos do novo governo são cada qual mais radical e mais
socialista do que o anterior. Porém, nessa exibição de socialismo no papel,
mais apropriada para causar assombro aos nossos descendentes do que para
outra coisa, não transparece o desejo ou a capacidade de resolver os
problemas imediatos!"
No meio dessa turbulência, o Vikjel realizava uma conferência para a
formação do novo governo. Essa conferência continuava a se reunir noite e
dia. Os dois partidos haviam chegado a um acordo de princípios sobre as
bases em que iriam formá-lo. Começava-se, agora, a discutir sua
composição. Já se esboçava um plano no sentido de se organizar um governo
de experiência, tendo Tchernov à frente, como primeiro-ministro. Uma
pequena minoria bolchevique tomaria parte no governo. Mas Lênin e Trótski
seriam postos à margem... Os comitês centrais dos partidos Menchevique e
Socialista Revolucionário, assim como o Comitê Executivo dos Sovietes dos
Camponeses, continuavam, como sempre, em oposição à "criminosa
política" bolchevique. Admitiam, porém, sua participação no Conselho do
Povo, "a fim de fazer cessar a guerra fratricida e o derramamento de
sangue".
A fuga de Kerenski e as formidáveis vitórias dos sovietes vieram
modificar a situação. A 16 de novembro, num comício convocado pelo novo
Tsik, os socialistas revolucionários insistiram em que os bolcheviques
formassem um novo governo de coalizão, com a participação de todos os
partidos socialistas. Em caso contrário, retirar-se-iam do Comitê Militar
Revolucionário e do Tsik...
Málkin declarou, textualmente, o seguinte: — A todo momento, chegam
notícias de Moscou, comunicando que nossos irmãos estão morrendo dos
dois lados das barricadas. Para pôr fim a essa situação, resolvemos, mais
uma vez, insistir na questão da organização do poder. Achamos que temos
não só o direito como o dever de agir desse modo. Sim, porque
conquistamos o direito de participar do governo, ao lado dos bolcheviques,
entre as paredes do Smólni, e de falar desta tribuna. Nosso ponto de vista é
irredutível. Se não se formar um governo de coalizão, seremos obrigados a
substituir a luta interna pela luta aberta fora do Smólni... É necessário propor
um compromisso que a democracia possa aceitar.
Os bolcheviques retiraram-se para discutir esse ultimatum. Voltaram, em
seguida, com a seguinte resolução, que foi lida por Kamenev:
"O Comitê Central do Partido Bolchevique não é contra a entrada no
governo de representantes de todos os partidos socialistas que fazem parte
dos sovietes dos deputados operários, soldados e camponeses, e reconhecem
as conquistas da Revolução de 7 de novembro, isto é, o poder soviético, os
decretos sobre a terra, a paz, o controle operário das fábricas e o armamento
das massas trabalhadoras.
"O Comitê Central do Partido resolve, portanto, continuar as negociações
já entabuladas com todos os partidos socialistas para a organização do poder,
insistindo, entretanto, em que o acordo seja realizado na seguinte base:
"O governo será responsável perante o Comitê Central Executivo dos
Sovietes (Tsik); o número de membros do Tsik será elevado para cento e
cinqüenta. A estes cento e cinqüenta delegados dos sovietes dos deputados
operários e soldados, juntar-se-ão mais setenta e cinco delegados dos
sovietes camponeses, oitenta do Exército e da Marinha, quarenta dos
sindicatos (do seguinte modo: vinte das diferentes uniões pan-russas dos
sindicatos, proporcionalmente ao número de seus membros, quinze do Vikjel
e cinco do Sindicato dos Carteiros), e cinqüenta delegados dos grupos
socialistas da Duma Municipal. A metade, pelo toenos, das pastas
ministeriais ficará em mãos dos bolcheviques. O Ministério dos Negócios
Exteriores, o do Interior e o do trabalho serão, obrigatoriamente, confiados
aos bolcheviques.
O comando das tropas dos distritos de Petrogrado e de Moscou será
exercido pelos delegados do Soviete de Deputados Operários e Soldados de
Petrogrado e de Moscou, respectivamente. O governo organizará,
sistematicamente, o armamento das massas operárias da Rússia. Somente os
congressos poderão realizar substituições ou exclusÕes. Lênin e Trótski
terão de participar do governo."
Em seguida, Kamenev explicou:
— O pretenso "Conselho do Povo", proposto pela conferência, seria
organizado aproximadamente com quatrocentos e trinta membros assim
distribuídos: cento e cinqüenta bolcheviques, os delegados do antigo Tsik
contra-revolucionário, cem membros eleitos pelas dumas municipais, todos
kornilovistas, cem delegados dos sovietes camponeses escolhidos por
Avksentiev e oitenta dos antigos comitês do Exército, que não representam
mais a massa de soldados. Recusamos admitir o antigo Tsik e os
representantes da Duma Municipal. Além disso, exigimos que os delegados
dos sovietes camponeses sejam eleitos pelo Congresso Camponês que vamos
convocar, no qual será também eleito um novo comitê executivo. A condição
que estabelece a exclusão de Lênin e Trótski não pode ser aceita, porque
essa exigência significa, na prática, decapitar nosso partido. Para terminar,
devo dizer que não compreendemos a necessidade do "Conselho do Povo".
Todos os partidos socialistas podem ingressar livremente nos sovietes, que
estão representados no Tsik de acordo com sua importância política real,
segundo sua influência nas massas...
Karelin respondeu em nome da esquerda socialista revolucionária.
Declarou que a proposta bolchevique seria aceita pelo seu partido, mas que
este se reservava o direito de apresentar algumas emendas, em questões de
pormenores, como na parte referente à representação dos camponeses.
Solicitou, também, a Pasta da Agricultura para seu partido. Essas condições
foram bem recebidas pelos bolcheviques.
Posteriormente, alguém perguntou a Trótski, numa reunião do Soviete de
Petrogrado, qualquer coisa a respeito da formação do novo governo. Trótski
respondeu:
— Nada sei a respeito. Não tomei parte nas negociações. Mas não creio
que tenham grande importância...
À noite, realizou-se a conferência democrática. A sessão foi perturbada
por graves acontecimentos. Os delegados da Duma Municipal retiraram-se...
No próprio Smólni, nas próprias fileiras do Partido Bolchevique, havia
também uma corrente em oposição à política de Lênin. No dia 17 de
novembro, de noite, a sala de sessões do Tsik estava completamente cheia.
Os trabalhos começaram em ambiente carregado.
O bolchevique Lárin declarou que, em virtude da proximidade das
eleições para a Assembléia Constituinte, o terrorismo político deveria cessar.
— As providências adotadas contra a liberdade de imprensa precisam ser
modificadas. Foram necessárias durante a luta. Mas, agora, não podem mais
ser justificadas. É preciso conceder maior liberdade para a imprensa, salvo, é
claro, nos casos de incitação à desordem ou à insurreição.
Em meio a uma tempestade de assobios e de vaias de seu próprio partido,
Lárin apresentou a seguinte resolução:
"Fica abolido o decreto do Comissariado do Povo sobre a imprensa.
"As medidas de repressão política, doravante, só poderão ser aplicadas
por um tribunal especial, eleito pelo Tsik, com representação proporcional
dos partidos que o constituem. Esse tribunal poderá rever todos os atos de
repressão praticados antes da sua constituição."
Quando Lárin terminou a leitura da proposta, estrugiu uma tempestade
de aplausos do lado dos socialistas revolucionários e de parte da bancada
bolchevique. Avanessov, em nome do grupo de Lênin, propôs o adiamento
da questão da imprensa até o término do acordo que se estava negociando
entre os partidos socialistas. Mas a assembléia, por esmagadora maioria,
rejeitou essa proposta.
Avanessov declarou:
— A revolução em marcha não hesitou em atacar a propriedade privada.
A questão da imprensa deve ser encarada precisamente como uma questão
de propriedade privada...
A seguir, leu a resolução do grupo oficial bolchevique:
"No decorrer da insurreição, a proibição dos jornais burgueses não foi
unicamente um meio para assegurar a vitória, durante as intentonas contrarevolucionárias,
a interdição desses órgãos constituiu o primeiro passo para a
instauração da nova lei de imprensa, por meio da qual procuraremos impedir
que os capitalistas, donos das melhores oficinas tipográficas e das fábricas
de papel, continuem sendo os fabricantes onipotentes da opinião pública.
"Precisamos continuar a obra iniciada, confiscando as tipografias
particulares e os depósitos de papel, que devem ser entregues ao poder
soviético, na capital e nas províncias, a fim de que os partidos e os grupos
tenham à sua disposição meios técnicos de acordo com a importância
política real das idéias que representam, isto é, de acordo com o número de
seus membros e em proporção a esse número.
"O restabelecimento da pretensa 'liberdade de imprensa', ou melhor, a
restituição pura e simples das tipografias e do papel aos capitalistas que
envenenam a consciência pública, seria não só uma capitulação inadmissível
diante do capital, e o abandono de uma das posições mais importantes da
revolução operária e camponesa, como também um crime, uma medida
francamente contra-revolucionária.
"O Tsik rejeita categoricamente todas as propostas que tenham a
finalidade de restabelecer o antigo regime no terreno da imprensa, e apoia
com firmeza o ponto de vista do Conselho dos Comissários do Povo contra
as pretensões e ultimatos ditados por ridículos preconceitos burgueses, ou
pelos visíveis interesses da contra-revolução burguesa."
Durante a leitura da resolução, a ala esquerda dos socialistas
revolucionários procurou perturbar o orador com exclamações irônicas; os
próprios bolcheviques da oposição várias vezes a secundaram, com apartes e
protestos indignados.
Karelin levantou-se:
— Há três semanas, os bolcheviques eram os mais ardentes defensores
da liberdade de imprensa... A argumentação do documento que acaba de ser
lido lembra perfeitamente o ponto de vista dos Cem Negros e da censura
czarista. Eles falavam em envenenadores da opinião pública!
Trótski defendeu com ardor a resolução bolchevique, procurando
mostrar a diferença entre a situação da imprensa durante a guerra civil e
depois da vitória:
— Durante a guerra civil, só os oprimidos têm o direito de empregar a
violência... — (Gritos: "Onde estão os oprimidos?") — O adversário ainda
não está vencido completamente. Os jornais são armas. Eis por que é
necessário proibir a circulação de jornais burgueses. É uma medida de
legítima defesa!
Em seguida, abordou a situação da imprensa após a vitória:
— Precisaremos, é claro, de uma lei de imprensa. Já estamos cuidando
disso. Mas, muito antes da vitória da revolução, já afirmávamos que não
podíamos encarar a liberdade de imprensa do ponto de vista dos
proprietários dos grandes jornais. As medidas aplicadas contra a propriedade
privada são também aplicáveis à imprensa. É necessário confiscar, em
benefício do povo, todos os grandes jornais, todas as oficinas, todos os
depósitos de papel. — (Aparte: "Confisquem as oficinas do Pravda!") — A
burguesia sempre monopolizou a imprensa. Sem a abolição desse
monopólio, a conquista do poder não tem o menor significado. Todos os
cidadãos da Rússia precisam ter à sua disposição jornais, tipografias e papel.
O direito de propriedade das tipografias e oficinas dos jornais cabe, em
primeiro lugar, aos camponeses e operários, que representam a maioria da
população. A burguesia está em segundo plano, porque é minoria
insignificante. A tomada do poder pelos sovietes irá modificar radicalmente
todas as condições de existência social. A imprensa também tem que ser
atingida, também tem que ser modificada. Não nacionalizamos os bancos?
Como poderemos respeitar jornais que são propriedade de bancos? O antigo
regime deve perecer. Todos precisam compreender isso, de uma vez para
sempre. — (Aplausos e gritos de protesto.)
Karelin voltou à tribuna para dizer que o Tsik não podia resolver questão
tão importante sem a submeter primeiro a demorado estudo, por meio de
uma comissão especial. E continuou a defender calorosamente a liberdade de
imprensa.
Apareceu, então, Lênin, tranqüilo, impassível, com a fronte enrugada,
falando lentamente, escolhendo as palavras. Cada frase do seu discurso fazia
o efeito de uma martelada:
— A guerra civil ainda não terminou. O inimigo está diante de nós. Não
podemos, portanto, abrir as medidas de repressão que adotamos em relação à
imprensa. Nós, bolcheviques, sempre dissemos que suprimiríamos a
imprensa burguesa quando conquistássemos o poder. Se agora a
tolerássemos, deixaríamos de ser socialistas. Quando se faz uma revolução, é
necessário não contemporizar, não perder tempo; é preciso ir para a frente,
ou recuar. Quem hoje fala em liberdade de imprensa não quer ir para a
frente, não quer lutar pelo socialismo.
Fizemos uma revolução para libertar a Rússia do jugo do capitalismo. A
primeira revolução libertou-a da tirania czarista. Se a primeira revolução
agiu bem ao suprimir os jornais monárquicos, nós, agora, temos o direito de
aniquilar a imprensa burguesa. É impossível separar o problema da imprensa
dos demais problemas da luta de classes. Sempre dissemos que
suprimiríamos a imprensa burguesa e o faremos. A maioria do povo está
conosco. Presentemente, não desejamos suprimir os jornais dos demais
partidos' socialistas. Só faremos isso no caso de incitarem a um levante
armado ou à desobediência ao poder soviético. Pois bem, de modo algum
consentiremos em que, sob o pretexto de liberdade de imprensa, qualquer
partido, com o auxílio da burguesia, procure conquistar o monopólio da
imprensa, das tintas de impressão e do papel. Hoje, tudo isso é propriedade
do governo soviético, que repartirá as oficinas, o papel, a tinta, entre os
diversos partidos socialistas, em primeiro lugar, dando-lhes a parte que lhes
cabe, em proporção ao número de seus membros.
A questão foi posta em votação e a proposta de Lárin e da esquerda
revolucionária foi rejeitada, obtendo trinta e um votos contra e vinte e dois a
favor. A proposta de Lênin foi aprovada por trinta e quatro votos contra
vinte e quatro. Lossovski e Ria zanov votaram em branco, declarando que
não podiam apoiar nenhuma restrição à liberdade de imprensa. Depois disso,
os socialistas revolucionários da esquerda declararam que se sentiam na
obrigação de se retirarem de todos os cargos do governo e do Comitê Militar
Revolucionário.
Nóguin, Rikov, Miliutin, Teódorovitch e Chliápnikov demitiram-se do
Conselho dos Comissários do Povo, fazendo a seguinte declaração:
"Somos partidários de um governo socialista constituído por todos os
partidos socialistas. Em nossa opinião, só um governo assim poderá
consolidar as conquistas da classe operária e do Exército, as conquistas das
heróicas jornadas de novembro. Fora disso, só um governo exclusivamente
bolchevique, mantendo-se no poder pelo terrorismo político, poderá
consolidar essas conquistas. É esse caminho que o Conselho dos
Comissários do Povo começou a trilhar. Não queremos nem o podemos
acompanhar. Em nosso entender, esse caminho conduz à eliminação de toda
a vida política das grandes organizações proletárias e à instauração de um
regime político irresponsável, que levará a revolução e o país à completa
ruína.
"Não podemos assumir a responsabilidade de semelhante política. Por
isso, depomos nas mãos do Tsik nossas funções de comissários do povo."
Outros comissários, embora não se demitissem, firmaram também essa
declaração: Riazanov, Derbichev, comissário da Imprensa, Arbuzov,
comissário da Imprensa do Estado, Iúreniev, comissário da Guarda
Vermelha, Fiódorov, do Comissariado do Trabalho, e Lárin, chefe da Seção
de Trabalhos Legislativos.
