Capítulo VII

A FRENTE REVOLUCIONÁRIA

"Sábado, 10 de novembro.
"Cidadãos! O Comitê Militar Revolucionário declara que não permitirá a
menor perturbação da ordem revolucionária. Os roubos, os atos de
banditismo, os ataques a mão armada e as tentativas de pogroms serão
severamente reprimidos.
"Seguindo o exemplo da Comuna de Paris, o comitê eliminará sem
piedade os ladrões e os provocadores de desordens."
A cidade estava tranqüila. Nenhum assalto, nenhum roubo, nem sequer
uma briga entre bêbados. À noite, patrulhas armadas percorriam as ruas
silenciosas. Nas praças, os soldados e os guardas vermelhos, ao redor das
fogueiras, riam e cantavam. Durante o dia, grandes multidões aglomeravamse
nas calçadas para ouvir as intermináveis discussões entre estudantes,
soldados, negociantes, operários.
Os cidadãos seguravam-se pelo braço no meio da rua.
— É verdade que os cossacos vêm aí?
— Não.
— Quais são as últimas novidades?
— Não sei de nada. Por onde andará Kerenski?
— Ouvi dizer que está somente a oito verstas* de Petrogrado. É verdade
que os bolcheviques se refugiaram no cruzador Aurora?
* Medida linear que vale aproximadamente mil e sessenta e sete metros. (N. do E.)
— É o que dizem...
Nas paredes, um ou outro jornal estampava as últimas notícias:
retificações, apelos, decretos.
Um longo manifesto reproduzia o histórico apelo do Comitê Executivo
dos Deputados Camponeses:
"... Os bolcheviques afirmam, cinicamente, que contam m o apoio dos
Sovietes de Deputados Camponeses...
"Toda a Rússia operária precisa saber que isso é uma mentira, que todos
os camponeses, por intermédio do Comitê Executivo do Soviete Pan-Russo
dos Deputados Camponeses, repelem, com indignação, qualquer
participação dos camponeses organizados nessa criminosa violação da
vontade da classe operária."
Eis outro manifesto da seção dos soldados, do Partido Socialista
Revolucionário:
"A louca tentativa dos bolcheviques está prestes a fracassar. A guarnição
está dividida. Os funcionários dos ministérios declararam-se em greve.
Dentro em pouco, não haverá mais pão. Todos os partidos, com exceção dos
bolcheviques, abandonaram o Congresso. Os bolcheviques estão sós.
"Convidamos todos os elementos honestos a cerrar fileiras em torno do
Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução e a preparar-se para
responder seriamente ao primeiro chamado do Comitê Central."
Em impresso especial, o Conselho da República citava as seguintes
calamidades:
"Cedendo à força das baionetas, o Conselho da República foi obrigado a
dissolver-se no dia 7 de novembro, suspendendo, assim, provisoriamente,
seus trabalhos.
"Os usurpadores do poder, que têm sempre nos lábios as palavras
'liberdade' e 'socialismo', encarceraram numa prisão vários membros do
Governo Provisório, inclusive os ministros socialistas; suspenderam os
jornais e apoderaram-se de suas oficinas gráficas. Tal governo deve ser
considerado inimigo do povo e da revolução. Precisamos lutar até derrubálo.
"O Conselho da República, enquanto espera poder reencetar seus
trabalhos, convida todos os cidadãos a agrupar-se, estreitamente unidos, em
todas as seções locais do Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução,
que trabalha para acelerar a queda dos bolcheviques e para a formação de um
governo capaz de dirigir o país até a reunião da Assembléia Constituinte."
O Dielo Naroda escrevia:
"Uma revolução é uma sublevação de todo o povo. Pois bem, que vemos
entre nós? Um punhado de pobres loucos enganados por Lênin e por
Trótski... Seus decretos e seus apelos serão mais tarde recolhidos ao museu
das curiosidades históricas..."
E o Naródnoie Slóvo (A Palavra do Povo), órgão socialista popular,
dizia:
"Governo operário e camponês? Ninguém reconhecerá tal governo. Ele
só poderá ser reconhecido pelos países inimigos..."
A imprensa burguesa desaparecera, provisoriamente. O Pravda
publicava um resumo da primeira reunião do novo Tsik, o Parlamento da
República Soviética Russa. Miliutin, comissário da Agricultura, tinha
declarado nessa reuniã o que o antigo Comitê Executivo dos Sovietes
Camponeses convocara o Congresso Camponês Pan-Russo para o dia 13 de
dezembro.
— Em nossa opinião — disse ele —, não podemos esperar.
Necessitamos do apoio dos camponeses. Proponho, portanto, que o
convoquemos imediatamente.
Os socialistas revolucionários da esquerda concordaram. Rapidamente
redigiu-se um apelo aos camponeses da Rússia. Foi escolhido um comitê de
cinco membros para a execução do projeto. O problema dos planos para a
divisão das terras e para o controle da indústria foi adiado até que os peritos
terminassem os trabalhos.
Foram lidos e aprovados três decretos: o Regulamento Geral da
Imprensa, elaborado por Lênin, mandando suspender imediatamente todos
os jornais que incitassem os cidadãos à resistência ou que deformassem,
conscientemente, as notícias; um segundo decreto estabelecia a moratória
para o pagamento dos aluguéis; o terceiro criava a milícia operária.
Foram, além disso, aprovadas outras providências: concedendo à Duma
Municipal o poder de requisitar os andares e compartimentos dos prédios
vazios; ordenando que todos os vagões fossem descarregados ao chegar às
estações, a fim de facilitar a distribuição de gêneros de primeira necessidade
e de tornar disponível a maior quantidade possível de material rodante.
Duas horas mais tarde, o Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses
passava para toda a Rússia o seguinte telegrama:
"Uma organização irregular bolchevique, chamada Comitê Organizador
do Congresso Camponês, convidou todos os sovietes camponeses a
enviarem delegados para um congresso que se vai realizar em Petrogrado.
"O Comitê Executivo Pan-Russo de Deputados Camponeses declara que
considera perigoso o afastamento das províncias, neste momento, das forças
indispensáveis à eleição da Assembléia Constituinte, mormente quando os
camponeses e todo o país só podem ser salvos pela reunião dessa assembléia.
Confirmamos, mais uma vez, que o Congresso Camponês vai reunir-se
somente a 13 de dezembro."
A Duma estava em efervescência. Os oficiais iam e vinham. O prefeito
conferenciava com os chefes do Comitê de Salvação. Chegou, correndo, um
conselheiro com a proclamação de Kerenski, que um avião, voando baixo,
havia deixado cair às centenas na Avenida Niévski. Essa proclamação
ameaçava com terrível vingança a todos os que se submetessem aos
bolcheviques e ordenava aos soldados que depusessem as armas e se
concentrassem no Campo de Marte.
Disseram-nos que o primeiro-ministro já se havia apoderado de
Tsárskoie -Tseló e se encontrava nas proximidades de Petrogrado, a cinco
milhas apenas da capital. Devia entrar na cidade no dia seguinte, pela manhã,
isto é, algumas horas mais tarde. As tropas soviéticas, que se mantinham em
contato com os cossacos, tinham-se passado para o lado do Governo
Provisório. Tchernov estava, não se sabia onde, procurando organizar uma
força "neutra", para se colocar entre os dois grupos e impedir a guerra civil.
Dizia-se, também, que os regimentos da capital tinham resolvido retirar o
apoio aos bolcheviques. O Smólni já estava abandonado... e a máquina
governamental não funcionava toais. Os empregados do Banco do Estado
negavam-se a trabalhar sob as ordens dos comissários do Smólni e a
entregar-lhes qualquer importância em dinheiro. Todos os bancos
particulares estavam de portas fechadas. Os funcionários dos ministérios
declararam-se em greve. A Duma Municipal nomeara um comitê especial
para percorrer as casas comerciais, recolhendo fundos para pagar os
grevistas.
Trótski, tendo-se apresentado no Comissariado dos Negócios Exteriores
para mandar traduzir o decreto sobre a paz nas principais línguas
estrangeiras, fora recebido com um pedido de demissão de seiscentos
funcionários... Chliápnikov, comissário do Trabalho, ordenara que todos os
empregados do seu comissariado voltassem aos seus postos dentro de vinte e
quatro horas sob pena de perderem os seus lugares, o direito de
aposentadoria, etc. Mas só os serventes obedeceram... Várias seções do
Comitê de Abastecimento, para não se submeterem aos bolcheviques, já não
estavam funcionando. Apesar das sedutoras promessas de aumento nos
salários e de melhorias na situação, os empregados da Central Telefônica
não transmitiam as comunicações do quartel-general soviético...
O Partido Socialista Revolucionário votara a expulsão dos membros que
tinham permanecido no Congresso dos Sovietes ou que participaram da
insurreição.
Na província, Moguilev pronunciara-se contra os bolcheviques. Os
cossacos, em Kíev, haviam dissolvido os sovietes e estavam prendendo os
chefes dos insurretos. O soviete e a guarnição de Luga, em nome de trinta
mil homens, declararam-se fiéis ao Governo Provisório e convidaram toda a
Rússia a lhes seguir o exemplo. Kaledin dispersara todos os sovietes e
sindicatos da bacia do Don e suas forças marchavam para o norte. Um
representante dos ferroviários disse:
— Expedimos ontem um telegrama a toda a Rússia pedindo a cessação
imediata da luta entre os partidos e reclamando a formação de um governo
de coalizão socialista. Se não formos ouvidos, amanhã lançaremos um
manifesto chamando os ferroviários para uma greve... Amanhã, pela manhã,
todos os grupos vão reunir-se para examinar a questão. Os bolcheviques
parece que estão com vontade de que se ajustem contas com eles!
— Se viverem até lá — exclamou, rindo, o engenheiro-chefe do
município, homem corpulento e corado.
Quando chegamos às imediações do Smólni — não só não estava
abandonado como estava mais ativo do que nunca, num vaivém incessante,
mais febril e intenso —, encontrei vários redatores de jornais burgueses e
socialistas moderados.