Ao mesmo tempo, Kamenev, Rikov, Miliutin, Zinoviev e Nóguin
retiraram-se do Comitê Central do Partido Bolchevique, tornando públicas as
razões dessa atitude:
"...Entendemos que a formação de tal governo (no qual estejam
representados todos os partidos socialistas) é indispensável para evitar novo
derramamento de sangue e a fome que nos ameaça. Do contrário, Kaledin
esmagará a revolução; não será possível garantir a reunião da Assembléia
Constituinte dentro do prazo fixado, nem a execução do programa de paz
adotado pelo Segundo Congresso dos Sovietes.
"Não concordamos com a desastrosa política do Comitê Central, política
que é posta em prática contra a vontade da imensa maioria do proletariado e
dos soldados, que desejam evitar a luta entre vários grupos da democracia e
novo derramamento de sangue. Retiramo-nos do Comitê Central no
momento da vitória, no momento em que o nosso partido chega ao poder,
porque não podemos mais suportar a política dos dirigentes do Comitê
Central, política essa que conduz à perda de todos os frutos da vitória e ao
esmagamento do proletariado."
As massas operárias e os soldados começaram a agitar-se, inquietos. A
todo momento, o Smólni e a Conferência para a Formação de um Novo
Governo recebiam a visita de delegações das fábricas e dos quartéis. A
conferência exultava com a cisão verificada nas fileiras bolcheviques.
Mas o grupo de Lênin respondeu, enérgico e implacável. Chliápnikov e
Teódorovitch logo se submeteram à disciplina do partido, voltando a seus
postos. Kamenev foi destituído das funções de presidente do Tsik e
substituído por Sverdlov. Zinoviev foi afastado da presidência do Soviete de
Petrogrado. No dia 5, o Pravda publicava a seguinte proclamação enérgica,
dirigida ao povo russo, redigida por Lênin, e que foi impressa às centenas de
milhares de exemplares, colada às paredes e distribuída em toda a Rússia:
"O Segundo Congresso Pan-Russo dos Sovietes colocou-se, por maioria
esmagadora, ao lado do Partido Bolchevique. Só um governo organizado por
esse partido pode ser um verdadeiro governo soviético. Ninguém ignora que
o Comitê Central do Partido Bolchevique, horas antes da organização do
novo governo e da apresentação da lista dos seus candidatos ao Segundo
Congresso, chamou três dos mais notáveis membros da ala esquerda do
Partido Socialista Revolucionário, os camaradas Kamkov, Spiro e Karelin,
convidando-os a ingressarem no novo governo. Lamentamos profundamente,
nessa ocasião, a resposta negativa que recebemos, por parte dos camaradas
socialistas revolucionários. E julgamos inadmissível que indivíduos que se
dizem revolucionários e defensores da classe operária respondessem de tal
modo ao nosso convite. Continuamos, entretanto, dispostos a admitir a
entrada da ala esquerda dos socialistas revolucionários no governo. Mas
declaramos que, na qualidade de partido da maioria no Segundo Congresso
Pan-Russo dos Sovietes, tínhamos não só o direito como também o dever,
perante o povo, de constituir um governo.
"Camaradas! Vários membros do Comitê Central do nosso partido e do
Conselho dos Comissários do Povo, Kamenev, Zinoviev, Nóguin, Rikov,
Miliutin e mais alguns, acabam de desertar, pois não só abandonaram os
postos que lhes haviam sido confiados, como ainda infringiram as instruções
do Comitê Central do nosso partido, que havia resolvido não poderem os
mesmos se retirar antes de os órgãos de base do Partido, de Petrogrado e
Moscou, enviarem suas resoluções.
"Os camaradas que se afastaram de nós agiram como desertores.
Condenamos inteiramente essa deserção. Temos a convicção profunda de
que todos os operários, soldados e camponeses conscientes, membros do
Partido ou simpatizantes, condenarão, como nós, o procedimento dos
desertores.
"Lembrem-se, camaradas, de que dois desses desertores, Kamenev e
Zinoviev, antes da tomada de Petrogrado, demonstraram ser desertores e
derrotistas, por terem votado no comício decisivo do Comitê Central de 23
de outubro de 1917 contra a insurreição, e, mesmo depois da resolução
aprovada pelo Comitê Central, continuaram sua campanha num comício do
partido dos operários... Mas, devido ao grande entusiasmo das massas, ao
grande heroísmo de milhões de operários e camponeses, em Moscou e em
Petrogrado, na frente, nas trincheiras e nas aldeias, os desertores ficaram
sozinhos e ninguém lhes deu maior atenção.
"Abandonaremos, sem hesitar um momento, entregues à própria
vergonha, todos os que vacilarem, que duvidarem, que se deixarem intimidar
pela burguesia, ou que capitularem ante os gritos de seus cúmplices diretos
ou indiretos! As massas operárias e os soldados de Petrogrado, de Moscou e
de toda a Rússia não vacilarão um só momento!
"Nunca nos submeteremos a ultimatos de pequenos grupos de
intelectuais, que têm atrás de si não as massas, mas somente os Kornilov, os
Savinkov, os junkers e seus comparsas... "
Todo o país se levantou como impelido por um tufão. Os "desertores"
em parte alguma conseguiram "explicar-se" perante as massas. A maldição
popular caiu sobre o Tsik, violentamente, como uma onda impetuosa
condenando os desertores. Durante vários dias, o Smólni esteve cheio de
delegações e de comitês que vinham, do Volga, das fábricas de Petrogrado,
de toda parte, trazer-lhe apoio e manifestar a indignação das massas contra
os "desertores": — Como se atreveram a sair do governo? Será que foram
pagos pela burguesia para trair a revolução? Exigimos que voltem e se
submetam às decisões do Comitê Central.
Só a guarnição de Petrogrado ficou indecisa. Mas, a 24 de novembro,
numa grande reunião, onde falaram representantes de todos os partidos
políticos, os soldados aprovaram, por grande maioria, a política de Lênin. A
esquerda socialista revolucionária foi então convidada a entrar para o
governo.
Os mencheviques chegaram tarde demais com um ultimato em que
"exigiam" a libertação de todos os ministros e junkers presos, liberdade de
imprensa, desarmamento da Guarda Vermelha e a direção das tropas pela
Duma...
O Smólni respondeu que todos os ministros socialistas e todos os
junkers, salvo raríssimas exceções, já estavam em liberdade; que todos os
jornais, com exceção apenas da imprensa burguesa, podiam circular
livremente; e que o soviete continuaria a comandar todas as forças
militares... No dia 19, a Conferência para a Formação de um Novo Governo
dissolveu-se. Um por um, todos os membros da oposição foram para
Moguilev, onde, com o apoio do grande estado-maior da contra-revolução,
começaram a organizar governos e mais governos, até a eternidade...
Os bolcheviques há muito tempo que trabalhavam para minar o poder do
Vikjel. O Soviete de Petrogrado, em manifesto, convidou todos os
ferroviários a obrigar o Vikjel a renunciar aos seus poderes. A 15 de
novembro, o Tsik, aplicando a mesma tática que já utilizara com os
camponeses, convocou um congresso pan-russo dos ferroviários para 1.° de
dezembro. O Vikjel imediatamente convocou seu próprio congresso, para
duas semanas depois. A 16 de novembro, os membros do Vikjel voltaram
aos seus antigos postos no Tsik. Na sessão de abertura do Congresso dos
Ferroviários, na noite de 1.° para 2 de dezembro, o Tsik oficialmente
ofereceu o Comissariado da Viação ao Vikjel. E este aceitou!
Resolvida a questão do poder, os bolcheviques procuraram
imediatamente solucionar uma série de problemas práticos. Em primeiro
lugar, era necessário alimentar a cidade, o país, o Exército. Grupos de
marinheiros e de guardas vermelhos revistaram os armazéns, as estações, as
embarcações estacionadas no canal, descobrindo milhares de toneladas de
víveres escondidos pelos açambarcadores. No campo, aconteceu o mesmo.
Os comissários que partiram para as províncias, com o auxílio dos comitês
agrários, confiscaram os depósitos de cereais dos grandes negociantes.
Destacamentos de marinheiros, fortemente armados, com mais de cinco mil
homens cada um, partiram para o sul e para a Sibéria, com a missão de tomar
as cidades que ainda estavam sob o domínio dos guardas brancos,
restabelecer a ordem e requisitar víveres.
Os trens de passageiros da Transiberiana foram suspensos durante duas
semanas. Treze trens, sob a direção de comissários, partiram para o leste do
país, carregados de peças de fazendas e barras de ferro, reunidas pelos
comitês de fábrica para serem trocadas por trigo, cereais e batatas com os
camponeses siberianos.
As minas de carvão do Don estavam em poder de Kaledin. Por isso, a
falta de combustível já se tornara angustiosa. O Smólni resolveu suprimir a
iluminação elétrica dos teatros, armazéns e restaurantes, diminuir o trânsito
de bondes e confiscar a lenha acumulada nos grandes depósitos. As fábricas
de Petrogrado estavam a ponto de parar, quando os marinheiros do Báltico
vieram em socorro dos operários, enviando-lhes duzentos mil puds* de
carvão da armada.
* Dezesseis quilos. (N. do E.)
Durante o mês de novembro, todos os porões e subterrâneos foram
revistados e saqueados, a começar pelo Palácio de Inverno. Nesse período,
nas ruas, esbarrava-se a cada instante com soldados embriagados. Os contrarevolucionários
agiam... Davam aos soldados indicações dos depósitos de
bebidas alcoólicas, procurando desmoralizar a tropa pela embriaguez. Os
comissários do Smólni, a princípio^ limitaram-se apenas a aconselhar e a
lamentar esses fatos. Mas, como a desordem não só continuava, mas cada dia
aumentava, chegando até a degenerar em verdadeiras batalhas entre os
soldados e guardas vermelhos, verificaram que era preciso agir com energia.
O Comitê Militar Revolucionário foi obrigado a enviar companhias de
marinheiros, armados com metralhadoras, para dominar a desordem. Essas
companhias tinham ordem de atirar contra os assaltantes dos depósitos de
bebidas. As ordens foram cumpridas e, em muitos pontos, houve mortes. Em
seguida, foram organizados destacamentos especiais para revistarem as
adegas e destruírem a machadadas os depósitos de bebidas. Muitos desses
depósitos foram destruídos a dinamite.
A antiga milícia foi substituída por companhias de guardas vermelhos,
disciplinados e bem-pagos, que guardavam, dia e noite, as sedes dos
sovietes.
Nos bairros, instituíram-se pequenos tribunais revolucionários, formados
pelos soldados e operários, para julgar delitos de pouca importância.
Os grandes hotéis, onde os especuladores continuavam a reunir-se para
combinar negócios lucrativos à custa do povo, foram cercados pelos guardas
vermelhos. Os traficantes, presos, seguiram para o cárcere.
Constantemente alerta, a classe operária organizou um vasto sistema de
espionagem nas casas burguesas, por intermédio dos criados. Desse modo, o
Comitê Militar Revolucionário descobriu uma série de conspirações contrarevolucionárias,
que esmagou com mão de ferro. Entre estas destacou-se a
conspiração monarquista, dirigida por Purichkiêvitch, antigo membro da
Duma, da qual participavam oficiais e aristocratas, que tinham escrito a
Kaledin para vir a Petrogrado e pôr-se à frente do levante. Foi também
descoberto um conluio dos cadetes de Petrogrado, que auxiliavam Kaledin
com dinheiro e homens.
O antigo ministro do Exterior, Neratov, intimado em face da indignação
popular motivada por sua fuga, procurou Trótski e entregou-lhe os tratados
secretos. A publicação desses documentos no Pravda provocou um
escândalo que repercutiu no mundo inteiro.
A liberdade de imprensa foi ainda mais limitada por um decreto que
tornava a publicidade monopólio dos órgãos oficiais do governo. Para
protestar, alguns jornais deixaram de aparecer. Outros não respeitaram o
decreto e foram suspensos. Mas, ao fim de três semanas, submeteram-se.
Nos ministérios, os funcionários continuavam em greve. A vida
econômica normal não fora ainda restabelecida porque a sabotagem
prosseguia.
O Smólni só podia contar com a vontade da massa popular,
numericamente maior, mas ainda desorganizada. Foi com seu apoio que o
Smólni preparou vitoriosamente a ação revolucionária contra o inimigo.
Lênin, por meio de manifestos eloqüentes, distribuídos em todos os cantos
da Rússia, explicava ao povo, em linguagem simples, como lutar pela
revolução. Aconselhava as massas a tomar o poder por si mesmas, sem
esperar por ninguém; a vencer pela força todas as resistências das
instituições governamentais. Ordem revolucionária! Disciplina
revolucionária! Controle rigoroso das despesas! Nada de greves! Nada de
demora! No dia 20 de novembro o Comitê Militar Revolucionário publicou o
seguinte aviso:
"As classes ricas lutam, com todas as suas forças, contra o governo
soviético, contra o governo dos operários, soldados e camponeses. Seus
agentes procuram impedir que os funcionários públicos e empregados
bancários trabalhem; procuram interromper as comunicações ferroviárias,
postais e telegráficas.
"Nós os advertimos de que quem brinca com fogo pode se queimar. A
fome ameaça o país e o Exército. Para combatê-la é necessário que todos os
operários trabalhem com regularidade. O governo operário e camponês está
tomando as devidas providências para atender às necessidades do país e do
Exército.
"Lutar contra essas medidas é cometer um crime contra o povo. E isto é
o que fazem todos os ricos. Se a sabotagem continuar, se o abastecimento
das cidades ficar interrompido, prevenimos às classes ricas que elas serão as
primeiras a sofrer.
"As classes ricas e seus agentes e aliados ficarão privados do direito de
receber víveres. Todas as reservas que tiverem serão requisitadas. Todos os
seus bens serão confiscados.
"Cumprimos o nosso dever avisando a tempo, aos que brincam com
fogo, para não se queimarem.
"Estamos certos de que, se tivermos de aplicar tais medidas enérgicas,
teremos do nosso lado os operários, os soldados e os camponeses."
A 22 de novembro, as paredes apareceram cheias de um cartaz
intitulado:
"COMUNICADO EXTRAORDINÁRIO
"O Conselho dos Comissários do Povo acaba de receber o seguinte
telegrama urgente do estado-maior da frente norte:
" 'Não podemos esperar mais; estamos morrendo de fome. Há vários
dias, o exército que combate na frente norte não come uma migalha de pão;
dentro de dois ou três dias, as reservas de pão e munição, que até agora
estavam intactas e que já começamos a distribuir, estarão esgotadas. Os
delegados que chegam de todas as partes afirmam que é indispensável retirar
metodicamente grande parte das tropas da retaguarda. Sem isso, dentro de
pouco tempo, os soldados que morrem de fome, que estão esgotados por três
anos de guerra nas trincheiras, doentes, sem roupas, sem calçados,
enlouquecendo em virtude de privações incríveis e impossíveis de suportar,
abandonarão todas as posições, numa debandada geral'.
"O Comitê Militar Revolucionário põe a guarnição e os operários de
Petrogrado a par da situação. É preciso tomar urgentes e enérgicas
providências. Mas os altos funcionários das repartições públicas, dos bancos,
das estradas de ferro, dos Correios e Telégrafos estão atualmente fazendo
tudo o que podem para impedir que o governo consiga socorrer os soldados
ameaçados de morrer de fome nas trincheiras.
"Atualmente, a demora de uma hora significa a morte de milhares de
soldados. Os contra-revolucionários, os funcionários das estradas de ferro
portam-se como criminosos da pior espécie, impedindo que se enviem
socorros urgentes àqueles nossos irmãos.