— Puseram-nos na rua! — exclamou o redator do Vólia Naroda. —
Bontch-Bruiévitch foi à sala da imprensa e pediu que nos retirássemos!
Chegou até a dizer que éramos espiões!
E todos começaram a gritar em coro:
— Violência! Ultraje! Liberdade de imprensa!
No vestíbulo, proclamações e ordens do Comitê Militar Revolucionário
formavam grandes pilhas, em cima das mesas. Os operários transportavam
os pacotes de comunicados para automóveis estacionados no lado de fora.
Um dos manifestos dizia:
"AO PELOURINHO!
"No trágico momento que atravessamos, os mencheviques e seus
partidários, do mesmo modo que os socialistas revolucionários da direita,
traíram a classe operária, passando para as fileiras de Kornilov, Kerenski e
Savinkov.
"Imprimem as ordens do traidor Kerenski e semeiam o pânico nas
cidades, espalhando os mais ridículos boatos a propósito de supostas vitórias
desses renegados.
"Cidadãos! Não confiem um só momento nesses embustes! Não há força
capaz de vencer a Revolução Russa. Ao Primeiro-Ministro Kerenski e aos da
sua laia, espera-os o castigo merecido. Nós os levaremos ao pelourinho!
Entrega-los-emos ao desprezo dos operários, soldados, marinheiros e
camponeses, que eles querem escravizar, prendendo-os com as antigas
cadeias. Esses mentirosos jamais poderão apagar de seus nomes a nódoa da
indignação e do desprezo do povo! Vergonha e maldição sobre os traidores
do povo!"
O Comitê Militar Revolucionário funcionava, agora, num local mais
amplo, na sala 17, do andar de cima. Suas portas estavam guardadas por dois
guardas vermelhos. No interior, aglomerava-se uma multidão de pessoas
bem vestidas, de aspecto respeitável, mas intimamente devoradas por
sentimentos de ódio e vingança. Eram burgueses, que solicitavam permissão
para seus automóveis ou passaportes para saírem da cidade. Entre eles, havia
muitos estrangeiros. Bill Chatov e Peters estavam de serviço. Ambos
interromperam a atividade para mostrar os últimos boletins. O 179.°
Regimento da Reserva pronunciara-se a favor aos bolcheviques. Cinco mil
estivadores de Putilov saudavam o novo governo. O Comitê Central dos
Sindicatos também enviara seu apoio entusiástico. A guarnição e a esquadra
de Revel tinham eleito comitês militares revolucionários e enviavam tropas.
Os comitês militares revolucionários estavam senhores da situação em Pskov
e em Minsk. Saudações dos sovietes de Tsaritsin, Rostov-do-Don, Piatigorsk
e Sebastópol. A Divisão da Finlândia e os novos comitês do 5.°e 6.°
Exércitos juravam fidelidade.
As notícias de Moscou eram incertas. Os pontos estratégicos da cidade
estavam ocupados pelas tropas do Comitê Militar Revolucionário: duas
companhias, de serviço no Kremlin, passaram-se para o lado dos sovietes.
Mas o arsenal estava ainda em poder do Coronel Riabtsev e dos seus
junkers. O Comitê Militar Revolucionário pedira a Riabtsev armas para os
operários, mas ainda estava em negociações com ele às primeiras horas da
manha. Bruscamente, o comitê fora intimado a ordenar às tropas soviéticas
que depusessem as armas e se dissolvessem. As ruas de Moscou já tinham
sido agitadas pelo tiroteio de alguns combates.
Em Petrogrado, o Estado-Maior submetera-se incontinenti aos
comissários do Smólni. O Tsentroflot resistira, mas acabara sendo ocupado
por Dibenko, à frente de uma companhia de marinheiros de Kronstadt.
Formaram um novo Tsentroflot, com o apoio das divisões navais do Báltico
e do mar Negro.
Sob essa alegre confiança, porém, notava-se vivo sentimento de
inquietação. Os cossacos de Kerenski avançavam e possuíam artilharia.
Skripnik, secretário dos comitês de fábrica, garantiu-me que Kerenski estava
organizando uma divisão militar. Mas acrescentou altivamente:
— Não nos apanharão vivos!
Petróvski, com um sorriso cheio de cansaço, disse-me:
— Amanhã, talvez possamos dormir... para sempre... E Lossóvski, com
o rosto macilento e sua barba ruiva:
— Que probabilidades temos a nosso favor? Estamos sós... Somos uma
multidão impotente contra tropas exercitadas!
No sul e no sudoeste, os sovietes estavam fugindo diante da ofensiva de
Kerenski. As guarnições de Gatchina, de Pavlovsk e de Tsárskoie -Tseló
estavam divididas: uma parte desejava conservar-se neutra; o restante, sem
oficiais, recuava para a capital, na maior desordem.
Nas salas afixaram o seguinte comunicado:
"Krásnoie-Tseló, 10 de novembro, às 6 horas da manhã.
"Para ser comunicado a todo o Estado-Maior, ao comandante-em-chefe,
a todos os comandantes da frente norte, e a todos, a todos, a todos!
"O ex-Ministro Kerenski procura fazer crer, por meio de mentirosos
telegramas circulares, que as tropas revolucionárias de Petrogrado
depuseram as armas e passaram-se para o lado das forças do antigo governo
de traidores e que o Comitê Militar Revolucionário lhes havia dado ordens
de render-se. Os soldados de um povo livre não se entregam nem se rendem.
"Nossas tropas abandonaram Gatchina em boa ordem, a fim de evitar
derramamento de sangue entre elas e seus irmãos cossacos, que se deixaram
enganar. Recuaram para ocupar posição estratégica mais favorável. Sua
posição atual é tão forte que não há motivo para inquietações. Mesmo que
Kerenski e seus companheiros de armas dispusessem de forças dez vezes
superiores às que possuem atualmente, seriam facilmente vencidos. O moral
de nossas tropas é excelente.
"Em Petrogrado reina tranqüilidade.
"O chefe da defesa de Petrogrado e do distrito de Petrogrado, Tenente-
Coronel Muraviov."
No momento em que saíamos da sala do Comitê Militar Revolucionário,
entrou Antónov com um papel na mão, pálido como um morto.
— Expedir isto imediatamente — ordenou.
"A TODOS OS SOVIETES DE BAIRRO DE DEPUTADOS OPERÁRIOS E A
TODOS OS COMITÊS DE FÁBRICA
"ORDEM
"Os bandos kornilovistas de Kerenski ameaçam as proximidades da
capital. Já foram expedidas ordens para que essa intentona contrarevolucionária,
dirigida contra o povo e suas conquistas, seja esmagada sem
a menor piedade.
"O Exército e a Guarda Vermelha estão prontos para defender os
operários.
"Ordenamos a todos os sovietes de bairro e aos comitês de fábrica :
"1. Que enviem o maior número possível de operários para abrir
trincheiras, levantar barricadas e colocar arames farpados. 2. Que, se for
necessário, o trabalho seja imediatamente interrompido em todas as fábricas.
3. Que se reúna imediatamente todo o arame comum ou farpado
disponível, assim como todas as ferramentas necessárias Para construir
trincheiras e levantar barricadas.
"4. Armar os operários com todas as armas disponíveis. "5. Observar a
mais rigorosa disciplina e estar a postos para apoiar por todos os meios o
Exército da revolução.
"O presidente do Soviete de Deputados Operários e Soldados, comissário
do povo: Leon Trótski
"O presidente do Comitê Militar Revolucionário,
comandante-em-chefe do distrito: N. Podvóiski."
Saímos. Fora, ouvi ulularem as sereias das fábricas, espalhando seus
clamores roucos pelo céu daquele dia sombrio e triste. Milhares e milhares
de operários, homens e mulheres, enchiam as ruas. Milhares e milhares de
miseráveis cortiços vomitavam seus moradores famélicos de rosto cor de
terra. A Petrogrado Vermelha corria perigo! Os cossacos? Para o sul, para o
sudoeste, pelas velhas ruas que conduzem à Porta de Moscou, corriam
multidões de homens, de mulheres e de crianças armadas de fuzis, picaretas,
pás, rolos de arame, com as cartucheiras por cima das roupas de trabalho.
Nunca houve tão formidável mobilização de toda uma cidade imensa!
Rolavam como torrente, arrastando, na passagem, companhias de soldados,
canhões, caminhões, automóveis, carros: o proletariado revolucionário ia
oferecer o peito às balas para defender a capital da República Operária e
Camponesa.
Diante da porta do Smólni, estacionara um automóvel. Um homenzinho
franzino, com óculos escuros, que lhe aumentavam os olhos congestionados,
falava com esforço, encostado num pára-lama, as mãos no bolso do capote
puído. Ao seu lado, um enorme marinheiro barbado, de fisionomia e olhos
juvenis, caminhava, nervoso, brincando distraidamente com o revólver que
nunca largava. Esses dois homens eram Antónov e Dibenko.
Alguns soldados apoiavam as bicicletas militares no estribo do carro. O
motorista protestava. Iam arranhar o verniz! Ele, naturalmente, era
bolchevique e sabia que aquele automóvel fora de um burguês e que as
bicicletas estavam a serviço dos estafetas militares. Mas seu orgulho
profissional se revoltava. As bicicletas, contudo, ficaram mesmo encostadas
ao automóvel.
Os comissários do povo, da Guerra e da Marinha, iam inspecionar a
frente revolucionária. Poderíamos acompanhá-los? Não, impossível. O
automóvel tinha apenas cinco lugares, que já estavam ocupados pelos dois
comissários, duas ordenanças e o motorista. Um dos meus conhecidos
russos, entretanto, a que darei o nome de Trucichka, instalou-se calmamente
no auto e não houve meios de o fazer descer...
Não tenho razões para duvidar, de leve que seja, da narrativa que
Trucichka me fez, mais tarde, dessa viagem. No caminho, através da
Avenida Suvorovski, um dos homens pôs em discussão o problema da
comida. Podiam ficar durante três ou quatro dias numa localidade onde fosse
difícil conseguir alimentos. Pararam o automóvel. E dinheiro? O comissário
da Guerra revistou os bolsos. Não tinha sequer um copeque. O comissário da
Marinha e o motorista também não tinham nem um vintém. Trucichka foi
quem pagou as despesas.
— E agora, que vamos fazer? — perguntou Antónov.
— Requisitar outro carro! — respondeu Dibenko, empunhando o
revólver.
Antónov plantou-se no meio da rua e fez parar um carro dirigido por um
soldado.
— Preciso do automóvel! — disse Antónov.
— Mas eu não o dou — respondeu o soldado.
— Sabe com quem está falando? — insistiu Antónov, mostrando-lhe um
papel que certificava sua qualidade de comandante-em-chefe dos exércitos
da República Russa, afirmando ainda que todos lhe deviam obediência
absoluta.
— Mesmo que fosse o Diabo em pessoa — redargüiu o soldado com
violência —, não lhe daria o automóvel! Pertence ao Primeiro Regimento de
Metralhadoras, e está cheio de munições!
Um automóvel de praça, que passava com a bandeira italiana, veio
resolver a dificuldade. (Durante os períodos um pouco agitados, os
proprietários de automóveis particulares costumavam registrá-los como
pertencendo a consulados estrangeiros, para salvá-los das requisições.) A
volumosa personagem que nele viajava, envolvida em luxuoso capote de
peles, foi obrigada a descer. E a viagem continuou.
Ao chegar à Porta de Narva, a cerca de dez milhas do Smólni, Antónov
perguntou pelo comandante da Guarda Vermelha. Foi levado ao extremo da
cidade, onde várias centenas e operários tinham cavado trincheiras e
esperavam os cossacos. Vai tudo bem, camarada? — perguntou Antónov.
Está tudo em ordem, camarada — respondeu o comandante. — O moral das
tropas é excelente. Mas... estamos quase sem munições...
— No Smólni temos grandes quantidades. Vou dar-lhe uma ordem.
E começou a revirar os bolsos.
— Quem tem um pedaço de papel? — perguntou.
Nem Dibenko, nem os agentes de ligação, ninguém tinha papel.
Trucichka ofereceu-lhe sua caderneta.
— Que diabo! Também não tenho lápis! — exclamou Antónov. —
Quem tem um lápis?
Naturalmente, só Trucichka tinha um lápis...
Ficamos sós. Resolvemos, então, ir para a Estação de Tsárskoie-Tseló.
Subimos a Avenida Niévski e vimos os guardas vermelhos desfilando, uns
de fuzis com baionetas, outros apenas com os fuzis. A tarde desse dia de
inverno caía rapidamente. Os guardas vermelhos, de cabeça erguida,
formando uma coluna mais ou menos reta, de quatro em quatro, atolavam os
pés no barro gelado, sem música nem tambores. Por cima de suas cabeças,
ondulava uma bandeira vermelha com a inscrição em letras douradas mal
pintadas: "Paz! Terra!" Todos jovens. A expressão de suas fisionomias era a
de homens que sabem que vão morrer. Numerosas pessoas, demonstrando ao
mesmo tempo curiosidade e desprezo, olhavam das calçadas, vendo-os
passar, no meio de um silêncio carregado de ódio.
Na estação ferroviária ninguém nos soube dizer onde estava Kerenski,
nem onde estava a frente. Os trens não iam além de Tsárskoie.
Nosso vagão ia cheio de camponeses, que voltavam para casa carregados
de embrulhos e jornais da noite. As conversações giravam unicamente em
torno da revolução bolchevique. Afora isto, ninguém seria capaz de dizer
que a poderosa Rússia estava dividida ao meio pela guerra civil e que o
nosso trem se dirigia para a zona de combate. Pela janela, podíamos ver, na
escuridão cada vez maior, as massas de soldados que avançavam para a
cidade, pelo caminho cheio de lama, brandindo armas como argumento. Um
trem de carga, abarrotado de tropas e completamente iluminado, estacionava
num desvio da estação. Isso era tudo. Para trás de nós, no horizonte, o
resplendor da capital ia -se apagando cada vez mais na escuridão da noite.
Por uma rua distante, vinha um bonde em nossa direção...
A Estação de Tsárskoie -Tseló estava calma. Mas, aqui e acolá, grupos de
soldados discutiam ou pilheriavam em voz baixa, deitando olhares furtivos
em direção à estrada deserta que conduzia a Gatchina. Perguntei-lhes de que
lado estavam.
— Uf! — fez um deles. — Não sabemos, na verdade, o que pensar... Não
resta dúvida de que Kerenski é um provocador.. Mas, por outro lado, não
podemos admitir que os russos disparem contra os próprios irmãos!
O gabinete do comissário da estação estava ocupado por um simples
soldado, gordo, jovial e barbudo, com a fita vermelha de um comitê de
regimento. Os papéis que nos foram entregues no Smólni produziram-lhe
forte impressão. Era decidido partidário dos sovietes. Mas mostrava-se um
pouco desorientado.
— Os guardas vermelhos estiveram aqui há poucas horas, mas já se
foram. Esta manhã veio um comissário, mas retirou-se com a chegada dos
cossacos.
— Os cossacos ainda estão aqui? Abanou a cabeça com ar triste:
— Já combatemos. Os cossacos chegaram de manhã, bem cedo. Fizeram
duzentos ou trezentos prisioneiros e mataram uns vinte e cinco, mais ou
menos.
— E onde se acham agora?
— Oh! Não podem estar muito longe! Não sei ao certo onde se
encontram. Saíram daqui naquela direção... — Fez um gesto vago,
apontando para oeste.
Tomamos uma ótima refeição, melhor e muito mais barata que em
Petrogrado, no restaurante da estação. Ao nosso lado, estava sentado um
oficial francês, que acabava de chegar a pé de Gatchina. Segundo nos disse,
lá também estava tudo tranqüilo e Kerenski era senhor da cidade.
— Ah, esses russos, que gente! — E acrescentou: — Veja que guerra
civil! Tudo, menos combater!
Saímos em direção à cidade. Na porta da estação, vimos dois soldados
com as baionetas caladas, rodeados por uma centena de comerciantes,
funcionários e estudantes, que os insultavam violentamente, gesticulando e
gritando. Os soldados estavam atrapalhados e aborrecidos, como crianças
que se vêem injustamente censuradas. Um jovem alto, de aspecto arrogante,
com uniforme de estudante, dirigia o ataque.
— Creio que vocês compreendem que, pegando em armas contra seus
irmãos, estão servindo de instrumento a assassinos e traidores — dizia ele em
tom insolente.
— Não, não é isso, irmão — respondeu o soldado com ingênua
sinceridade. — Há duas classes: o proletariado e a burguesia... Nós...
— Ah, já conheço esse estribilho — interrompeu o estudante. — Vocês,
camponeses ignorantes, ficam convencidos ouvindo meia dúzia de frases
feitas. E depois, sem haver entendido uma só palavra, começam a repeti-las a
torto e a direito, como papagaios.
A multidão caiu na gargalhada.
— Eu sou estudante, e, além disso, marxista. Como tal, digo que vocês
não estão combatendo pela causa do socialismo, mas pela anarquia e em
proveito da Alemanha.
— Ah! — explicou o soldado com a fronte empapada de suor. — Já se
vê que o senhor é homem instruído. Eu sou apenas um ignorante. Mas
parece-me que...
— Você acredita, por acaso, que Lênin é um verdadeiro amigo do
proletariado? — atalhou o outro.
— Claro que sim — respondeu o soldado, incomodado com as
zombarias da multidão.
— Mas, não sabe que Lênin atravessou a Alemanha num trem blindado?
Não sabe que Lênin recebeu dinheiro dos alemães?
— Oh! Não sei nada disso! — disse o soldado com firme. Vejo que o
que ele disse é o que preciso ouvir e, como eu, todas as pessoas simples do
nosso meio. Há duas classes, a burguesia e o prole tariado...
— Você está louco, amigo! Estive dois anos em Schlüsselburg por causa
da minha atividade revolucionária, enquanto vocês, naquele tempo,
disparavam contra nós e cantavam Deus proteja o czar. Meu nome é Vassíli
Gueórguievitch Pánin. Nunca ouviu falar em mim?
— Sinto dizer, mas nunca ouvi, não, senhor — disse humildemente o
soldado. — Não sou mais que um ignorante, e o senhor, sem dúvida alguma,
é um herói!
— Sou isso mesmo — disse o estudante com firmeza. — E combato os
bolcheviques, que trabalham para aniquilar nossa Rússia, nossa livre
revolução. Como você explica isso?
O soldado cocou a cabeça.
— Eu não sei como se explica isso — disse, careteando pelo esforço que
fazia para conseguir explicar-se. — A mim tudo me parece claro... Mas sou
apenas um ignorante. Parece-me que não há mais de duas classes: o
proletariado e a burguesia.
— Lá vem você com a estúpida cantiga de sempre! — gritou o estudante.
— Duas classes — continuou o soldado com obstinação e quem não está
com uma está com a outra...
Tornamos a subir a rua. As lâmpadas eram raras e muito espaçadas.
Poucos transeuntes. Sobre a cidade pairava um silêncio cheio de ameaças.
Dir-se-ia que se estava numa espécie de purgatório, entre o céu e o inferno,
uma "terra de ninguém" política. Só as lojas continuavam feericamente
iluminadas e cheias de gente. Na porta de uma casa de banhos, havia uma
fileira de pessoas. Era sábado. E, nesse dia, toda a Rússia toma banho e se
perfuma. Não duvidamos um só momento de que não encontraríamos nem
cossacos nem tropas soviéticas nos lugares onde se realizam essas
cerimônias.
À medida que nos aproximávamos do Parque Imperial, as ruas
tornavam-se cada vez mais desertas. Um pastor protestante apontou-nos,
espantado, o quartel-general do soviete e fugiu em seguida. O Soviete de
Petrogrado instalara-se numa das salas do palácio ducal, em frente ao
parque. As janelas estavam às escuras e as portas fechadas. Um soldado, que
passava com as mãos apoiadas no cinto das calças, observava-nos com olhar
terrivelmente desconfiado.