"O Comitê Revolucionário, pela última vez, dirige-se a esses criminosos.
Caso continuem opondo resistência ou dificuldades, serão postas em prática
medidas severas à altura do crime que praticam."
Milhões de operários e soldados estremeceram, indignados. A Rússia
inteira levantou-se irada. Na capital, os funcionários e os empregados dos
bancos distribuíram centenas de manifestos protestando e defendendo-se. Eis
uma dessas publicações:
"CIDADÃOS ---- ATENÇÃO:
POR QUE O BANCO DO ESTADO ESTÁ FECHADO?
"Porque as violências dos bolcheviques contra o Banco do Estado
impossibilitaram o trabalho. O primeiro ato do governo dos Comissários do
Povo foi exigir dez milhões de rublos. A 27 de novembro, quiseram retirar
vinte e cinco milhões de rublos, sem dizer para quê...
"Nós, funcionários do Banco do Estado, não desejando ser cúmplices
desse assalto aos bens da nação, abandonamos o trabalho.
"Cidadãos! O dinheiro do Banco do Estado é seu dinheiro. É o dinheiro
ganho por todos vocês à custa de trabalho, à custa de seu suor e de seu
sangue.
"Cidadãos! Salvem o dinheiro da nação do assalto e das violências, que
voltaremos imediatamente aos nossos postos.
"Os empregados do Banco do Estado."
Os ministérios do Abastecimento, da Fazenda e o Comitê Especial de
Abastecimento publicaram, também, suas defesas, declarando que o Comitê
Militar Revolucionário tornava impossível a atividade dos funcionários e
concitando a população a lutar contra o Smólni. Mas a massa de operários e
soldados não lhes dava ouvidos. O povo tinha a convicção de que os
funcionários praticavam atos de sabotagem e procuravam vencer o Exército
e o povo pela fome.
Surgiram, novamente, as grandes filas de pessoas, à espera de pão, diante
dos depósitos. Nessas filas, entretanto, já não se murmurava mais contra o
governo, como no tempo de Kerenski, mas sim contra os tchinóvniki*,
contra os sabotadores, porque o governo atual era o governo do povo; os
sovietes representavam os operários, os soldados e os camponeses. Era
justamente por isso que os funcionários dos ministérios não suportavam esse
governo...
* Funcionários, empregados. (N. do E.)
A Duma era o centro da oposição. Com seu órgão de combate à frente —
o Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução —, protestava contra
todos os decretos do Conselho dos Comissários do Povo e, em todas as
oportunidades, pronunciava-se contra o reconhecimento do governo
soviético. Além disso, colaborava, abertamente, com o pseudogoverno de
Moguilev. A 17 de novembro, o Comitê para a Salvação da Rússia e da
Revolução enviou a todos os ziemstvos, a todas as organizações
democráticas e revolucionárias de camponeses, operários, soldados e do
povo em geral, as seguintes recomendações:
"1. Não se deve reconhecer o governo bolchevique, mas lutar contra ele.
"2. É necessário organizar comitês locais para a salvação da pátria e da
revolução, a fim de unir todas as forças democráticas com o Comitê PanRusso
para a Salvação da Rússia e da Revolução e auxiliá -lo, mantendo-se
todos os comitês estritamente ligados entre si e com o Comitê Pan-Russo."
Apesar de tudo, os bolcheviques obtiveram maioria esmagadora nas
eleições para a Assembléia Constituinte. Sua vitória foi tão grande, que os
próprios mencheviques internacionalistas declararam que era necessário
eleger uma nova duma, porque a antiga já não representava mais a vontade
política da população de Petrogrado... As organizações operárias, as
unidades militares e até os camponeses dos arredores enviaram à Duma
Municipal avalanchas de resoluções, decla rando-a contra-revolucionária,
kornilovista, e exigindo sua demissão. As últimas sessões da Duma foram
agitadas pelos debates em torno das reclamações dos operários municipais,
que exigiam salários compensadores e ameaçavam declarar-se em greve.
Um decreto do Comitê Militar Revolucionário, datado de 23, estabeleceu
a dissolução do Comitê de Salvação. No dia 29, o Conselho dos Comissários
do Povo mandou dissolver a Duma e convocar as eleições para a nova Duma
Municipal de Petrogrado:
"Considerando que a Duma Municipal de Petrogrado, eleita a 2 de
setembro, já perdeu clara e definitivamente o direito de representar a
população de Petrogrado, pois se encontra em completa oposição ao seu
estado de espírito e às suas aspirações; considerando que os membros da
maioria da Duma não merecem a menor confiança política e continuam a se
aproveitar dos seus cargos para participar de conspirações contrarevolucionárias,
dirigidas contra a vontade dos operários, dos soldados e dos
camponeses, e para sabotar a atividade dos poderes públicos;
"O Conselho dos Comissários do Povo julga do seu dever convidar a
população de Petrogrado a manifestar-se sobre a política da municipalidade
autônoma.
"Para isso, o Conselho dos Comissários do Povo decreta:
"1. A 30 de novembro de 1917 a Duma Municipal fica dissolvida.
"2. Todos os funcionários nomeados pela Duma atual permanecerão nos
seus postos até que os seus lugares sejam preenchidos pelos representantes
da nova Duma.
"3. Todos os funcionários da Municipalidade devem continuar
desempenhando suas funções. Os que abandonarem seus postos podem se
considerar demitidos.
"4. A nova Duma de Petrogrado será eleita a 9 de dezembro de 1917.
"5. A nova Duma Municipal realizará sua primeira reunião no dia 11 de
dezembro, às duas horas da tarde.
"6. Os contraventores das prescrições do presente decreto e toda pessoa
que conscientemente procurar danificar as propriedades municipais serão
imediatamente presos e julgados pelo Tribunal Militar Revolucionário."
A Duma reuniu-se e votou resoluções solenes, em que declarava estar
disposta a "defender sua posição até a última gota de sangue", ou em que
pedia desesperadamente à população que salvasse "o município livremente
eleito". Mas a população continuou indiferente ou hostil. A 31 de novembro,
o Prefeito Schreider e vários conselheiros municipais foram presos,
interrogados e, em seguida, postos em liberdade. No mesmo dia, a Duma
continuou reunida, na presença de marinheiros e guardas vermelhos, que
delicadamente intervinham nos debates para lembrar que ela já estava
dissolvida. Na sessão do dia 2, um orador ocupava a tribuna, na Sala
Nicolau, quando um pelotão de marinheiros e um oficial intimaram os
presentes a se retirarem por bem, antes que fosse necessário empregar a
violência. A assembléia obedeceu e abandonou a sala protestando, até o
último momento, contra "a violência"...
A nova Duma foi eleita dez dias depois. Os socialistas moderados não
participaram das eleições. A maioria dos eleitos eram bolcheviques.
Mas era necessário, ainda, liquidar diversos centros de oposição, como,
por exemplo, os da Finlândia e da Ucrânia, que se manifestavam
abertamente antibolcheviques. De fato: quase ao mesmo tempo, em
Helsinque e Kíev, os governos reuniram suas tropas mais fiéis e prepararamse
para iniciar uma guerra de extermínio contra o bolchevismo. Desarmaram
e expulsaram as tropas russas. A Rada da Ucrânia apoderou-se de todo o sul
da Rússia, auxiliando Kaledin com reforços, armas e munições. A Finlândia
e a Ucrânia entraram em negociações com os alemães. Em seguida, foram
reconhecidas pelos governos aliados, que lhes fizeram grandes empréstimos,
na base dos quais estabeleceram sua aliança com as classes dominantes para
a criação de redutos contra-revolucionários para o ataque à Rússia soviética.
Afinal, quando o bolchevismo venceu nesses países, a burguesia derrotada
apelou, também, para os alemães, pedindo auxílio...
Mas o maior perigo que ameaçava o governo soviético estava no interior.
Era uma dupla ameaça: de um lado, o movimento de Kaledin; de outro, o
grande estado-maior de Moguilev, à frente do qual estava o General
Dukhonin.
Muraviov, que parecia possuir o dom da ubiqüidade, assumiu o comando
das forças que combatiam os cossacos e começou a organizar um exército
vermelho, recrutado entre os operários das fábricas. Centenas de
propagandistas partiram para o Don. Em manifesto dirigido aos cossacos, o
Conselho dos Comissários do Povo explicava-lhes o significado do governo
soviético. Mostrava-lhes como as classes dominantes, os funcionários, os
capitalistas, banqueiros e seus aliados, os grandes senhores de terra e os
generais cossacos, procuravam esmagar a revolução, a fim de salvar suas
riquezas, que o governo queria confiscar em benefício do povo.
A 27 de novembro, apareceu no Smólni uma delegação de cossacos, que
desejava falar com Lênin e Trótski. Recebidos, perguntaram se era verdade
que o governo soviético tinha a intenção de dar as terras dos cossacos aos
camponeses da Grande Rússia.
— Não — respondeu Trótski. Os cossacos discutiram entre si.
— Está bem — disseram. — Mas o governo tem a intenção de confiscar
as terras dos grandes proprietários cossacos para entregá-las aos
trabalhadores cossacos?
Foi Lênin quem respondeu:
— Isso depende de vocês. Cabe-lhes fazer isso. Nós apoiaremos tudo
que os trabalhadores cossacos fizerem nesse sentido.
Para começar, vocês devem desde já organizar seus próprios sovietes
cossacos. Deste modo, poderão indicar seus representantes para o Comitê
Central Executivo e o governo soviético será o governo de vocês mesmos...
Os cossacos se retiraram, mas não se esqueceram dessas palavras. Duas
semanas depois, o General Kaledin foi procurado por uma delegação de suas
tropas:
— É capaz de prometer-nos — perguntaram os delegados — repartir as
terras dos senhores cossacos entre os traba lhadores cossacos?
— Nunca! Prefiro morrer! — respondeu Kaledin. Passado um mês, o
exército de Kaledin dissolvia -se, como por encanto. Desesperado, Kaledin
estourou os miolos com um tiro.
O movimento cossaco terminou assim.
Em Moguilev, o antigo Tsik, os chefes socialistas moderados, de
Avksentiev até Tchernov, os chefes dos antigos comitês do Exército e os
oficiais reacionários estavam reunidos. O Estado-Maior recusava-se
obstinadamente a reconhecer o governo dos Comissários do Povo. Contava
com o apoio dos Batalhões da Morte, das forças dos Cavaleiros de São Jorge
e com os cossacos da frente. Além disso, estava permanentemente em
contato secreto com os adidos militares aliados, com o movimento de
Kaledin e com a Rada da Ucrânia.
Os governos aliados não responderam ao decreto sobre a paz, de 8 de
novembro, no qual o Congresso dos Sovietes propunha um armistício geral.
A 20 de novembro, Trótski dirigiu a seguinte nota às embaixadas aliadas:
"Senhor embaixador:
"Tenho a honra de informar-lhe que o Congresso Pan-Rus-so dos
Sovietes instituiu, a 8 de novembro último, um novo governo da República
Russa, sob a forma de conselhos de comissários do povo. O presidente desse
conselho é Vladímir Uliánov Lênin. Eu, na qualidade de comissário do povo
para os Negócios Exteriores, assumi a direção da política externa.
"Ao mesmo tempo que chamo sua atenção para o texto aprovado pelo
Congresso Pan-Russo dos Sovietes a respeito de nossa proposta de
armistício e de paz democrática, sem anexação nem indenizações, na base do
direito de os povos disporem de si mesmos, tenho a honra de pedir que
considere esse documento como uma proposta oficial de armistício em todas
as frentes da luta e de abertura imediata das negociações de paz. O governo
da República Russa dirige, ao mesmo tempo, esta proposta aos povos
beligerantes e aos seus governos.
"Queira aceitar, senhor embaixador, os protestos de elevada
consideração do governo soviético em relação ao seu povo, que certamente
deseja a paz, como a desejam todos os povos que se esvaem em sangue e se
esgotam nesta carnificina sem precedentes."
Na mesma noite, o Conselho dos Comissários do Povo expediu o
seguinte telegrama a Dukhonin:
"O Conselho dos Comissários do Povo, de acordo com a resolução do
Congresso Pan-Russo dos Sovietes, encarrega-o de enviar, assim que este
telegrama chegar às suas mãos, propostas de suspensão imediata das
hostilidades a todas as autoridades, tanto aliadas como inimigas, a fim de se
iniciarem, quanto antes, as negociações de paz.
"Ao mesmo tempo que lhe confia a missão de iniciar essas negociações
preliminares, o Conselho dos Comissários do Povo ordena-lhe:
"1. Que todas as negociações com os plenipotenciários dos exércitos
inimigos lhe sejam comunicadas, constantemente, por telegrama.
"2. Não assinar a ata do armistício senão depois de sua aprovação pelo
Conselho dos Comissários do Povo."
Os embaixadores aliados receberam a nota de Trótski com absoluto
desdém e não responderam. Surgiram, entretanto, nos jornais, artigos e
entrevistas anônimos, cheios de ironia causticante. A ordem a Dukhonin era
qualificada abertamente de traição.
Quanto a este, não deu sinais de vida. No dia 22, à noite, o governo
comunicou-se pelo telefone com Dukhonin, perguntando-lhe se estava
disposto a cumprir a ordem que lhe havia sido dada. Dukhonin respondeu
que só a cumpriria se essa ordem partisse "de um governo sustentado pelo
Exército e pelo país".
No mesmo instante foi deposto, por telegrama, do cargo de comandantegeral.
Krilenko foi indicado para substituí-lo. Como de costume, Lênin
resolveu apelar diretamente para as massas. Através do rádio, comunicou a
todos os soldados e marinheiros a resposta de Dukhonin e ordenou que "em
todas as frentes de combate os regimentos elegessem delegados para entrar
em negociações com os elementos inimigos".
Obedecendo às instruções dos seus governos, os adidos militares dos
Aliados, no dia 23, enviaram uma nota a Dukhonin, comunicando-lhe,
solenemente, que devia tomar precauções contra "uma violação dos tratados
existentes entre as potências da Entente". A nota acrescentava que, se o
governo soviético firmasse um armistício em separado com a Alemanha,
"este ato teria as mais sérias conseqüências para a Rússia". Dukhonin
transmitiu imediatamente a nota aos comitês de soldados.
Na manhã seguinte, Trótski enviou outro apelo às tropas, no qual dizia
que a nota dos representantes aliados era uma revoltante intromissão nas
questões internas da Rússia. "Por meio dessa nota", dizia Trótski, "os
Aliados pensam que vão obrigar o povo e o Exército, amedrontados por suas
ameaças, a cumprirem tratados assinados pelo czar."
O Smólni publicava incessantemente grande número de manifestos,
combatendo Dukhonin, os oficiais contra-revolucionários que o
acompanhavam e os políticos agrupados em Moguilev, agitando, em
milhares de quilômetros de frente, milhões de soldados já dispostos à luta
revolucionária, já descrentes de Dukhonin e do governo de Moguilev, e por
isso desejosos de combatê-los. Ao mesmo tempo, Krilenko, à frente de três
destacamentos de marinheiros, resolvidos a derramar até a última gota de
sangue pela revolução, marchou contra o grande Estado-Maior do
adversário. No caminho, milhares e milhares de soldados o recebiam com
aclamações entusiásticas e, incitados pelos seus gritos de vingança,
juntavam-se às tropas, dispostos também a lutar. Foi uma verdadeira marcha
triunfal. Como o antigo Comitê Central do Exército publicasse uma
declaração em favor de Dukhonin, dez mil homens marcharam
imediatamente contra Moguilev.