— O soviete já se foi embora há dois dias — disse.
— Para onde? Encolheu os ombros.
— lá nié znáiu. (Não sei.)
Pouco mais longe, num grande edifício inteiramente iluminado, ouviamse
marteladas. Ficamos indecisos, quando vimos chegar um soldado e um
marinheiro. Afinal, resolvemos mostrar nossos salvo-condutos do Smólni.
— Vocês são partidários dos sovietes? — perguntamos. Sem nos
responder, entreolharam-se, assustados.
— Que está acontecendo aí dentro? — perguntou o marinheiro,
indicando o edifício.
— Não sei.
O soldado estendeu timidamente o braço e empurrou a porta. Vimos uma
sala, enfeitada com vasos de plantas, com fileiras de cadeiras e um estrado
em construção.
Uma mulher muito alta avançou para nós, com um martelo na mão e a
boca cheia de pregos. Que desejam vocês?
— Há espetáculo esta noite? — inquiriu o marinheiro com timidez.
— Vai haver uma representação de amadores, domingo à noite —
respondeu a mulher em tom brutal. — Podem ir embora!
Tentamos conversar com o soldado e o marinheiro. Mas ambos
mostraram-se desconfiados, desaparecendo na escuridão.
Continuamos em direção ao Palácio Imperial, margeando o grande
parque às escuras, com seus fantásticos pavilhões, suas pontes orientais, que
mal se percebiam na penumbra da noite. Chegava aos nossos ouvidos o
murmúrio da água correndo nas fontes. Numa gruta artificial, onde um
cômico cisne de pedra deitava pelo bico um eterno jato de água, tivemos, de
repente, a impressão de que estávamos sendo observados. Levantamos os
olhos e encontramos, realmente, meia dúzia de gigantes armados, olhandonos
fixamente do alto de um terraço. Subimos até onde eles estavam.
— Quem são vocês? — perguntamos.
— Somos a guarda — respondeu um deles.
Todos estavam com aspecto de cansaço, o que não era nada de estranhar
depois de tantas semanas de discussão e debates, que se prolongavam noite e
dia.
— Vocês pertencem às tropas de Kerenski ou às dos sovietes? —
Ficaram um momento silenciosos. Depois de se entreolharem, bastante
embaraçados, disseram:
— Somos neutros.
Passando sob o pórtico do enorme Palácio de Catarina, penetramos no
pátio interior e indagamos onde ficava o quartel-general. Uma sentinela saiu
de dentro da guarita branca e disse-nos que o comandante estava lá dentro.
Numa elegante sala estilo georgiano, dividida em duas metades iguais
por dupla chaminé, um grupo de oficiais trocava impressões. Estavam
pálidos, agitadíssimos e pareciam ter passado a noite em claro.
Apresentamos nossos papéis bolcheviques, recebidos do Smólni, a um deles,
que nos indicou o coronel, homem já idoso, de barba branca, com o
uniforme cheio de condecorações.
Mostrou-se surpreso.
— Como conseguiram os senhores chegar até aqui sem serem mortos?
As ruas são muito perigosas. As paixões políticas estão muito exaltadas em
Tsárskoie -Tseló. Esta manhã houve luta e, amanhã pela manhã, haverá
novos combates. Kerenski entrará na cidade às oito horas.
— Onde estão os cossacos?
— A cerca de uma milha, nesta direção — respondeu, estendendo o
braço.
— E as forças daqui, preparam-se para defender a cidade do seu ataque?
— Oh, não! — disse, sorrindo. — Estamos aqui justamente para auxiliar
Kerenski.
Sentimos um calafrio, já que nossos papéis nos convertiam em ardorosos
revolucionários!
Mas, o coronel continuou, com uma tosse seca:
— Com esses salvo-condutos, suas vidas correm perigo, se forem presos.
Se os senhores querem assistir ao combate, posso oferecer-lhes ordem para
que fiquem alojados no hotel dos oficiais. E, se quiserem, passem por aqui às
sete da manhã, que poderei dar-lhes novos documentos.
— Então, os senhores são partidários de Kerenski? — perguntamos.
— Isto é, de Kerenski, propriamente, não! E, vacilando:
— A maioria dos soldados da guarnição é bolchevique. Esta manhã,
depois da batalha, seguiram todos em direção a Petrogrado, levando a
artilharia com eles. Na realidade, nenhum soldado é partidário de Kerenski.
Mas há alguns que não querem lutar nem de um lado, nem de outro. Quase
todos os oficiais passaram-se para o lado de Kerenski ou simplesmente
desapareceram. Como os senhores vêem, nossa situação é bastante delicada.
De tudo o que nos foi dito, concluímos que não ia haver combate. Por
gentileza, o coronel fez-nos acompanhar até a estação por sua ordenança,
rapaz do sul, filho de franceses que tinham emigrado para a Bessarábia.
— Não tenho medo do perigo nem do cansaço — repetia a todo instante.
— O pior é que há três anos não vejo minha mãe.
Enquanto o trem rodava para Petrogrado, na noite gelada, podíamos ver,
através da portinhola, soldados gesticulando à luz das fogueiras, ou carros
blindados, formados em fileira, nas encruzilhadas, com os soldados
conversando nas torres.
Durante aquela noite agitada, grupos de soldados e de guardas vermelhos
erraram, sem chefes, pela planície inóspita, no meio da confusão e da
desordem, enquanto os comissários do Comitê Militar Revolucionário
corriam de um lado para outro, procurando organizar a defesa.
De volta à cidade, encontramos uma multidão exaltada, que parecia
oceano revolto, fustigando as casas da Avenida Niévski. Havia alguma coisa
no ar. Desde que saltamos na Estação de Varsóvia já ouvíramos, ao longe,
surdo ribombar de canhões. Nas escolas dos junkers, reinava febril atividade.
Alguns membros da Duma iam de quartel em quartel, fazendo discursos,
descrevendo cenas, citando exemplos terríveis da "brutalidade bolchevique":
matança de junkers, no Palácio de Inverno; violação de mulheres por
soldados; execução de uma jovem em frente à Duma; assassinato do Príncipe
Tumanov... Na Sala Alexandre, na Duma, o Comitê para a Salvação da
Rússia e da Revolução realizava uma sessão extraordinária. Os comissários
corriam em todos os sentidos. Os jornalistas, que tinham sido expulsos do
Smólni, estavam ali, cheios de orgulho. Não quiseram acreditar no que
víramos em Tsárskoie -Tseló. — Como assim? Pois então não sabem que
Tsárskoie -Tseló está em poder de Kerenski? Vocês pensam que não
sabemos, também, que os cossacos já estão em Pulkovo? Se a Duma está até
elegendo um comitê para receber Kerenski, amanhã de manhã, quando
desembarcar na Estação de Petrogrado...
Um deles confiou-nos grande segredo: disse-nos que a contra-revolução
ia começar à meia -noite. Entregou-nos dois manifestos. O primeiro, assinado
por Gotz e Polkóvnikov, ordenava a mobilização geral sob o comando do
Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução. As escolas de junkers, os
soldados em convalescença nos hospitais, os cavaleiros de São Jorge, eram
chamados para a luta.
O outro manifesto, subscrito pelo próprio comitê, dizia o seguinte:
"À POPULAÇÃO DE PETROGRADO
"Camaradas operários, soldados e cidadãos de Petrogrado,
revolucionários!
"Os bolcheviques, ao mesmo tempo que reclamam a paz nas trincheiras,
incitam à guerra fratricida na retaguarda!
"Não dêem ouvidos aos seus apelos provocadores!
"Não abram trincheiras!
"Abaixo as barricadas traidoras!
"Deponham as armas!
"Soldados, voltem para os seus quartéis!
"A guerra que começou em Petrogrado será a morte da revolução.
"Em nome da liberdade, da terra e da paz, cerremos fileiras em torno do
Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução."
Quando saímos da Duma, vimos passar um destacamento de guardas
vermelhos, com aspecto de desesperados. Desciam pela rua sombria,
conduzindo uma dúzia de prisioneiros, membros da seção local do Conselho
dos Cossacos surpreendidos em flagrante delito, apanhados quando urdiam
planos contra-revolucionários no quartel-general.
Um soldado, acompanhado por um rapaz que levava uma lata de cola,
pregava nas paredes grandes cartazes, com dizeres impressos em letras
enormes.
"Pelo presente decreto, o governo declara Petrogrado e seus arredores em
estado de sítio. Ficam proibidas, até nova ordem, todas as assembléias e
comícios.
"Presidente do Comitê Militar Revolucionário,
N. Podvóiski."
O vento trazia -nos aos ouvidos uma sinfonia de sons de todas as
espécies: gritos, disparos longínquos, ruídos de buzinas. A cidade velava,
inquieta e nervosa.
Ao amanhecer, um destacamento de junkers, disfarçados com uniformes
dos soldados do Regimento Semiônov (antigo Regimento da Guarda, que,
em março de 1917, havia aderido à revolução), apresentou-se na Central
Telefônica à hora do revezamento da guarda. Conhecendo a contra-senha
bolchevique, receberam a guarda sem despertar suspeitas. Alguns minutos
depois, passou Antónov, fazendo a ronda. Foi preso pelos junkers e
encerrado numa saleta. Quando a verdadeira guarda veio render os
companheiros, foi recebida com uma descarga. Muitos soldados tombaram
mortos.
A contra-revolução havia começado.

Capítulo VIII

A CONTRA-REVOLUÇÃO

No dia seguinte, sábado, 11 de novembro, logo pela manhã, os cossacos
entraram em Tsárskoie -Tseló. Kerenski montava um cavalo branco. Os sinos
repicavam. Do alto de uma colina próxima, podia -se ver toda a imensidão
pardacenta da capital deitada sobre a planície uniforme. De espaço a espaço,
destacavam-se as cúpulas multicores e as flechas douradas. E por trás da
planície, no fundo, o golfo da Finlândia aparecia, brilhando como uma
superfície de aço polido.