Mas, antes de chegarem, a 2 de dezembro, a própria guarnição de
Moguilev revoltou-se e tomou conta da cidade, prendendo Dukhonin e todos
os membros do Comitê Central do Exército. Em seguida, triunfalmente,
levando à frente os estandartes vermelhos, os soldados partiram, cantando,
ao encontro do novo comandante-em-chefe. Quando, no dia seguinte de
manhã, Krilenko chegou a Moguilev, viu uma grande multidão agitada em
torno de um vagão da estrada de ferro, onde estava preso Dukhonin.
Krilenko falou aos soldados, aconselhando-os a não praticarem violê ncias
contra Dukhonin, que ia ser levado a petrogrado para ser julgado por um
tribunal revolucionário. Porém, mal Krilenko havia terminado seu discurso,
Dukhonin surgiu numa das janelas do vagão, gesticulando, como quem ia
falar à tropa. Os soldados, sem que ninguém pudesse contê-los, penetraram
no vagão, soltando gritos terríveis; agarraram o velho general, arrastaram-no
para a plataforma da estação e tanto o espancaram, que pouco depois estava
morto.
Assim terminou a rebelião do Stavka...
Fortalecido com a queda do último reduto importante do poder militar
dos adversários, dentro da Rússia, o governo soviético, seguro da sua
situação, começou a cuidar da organização do Estado. Os antigos
funcionários, em grande número, voltaram aos seus postos, submetendo-se
ao novo poder. Muitos membros dos demais partidos puseram-se também à
disposição do Estado. Mas os que agiram deste modo por motivos
econômicos logo depois ficaram decepcionados com a resolução do governo
sobre os vencimentos do funcionalismo público. Esse decreto estabelecia
que os comissários do povo receberiam, no máximo, quinhentos rublos
(cinqüenta dólares, câmbio da época) por mês. Os funcionários declararamse
em greve, sob a direção da União dos Sindicatos, apoiados pelos meios
financeiros e comerciais. Mas, quando não tiveram mais esse apoio, a greve
terminou. Os próprios empregados dos bancos recomeçaram a trabalhar.
Com o decreto sobre a nacionalização dos bancos; com a criação do
Conselho Superior da Economia Nacional; com a aplicação efetiva do
decreto sobre a terra; com a reorganização democrática do Exército, através
das transformações radicais realizadas em todos os domínios do Estado e da
vida social, medidas que só puderam ser postas em prática porque eram a
expressão da vontade dos operários, soldados e camponeses, começou a
surgir, lentamente, por entre erros e dificuldades, a nova Rússia proletária.
Os bolcheviques conquistaram o poder. Mas conquistaram-no sem
acordos com as classes dominantes ou com os diversos chefes de partidos
políticos, destruindo o antigo mecanismo governamental. Não chegaram
tampouco ao poder por meio de um golpe de força organizado por um
pequeno grupo. A revolução teria fracassado, se as massas não tivessem sido
preparadas em
toda a Rússia para a insurreição. Por que os bolcheviques venceram?
Porque sabiam lutar pelas pequenas e pelas grandes aspirações e
reivindicações das grandes camadas populares, organizando-as e dirigindoas
para a destruição do passado e lutando com elas para edificar, sobre as
ruínas fumegantes do sistema social destruído, uma nova sociedade, um
novo mundo.

Capítulo XII

O CONGRESSO CAMPONÊS

A 18 de novembro, a neve começou a cair. Quando acordei, as saliências
das janelas estavam cobertas por alvo lençol de gelo. Os flocos que se
desprendiam do céu eram tão espessos, que não se via nada à distância de
dez passos. Denso manto branco cobria as ruas e os campos. Num abrir e
fechar de olhos, a cidade sombria e triste ficou de deslumbrante alvura. Os
carros de aluguel pareciam trenós deslizando sobre ruas salpicadas de
cristais de neve... Apesar da revolução, apesar de toda a Rússia estar dando
um salto no escuro, com o aparecimento da neve a alegria invadiu a cidade.
Todos sorriam. Os homens, nas ruas, estendiam alegremente as mãos para
colher os flocos de algodão gelado. A cor cinzenta já não existia mais. E,
sobre o espelho branco da neve, só apareciam o dourado e as cores vivas das
flechas e das cúpulas. O contraste dava a impressão de que seu esplendor
asiático havia aumentado.
Mais ou menos ao meio-dia, o sol surgiu, pálido e frio. O reumatismo
dos meses chuvosos desapareceu como por encanto. A vida da cidade
animou-se. E a própria revolução começou a andar mais depressa...
Uma noite, entrei num traktir, pequena hospedaria situada em frente ao
Smólni. Esse lugar barulhento, de teto baixo, era chamado "A Cabana do Pai
Tomás". Os guardas vermelhos que o freqüentavam aglomeravam-se em
volta de pequenas mesas, cobertas por toalhas cheias de nódoas, em frente a
enormes bules de chá de louça barata. A fumaça dos seus cigarros invadia
toda a sala. Os caixeiros corriam de uma mesa para outra gritando:
"Seitchás! Seitchás!" (Espere um instante! Espere um instante!) Num canto,
um homem fardado, com galões de capitão, tentou falar aos presentes. Suas
palavras, porém, eram interrompidas pelos apartes:
— Vocês são verdadeiros assassinos! — gritava. — Vocês, nas ruas,
fuzilam seus próprios irmãos!
— Quando foi isso? — indagou um operário.
— Domingo passado, quando os junkers...
— Mas eles não atiraram primeiro?
Um dos homens apontou para o braço, que pendia na tipóia:
— Eis aqui uma lembrança desses bandidos! Então, o capitão gritou a
plenos pulmões:
— Vocês deviam ter ficado neutros! Com que direito querem derrubar o
governo legal? E Lênin, quem é? Um agente dos alemães...
— Você é um contra-revolucionário, um provocador! — gritou alguém.
Depois que a algazarra abrandou, o capitão levantou-se novamente:
— Pois bem — disse. — Vocês falam como se fossem o povo russo.
Mas vocês não são o povo. Os camponeses, sim é que o são. Esperem que os
camponeses...
— É claro que sim!... — gritaram. — Esperaremos pelos camponeses. Já
sabemos o que vão dizer! São trabalhadores como nós!
Realmente, tudo dependia dos camponeses, que, apesar de politicamente
atrasados, tinham idéias próprias e representavam nada menos de oitenta por
cento da população. A influência dos bolcheviques no campo era
relativamente fraca. E, sem seu apoio, o proletariado industrial não poderia
instaurar sua ditadura. O partido tradicionalmente influente no campo era o
Partido Socialista Revolucionário. Entre os partidos que apoiavam o governo
soviético, só a ala esquerda do movimento revolucionário podia,
logicamente, considerar-se herdeira da direção das massas camponesas. Para
o proletariado organizado das cidades, o apoio do campo era indispensável.
O Smólni compreendia tudo isso. Tanto assim que, depois do decreto
sobre a terra, um dos primeiros atos do Tsik foi convocar um congresso
camponês. Alguns dias depois apareceu o regulamento dos comitês agrários
das pequenas regiões, os vólots, explicando, de maneira bem simples, a
significação da Revolução Bolchevique e do novo governo.
No dia 16 de novembro, Lênin e Miliutin redigiram um boletim de
instruções destinado aos delegados das províncias. Depois de impresso, esse
boletim foi distribuído aos milhares, em todas as aldeias da Rússia:
"1. Assim que chegar à província designada, o delegado deverá convocar
uma reunião do Comitê Executivo dos Sovietes.
Nessa reunião, depois de ler a legislação agrária, deve propor a
convocação de uma assembléia plenária dos sovietes de distritos e de
província.
"2. O delegado deve pôr-se a par da marcha da revolução agrária de
acordo com o seguinte formulário:
"a) Os domínios dos senhores da terra foram confiscados? Em que
distritos?
"b) Quem administra as terras confiscadas? Os comitês agrários, ou os
antigos proprietários?
"c) Os instrumentos agrícolas e o gado, que destino tiveram?
"3. A superfície semeada pelos camponeses aumentou?
"4. Que rendimento total calculam para esta província?
"5. O delegado deve explicar que os camponeses, depois de tomarem
posse da terra, devem fazer todo o possível para aumentar as colheitas e
remeter o trigo com a maior rapidez possível às cidades. De outro modo, não
será possível evitar a fome.
"6. Que medidas foram ou vão ser postas em prática para colocar
definitivamente as terras sob o controle dos comitês agrários das aldeias e
dos distritos, ou dos sovietes?
"7. Aconselhamos que as propriedades mais bem equipadas em
instrumentos agrícolas sejam postas à disposição dos sovietes de assalariados
agrícolas, sob a direção de agrônomos competentes."
A efervescência aumentava em todas as aldeias e povoados, não só em
virtude do decreto sobre a divisão da terra, como também em conseqüência
da chegada de milhares de camponeses soldados, que traziam consigo o
espírito revolucionário das trincheiras. Foram eles que saudaram com
entusiasmo a convocação do Congresso Camponês.
Operando como o antigo Tsik em relação ao Segundo Congresso dos
Sovietes dos Operários e Camponeses, o Comitê Executivo dos Sovietes dos
Camponeses procurou impedir a realização do Congresso Camponês
convocado pelo Smólni. Por último, verificando que seus esforços eram
inúteis, começou a expedir telegramas, ordenando a eleição de deputados
conservadores. Além disso, para semear confusão, espalhou o boato de que o
Congresso seria realizado em Moguilev. Alguns delegados, de fato, foram
parar nessa cidade.
Mas, apesar de todas as manobras do Comitê Executivo, no dia 23 de
novembro mais de quatrocentos delegados já estavam em Petrogrado,
realizando as reuniões preparatórias dos partidos. A primeira sessão do
Congresso foi realizada na Sala Alexandre, da Duma. Na primeira votação,
verificou-se que mais da metade dos delegados apoiava a ala esquerda dos
socialistas revolucionários. Os bolcheviques só contavam com um quinto
dos votos. A ala direita dos socialistas revolucionários possuía a quarta parte.
Mas todos os delegados estavam contra o antigo Comitê Executivo,
dominado por Avksentiev, Tchaikóvski e Piechekhonov. O grande salão,
completamente cheio, estremecia a todo momento com os gritos e as
ovações. Os delegados, divididos em grupos, discutiam e hostilizavam-se
continuamente. Na ala direita do Congresso, brilhavam galões de oficiais e
as longas barbas patriarcais dos velhos camponeses ricos. No centro, alguns
camponeses, suboficiais e soldados. Ali estava a jovem geração que
conhecia a guerra. E, nas tribunas, apinhavam-se milhares de operários
russos, que não haviam ainda perdido completamente as características e os
sentimentos camponeses das suas aldeias natais.
O Comitê Executivo, ao contrário do antigo Tsik, quando abriu os
trabalhos, declarou que o congresso não era oficial, e que o oficial seria
realizado a 13 de dezembro. Debaixo de uma tempestade de aplausos e de
protestos violentos, o representante do Comitê Executivo declarou ainda que
o Congresso em realização naquele momento era apenas uma "conferência
extraordinária". Mas a "conferência extraordinária" demonstrou,
imediatamente, que não concordava com o Comitê Executivo, pois elegeu
Maria Spiridonova, dirigente dos socialistas revolucionários da esquerda,
para presidir os trabalhos.
A primeira sessão, num ambiente de discussões agitadas e violentas,
ocupou-se unicamente da questão dos mandatos. Procurou-se resolver,
preliminarmente, se os delegados dos pequenos povoados teriam assento no
Congresso. Ficou afinal resolvido que não só os delegados das províncias,
como os delegados dos povoados, teriam seus mandatos reconhecidos. O
Congresso mostrou-se, assim, partidário da mais ampla representação
possível, como, aliás, já havia acontecido anteriormente no Congresso dos
Sovietes dos Deputados Operários e Soldados. Diante dessa resolução,
aprovada por esmagadora maioria, o antigo Comitê Executivo, em desacordo
com ela, retirou-se da sala.
Logo no início dos trabalhos, verificou-se, também, que os delegados, na
sua maioria, eram hostis ao novo governo dos comissários do povo.
Zinoviev, quando quis falar em nome dos bolcheviques, foi vaiado. Os
presentes começaram a gritar de tal modo, que ele, depois de algumas
tentativas, resolveu desistir. Quando Zinoviev abandonou a tribuna, no meio
da hilaridade quase geral, um delegado mais exaltado gritou bem alto:
— Vejam só que comissário do povo!
Nazariev, presente ao Congresso como delegado de província, disse no
seu discurso:
— Nós, socialistas revolucionários da esquerda, não reconheceremos o
novo poder como um governo de operários e camponeses, enquanto os
camponeses dele não participarem. Provisoriamente, esse governo é apenas
uma ditadura operária. Eis por que, mais uma vez, propomos a formação de
um novo governo que de fato represente, democraticamente, a maioria do
povo, os operários e os camponeses.
Os delegados reacionários, aproveitando-se do estado de espírito da
assembléia, procuraram incompatibilizar completamente o governo com o
Congresso, declarando que o Conselho dos Comissários do Povo, no caso de
o Congresso não se submeter à sua vontade, estava disposto a dissolvê-lo
violentamente. A declaração produziu o efeito desejado: a indignação contra
o governo aumentou ainda mais.
No terceiro dia, quando menos se esperava, Lênin surgiu repentinamente
no alto da tribuna. Durante dez minutos, ouviu-se uma grita ensurdecedora:
— Fora! Não queremos ouvir discursos dos comissários do povo! Não
reconhecemos esse governo!
Lênin, de pé, absolutamente calmo, inteiramente senhor de si, com as
mãos fortemente apoiadas no parapeito da tribuna, observava atentamente os
presentes com seus olhos inteligentes. Afinal, a agitação começou a
abrandar. Só a ala direita continuava gritando. Lênin, então, começou com
voz firme:
— Não estou aqui como membro do Conselho dos Comissários do Povo.
Como a gritaria recomeçasse, deteve-se, para logo continuar:
— Estou aqui na qualidade de membro do Partido Bolchevique, com
mandato regular neste congresso. — (E exibiu seu mandato, de maneira que
todos o pudessem ver). — Ninguém, entretanto, pode negar — continuou
com a mesma voz serena e firme — que o atual governo da Rússia é
formado pelo Partido Bolchevique... — Foi obrigado a fazer nova pausa. —
Por isso, praticamente, tudo dá no mesmo.
Suas últimas palavras levantaram uma tempestade de gritos e protestos
da bancada da direita. Mas o centro e a ala esquerda, já curiosos,
restabeleceram o silêncio.
A argumentação de Lênin foi simples:
— Companheiros! Desejo que os camponeses aqui representados
respondam com a maior franqueza a uma pergunta: depois de já termos
confiscado as terras dos senhores, depois de já termos dividido as terras entre
os camponeses, serão agora capazes de impedir que o proletariado industrial
tome conta das fábricas? A guerra atual é uma guerra entre classes. Os
camponeses lutam contra os proprietários das terras e os operários contra os
capitalistas industriais. Os camponeses desejam, porventura, dividir as forças
do proletariado? Que posição este congresso, onde estão representados os
camponeses de toda a Rússia, irá tomar em face dessa situação? O Partido
Bolchevique é o partido do proletariado. É o partido do proletariado rural e
do proletariado industrial. Nós, bolcheviques, apoiamos os sovietes, tanto os
sovietes dos camponeses como os sovietes dos operários e dos soldados. O
governo atual é um governo desses sovietes. Já convidamos os sovietes de
camponeses a ocuparem o lugar que lhes cabe no novo governo.