Não houve luta. Mas Kerenski agiu de maneira tão estúpida, que foi
vítima da própria ação. Às sete horas da manhã, intimou o 2° Regimento de
Fuzileiros, aquartelado em Tsárskoie -Tseló, a depor as armas. Os soldados
responderam que ficariam neutros, mas não entregariam as armas. Kerenski
irritou-se, enviando-lhes um ultimatum que lhes concedia dez minutos para
se renderem incondicionalmente. Os soldados, que há oito meses não
recebiam ordens desse gênero, que já se haviam habituado à autodisciplina
dos seus comitês, ficaram indignados. A ordem de Kerenski lembrava o
antigo regime! Poucos minutos depois, a artilharia dos cossacos rompeu fogo
contra o quartel, matando oito homens.
Daí por diante não houve mais "neutros" em Tsárskoie-Tseló...
Petrogrado acordou com o tiroteio. Ouvia -se, ao longe, o ruído das forças
marchando para o combate. Sob o céu escuro, o vento gelado trazia um
cheiro de neve. Pela manhã, importantes forças de junkers ocupavam o
Clube Militar e a Agência Telegráfica. Só depois de sangrenta batalha, essas
posições foram reconquistadas. A Central Telefônica estava cercada por
marinheiros. Entrincheirados no centro da Mórskaia, por trás das barricadas
feitas com tonéis, caixões e pranchas de ferro, protegidos pela esquina da
Gorokhóvaia com a Praça de Santo Isaac, atiravam contra tudo que se
movesse. De tempos a tempos, surgia um carro com a bandeira da Cruz
Vermelha, que os marinheiros deixavam passar. Nosso colega Albert Rhys
Williams ¹, e se encontrava na Central Telefônica, saiu num automóvel da
Cruz Vermelha, aparentemente carregado de feridos. Depois de dar diversas
voltas pela cidade, o carro seguiu para a Escola Militar Mikháilovski,
quartel-general da contra-revolução. Um oficial francês, que se achava no
pátio, parecia dirigir as operações. Era dessa forma que se abastecia a
Central Telefônica de munições e de víveres. Grande número dessas falsas
ambulâncias foram unicamente utilizadas pelos junkers como meio de
comunicação ou abastecimento.
1Amigo de John Reed, político progressista e publicista norte-americano destacado;
autor de várias obras sobre a luta dos trabalhadores da URSS Pelo socialismo. (N. do E.)
Cinco ou seis carros blindados da antiga divisão britânica estavam em
poder dos contra-revolucionários. Louise Bryant2, margeando a Praça de
Santo Isaac, viu chegar um desses carros do lado do almirantado e dirigir-se
à Central. O carro parou justamente na esquina da Rua Gógol. Vários
marinheiros, entrincheirados em montes de lenha, começaram a fazer fogo.
A metralhadora da torrinha girou e respondeu com uma chuva de balas sobre
a pilha de lenha e sobre a multidão que, de longe, acompanhava com
ansiedade os acontecimentos. Sete pessoas do povo caíram mortas na
passagem abobadada em que se encontrava Louise Bryant, entre elas duas
crianças. Então, os marinheiros, aos gritos, deixaram a barricada e
avançaram sob a chuva de balas, cercaram o monstro e, pelas aberturas,
cravaram as baionetas nos seus tripulantes, berrando e praguejando. O
motorista gritou que estava ferido. Foi posto em liberdade. Logo correu à
Duma para contar essa nova "atrocidade" dos bolcheviques. Entre os mortos
do carro estava um oficial inglês.
2 Escritora norte american, esposa e companheira de John Reed (1890-1936)(N. do E)
Os jornais mais tarde protestaram contra o fato de um oficial francês,
feito prisioneiro no interior de um carro blindado, ter sido enviado para a
Fortaleza de Pedro e Paulo. A própria embaixada francesa, pouco depois,
desmentia a notícia, mas um conselheiro municipal afirmou que fora ele que
conseguira a liberdade desse oficial. Deixando de lado a atitude das
embaixadas, o certo é que houve oficiais franceses e ingleses que tomaram
parte nos combates, chegando mesmo a assistir às sessões do Comitê de
Salvação, e a prestar-lhe auxílio, discutindo, dando opiniões e conselhos.
Nesse dia, em vários bairros, repetiram-se os choques entre junkers e
guardas vermelhos. Houve também combates entre carros blindados. Por
toda parte ouviam-se descargas, próximas ou distantes, tiros isolados ou o
crepitar das metralhadoras. As lojas abaixaram as portas, mas os negócios
continuavam. Também as salas dos cinemas, com as luzes de fora apagadas,
estavam abarrotadas. Os bondes trafegavam, os telefones funcionavam e,
quando se fazia uma ligação, ouvia -se perfeitamente o barulho do tiroteio.
As ligações telefônicas com o Smólni estavam cortadas. Em compensação, o
Comitê de Salvação e a Duma mantinham-se em ligação permanente com
todas as escolas militares e com Kerenski em Tsárskoie -Tseló.
Às sete da manhã, a Escola Vladímir foi visitada por uma patrulha de
soldados, marinheiros e guardas vermelhos, que concederam aos junkers
vinte minutos para se renderem. O ultimatum foi rejeitado. Uma hora depois,
os junkers tentaram sair. Mas foram repelidos por violento tiroteio, que
partia da esquina da Grebetskaia e da Grande Avenida. As tropas soviéticas
cercaram o edifício e abriram fogo. Ao mesmo tempo, dois carros iam e
vinham, cobrindo a Escola Vladímir com uma saraivada de balas das suas
metralhadoras. Os junkers pediram reforços pelo telefone. Os cossacos
responderam que não podiam sair porque estavam cercados por importante
força de marinheiros, armada com dois canhões.
A Escola do Imperador Paulo também estava cercada e a maior parte dos
junkers da Escola Mikháilovski já lutava nas ruas. Às onze e meia, foram
colocadas três peças de campanha diante do edifício. Os junkers
responderam ao novo ultimatum matando dois parlamentares soviéticos que
avançavam com bandeira branca. Começou, então, um verdadeiro
bombardeio. Nas paredes da escola abriram-se grandes brechas. Os junkers
defendiam-se desesperadamente. Guardas vermelhos, que se dirigiam ao
assalto em ondas e aos gritos, eram dizimados pela metralha. Kerenski
telefonara de Tsárskoie -Tseló, proibindo qualquer negociação com o Comitê
Militar Revolucionário.
Exasperadas pela derrota e pelo número de mortos, as tropas soviéticas
desencadearam terrível tempestade de chama e aço contra o edifício. Nem os
oficiais conseguiram conter aquele medonho bombardeio. Um comissário do
Smólni, Kirílov, querendo fazê-lo cessar, quase foi linchado. O sangue dos
guardas vermelhos fervia nas veias.
Afinal, às duas e meia, os junkers levantaram bandeira branca. Estavam
dispostos a render-se, no caso de lhes pouparem as vidas. Foram atendidos.
Mas os guardas vermelhos e os soldados, sem ouvir coisa alguma, nem
atender a ninguém, precipitaram-se pelas fendas, janelas e portas do edifício.
Cinco junkers tombaram a golpes de baioneta. Os restantes,
aproximadamente duzentos, foram conduzidos com uma escolta para a
Fortaleza de Pedro e Paulo. Para evitar o linchamento dos presos levaramnos
em pequenos grupos. Mas, assim mesmo, no caminho, a multidão
avançou sobre um dos grupos e matou oito prisioneiros. Mais de cem
soldados e guardas vermelhos haviam tombado mortos no combate.
Duas horas mais tarde, a Duma recebeu uma comunicação telefônica,
anunciando que os vencedores se dirigiam para Ingeniêrni Zámok, a escola
de engenharia. Doze deputados foram-lhes ao encontro, sobraçando pacotes
do último manifesto do Comitê de Salvação. Alguns deles nunca mais
apareceram... Todas as escolas renderam-se sem resistência e seus ocupantes
foram, sãos e salvos, conduzidos como prisioneiros para a Fortaleza de
Pedro e Paulo e para Kronstadt.
A Central Telefônica resistiu até a tarde. Finalmente, foi tomada pelos
marinheiros, com o apoio de um carro blindado bolchevique. As mocinhas
que trabalhavam como telefonistas, apavoradas, corriam qual baratas tontas.
E os junkers, para não serem identificados, arrancavam os distintivos. Um
deles disse a Williams que lhe daria tudo o que pedisse se lhe cedesse o
capote para disfarçar-se. — Vamos ser todos assassinados — gritavam, pois
muitos haviam prometido, sob palavra de honra, no Palácio de Inverno, que
não pegariam em armas contra o povo. Williams ofereceu-se como
mediador, com a condição de porem Antónov em liberdade. Foi logo
atendido. Williams e Antónov fizeram, então, discursos aos marinheiros
vitoriosos e exasperados pelas perdas que haviam sofrido. Mais uma vez, os
junkers conseguiram retirar-se em liberdade. Alguns, entretanto, descobertos
quando tentavam, aterrorizados, fugir pelos telhados, ou esconder-se nas
águas-furtadas, foram atirados lá de cima à rua.
Em farrapos, ensangüentados, mas vitoriosos, os marinheiros e os
operários entraram na sala dos quadros telefônicos, frente àquela porção de
moças bonitas, pararam, atrapalhados, confusos, sem ânimo para avançar.
Nenhuma dessas jovens foi atendida ou ultrajada. A princípio assustadas,
refugiaram-se nos cantos. Em seguida, vendo que nada lhes acontecia, deram
livre expansão aos seus sentimentos: — Passem já para fora, seus imundos,
seus brutos! — Os marinheiros e guardas vermelhos ficaram bastante
atrapalhados. — Seus brutos! Seus indecentes! — gritavam as mocinhas,
pondo as capas e chapéus para sair. De fato, era muito mais romântico
entregar pentes de balas e pensar ferimentos aos jovens e brilhantes alunos
da Escola Militar, moços de "boas famílias", descendentes da aristocracia
russa e que combatiam para restaurar o trono do czar! E esses outros, quem
eram? Gente vulgar, simples operários, camponeses, plebe inculta,
gentinha...