Convidamos, também, a ala esquerda do Partido Socialista Revolucionário a
se fazer representar no Conselho dos Comissários do Povo. Os sovietes
representam a vontade popular, a vontade dos operários das fábricas e das
minas, a vontade dos trabalhadores dos campos. Os que lutam, contra os
sovietes, os que procuram destruí-los são elementos antidemocráticos e
contra-revolucionários. Aproveito a ocasião, camaradas socialistas
revolucionários da direita e senhores cadetes, para preveni-los de que não
deixaremos a Assembléia Constituinte tentar destruir os sovietes.
Chamado a toda pressa pelo Comitê Executivo, Tchernov apareceu em
Moguilev, na tarde de 25 de novembro. Dois meses antes era tido como
revolucionário extremado e gozava de imensa popularidade entre os
camponeses. Mas, agora, vinha a toda pressa com a missão de evitar que o
Congresso continuasse a inclinar-se para a esquerda.
Logo ao chegar, Tchernov foi preso e conduzido ao Smólni. Mas, depois
de ligeira palestra, puseram-no em liberdade. Uma vez solto, Tchernov
procurou convencer o Comitê Executivo de que havia errado, abandonando o
Congresso. Seus membros acabaram se comprometendo a voltar. Tchernov
entrou no Congresso ao lado deles. Foi recebido com uma tempestade de
aplausos da maioria e de vaias dos bolcheviques.
— Camaradas! Estive ausente, tomando parte na conferência do 12.°
Exército, para promover a convocação de um congresso de delegados
camponeses do Exército que combate no setor ocidental. Por esse motivo,
ainda não estou a par da insurreição que aqui acaba de se realizar.
Zinoviev levantou-se e gritou:
— Sim! Ele esteve ausente... Mas só por alguns minutos! — (Violento
tumulto. Gritos: "Abaixo os bolcheviques!") — Tchernov continuou:
— Preciso desmentir categoricamente os que afirmam que ajudei a
preparação militar de um ataque a Petrogrado. Essa acusação não tem
nenhum fundamento. É inteiramente falsa. Em que se baseia essa acusação?
Exijo uma prova!
Zinoviev:
— O Izvéstia e o Dielo Naroda, seu próprio jornal! Eis a prova!
A volumosa face de Tchernov, com seus pequenos olhos, com a
cabeleira solta ao vento e a barba desgrenhada, ficou escarlate de raiva. Mas,
dominando-se, prosseguiu:
— Afirmo, mais uma vez, que desconheço, completamente, tudo o que
se passou aqui e que nunca dirigi qualquer exército a não ser este — e
apontou para os delegados camponeses — que está aqui presente, em grande
parte, por minha causa. — (Risos e gritos: "Muito bem!") — Assim que
cheguei, compareci ao Smólni. Lá não me fizeram qualquer acusação dessa
espécie... Depois de ligeira palestra, saí. Eis tudo! Quem será agora capaz de,
novamente, me acusar?
Formidável tumulto na assembléia. Os bolcheviques e vários socialistas
revolucionários da esquerda, de pé, gritavam, com os punhos cerrados,
ameaçando, enquanto o resto da assistência pedia silêncio, gritando mais alto
ainda.
— Isto aqui não é uma sessão! Que escândalo! — gritou Tchernov. E
saiu da sala. A sessão foi suspensa. Discutia -se, agora, a questão da situação
do Comitê Executivo, como órgão legalmente eleito pelo congresso anterior.
Ele havia declarado que o Congresso ali reunido era uma simples
"conferência extraordinária", a fim de impedir a eleição do novo Comitê
Executivo. Mas essa declaração constituía uma arma de dois gumes.
De fato: a ala esquerda dos socialistas revolucionários resolveu que, se o
Congresso não possuía poderes para eleger um novo comitê executivo, o
antigo não podia também ter qualquer autoridade sobre aquele. Na reunião
de 25 de novembro, foi resolvido que os poderes do Comitê Executivo
passariam a ser exercidos pela conferência extraordinária e que só os
membros do Executivo teriam direito a voto.
Mas, no dia seguinte, apesar da enérgica oposição dos bolcheviques, foi
aprovada uma emenda estendendo o direito de voto a todos os membros do
Comitê Executivo, independentemente de sua condição de delegados ele itos
ou de simples membros do Executivo.
A discussão sobre a questão agrária realizou-se no dia 27. Nesse dia,
manifestaram-se nitidamente as diferenças entre o programa agrário
bolchevique e o dos socialistas revolucionários da esquerda. Em nome da ala
esquerda do Partido Socialista Revolucionário, Koltchinski expôs,
resumidamente, a história da questão agrária, através das várias fases da
revolução:
— O Primeiro Congresso dos Sovietes dos Camponeses — disse ele —
aprovou a imediata divisão das terras entre os camponeses, mediante a sua
entrega aos comitês agrários. Mas os dirigentes da revolução e os burgueses
no governo impediram que a questão fosse definitivamente resolvida antes
da convocação da Assembléia Constituinte. No segundo período da
revolução, no "período dos compromissos", o fato mais importante foi a
entrada de Tchernov para o governo. Os camponeses, nesse momento,
julgaram que a questão agrária ia ser, afinal, resolvida praticamente. Mas,
não obstante o Primeiro Congresso declarar, categoricamente, que a terra
deveria ser entregue aos comitês agrários, os elementos reacionários e
"conciliadores" do Comitê Executivo impediram a realização prática dessa
decisão. Em conseqüência da demora, os camponeses, cansados de esperar,
vendo que suas aspirações não eram satisfeitas, começaram a manifestar
impaciência por meio de uma série de atos violentos. Compreendendo o
verdadeiro significado da revolução, resolveram transformar as promessas,
as palavras, em realidade. Os acontecimentos destes últimos tempos —
continuou o orador — não são uma simples aventura bolchevique, um
pequeno motim, mas um verdadeiro levante popular, que conta com o apoio
e a simpatia de toda a Rússia... A posição dos bolcheviques em relação ao
problema da terra é, em suas linhas gerais, justa. É mesmo a única posição
possível. Mas os bolcheviques erraram profundamente quando disseram que
os camponeses deviam tomar a terra por iniciativa própria. Os bolcheviques
há muito tempo vêm dizendo que os camponeses devem tomar as terras por
meio de uma ação revolucionária das massas. Ora, isto é preconizar a
anarquia. A entrega da terra aos comitês agrários pode ser realizada pacífica
e ordenadamente. Os bolcheviques preocupam-se, unicamente, em resolver
as coisas o mais depressa possível. Não procuram averiguar qual a melhor
maneira de resolver os problemas. O decreto sobre a terra, promulgado pelo
Congresso dos Sovietes, e as decisões do Primeiro Congresso Camponês
são, em última análise, perfeitamente iguais. Por que motivo o novo governo
não adotou as diretrizes táticas desse congresso? Pela razão seguinte: o
Conselho dos Comissários do Povo queria resolver a questão da terra antes
da convocação da Assembléia Constituinte. O governo, naturalmente,
compreendeu que era preciso fazer alguma coisa, na prática. Mas não refletiu
quando aceitou as regras estabelecidas pelos comitês agrários. Em virtude
disso é que surgiu a seguinte situação contraditória: enquanto o decreto do
Conselho dos Comissários do Povo estabelece a abolição da propriedade
privada, o regulamento criado pelos comitês agrários está baseado,
justamente, na propriedade privada... De qualquer forma, nada se perdeu,
porque os comitês agrários não dão a menor importância às decisões do
governo soviético e só levam à prática o que resolvem por si mesmos. E o
que os comitês resolvem é a expressão da vontade da imensa maioria dos
camponeses! Os comitês agrários não procuram resolver as coisas dentro de
determinadas normas legislativas. Essas normas serão estabelecidas pela
Assembléia Constituinte. Poderá ela, porém, atender às reivindicações
camponesas? O futuro o dirá. Estamos convictos de que a decisão
revolucionária obrigará a Assembléia Constituinte a resolver a questão da
terra em harmonia com os desejos dos camponeses. A Assembléia
Constituinte não terá coragem de passar por cima da vontade popular...
Lênin pediu a palavra, sendo ouvido, desta vez, com a maior atenção:
— Neste momento, está em jogo não só a questão da terra, mas o
problema da revolução social. E esse problema não se limita à Rússia: é um
problema de importância mundial. A questão da terra não pode ser separada
das demais questões da revolução social. Para confiscarmos a terra, teremos
de vencer não só a resistência dos proprietários russos, como a resistência do
capital estrangeiro, porque os proprietários estão ligados a ele, através dos
bancos. O regime da propriedade territorial na Rússia, baseava-se na mais
terrível exploração dos camponeses. Confiscando as terras dos grandes
proprietários feudais, os camponeses realizaram o mais importante ato da
nossa revolução. Para provarmos isto basta examinar as etapas percorridas
pela revolução. Na primeira etapa, a autocracia, o poder da indústria
capitalista e dos grandes proprietários, cujos interesses estão intimamente
ligados, foi derrubada. Na segunda, os sovietes consolidam-se. É nesta etapa
que se firma um compromisso político com a burguesia. Os socialistas
revolucionários da esquerda erraram porque não se opuseram a esse acordo.
E, para justificar sua atitude, disseram que, nesse momento, a consciência
revolucionária das massas era ainda muito débil. Ora, se fôssemos esperar
que todos os homens atingissem o mesmo grau de consciência para só depois
disso lutar pelo socialismo, teríamos de esperar uns quinhentos anos para
começar a luta!... O partido político do proletariado é a vanguarda da classe
operária e, como vanguarda das massas, deve, ao contrário, lutar para
arrastar essas massas atrás de si. Para tanto, os sovietes devem ser utilizados
como instrumentos de iniciativa revolucionária. Mas, para dirigir os
vacilantes, para arrastá -los, é preciso que os socialistas revolucionários da
esquerda deixem de vacilar. De julho para cá, as massas populares
começaram a romper com os "conciliadores". Apesar disso, a esquerda
revolucionária ainda estende a mão a Avksentiev... Conservar os
compromissos é matar a revolução. Firmar acordos com a burguesia é trair a
revolução. Não precisamos de entendimentos ou de compromissos com a
burguesia. Precisamos, sim, esmagar completamente o poder burguês! O
Partido Bolchevique não repudiou seu programa quando aceitou os
regulamentos elaborados pelos comitês agrários, porque esses regulamentos
não implicam a conservação da propriedade privada. Queremos encarnar, na
prática, a vontade popular. Queremos ser os executores da vontade do povo,
porque, de outro modo, não poderemos fundir, num só bloco, todos os
elementos da revolução social. Já convidamos os socialistas revolucionários
a ingressar no novo governo. Novamente lhes fazemos o mesmo convite. Só
estabelecemos uma condição. Exigimos que os socialistas revolucionários da
esquerda rompam, definitivamente, com os elementos vacilantes do seu
partido. Os socialistas revolucionários precisam romper com seu passado e
olhar para a frente...
O orador que me precedeu disse que as decisões da Assembléia
Constituinte serão determinadas pela pressão revolucionária das massas.
Concordamos. Mas achamos que é preciso apresentar a questão da seguinte
maneira: "Camponeses! Confiem na pressão revolucionária, mas não
esqueçam nunca que em suas mãos há um fuzil!"
Em seguida, Lênin leu o seguinte projeto, elaborado pelos bolcheviques:
"O Congresso Camponês aprova, por unanimidade, e sem qualquer
restrição, o decreto sobre a terra que foi promulgado a 8 de novembr o último
pelo Conselho dos Comissários do Povo, na qualidade de Governo
Provisório Operário e Camponês da República Russa, reconhecido pelo
Congresso Pan-Russo dos Deputados Operários e Camponeses.
"O Congresso Camponês declara que está disposto a lutar sem a menor
vacilação e com todas as suas forças para fazer aplicar na prática o decreto
sobre a terra. Ao mesmo tempo, aconselha todos os camponeses não só a
apoiá-lo, como a aplicá-lo na prática, por si mesmos, sem perda de um
minuto. Aconselha também todos os camponeses a eleger para os cargos
importantes unicamente pessoas que já tenham demonstrado, não por
palavras, mas através de atos, sua capacidade de lutar com a maior
abnegação pelos interesses dos camponeses contra toda resistência dos
grandes proprietários, dos capitalistas e de todos os seus lacaios e
defensores. O Congresso Camponês declara também estar convencido de
que as decisões do decreto sobre a terra só poderão ser definitivamente
asseguradas com a vitória da revolução proletária socialista iniciada a 7 de
novembro. Só a vitória dessa revolução poderá assegurar a divisão de terras
entre os camponeses, o confisco das máquinas agrícolas e a defesa dos
interesses de todos os assalariados agrícolas, através da abolição imediata e
definitiva do sistema de escravidão capitalista, com a distribuição racional e
regular dos produtos da agricultura e da indústria por todas as diferentes
regiões do país, entre seus habitantes, através da nacionalização dos bancos
(condição indispensável para que a terra se transforme, efetivamente, em
propriedade coletiva) e da ajuda sistemática à agricultura, aos trabalhadores,
aos explorados, etc, por parte do Estado.
"Por todos esses motivos, o Congresso Camponês, ao mesmo tempo que
se declara inteiramente solidário com a Revolução Socialista de 7 de
novembro, afirma sua vontade de lutar, com a maior energia e sem
vacilações, em prol da aplicação das medidas necessárias à transformação
socialista da Rússia. "Sem a mais estreita união dos trabalhadores explorados
do campo com a classe operária e com o proletariado de todos os países, a
revolução socialista não poderá vencer, nem o decreto sobre a terra poderá
ser aplicado integralmente. De agora em diante, toda a organização do
Estado, na Rússia, será erguida na base desta estreita união. Essa união das
massas exploradas do campo com a classe operária e o proletariado de todos
os países garante a vitória do socialismo no mundo inteiro, desde que se
exclua toda tentativa, direta ou indireta, clara ou disfarçada, de colaboração
com a burguesia ou com seus políticos influentes."
Os reacionários do Comitê Executivo já não tinham mais coragem para
manifestar abertamente suas opiniões. Tchernov, entretanto, falou várias
vezes. E foi tão hábil, tão modesto e tão imparcial nos seus discursos, que
conquistou simpatias, chegando a ser eleito membro do Comitê Executivo.
Na noite seguinte, a mesa recebeu um requerimento anônimo, solicitando a
indicação de Tchernov para a presidência honorária do Congresso. O
Presidente Ustinov leu o requerimento em voz alta. Mal havia terminado,
Zinoviev ergueu-se para protestar, denunciando o pedido como uma
manobra do antigo Comitê Executivo a fim de apoderar-se da direção do
Congresso. A assembléia transformou-se imediatamente num oceano
encapelado de braços erguidos e de fisionomias deformadas pela cólera.
Tchernov, apesar de tudo, ainda era muito popular.
Os debates a respeito da questão agrária e do projeto de resolução
apresentado por Lênin foram muito agitados. Por duas vezes os bolcheviques
quiseram abandonar o Congresso. Mas seus chefes não os deixaram sair.
Nesse momento, tive a impressão de que o Congresso falhara em suas
finalidades.
Não se sabia, entretanto, que, naquele mesmo instante, no Smólni,
realizava-se uma reunião secreta, da qual participavam representantes
bolcheviques e socialistas revolucionários. Os socialistas revolucionários da
esquerda, a princípio, exigiram a formação de um governo com a
participação de todos os partidos socialistas, representados ou não nos
sovietes.