O comissário do Comitê Militar Revolucionário, o pequeno Vichniak,
procurou mostrar às jovens que não deviam retirar-se, esgotando todos os
recursos da sua amabilidade.
— Até hoje — disse ele — as telefonistas foram sempre tratadas muito
mal. O serviço telefônico está subordinado à Duma Municipal. Para ganhar
sessenta rublos por mês, uma telefonista tem de trabalhar dez horas por dia,
ou mais... De agora em diante tudo isso vai mudar. O governo pensa em
subordinar o serviço telefônico ao Ministério dos Correios e Telégrafos.
Assim, as telefonistas receberão imediatamente um aumento de doze rublos
em seus salários. Passarão a trabalhar menor número de horas por dia. As
telefonistas pertencem à classe trabalhadora e também têm o direito de ser
felizes!
— A classe trabalhadora! Esses homens estão malucos! Julgam, com
certeza, que pode haver alguma coisa de comum entre nós e eles... Entre nós,
moças de família, e esses tipos sem eira nem beira... Ficar? Nem por mil
rublos!... — Orgulhosas, cheias de si, as telefonistas saíram da sala.
Só os empregados ficaram nos seus postos. Mas os quadros de ligação
não podiam ficar abandonados. As comunicações telefônicas precisavam ser
consertadas, custasse o que custasse. Só seis telefonistas profissionais
resolveram ficar.
Recorreu-se aos voluntários. Surgiram logo mais de cem: marinheiros,
soldados, operários. As seis mocinhas corriam de um lado para outro,
explicando, ajudando, consertando. Bem ou mal, as comunicações foram
restabelecidas e os fios novamente começaram a zunir. Era preciso, o mais
depressa possível, ligar telefonicamente o Smólni com as fábricas e os
quartéis e, em seguida, cortar todas as ligações com a Duma e as escolas
militares. Ao entardecer, quando começaram a circular as noticias do que
havia ocorrido, centenas e centenas de burgueses começaram a manifestar
descontentamento: — Canalhas! Imbecis. Esperem um pouco, que já verão.
Isso não ficará muito tempo assim! Os cossacos ajustarão contas com vocês!
Anoitecia. Um vento frio e cortante varria a Avenida Niévski quase
deserta. Diante da Catedral de Kazan estacionara uma grande multidão:
operários, soldados e, sobretudo, negociantes e empregados, discutindo as
mesmas coisas de sempre:
— Mas Lênin não conseguirá que a Alemanha aceite a paz — gritou um.
Um soldado, ainda jovem, respondeu energicamente:
— De quem será a culpa? Do seu maldito Kerenski, esse burguês
nojento! Para o diabo com Kerenski! Não o queremos! Precisamos é de
Lênin!...
Em frente à Duma, um oficial arrancava os manifestos que tinham sido
colados ao muro, praguejando em voz alta.
Um desses manifestos dizia:
"À POPULAÇÃO DE PETROGRADO
"Nesta hora cheia de ameaças, quando a Duma Munic ipal deveria fazer
todos os esforços para acalmar a população e garantir-lhe o pão e outras
coisas indispensáveis, os socialistas revolucionários e os cadetes,
esquecendo-se do seu dever, transformaram a Duma em assembléia contrarevolucionária.
Além disso, procuraram atirar uma parte do povo contra a
restante, a fim de facilitar a vitória de Kornilov e Kerenski. Em lugar de
cumprir seus mais elementares deveres, os socialistas revolucionários e os
cadetes transformaram a Duma em arena de luta política contra os sovietes
de deputados operários, soldados e camponeses, contra o governo
revolucionário da paz, do pão e da liberdade.
"Cidadãos de Petrogrado! Nós, facção bolchevique do Conselho
Municipal, que fomos eleitos por vós, temos a obrigação de denunciar a
aliança que acaba de ser concertada entre a ala direita dos socialistas
revolucionários e os cadetes, para trair o compromisso que assumiram
perante o povo e para levar o povo à fome e à guerra civil. Nós, os eleitos
por cento e oitenta e três mil votos, temos a obrigação de denunciar ao povo
o que esta acontecendo na Duma e, ao mesmo tempo, declararmos que nao
assumimos qualquer responsabilidade pelas deploráveis e inevitáveis
conseqüências da criminosa atividade dos socialistas revolucionários e dos
cadetes."
Disparos isolados cortavam o silêncio da noite. Mas a cidade estava
calma, fria, como que esgotada pelas violentas convulsões que a haviam
agitado.
Na Sala Nicolau, a sessão da Duma estava quase terminada Essa
arbitrária Duma mostrava-se um tanto atordoada. A todo instante, chegavam
mensageiros com novas notícias: a tomada da Companhia Telefônica, os
combates nas ruas, a queda da Escola Vladímir.
— A Duma — declarou Trupp — apóia a democracia na luta contra a
tirania e a violência. Mas, vença quem vencer, não aceitará nunca a justiça
sumária e a tortura.
A isso, Konovski, um velho cadete, hercúleo e de expressão cruel,
respondeu:
— Quando as tropas do governo legal entrarem em Petrogrado e
fuzilarem os insurretos, ninguém poderá dizer que tal coisa represente um
ato de justiça sumária!
A sala inteira, o seu partido, inclusive, protestou. Reinava a dúvida, o
desânimo. A contra-revolução recuava. O Comitê Central do Partido
Socialista Revolucionário aprovara uma moção de desconfiança em sua
representação na Duma. A ala esquerda do partido ganhava terreno.
Avksentiev pediu demissão. Chegou um mensageiro com a notícia de que a
delegação enviada à estação onde Kerenski ia desembarcar fora presa.
Ouvia-se nas ruas o surdo ribombar de canhões, que o vento parecia trazer
do oeste ou do sudoeste. E Kerenski não chegava...
Só três jornais tinham sido impressos: o Pravda, o Dielo Naroda e o
Novata Jizn. Todos falavam, longamente, no novo governo de coalizão. O
órgão socialista revolucionário pedia um governo sem cadetes nem
bolcheviques. Górki era mais otimista: achava que as concessões que o
Smólni acabara de fazer indicavam que ia formar-se um governo unicamente
socialista, contendo em si todos os partidos, menos a burguesia. O Pravda
criticava com mordacidade todos os defensores da.coalizão:
"Provoca risos a idéia de uma coalizão entre partidos políticos
compostos, em grande parte, de pequenos grupinhos de jornalistas, que
atualmente só têm como patrimônio a simpatia dos meios burgueses e um
passado imundo, e que, hoje, não defendem mais os interesses nem dos
operários, nem dos camponeses. A única coalizão que se podia fazer já está
feita: é a coalizão do partido revolucionário do proletariado com o exército
revolucionário e os camponeses pobres".
Um jornalzinho pretensioso, o Vikjel, declarava que se não se chegasse a
um entendimento entre os partidos, os ferroviários declarar-se-iam em greve:
"Os verdadeiros vencedores dessas lutas, os que poderão salvar o pouco
que ainda existe da nossa pátria, não serão nem os bolcheviques, nem o
Comitê de Salvação, nem as tropas de Kerenski, mas nós, o Sindicato dos
Ferroviários.
"Os guardas vermelhos nunca poderão organizar um serviço tão
complexo como o dos transportes ferroviários. Por outro lado, o Governo
Provisório também se mostra incapaz de exercer o poder...
"Nós não prestaremos nossos serviços a nenhum partido, sem exceção, a
não ser que o poder seja exercido por meio de um governo que conte com a
simpatia de toda a democracia."
O Smólni estava cheio de vida, de inesgotável energia humana.
Na sede dos sindicatos fui apresentado por Lossóvski a um representante
dos ferroviários da linha Nicolau, o qual me disse que seus companheiros
estavam realizando comícios de protesto contra a posiç ão dos chefes.
— Todo o poder aos sovietes! — gritou, dando um murro na mesa. —
Os oborontsi (traidores) do Comitê Central fazem o jogo de Kornilov.
Tentaram enviar uma delegação ao Stavka*, mas foi presa em Minsk.
Queremos uma conferência pan-russa.
* Quartel-general. (N. do E.)
O mesmo acontecia nos sovietes e nos comitês do Exército. As
organizações democráticas, uma por uma, desagregavam-se, transformavamse.
As cooperativas estavam desorganizadas pelas lutas internas. Depois de
sessões tempestuosas, os trabalhos do Comitê Executivo dos Deputados
Camponeses foram suspensos. Até entre os cossacos a agitação crescia.
No último andar do Smólni, o Comitê Militar Revolucionário trabalhava
intensamente, sem um momento de descanso. Os, homens ali entravam
repousados e fortes. Mas, em seguida, noite e dia, a terrível máquina lhes
consumia todas as forças.
Saíam exaustos, cegos, cansados, roucos, imundos, para cair como uma
massa inerte no chão, mortos de sono.
O Comitê de Salvação não podia mais funcionar. Suas sessões acabavam
de ser proibidas pelo Smólni. Estava fora da lei. Montes de manifestos
cobriam o chão:
"...Conspiradores, que não contam com nenhum apoio da guarnição nem
da classe operária, esperam vencer, espontaneamente, por meio de um golpe.
Seu plano foi descoberto a tempo pelo aspirante Blagonravov, graças à
vigilância de um guarda vermelho. O centro da conspiração era o Comitê de
Salvação. O Coronel Polkóvnikov teria o comando das tropas e todas as
ordens vinham assinadas por Gotz, membro do antigo Tsik, que havia sido
posto em liberdade sob palavra.
"O Comitê Militar Revolucionário leva esses fatos ao conhecimento do
povo de Petrogrado e decreta a prisão de todos os implicados na conspiração,
que serão julgados por um conselho de guerra revolucionário."
Chegou a notícia de que, em Moscou, os junkers e os cossacos haviam
cercado o Kremlin e intimado as forças soviéticas a deporem as armas. As
tropas aceitaram, mas, no momento em que deixavam o Kremlin, foram
assaltadas a tiros. A notícia acrescentava que outras forças bolcheviques, de
menor importância, acabavam também de ser expulsas dos Telégrafos e da
Companhia Telefônica.
O centro da cidade estava, assim, em poder dos junkers; porém, as tropas
soviéticas se reagrupavam, cercando-os. Combatia -se ainda nas ruas. Todas
as tentativas de acordo tinham fracassado. Os sovietes dispunham de dez mil
soldados da guarnição e de alguns milhares de guardas vermelhos. O
governo contava com seis mil junkers, dois mil e quinhentos cossacos e dois
mil guardas brancos.
O Soviete de Petrogrado estava reunido. Ao lado da sala em que
realizava sua sessão, o novo Comitê Executivo dos Sovietes (Tsik)
examinava as ordens e os decretos que o Conselho dos Comissários do Povo
lhe enviava do andar superior. Entre esses decretos, achavam-se leis a
ratificar ou a promulgar, a lei sobre a jornada de trabalho de oito horas e o
"Projeto de um Sistema de Educação Popular", organizado por Lunatcharski.
Algumas centenas de delegados assistiam às duas assembléias, quase todos
armados. O Smólni estava, decerto, ocupado apenas pela guarda, que
instalara algumas metralhadoras nos batentes das janelas apontando para as
partes laterais do edifício. Um delegado do Vikjel falava no Tsik:
— Não transportaremos as tropas de nenhum partido, sem exceção. Já
enviamos uma delegação a Kerenski para dizer-lhe que, se continuar
marchando sobre Petrogrado, cortaremos todas as linhas de comunicação.
Terminou, como sempre, reclamando uma conferência de todos os
partidos socialistas para a organização do novo governo.
Kamenev respondeu prudentemente. Disse que os bolcheviques não
eram contrários a essa conferência. Achavam, entretanto, que a questão mais
importante não era a formação de um governo desse gênero, mas que esse
governo aceitasse o programa do Congresso dos Sovietes. O Tsik já havia
tomado posição em face da declaração dos socialistas revolucionários da
esquerda e dos social-democratas internacionalistas, resolvido a aceitar uma
proposta de representação proporcional na conferência, com a participação
dos delegados do Comitê do Exército e dos Sovietes Camponeses.
Trótski, na sala maior, passava em revista os acontecimentos do dia:
— Intimamos os junkers da Escola Vladímir a deporem as armas. Mas,
agora, o sangue já correu. Só nos resta, pois, um caminho: a luta implacável.
É pueril acreditar que poderemos vencer de outro modo. Chegou o momento
decisivo. Todos devem auxiliar o Comitê Militar Revolucionário, indicando
os depósitos de arame farpado, de gasolina, de armas. Já temos o poder.
Precisamos, agora, conservá-lo.
O menchevique Ioffe quis ler uma declaração do seu partido, mas Trótski
recusou-se a abrir "um debate sobre questões de princípios", dizendo:
— Nossas discussões realizam-se atualmente nas ruas! Já demos o passo
decisivo. Todos nós, eu inclusive, assumimos a responsabilidade do que está
acontecendo.
Os soldados que haviam chegado de Gatchina falaram, manifestando
seus pontos de vista. Um deles, do batalhão de choque da 481.a Divisão,
disse: — Quando as trincheiras souberem disso, gritarão todas como um só
homem: "Esse sim! Esse é o nosso governo!" — Um junker de Peterhov
declarou que ele e dois companheiros tinham-se recusado a marchar contra
os sovietes e que, quando seus camaradas depuseram as armas no Palácio de
Inverno, fora ele indicado como seu representante e enviado ao Smólni para
se pôr a serviço da "verdadeira revolução".
Trótski ergueu-se, de novo, ardente, infatigável, dando ordens,
respondendo às perguntas:
— A pequena burguesia, para aniquilar o proletariado, os soldados e os
camponeses, é capaz de se aliar até com o Diabo.
Como os casos de embriaguez se tornavam cada vez mais freqüentes,
Trótski declarou:
— Camaradas! É preciso não beber! Ninguém deve andar pelas ruas
depois das oito horas, exceto as patrulhas. Vamos dar busca em todos os
lugares suspeitos e o álcool que for encontrado será destruído. Não podemos
tolerar o menor abuso dos traficantes de álcool.
O Comitê Militar Revolucionário, neste momento, solicitou a presença
da delegação da seção de Viborg, e, logo depois, da delegação dos operários
da Usina Putilov, que imediatamente se apresentaram.
— Para cada revolucionário morto — disse Trótski — mataremos cinco
contra-revolucionários!
Voltei para a cidade. A Duma estava profusamente iluminada. Por suas
portas penetrava grande multidão. Do andar térreo partiam gritos e gemidos
de dor. A turba comprimia -se em frente ao grande quadro de avisos, onde
estava afixada a relação dos junkers mortos durante o dia, ou que apenas
passavam por mortos, pois muitos deles reapareceram, mais tarde, sem um
arranhão.
Em cima, na Sala Alexandre, o Comitê para a Salvação da Rússia e da
Revolução continuava reunido. Viam-se aí oficiais com distintivos
vermelhos e dourados, fisionomias conhecidas de intelectuais mencheviques
e socialistas revolucionários, diplomatas e banqueiros de olhar duro e vestes
faustosas, funcionários do antigo regime, damas elegantes.
Chegaram as telefonistas. Uma por uma, essas pobres mocinhas,
malvestidas, procurando imitar as elegantes com os sapatos surrados e os
rostos abatidos, subiram à tribuna. Uma por uma, corando de prazer ante os
aplausos da alta sociedade de Petrogrado, começaram a falar, satisfeitas por
serem ouvidas pelos oficiais, ricaços, grandes vultos da política, descrevendo
seus sofrimentos e angústias quando os bolcheviques entraram na Central
Telefônica, e proclamando sua fidelidade incondicional ao antigo regime, à
ordem estabelecida, ao poder.
A Duma estava em sessão, na Sala Nicolau. O prefeito declarou com
otimismo que os regimentos de Petrogrado já estavam envergonhados da sua
atitude anterior. A propaganda surtia efeitos rápidos... Os emissários iam e
vinham, descrevendo as selvagerias dos bolcheviques e crivando os junkers
de perguntas, procurando ansiosamente saber as últimas novidades.
— A força moral vencerá os bolcheviques — disse Trupp —-, não as
baionetas.
Mas a situação na frente revolucionária não era nada animadora. O
inimigo possuía trens blindados com canhões. As forças soviéticas, formadas
na quase totalidade de guardas vermelhos pouco experientes, não possuíam
oficiais, nem um plano preestabelecido. Só fora possível mobilizar cinco mil
soldados regulares. O resto da guarnição, ou estava ocupada em combater a
revolta dos junkers, ou permanecia indecisa, sem tomar partido. Às dez
horas da noite, Lênin falou num comício de delegados dos regimentos que,
por maioria esmagadora, se pronunciaram a favor da luta. Elegeu-se um
comitê de cinco soldados: o estado-maior. Ao amanhecer, os regimentos
seguiam para a frente.
Quando voltava para casa, vi os soldados marchando, com passo
cadenciado, as baionetas alinhadas, através das ruas desertas da cidade
conquistada.
Nesse mesmo momento, no Quartel-General do Vikjel, na Sadovaia,
todos os partidos socialistas trabalhavam para formar um novo governo. Em
nome do centro menchevique, Abrámovitch declarou que não devia haver
vencedores nem vencidos, que era preciso passar uma esponja sobre o
passado. Todos os grupos da esquerda concordaram com essa resolução. Em
nome da direita menchevique, Dan propôs uma trégua aos bolcheviques, nas
seguintes condições: 1. A Guarda Vermelha seria desarmada; 2. A guarnição
de Petrogrado ficaria subordinada à Duma; 3. As forças de Kerenski ficariam
proibidas de disparar um tiro ou de fazer qualquer prisão; 4. Formação de
um ministério, com a participação de todos os partidos socialistas, menos os
bolcheviques. Riazanov e Kamenev responderam, em nome do Smólni,
dizendo que a idéia de um governo de coalizão de todos os partidos era
aceitável, mas protestavam contra a proposta de Dan. Os socialistas
revolucionários estavam divididos. U Comitê Executivo dos Sovietes de
Camponeses e os socialistas revolucionários recusavam, terminantemente, a
participação dos bolcheviques. Depois de calorosa disputa, elegeu-se uma
comissão para organizar um plano viável. Esta discutiu a noite toda, todo o
dia seguinte e toda a noite desse dia. Já se havia feito, anteriormente, a 9 de
novembro, uma tentativa de reconciliação semelhante. Martov e Górki foram
os promotores. Mas, como Kerenski estava próximo, e como o Comitê para a
Salvação da Rússia e da Revolução continuava a agir, a ala direita
menchevique, os socialistas revolucionários e os socialistas populares tinham
respondido negativamente. Desta vez, no entanto, o rápido esmagamento da
revolta dos junkers deixara-os sobressaltados.
Segunda-feira, 12, foi um dia de expectativa. Toda a Rússia estava com
os olhos voltados para a planície pardacenta, que se estende às portas de
Petrogrado, onde todas as forças disponíveis do antigo regime combatiam o
poder ainda desorganizado do novo regime. Combatiam o desconhecido. Em
Moscou chegara-se a uma trégua. Os dois adversários parlamentavam,
esperando o resultado dos acontecimentos na capital. Os delegados do
Congresso dos Sovietes partiam em trens' rápidos que os conduziam até os
confins da Ásia, para levar às províncias a cruz de fogo da revolução. A
notícia do milagre, em ondas cada vez maiores, espalhava-se por todo o país.