Esse governo ficaria subordinado a um conselho de comissários do povo,
formado por todas as organizações de operários e soldados, pelas
organizações camponesas, pelas dumas municipais e ziemstvos. Lênin e
Trótski seriam afastados. O Comitê Militar Revolucionário e todos os
demais órgãos de repressão deveriam ser imediatamente dissolvidos.
Só na manhã de quarta-feira, dia 28 de novembro, depois de violenta
discussão que durou a noite inteira, chegou-se a um acordo. Ficou resolvido
que se juntariam aos cento e oito membros do Tsik cento e oito delegados do
Congresso Camponês, eleitos por representação proporcional; cem
delegados eleitos diretamente pelo Exército e pela Marinha; cinqüenta como
representantes dos sindicatos (trinta e cinco dos sindicatos pan-russos, dez
dos ferroviários e cinco dos empregados dos Correios e Telégrafos). Dessa
maneira, as dumas e os ziemstvos não indicavam delegados; Lênin e Trótski
permaneciam no governo; e o Comitê Militar Revolucionário continuava a
existir.
As sessões do Congresso foram transferidas para a Escola Imperial de
Direito, na Rua Fontanka, número 6, transformada agora em sede do Comitê
Executivo dos Sovietes dos Camponeses. No anfiteatro da escola, reunia -se,
à tarde, a assembléia dos delegados. Numa sala contígua, o Comitê
Executivo, depois de retirar-se da assembléia, realizava uma sessão de
caráter oficioso, com a presença de alguns delegados dos grupos
descontentes e dos antigos comitês do Exército.
Tchernov acompanhava com a maior atenção os debates nas duas
assembléias, indo e vindo de uma parte a outra. Já sabia que os bolcheviques
e socialistas revolucionários estavam negociando, mas ignorava, ainda, que
esse acordo já estava firmado. Por isso, falando perante a assembléia oficiosa
do Comitê Executivo, disse o seguinte:
— Hoje, quando todo mundo é partidário de um governo pan-socialista,
convém lembrar que o primeiro ministério não foi um governo de coalizão,
pois só continha um socialista. Esse único socialista era Kerenski. A
princípio, o governo foi popular. Hoje, entretanto, acusa-se Kerenski. Mas é
preciso não esquecer que ele foi elevado ao poder pelos sovietes e pelas
massas populares. Como se explica essa mudança de atitude em relação a
Kerenski? Os selvagens adoram seus deuses, mas fazem-lhes pedidos. E,
quando não são atendidos, atiram as divindades por terra... É isto o que
acontece entre nós. Ontem, Kerenski; hoje, Lênin e Trótski; amanhã,
outros... Aconselhamos Kerenski a abandonar o poder. Damos, agora, o
mesmo conselho aos bolcheviques. Kerenski aceitou-o. Acaba de se demitir
do cargo de primeiro-ministro. Mas os bolcheviques teimam. Conservam-se
ainda no poder, apesar de não saberem como exercê-lo. O destino da Rússia
já está traçado. A vitória ou a derrota dos bolcheviques não irá modificá-lo.
Os povos que vivem na Rússia sabem o que querem. E já começam a agir
por si sós... Os camponeses salvarão a Rússia...
Justamente nesse momento, Ustinov, na sala da grande assembléia,
anunciou que acabava de ser firmado um acordo entre o Congresso
Camponês e o Smólni. A sala inteira vibrou de entusiasmo e alegria. De
repente, surgiu Tchernov e pediu a palavra:
— Acabo de saber, neste instante — começou —, que se está
combinando um acordo entre o Congresso Camponês e o Smólni. Mas esse
acordo será ilegal, porque o verdadeiro Congresso dos Sovietes dos
Camponeses só se reúne na próxima semana... Além disto, devo prevenir a
todos vocês que os bolcheviques nunca aceitarão as exigências deste
congresso.
Enorme gargalhada cortou-lhe a palavra. Tchernov, compreendendo a
situação, desceu da tribuna e retirou-se da sala, levando consigo sua
popularidade...
Já anoitecia quando, na quinta-feira, 29 de novembro, o Congresso se
reuniu em sessão extraordinária.
A assembléia tinha aspecto festivo. Em todos os rostos, sorrisos.
Discutiram-se, rapidamente, as questões da ordem-do-dia que não haviam
sido ainda aprovadas na reunião anterior. Em seguida, o velho Natanson,
antigo militante dos socialistas revolucionários da esquerda, com sua longa
barba branca, tremendo, com a voz pouco firme e os olhos rasos de água,
começou a ler a "Ata do Casamento" do Soviete dos Camponeses com o
Soviete dos Operários e Soldados. E, sempre que, no decorrer da leitura,
Natanson pronunciava a palavra "união", a assembléia aplaudia em delírio!
Já no fim da sessão, Ustinov anunciou a chegada de uma delegação do
Smólni, em companhia de representantes do Exército Vermelho. A
delegação entrou na sala debaixo de aplausos entusiásticos. Primeiro um
operário, depois um soldado e um marinheiro subiram à tribuna, para saudar
o Congresso.
Em seguida, Boris Reinstein, delegado do Partido Operário Socialista
dos Estados Unidos, usou da palavra:
— O dia de hoje — disse —, dia em que o Congresso dos Camponeses
se une ao Soviete dos Deputados Operários e Soldados, é um dos maiores
dias da revolução. Em Paris, em Londres, no mundo inteiro e além do
oceano, em Nova York, estes acontecimentos irão ecoar profundamente. A
união que se acaba de celebrar vai encher de alegria o coração de todos os
oprimidos. Uma grande idéia venceu. O Ocidente e os Estados Unidos
estavam certos de que a Rússia, o proletariado russo, realizariam grandes
feitos. O proletariado do mundo inteiro tem os olhos voltados para a
Revolução Russa. Ele espera a grande obra que já começa a se concretizar!
Sverdlov, presidente do novo Tsik, saudou o Congresso. Logo depois, os
camponeses deixaram a sala, gritando: — Viva o fim da guerra civil! Viva a
democracia unida!
Já era noite. O brilho das estrelas e o suave clarão da lua refletiam-se na
neve. O Regimento Pavlovsk, em uniforme de campanha, estava formado à
margem do canal. Sua banda tocava a Marselhesa sob a aclamação dos
soldados. Os camponeses desfraldaram a bandeira vermelha do Comitê
Executivo do Soviete Camponês da Rússia, na qual pouco antes se havia
bordado, com letras douradas, a seguinte inscrição: "Viva a união das massas
trabalhadoras revolucionárias!"
Formou-se o cortejo. Logo atrás vinham outras bandeiras, na maioria dos
sovietes de bairros. Entre elas, destacava-se a da Fábrica Putilov, com a
inscrição: "Inclinemo-nos diante desta bandeira, a fim de criar a fraternidade
entre os povos!"
Surgiram archotes acesos, espalhando na escuridão reflexos
avermelhados, que os cristais de gelo multiplicavam em todas as direções.
As cabeleiras fumegantes das tochas erguiam-se sobre o cortejo, que
avançava cantando ao longo da Fontanka, no meio de milhares de homens
mudos e surpresos.
— Viva o Exército Revolucionário! Viva a Guarda Vermelha! Vivam as
massas trabalhadoras dos campos!
A imensa procissão percorreu a cidade. O cortejo cada vez aumentava
mais. A todo instante, novas bandeiras vermelhas juntavam-se às que já
tremulavam ao vento. Velhos camponeses caminhavam apoiados nos braços
de seus companheiros. E, nos seus rostos enrugados, resplandecia uma
felicidade infantil.
— Ah! — dizia um deles. — Quero ver agora quem é capaz de nos tirar
as terras!
A Guarda Vermelha estava formada nos arredores do Smólni, ladeando
as calçadas. Nas suas fileiras havia uma alegria indescritível.
Um camponês, também já velho, disse ao vizinho:
— Não estou cansado. Tenho a impressão de que viajei até agora
carregado no ar.
Na escadaria do Smólni, mais de cem deputados operários e soldados,
com suas bandeiras, apareciam como uma massa escura, destacando-se no
fundo claro do edifício, de onde a luz jorrava pelas janelas e arcadas. Uma
verdadeira onda humana precipitou-se sobre os camponeses. Soldados e
operários apertavam-nos de encontro ao peito, beijando-os fraternalmente,
no auge da alegria. Abertas as portas do Smólni, o cortejo penetrou no
interior do edifício. Os passos de milhares e milhares de homens, subindo a
escadaria, faziam um ruído semelhante ao trovão.
No grande salão branco do Smólni, o Comitê Central Executivo dos
Sovietes e todo o Soviete de Petrogrado esperavam a multidão, cercados por
mais de mil espectadores. A sala tinha o aspecto solene dos grandes
momentos históricos.
Zinoviev apresentou um relatório do acordo estabelecido entre o Soviete
dos Operários e Soldados e o Congresso Camponês. Todos os presentes
aplaudiram ruidosamente. Quando, ao som da música, os primeiros
camponeses do cortejo entraram na sala, verdadeira tempestade de aplausos
estrugiu demoradamente. A presidência levantou-se para dar lugar, junto a
si, no estrado, à presidência do Congresso Camponês, que com ela trocou
demorados abraços. Atrás do estrado, sobre o fundo branco da parede, foram
colocadas as bandeiras vermelhas, entrelaçadas, justamente em cima da
moldura de ouro que, dias antes, ainda ostentava o retrato do czar...
Sverdlov abriu essa sessão grandiosa saudando os presentes, em curto
discurso. Maria Spiridonova subiu à tribuna. Seu vulto magro e pálido, seus
óculos, emprestavam-lhe o aspecto de uma professora inglesa. Ninguém
diria que essa era a mulher mais poderosa e amada da Rússia.
— Os operários da Rússia têm diante de si perspectivas históricas até
agora desconhecidas. Todos os movimentos revolucionários do proletariado,
até o presente, foram derrotados. O movimento atual é internacional. Eis por
que é invencível. No mundo inteiro, não há força capaz de extinguir este
incêndio revolucionário. O velho mundo desmorona-se e um novo mundo
nasce...
Quando Maria Spiridonova desceu da tribuna, Trótski levantou-se, cheio
de entusiasmo:
— Camaradas camponeses! Recebam nossos sinceros cumprimentos!
Aqui, vocês não são convidados, mas donos desta casa, onde palpita o
coração da revolução. Nesta sala, está concentrada a vontade de milhões de
operários. De hoje em diante, todas as terras da Rússia têm um único dono: a
união dos operários, camponeses, soldados e marinheiros!
A seguir, Trótski falou, em tom mordaz e sarcástico, da diplomacia dos
Aliados, que continuavam a desprezar a proposta de armistício feita pela
Rússia, proposta já aceita pelas potências centrais.
— Hoje nasce uma humanidade nova. Juramos, neste momento, perante
o proletariado do mundo inteiro, que permaneceremos em nosso posto
revolucionário sem um só instante de desfalecimento! Se morrermos,
morreremos defendendo nossa bandeira!
Krilenko expôs a situação da frente. Disse que Dukhonin preparava-se
para resistir e combater o Conselho dos Comissários do Povo.
— Que Dukhonin e seus cúmplices saibam que esmagaremos sem
piedade todos aqueles que procuram obstruir o caminho da paz!
Dibenko saudou a assembléia em nome da Marinha. Kruchinki, membro
do Vikjel, declarou:
— Agora, quando todos os verdadeiros socialistas já estão unidos, o
exército dos ferroviários coloca-se às ordens da democracia revolucionária.
Chegou a vez de Lunatcharski. Emocionado, com lágrimas nos olhos, fez
um pequeno discurso. Depois, Prochian falou em nome da ala esquerda do
Partido Socialista Revolucionário. Por último, Sakharachvili, em nome do
grupo dos internacionalistas unificados, constituído pela fusão dos grupos de
Martov e Górki, afirmou:
— Abandonamos o Tsik em virtude da intransigência dos bolcheviques.
Quisemos forçá-los a fazer concessões para ser possível a união de todas as
correntes da democracia revolucionária. Essa união, agora, já está realizada.
Por isso, achamos que nosso dever é voltar aos nossos postos, no Tsik.
Entendemos que os que abandonaram o Tsik devem voltar aos antigos
postos.
Stachkov, velho camponês de aspecto respeitável, membro da
presidência do Congresso Camponês, depois de voltar-se para os quatro
cantos da sala, disse:
— Todos nós estamos de parabéns pelo batismo da nova vida e da nova
liberdade que hoje começam a existir na Rússia.
Gronski, em nome da social-democracia da Polônia; Skripnik, em nome
dos comitês de fábrica; Titonov, em nome das tropas russas de Salonica, e
outros, ocuparam a tribuna, dando livre expansão aos seus sentimentos, que
se manifestaram com a eloqüência característica dos desejos realizados.
Noite adentro, sucederam-se os discursos. Já muito tarde, foi posta em
votação e aprovada por unanimidade a seguinte resolução:
"O Comitê Central Executivo Pan-Russo dos Sovietes dos Operários e
Soldados, o Soviete de Petrogrado e o Congresso Extraordinário de
Camponeses aprovam os decretos a respeito da questão agrária e da paz,
promulgados pelo Segundo Congresso dos Sovietes dos Deputados
Operários e Soldados, assim como o decreto sobre o controle operário,
promulgado pelo Comitê Central Executivo Pan-Russo.
"Em assembléia conjunta, o Tsik e o Congresso Camponês declaram
estar firmemente convencidos de que a união dos operários, soldados e
camponeses — a união fraternal de todos os trabalhadores e de todos os
explorados — garante a consolidação do poder, que as massas laboriosas
acabam de conquistar, e a aplicação das medidas revolucionárias necessárias
para acelerar idêntica conquista pelos obreiros de todos os países do mundo,
assegurando, desse modo, a vitória definitiva da causa da paz e do
socialismo."

O AUTOR E SUA OBRA

Combateu nas barricadas. A sua arma era o lápis, tal como a do
ferreiro, lutando a seu lado, talvez fosse o martelo.
Mesmo examinada do ponto de vista jornalístico, a atividade de John
Reed foi admirável. Os acontecimentos de uma semana, que os seus colegas
considerariam simples lutas episódicas entre os partidos russos, ou
incidentes pouco importantes da guerra, foram para John Reed dias que
abalaram o mundo.
Qualquer outro repórter norte-americano, no seu lugar, teria enviado
aos jornais pequenas informações lacônicas, sensacionalistas, sem base,
sem explicações, mas cheias de lances dramáticos e horripilantes.
John Reed, o jornalista, não se limitou apenas à descrição diária dos
acontecimentos. Compreendeu a responsabilidade do seu testemunho
perante a história, e, por isso, procurou documentar cada fase da luta,
reproduzindo os discursos por inteiro, registrando-lhe as decisões. Buscou
saber por que motivos as tentativas de acordo fracassaram. Traçou,
rapidamente, o perfil dos deputados nos congressos. Disse por quantos
votos esta ou aquela proposta foi rejeitada, dando importância enorme a
pequeninos pormenores que outros, por certo, julgariam supérfluos.
John Reed compreendeu, nitidamente, que não bastava saber quem
venceria nessas jornadas de outubro, pois estavam em jogo questões que
iriam deixar vestígios profundos e indeléveis na vida da humanidade.
Se esses dez dias nada tivessem resolvido, se não houvessem modificado
a estrutura do mundo, a obra de Reed, com todas as minúcias objetivas,
informações sobre as propostas em votação, sobre os locais onde se
passaram os acontecimentos, com as descrições das personagens, etc,
mesmo assim seria ainda de enorme interesse, porque nela palpita o
entusiasmo apaixonado de um cronista que considera esses dez dias como
um período histórico de importância ete rna, imortal. Eis por que nenhum
pormenor de sua obra é supérfluo e, antes, todos eles são complementos
indispensáveis, sem os quais seria impossível reproduzir fielmente o
movimento dos atores e o brilho dos combates. Graças justamente a tais
minudências é que as suas informações adquirem valor inestimável e se
tornam expressão magnífica do mais puro jornalismo clássico.
O valor literário da obra de Reed é hoje universalmente reconhecido.
Foi com espanto que a crítica burguesa se viu obrigada a reconhecer o livro
de Larissa Reissner "A frente" (livro que pode ser considerado a
continuação de "Os dez dias que abalaram o mundo") como uma obra que
ultrapassa em perfeição e realismo tudo o que se escreveu com caráter
informativo sobre a guerra mundial. Hoje, essa mesma crítica não pode
também ocultar o valor do trabalho de Reed.
Mas só os que julgaram essas obras do ponto de vista unilateral da
estética poderiam ficar assim admirados. Não é por mero acaso que
Reissner e Reed conseguem transformar fatos rudes e acontecimentos secos
em narrações que, pela força de expressão, pela sensação e interesse que
despertam, podem ser equiparadas às melhores novelas até hoje escritas e
que exerceram papel decisivo na história contemporânea. Reed e Reissner
realizaram esse milagre porque escreveram, reproduzindo de maneira
impecável, a verdade social, intransigente.
Alguém já disse que o valor real de um artista deve ser aquilatado pelo
grau da sua penetração social. A tese tem a seu favor obras como "O fogo",
de Henri Barbusse, ou como "Jemmie Higgins", de Upton Sinclair (dois
autores da mesma corrente intelectual de Reissner e Reed). Mas a sua
exatidão melhor se evidencia quando se verifica que Reissner e Reed,
escrevendo sem nenhuma preocupação literária, conseguiram, talvez
justamente por isso, realizar trabalhos de qualidade artística muito valiosa.
A grandeza de John Reed está, sobretudo, na atitude que adotou.
A afirmativa tendenciosa de que a verdade reside no meio-termo, ou de
que não há verdade absoluta, não exerceu nenhuma influência sobre ele.
Desde os primeiros momentos, Reed compreendeu de que lado estava
realmente a verdade. E, sem vacilar um só instante, colocou-se
resolutamente a seu lado.
Não é fácil avaliar atualmente o enorme significado desta conduta.
Naquela época, todos os jornais a soldo dos Aliados, dos aristocratas e seus
partidários, dos generais, dos oficiais e do inumerável exército de
suboficiais profissionais, dos grandes proprietários de terra, dos capitalistas
e da sua formidável propaganda, todos, enfim, tremiam diante do novo
poder. Os Aliados e a grande legião de políticos seus defensores, os partidos
burgueses, os mencheviques, levantavam um oceano de calúnias contra os
bolcheviques. E as ondas imundas desse oceano, saltando por uma das
fronteiras da Rússia, inundavam o mundo inteiro.
Quem poderia negar que Lênin e os outros chefes da facção bolchevique
tinham chegado à Rússia com o auxílio do Estado-Maior inimigo, o Estado-
Maior alemão? Não estavam os mais velhos militantes socialistas ao lado
dos mencheviques? Os socialistas revolucionários não haviam também
lutado contra o czarismo por meio de atentados terroristas? Com que
direito] então, impediam os bolcheviques a sua colaboração num novo
governo, num governo comunista? Por que razão não participavam do
poder, pelo menos como representantes de uma minoria?
Saberia porventura John Reed que essa colaboração significava o
fortalecimento do capitalismo? Compreenderia que, em determinada etapa
de desenvolvimento das revoluções, certos elementos, antes rebeldes, se
portam na prática como contra-revolucionários? Estaria orientado,
inspirado em Lênin, que, com mão firme, havia anos, preparava a
sublevação em todos os seus pormenores?
Seja como for, o certo é que John Reed soube orientar-se no meio desse
labirinto de hipóteses e seguir em linha reta o caminho que escolheu.
Doze anos após a vitória da Revolução, analisando os seus instantâneos
jornalísticos, não se pode deixar de reconhecer que qualquer pacto com
mencheviques ou socialistas revolucionários modificaria, por certo, o rumo
dos acontecimentos. Se tal acontecesse, os bolcheviques não teriam podido
desalojar o adversário de todas as posições para passarem, em seguida, à
realização prática do Manifesto comunista. Os mencheviques e socialistas
revolucionários, que, naquela época, reclamavam o direito de participar no
novo governo, aliaram-se depois à aristocracia e ao capital contra a
Revolução Russa. E quantos insistiam nessa colaboração revelaram-se
também, mais tarde, elementos merecedores de restrita confiança.
Portanto, os artigos de John Reed não são apenas documentos de
grande valor histórico. Constituem, também, verdadeiras profecias.
Eis a opinião de Lênin sobre esta obra:
"Li o livro de John Reed com o maior interesse e uma atenção constante.
Do fundo do coração, recomendo-o aos operários de todos os países. O meu
desejo é que seja traduzido em todas as línguas e difundido aos milhões de
exemplares. Este livro traça um quadro extremamente vivo e fiel dos
acontecimentos. E, sem conhecer esses acontecimentos, não seria possível
compreender, em toda a sua extensão, os problemas relacionados com a
revolução proletária e a ditadura do proletariado. Tais idéias, sem dúvida
alguma, já foram discutidas a fundo. Mas, antes de aceitar ou de repelir
essas idéias, é necessário aprender o significado da atitude que se vai
adotar. O livro de John Reed, indiscutivelmente, auxiliará bastante o
esclarecimento de todos os pontos que constituem o fundamento da
revolução operária internacional".
Deste modo, Lênin não só faz justiça aos méritos de John Reed, como
também proclama que o seu livro é um documento verídico, uma arma do
proletariado, que luta pela liberdade.
Não foi por acaso, nem como turista curioso, em busca de sensações,
que Reed entrou na Revolução Russa. Não foi tampouco sem preparação
que descreveu, com entusiasmo e talento, os passos revolucionários. Reed
não era de origem proletária. O pai fora um rico proprietário em Portland
(Estados Unidos), no Estado de Oregon. Nasceu a 22 de outubro de 1887, e,
depois de terminar os estudos primários, pôde cursar a Universidade de
Harvard, a escola dos americanos ricos.
A Universidade de Harvard! O filósofo Emerson, há sessenta anos,
mostrou todo o ridículo do "liberalismo" dessa universidade, que não podia
ser o que devia ser. Uma universidade sem o direito de tornar-se um centro
de inspiração e de difusão das novas idéias! Sem poder ser um Delfos
anunciador! Uma universidade que tinha de evitar que os seus estudantes
saíssem preparados para dirigir a sociedade!
"Na Universidade de Harvard, a grandeza de espírito é suspeita e
caluniada. Os jovens saem da universidade transformados em velhos
caducos! Um poeta ou um filósofo não conseguem viver na atmosfera dessa
escola. Ou morrem asfixiados, ou são expulsos."
Ainda hoje estas palavras de Emerson são justas. Harvard continua fiel
ao passado. O que Emerson viu em 1861 Upton Sinclair tornou a ver em
1922, quando visitou a famosa escola, a fim de colher dados para o seu livro
"A parada militar". Descrevendo a instrução norte-americana, Sinclair
afirma que a orientação do corpo docente é inteiramente anti-social. Os
professores dependem dos magnatas da eletricidade, ou chegam mesmo a
ser acionistas de grandes armazéns, de sociedades anônimas de Boston, etc.
O jornal da universidade bate-se valentemente pela liberdade de expressão,
mas combate com a mesma energia todos os discursos de propaganda.
Sem exceção, os estudantes são "meninos de boa família", filhinhos de
papai, fúteis, pretensiosos, preocupados unicamente com as "boas
maneiras", com os últimos recordes desportivos e as festas elegantes;
sempre dispostos a aprovar, sorrindo, o assassínio, na cadeira elétrica, de
Sacco e Vanzetti, ou de qualquer outro "vermelho", principalmente se essa
aprovação tiver como prêmio uma melhora na sua posição, na sua carreira
estudantil.
Entre os estudantes de Harvard, só houve uma exceção que foi
excomungada publicamente pela universidade em peso, cuja reitoria
confessou, numa sessão solene, que esse estudante era a única mancha a
empanar o brilho da famosa escola de meninos ricos.
Upton Sinclair, que pulveriza os universitários de Harvard com a sua
crítica severa e esmagadora, diz, a tal respeito:
"Houve, entretanto, um estudante de Harvard que conseguiu derrubar o
muro de gelo dos preconceitos oficiais. Foi à Rússia e deu a vida pela
Revolução. A personalidade desse estudante é tão grandiosa que por si só
faz esquecer todos os crimes cometidos pelos capitalistas norte -americanos
e pelo seu governo contra a Rússia. Daqui a cem anos, Harvard orgulharse-
á dele. Mas atualmente sente-se envergonhada porque o teve entre as
suas paredes. Quando conseguiu os dezesseis milhões de dólares que
desejava, Harvard, alardeando publicamente o seu patriotismo fanático,
resumiu em três palavras a sua 'vergonha eterna : 'Menos John Reed!' "
Realmente, foi Reed quem mereceu essa maldição. Em 1919, John Reed
obteve o diploma de direito com distinção. Durante o curso, fundou com
alguns colegas um clube socialista. Nas férias, quando passava alguns
meses em companhia dos pais, a família e as pessoas amigas ficavam
escandalizadas porque ele "vivia no meio da gentalha", isto é, preferia o
convívio dos trabalhadores nas reuniões da IWW* a palestrar com os
cérebros petrificados, esquematizados do seu meio social, ou a freqüentar os
chás elegantes. Além disso, já desenvolvia copiosa atividade literária,
escrevendo novelas, poesias e artigos.
*International Workers of lhe World (Associação Internacional dos Trabalhadores). (N.
do T.)
Ao terminar o curso universitário, foi nomeado redator do órgão radical
"The American Journal".
Como correspondente desse órgão, esteve no México, que, desde 1911,
era agitado por grande movimento revolucionário. Boris Reinstein — o
mesmo que, como delegado do Partido Operário dos Estados Unidos, tomou
parte nos combates de outubro de 1917, em Retrogrado, e que Reed cita no
seu livro — diz que John permaneceu no México durante cinco meses,
identificado em idéias com Rancho Villa, o famoso rebelde mexicano. No
seu primeiro livro de grande envergadura, "México insurgente", Reed põe a
nu o fundo real da questão mexicana: a ação corruptora, as intrigas, os
interesses do imperialismo ianque.
A obra causou sensação. Voltando o seu autor aos Estados Unidos, já
era imensamente popular. Não "por causa", mas "apesar" do caráter social
do livro. John Reed alcançou êxito pelo mesmo motivo que Jack London. É
preciso que se diga que Jack London é extraordinariamente medíocre. Mas
os americanos viram nele o boy que correu perigo no estrangeiro e que
depois soube contar as suas aventuras de maneira interessante. Assim
também foi Reed apreciado.
A sua fama de autor dramático e de poeta correu mundo. A crítica
consagrou-o. Os jornais disputavam-lhe a colaboração. O "Metropolitan
Journal" e o "World", de Nova York, pagavam-lhe nada menos de vinte e
cinco mil dólares por ano para obter, regularmente, artigos da sua lavra.
Mas o conflito entre as suas convicções socialistas, dia a dia mais
profundas, e a imprensa nova-iorquina era inevitável. Essa luta surgiu
também no seu espírito. Por um lado, o inesgotável talento de escritor
reclamava-lhe campo onde pudesse livremente expandir a sua sede de
atividade. Só jornais com tiragens de milhões de exemplares eram capazes
de garantir a repercussão profunda dos seus escritos no pensamento
popular. Entretanto, por outro lado, há muito tempo notava que, dentro de
si, nascia um rancor surdo, sempre crescente, contra a imprensa amarela,
que procurava encobrir as podridões do mundo capitalista atual com um
véu de mentiras, de informações falsas, de editoriais de encomenda, ou de
folhetins simplesmente sórdidos. E esse rancor aumentava, à medida que
Reed se revoltava, cada vez mais, contra o capitalismo explorador.
Como pôde resolver situação tão contraditória? O seu amigo Max
Eastman, em "The Liberator", depois da morte de Reed, mostra-nos como
ele pôs fim à contradição existente entre o seu íntimo e a sua atividade:
"Durante esse período, em que as redações, os salões, os cofres dos
magnatas do jornalismo capitalista estavam abertos para Reed e o seu nome
era sinônimo de alegres e audaciosas aventuras, o grande repórter
permaneceu fiel ao nosso jornal revolucionário, que nada lhe pagava e que
possuía a ínfima tiragem de dez mil exemplares. Nunca deixou de enviar
sistematicamente a sua colaboração. Tosse para onde fosse, escrevia; não
se esquecia de nos mandar um artigo, sempre melhor do que os outros,
escritos para os seus patrões capitalistas. Assim, Reed, enquanto pôde,
tentou satisfazer, ao mesmo tempo, a imprensa burguesa e a imprensa
revolucionária".
Afinal, foi obrigado a sair do "Metropolitan Journal". Picou então
privado não só dos honorários de jornalista, como de todos os recursos. A
justiça burguesa, em virtude da sua ação socialista, não lhe permitiu que
herdasse a fortuna que lhe legara o pai.
Em todas as fases agitadas das lulas sociais, Reed apoiou sempre, com o
nome e a pena, a causa dos trabalhadores. Foi preso, por ocasião da greve
têxtil de Paterson, apesar de estar no teatro dos acontecimentos como
correspondente oficial de um jornal, simplesmente porque protestou contra
as brutalidades da polícia, que, como de costume, maltratava, prendia e
espancava os operários.
Na prisão escreveu o epigrama "O hotel do Xerife Rutcliffe",
denunciando as torturas e os sofrimentos dos detidos. O folheio causou
sensação. Por causa dessa publicação, Reed foi expulso do Estado de Nova
Jersey. Em seguida organizou um grande comício na cidade para onde foi
recambiado. No dia do comício havia tanta gente, que a polícia julgou
melhor não intervir. Logo depois, no Madison Square Garden, o maior
recinto de Nova York, ao fazer uma conferência, referiu-se à grande luta dos
operários têxteis de Paterson, que tinham de bater-se contra o capital, a
polícia e a justiça. O efeito dessa conferência foi tremendo. Toda a imprensa
teve de noticiar as violências praticadas contra os operários pelos agentes
da burguesia.
Nessa época, John Reed estava no apogeu da fama. Admiravam-no pelo
seu amor à verdade e pela força de expressão dos seus discursos e escritos.
A seguir, John Reed organizou uma grande campanha de imprensa
contra a Standard Oil Company, que mandara assassinar vários operários,
na greve dos poços de petróleo de Maiona. Os seus artigos sobre o assunto
aparecem no "New York Tribune" e no "Metropolitan Journal". Como o
público acompanhasse a campanha com franca simpatia e dia a dia se
mostrasse mais indignado contra o truste petrolífero, Rockefeller moveu um
processo contra os jornais que o acusavam. Mas logo de início a ação ficou
prejudicada, pois os juizes foram obrigados a reconhecer que as acusações
formuladas por John Reed não podiam ser consideradas como calúnias.
John Reed, em 1914, afrontou novamente as iras do czar dos Estados
Unidos, o rei dos milionários, John Rockefeller, quando se verificou uma
greve dos trabalhadores nos poços de petróleo da Standard OU, no
Colorado. Reed tinha, então, apenas vinte e sete anos. Os grevistas, que se
haviam refugiado em Ludlow, sob barracas de campanha, foram dali
desalojados, à noite, por agentes de Rockefeller, armados de tochas, que
derramaram petróleo nas barracas e as incendiaram. O fogo destruiu o
acampamento. Vinte pessoas, entre as quais várias crianças e mulheres,
surpreendidas pelo fogo, não puderam fugir e morreram queimadas.
Baseado nas próprias observações e na descrição dos que assistiram ao
incêndio, John Reed publicou uma exposição dos fatos tão objetiva que não
só a imprensa mas até o governo se viram na contingência de dar uma
satisfação à opinião pública, nomeando uma comissão para investigar as
causas e apurar as responsabilidades do acontecido.
Ainda em 1914, ao deflagrar a guerra, Reed seguiu para a Europa como
correspondente de vários jornais americanos. Boris Reinstein conta que
Reed não temia os perigos, indo às trincheiras mais avançadas de todas as
frentes de combate.
Quando a população da Sérvia foi obrigada a refugiar-se na Albânia,
em 1915, para livrar-se do ataque iminente das tropas de Mackensen, John
Reed acompanhou os refugiados. Mas as trágicas peripécias desse êxodo,
que custou a vida a milhares de crianças e mulheres, abalaram
profundamente a saúde de Reed. Em conseqüência das privações e dos
sofrimentos, adoeceu gravemente.
Voltando à América, fez uma série de conferências para mostrar as
barbaridades que se cometiam, tanto do lado dos Aliados, como dos
alemães. Graças a essas palestras, teve contra si, ao mesmo tempo, os
agentes de todos os beligerantes. Reed, nesse momento, já tinha em
preparação "A guerra na Europa Ocidental", onde descreve,
principalmente, os acontecimentos balcânicos.
No mesmo ano, partiu para a Rússia, que então visitava pela primeira
vez. Ao chegar, foi preso, porque afirmara que as autoridades czaristas
eram diretamente responsáveis pela organização de pogroms anti-semitas. E
aplicaram-lhe os requintados métodos da Ucrânia. Reed desapareceu de
repente, sem que ninguém soubesse de seu paradeiro. Os jornais russos não
publicaram uma só linha a tal respeito. Só mais ta rde, quando a imprensa
de Nova York, estranhando o silêncio, pediu notícias suas por intermédio da
embaixada americana em Petrogrado, os colegas começaram a procurá-lo,
conseguindo-lhe a liberdade.
Voltou à América. Entrou para a redação do "The Masses", jornal que
mais tarde passou a se chamar "The Liberator". Nesse jornal publicou
vários artigos, atacando violentamente a guerra e o militarismo. Um,
sobretudo, intitulado "Prepara o teu filho para a camisa-de-força!", fez com
que a repressão policial fechasse o jornal. Desde que os Estados Unidos
entraram na guerra, em 1917, desencadeou-se terrível reação contra o
movimento socialista e antimilitarista, expedindo-se logo ordem de prisão
contra todos os redatores do "The Masses". Os colaboradores foram
também encarcerados. John Reed escapou, porque, quando foram prendêlo,
já estava a bordo de um transatlântico, novamente a caminho da Rússia,
para onde seguia em missão jornalística, a fim de estudar a revolução de
Kerenski. Condenado à revelia, foi classificado de "incorrigível".
A intentona de Kornilov fracassara. Mas o estado de coisas reinante,
nos moldes da República democrática, deixou Reed profundamente
decepcionado. A burguesia e os latifundiários trabalhavam abertamente
para obter todo o poder. No prefácio da edição inglesa deste livro, Reed diz
que "eles pediam uma república constitucional como a francesa e a
americana, ou monarquia parlamentar semelhante à inglesa. As massas
populares, porém, desejavam libertar-se, instaurando uma verdadeira
democracia operária e camponesa".
O governo de Kerenski estava, indiscutivelmente, ao lado da burguesia e
dos senhores feudais das terras. Batia-se pela continuação da guerra, pela
dissolução dos comitês de fábrica e dos conselhos de soldados. E só
prometia a terra aos camponeses porque essa reivindicação dos
bolcheviques já se tinha transformado num irresistível movimento de
massas. Reed desmentiu as calúnias assacadas contra os bolcheviques:
"Na minha opinião, os que afirmam que os bolcheviques representam a
força destruidora ou não compreendem bem as coisas ou mentem. Acho,
pelo contrário, que são o único partido russo que possui um programa
construtivo. A meu ver, só o Partido Bolchevique será capaz de exercer o
poder em toda a Rússia.
"Se, depois de tomarem o poder, os bolcheviques fossem derrubados, em
dezembro os exércitos da Alemanha capitalista estariam em Petrogrado. E,
de novo, a Rússia voltaria a gemer sob o chicote do czar."
Este jornalista, já temperado pela experiência de outras revoluções,
compreendendo o alcance social de cada evento, conseguiu prever, de
maneira extraordinária, o sentido da transformação histórica que se
processava na Rússia. Com uma clarividência admirável, percebeu que a
luta entre os partidos terminaria pela vitória bolchevique. E não vacilou um
só momento, integrando-se nas suas fileiras e confessando-o abertamente.
No prefácio de "Os dez dias que abalaram o mundo", terminado em 1°
de janeiro de 1919, Reed escreve, na parte final:
"Em face desta luta, não me conservei neutro, porque simpatizava com
uma das partes. Quando, todavia, escrevi a história dos acontecimentos,
procurei ser apenas um repórter consciencioso, empenhado em falar a
verdade".
Após a vitória do proletariado russo, Reed ocupou um cargo no
Comissariado do Povo para os Negócios Estrangeiros,
sendo um dos encarregados da propaganda revolucionária nos países de
língua inglesa. Era um verdadeiro soldado da revolução. Tanto assim que,
ao ser dissolvida a Constituição pelos bolcheviques, quando se esperava um
golpe de força dos socialistas revolucionários com o apoio de outras facções
abertamente reacionárias, Reed, de fuzil ao ombro, juntou-se à guarda que
protegia o edifício do Comissariado dos Negócios Estrangeiros.
Entretanto, nos Estados Unidos a reação contra a atividade
revolucionária de Reed recrudescia. Boris Reinstein escreve: "No momento
em que Reed falava no Terceiro Congresso Pan-Russo dos Sovietes, a data
do julgamento do processo contra ele, por campanha antimilitarista, já fora
fixada".
Reed resolveu imediatamente comparecer perante o tribunal para
defender-se. Sabia, de antemão, que seria condenado a vinte anos de
trabalhos forçados, caso ficasse provado que havia incorrido na alçada de
um só dos artigos citados na acusação. Mas não hesitou. Embarcou para a
Finlândia, atravessando regiões ocupadas pelos guardas brancos. Ficou
retido alguns meses na Noruega, pois o governo americano não lhe
concedeu permissão para seguir viagem, embora fosse aos Estados Unidos
assistir ao julgamento do seu processo. Afinal, este se realizou sem a
presença de Reed. Mas os juizes não lavraram a sentença, transferindo-a
para mais tarde.
Assim que chegou aos Estados Unidos, pôs-se à disposição do promotor,
insistindo para que fosse marcada a data do novo julgamento.
Foi preso. Mas logo depois, mediante fiança, obteve a liberdade, para se
entregar a um intenso trabalho literário e de agitação. Foi nessa época que
terminou este livro.
No dia do julgamento, o promotor fez o que pôde para convencer os
juizes ultrapatriota s e hostis de que o "traidor da pátria" merecia ser
condenado. Para criar ambiente, mandou vir uma banda de música, a fim de
tocar hinos nacionalistas diante do Palácio da Justiça!
Começada a audiência, o acusado declarou que julgava um dever lutar
sob a bandeira vermelha da revolução proletária internacional. O
procurador perguntou: — E o acusado combateria sob a bandeira
americana, na guerra atual?" "Não!", respondeu Reed energicamente. "Por
quê?" O brioso idealista respondeu a esta pergunta com um discurso de uma
hora, no qual descreveu as barbaridades da carnificina mundial, organizada
pelos capitalistas. Os jurados comoveram-se e Reed foi absolvido.
Dai por diante, Reed lutou com todas as suas forças contra a
intervenção militar na Rússia e contra o bloqueio da República Soviética
dos Trabalhadores. Organizou comícios monstros em quase todas as
cidades dos Estados Unidos para dizer ao proletariado e ao povo americano
o que fora a Revolução Russa. Esteve preso uma infinidade de vezes. Na
Filadélfia, tendo organizado uma conferência sobre a Rússia, não pôde
realizá-la no edifício escolhido, porque a polícia impediu a entrada. Então,
apesar de todas as ameaças, Reed subiu a um tablado e começou a falar.
Milhares de pessoas ouviram-no. A polícia arrancou-o da tribuna
improvisada e carregou contra a multidão. Muitos soldados, porém,
defenderam o orador. Esse comício tão agitado impressionou
profundamente as massas operárias da Filadélfia e de outras cidades.
Processado outra vez, como "perturbador da ordem pública", Reed
novamente se defendeu. Quando os jurados declararam a absolvição, o
procurador exigiu que cada um confirmasse pessoalmente o veredicto.
Ingressando no Partido Socialista dos Estados Unidos, Reed trabalhou
intensamente na organização da ala esquerda, combatendo com a maior
energia os oportunistas, como Hiliquitt, Bager e outros. Em setembro de
1919, realizou-se em Chicago um congresso socialista. Reed aderiu ao
grupo que pretendia alicerçar esse partido até a conquista da maioria dos
seus membros para o comunismo. Mas uma outra corrente de camaradas
insistia na fundação imediata do Partido Comunista. Os chefes oportunistas
intimaram Reed e os companheiros a sair imediatamente da sala em que se
reunira o congresso. Como se negassem a fazê-lo, os chefes amarelos
chamaram a polícia para expulsar Reed e os seus correligionários.
O grupo de Reed tentou fundir-se com a facção revolucionária da ala
esquerda do Partido Socialista. Mas, como os dois grupos não chegaram a
um acordo em questões de organização e de tática, surgiram, nos Estados
Unidos, dois partidos comunistas: o Partido Comunista e o Partido
Comunista Operário, este sob a direção de Reed.
Até aí Reed fazia parte da redação do "Revolutionary Age", órgão da
ala esquerda do Partido Socialista. Mais tarde, assumiu a direção do órgão
central do Partido Comunista Operário, "The Voice of Labour". Nas suas
colunas, Reed, através de artigos escritos em linguagem facilmente
compreensível pelos operários, procurava organizar uma rede de comitês de
fábrica, lutando, ao mesmo tempo, para desmascarar a traição de Gompers
e de outros dirigentes da Federação Americana do Trabalho, ligada aos
patrões e ao governo para combater a influência anarquista na
International Workers of the World.
Continuou, não obstante, a sua atividade literária, escrevendo uma
sátira onde ridicularizava Wilson, os Aliados e a Conferência de Paz de
Versalhes, publicação acolhida com entusiasmo pelas massas.
Em outubro de 1919, querendo voltar à Rússia para trabalhar com o
Comitê Executivo da Internacional Comunista, na unificação dos dois
partidos comunistas americanos, Reed foi proibido pelo governo americano
de sair do país. Vencendo, entretanto, todos os obstáculos, conseguiu
embarcar clandestinamente e chegar à Rússia, onde participou na
elaboração das condições de fusão das duas facções comunistas dos Estados
Unidos. Escreveu para a revista "A Internacional Comunista" e reuniu
material destinado a vários trabalhos que projetava realizar na América.
Durante a sua ausência, a polícia de Chicago, baseando-se num artigo
de Reed sobre espionagem, processou-o. Condenaram-no a cinco anos de
trabalhos forçados. Apesar de o governo poder elevar ainda a pena para
vinte anos, Reed quis voltar à América em princípio de 1920, passando pela
Finlândia. Traído por um marinheiro, que prometeu ajudá-lo, foi preso,
quando o navio em que viajava ia partir para a Suécia. Esteve três meses
encarcerado na Finlândia.
Por fim, depois de ameaçar as autoridades com uma greve de fome,
conseguiu ser solto na fronteira da Rússia, onde novamente tomou parte nos
trabalhos do Comitê Executivo da Internacional Comunista.
Depois da unificação dos partidos comunistas dos Estados Unidos,
assistiu, como seu delegado, ao Segundo Congresso da IC, seguindo para
Baku, com outros delegados, para participar do Congresso dos Povos do
Oriente.
Ao voltar desse congresso, tencionava partir para a América, sem saber
a sorte que o esperava. Mas uma grave moléstia, que provavelmente havia
contraído no Cáucaso, ceifou a vida, tão cheia de energia e de entusiasmo
juvenil, do bravo militante, que se consagrara inteiramente à causa da
revolução proletária mundial.
John Reed morreu num dia gelado, três anos depois das jornadas de
outubro, em que o seu coração tanto pulsara pela libertação do povo russo.
Mas a luta ainda não estava terminada. Os mercenários estrangeiros ainda
pisavam o solo russo, tentando desfechar um golpe de morte no proletariado
revolucionário. O mundo capitalista esperava destruir a obra de Lênin e dos
seus companheiros. Mas John Reed, que no começo do embate já estava
certo de que o seu partido venceria, tinha agora a firme convicção da
vitória definitivamente consolidada.
Quando cerrou os olhos para sempre, no dia 17 de outubro de 1920,
tinha apenas trinta e três anos de idade. Mas fora uma vida fértil, fecunda,
riquíssima. Durante esses trinta e três anos, Reed trabalhara arduamente
em prol do socialismo, da revolução proletária e da difusão da verdade.
Mas jamais compreendeu, senão parcialmente, a extraordinária importância
da sua obra. Tanto que diz, no prefácio do seu livro, que, assim como hoje
tudo o que se escreveu sobre a Comuna de Paris tem o maior valor como
documentação, a sua obra poderá mais tarde ser simples fonte de
informações precisas para a história da Revolução de Outubro. O livro de
John Reed, entretanto, não é apenas material histórico de valor episódico.
Nestes últimos anos, surgiram muitos escritos sobre a Revolução Russa ou
sobre Lênin. Reed, porém, continua a ser, e será sempre, o narrador mais
perfeito, mais claro, mais vivo, mais palpitante desse acontecimento.
Além disso, o livro de Reed é uma autêntica obra de arte. Émile Zola
definiu arte como parte da verdade, vista através do temperamento. Nós,
que vivemos a época da guerra mundial, das revoluções vitoriosas e das
insurreições reprimidas, não podemos ficar satisfeitos com essa definição.
Vara nós, a arte é uma parte da verdade, vista por um temperamento
"revolucionário".
Não é fácil encontrar, para uma parte da verdade tão importante como
os combates do proletariado, em outubro de 1917, um temperamento tão
revolucionário como o de John Reed.
Na Praça Vermelha, em Moscou, perto da muralha do Kremlin, está
enterrado o filho dos burgueses americanos que tinha o coração
revolucionário. Nessa Praça Vermelha, entre as cúpulas, as muralhas e as
ameias de aspecto fantástico, descritas magistralmente no seu livro, quando
pinta o quadro dos funerais daqueles que morreram pela Revolução, nessa
mesma Praça Vermelha, John Reed dorme para sempre.
"Aqui, neste lugar sagrado, o mais sagrado de toda a Rússia, descansam
os nossos melhores camaradas", são palavras de Reed.
E ali mesmo foi sepultado. Ao seu lado, está o cadáver do homem que
encarnou o seu ideal -e foi o seu guia. John Reed não poderia, realmente,
ter desejado melhor lugar para o seu túmulo. Está ao lado do sepulcro de
Lênin.

EGON ERVIN KISCH