Os povoados e as longínquas aldeias já se agitavam e se rebelavam. Em toda
parte, os sovietes e os comitês revolucionários erguiam-se contra as dumas,
os ziemstvos e os comissários governamentais; a Guarda Vermelha, contra a
Guarda Branca. Lutava-se nas ruas; discutia -se apaixonadamente. Tudo
dependia de Petrogrado.
O Smólni estava quase vazio. Mas a Duma regurgitava de gente. O velho
prefeito, com a imponência de sempre, protestava contra o manifesto dos
conselheiros bolcheviques.
— A Duma não é foco contra-revolucionário — dizia com energia. — A
Duma não intervém nas lutas entre os partidos. Neste momento, quando no
país não há ordem legal, o Governo Municipal Autônomo é o único
representante da ordem. A população pacífica não pensa de outro modo e as
embaixadas estrangeiras só reconhecem os documentos visados pelo prefeito
da cidade. A mentalidade européia não pode admitir senão isso, porque o
Governo Municipal Autônomo é o único órgão capaz de proteger os
interesses dos cidadãos. A cidade tem o dever de abrigar com hospitalidade
todas as organizações que aqui se instalarem. A Duma não pode, portanto,
proibir a circulação de qualquer jornal nesta cidade. O campo de nossa
atividade ampliou-se. Precisamos de maior liberdade de ação. Nossos
direitos devem ser respeitados pelos dois campos. Somos completamente
neutros! Quando os junkers ocuparam a Central Telefônica, o Coronel
Polkóvnikov mandou cortar as comunicações com o Smólni. Mas, graças à
minha intervenção, essas ligações foram conservadas.
Ouviram-se gargalhadas irônicas da bancada bolchevique. A ala direita
praguejou.
— Apesar disso — continuou Schreider —, somos tidos como contrarevolucionários.
Somos apontados assim nos manifestos. Fomos privados de
nossos meios de transporte. Tiraram nossos últimos automóveis. Se a cidade
se vir a braços com a fome, a culpa não será nossa. Nossos protestos não são
ouvidos.
Kobozev, membro bolchevique do Conselho Municipal, pôs em
discussão o caso da requisição dos automóveis municipais pelo Comitê
Militar Revolucionário. Disse que o ato era admissível. Mas julgava que ele
se verificara em virtude de uma ordem individual ou de uma necessidade
urgente.
— O prefeito — continuou — diz que não devemos transformar as
sessões da Duma em comícios políticos. Mas são justamente os
mencheviques e os socialistas revolucionários que fazem agitação partidária,
aqui dentro. Na porta da Duma, distribuem seus jornais ilegais, o Iskra (A
Centelha), o Soldátski Golos e o Rabótchaia Gazieta, que incitam o povo à
insurreição. Que aconteceria se nós, bolcheviques, também começássemos a
distribuir nossos órgãos aqui dentro? Mas não faremos isso, porque
respeitamos a Duma. Não atacamos o Governo Municipal Autônomo nem
pensamos em atacá-lo. Como vocês publicaram, todavia, um manifesto
dirigido ao povo, também nos achamos com o direito de publicar o nosso...
O cadete Chingariov ocupou a tribuna para declarar que não se devia
discutir com indivíduos que estavam sendo acusados e que não eram mais
que traidores! Propôs que se expulsassem todos os bolcheviques da Duma.
Mas a votação dessa proposta foi adiada porque não havia qualquer fato que
pudesse ser invocado contra os representantes bolcheviques ocupantes de
cargos na administração municipal.
Dois mencheviques internacionalistas declararam, então, que o manifesto
dos conselheiros municipais bolcheviques era um convite direto à
carnificina.
— Se todo ato dirigido contra os bolcheviques pode ser qualificado de
contra-revolucionário — disse Pinkievitch —, não sei que diferença existe
entre revolução e anarquia! Os bolcheviques esperam desencadear as
violentas paixões das massas, nós só contamos com nossa firmeza moral.
Protestaremos contra toda violência, parta de onde partir, porque nosso dever
é procurar uma solução pacífica.
— O manifesto distribuído nas ruas, intitulado "Ao pelourinho", e que
incita o povo a matar os mencheviques e os socialistas revolucionários —
disse Nazariev —, é um crime que vocês, bolcheviques, nunca mais poderão
apagar. Os horrores de ontem não foram senão o prólogo dos novos horrores
que vocês preparam por meio desse manifesto. Sempre procurei reconciliá -
los com os demais partidos. Mas, neste momento, não sinto por vocês senão
desprezo.
Os conselheiros bolcheviques levantaram-se e responderam com
violência ao assalto das vozes roucas e cheias de ódio dos adversários. De
um lado e de outro partiam gritos, protestos, e viam-se semblantes e gestos
ameaçadores.
Saí da sala, esbarrando com o menchevique Gomberg, engenheiro-chefe
da cidade, e com três ou quatro jornalistas. Todos falavam com animação:
— Veja você! — disseram-me. — Os covardes têm medo de nós. Não
têm coragem de prender a Duma. O Comitê Militar Revolucionário não ousa
mandar um comissário aqui. Hoje, no fim da Sadovaia, vi um guarda
vermelho tentando impedir que um menino vendesse o Soldátski Golos. O
garoto limitou-se a rir, enquanto a multidão, por pouco, não linchava o
bandido. Tudo agora é questão de horas. Mesmo que Kerenski não venha,
eles não possuem meios para organizar um governo. Que gente
incompreensível! Tenho a impressão de que dentro do Smólni eles lutam
entre si!
Um socialista revolucionário, meu amigo, chamou-me a um canto e
disse-me:
— Sei onde está escondido o Comitê para a Salvação da Rússia e da
Revolução. Quer falar com seus membros?
A cidade retomara seu aspecto normal, com as vitrinas das casas já
abertas e iluminadas. As luzes brilhavam. Nas ruas, grande massa de povo
passeava e discutia. Na Avenida Niévski número 89, entramos num corredor
e chegamos ao pátio de uma enorme casa coletiva. No quarto 229, meu
amigo bateu de maneira especial. Ouvimos passos. Uma porta rangeu e em
seguida entreabriu-se, aparecendo um rosto de mulher. Após nos examinar
um minuto, fez-nos entrar. Era uma senhora de aspecto calmo, já madura. —
Kiril, está muito bem! — gritou para dentro. Na sala de jantar, em cima da
mesa, fumegava uni samovar. Ao seu lado, pratos com fatias de pão e
arenques. De trás de uma cortina saiu um homem fardado e, de uma pequena
sala, outro, vestido com roupas de operário. Pareciam encantados com a
presença, naquele momento, de um jornalista norte-americano. Com certo
orgulho, disseram-me que seriam na certa fuzilados pelos bolcheviques se
fossem encontrados ali. Não quiseram dar seus nomes, mas afirmaram que
eram socialistas revolucionários.
— Por que publicam os senhores essas mentiras nos seus jornais? —
perguntei.
Sem se mostrar ofendido, o oficial respondeu:
— Sim. O senhor tem razão. Mas, que vamos fazer? — E encolheu os
ombros. — O senhor compreende: é preciso criar certo estado de espírito no
povo...
O outro interrompeu:
— É uma simples aventura dos bolcheviques. Não contam com
intelectuais. Os ministérios não estão dispostos a ajudá-los. Além disso, a
Rússia não é uma cidade, é um país. Estamos convencidos de que só poderão
manter-se mais alguns dias. Resolvemos, portanto, apoiar o adversário mais
forte, Kerenski, ajudando-o a restabelecer a ordem.
— Muito bem — disse eu. — Mas, então, por que se unem aos cadetes?
O pseudo-operário respondeu sorrindo:
— Para falar a verdade, as massas estão, neste momento, com os
bolcheviques. Atualmente, não temos ninguém do nosso lado. Não
poderíamos reunir nem um pelotão de soldados. Nem armas temos...
Presentemente, só há dois partidos fortes: os bolcheviques e os reacionários,
ocultos, quase todos, atrás dos cadetes. Estes pensam que se servem de nós,
mas, na realidade, somos nós que nos servimos deles. Depois de derrubar os
bolcheviques, ajustaremos contas com os cadetes.
— Os bolcheviques serão admitidos no novo governo? Cocou a cabeça:
— A pergunta não é fácil de responder. É evidente que, se não forem
admitidos, começarão de novo. Em todo caso, poderão ser os árbitros da
situação, na Constituinte. Mas é preciso, naturalmente, que haja Constituinte.
— Essa questão — disse o oficial — traz consigo a participação dos
cadetes no novo governo, pelas mesmas razões. u senhor já deve saber que
os cadetes não são partidários da Assembléia Constituinte, principalmente se
for possível esmagar desde já os bolcheviques. E sacudiu a cabeça.
— Para nós, russos, a política não é coisa ainda bem clara. Os senhores,
norte-americanos, nascem políticos. Ocupam-se com política há muito
tempo. Nós, de um ano para cá é que a conhecemos.
— Qual é sua opinião sobre Kerenski? — perguntei.
— Oh! Kerenski é o responsável por todos os erros do Governo
Provisório — respondeu o outro. — Foi ele que nos fez aceitar a coalizão
com a burguesia. Se tivesse pedido demissão, como ameaçava fazer, teria
provocado uma crise do gabinete dezesseis semanas antes da Assembléia
Constituinte. E era justamente isso o que desejávamos evitar.
— Mas, afinal, não foi o que acabou acontecendo?
— Sem dúvida. Entretanto, como podíamos prever que isso ia acontecer?
Os Kerenski e os Avksentiev nos enganaram, Gotz é um pouco mais radical.
Eu sou partidário de Tchernov. Ele sim é que é um verdadeiro
revolucionário. O próprio Lênin declarou hoje que não é contra a entrada de
Tchernov no governo. Também queremos tirar Kerenski do governo, mas
achamos prudente esperar pela Constituinte. A princípio, fui partidário dos
bolcheviques. Mas, quando vi que o Comitê Central do meu partido votava
contra eles... Que podia fazer? Era uma questão de disciplina partidária. O
governo bolchevique não poderá durar mais de uma semana. Virá abaixo. Se
os socialistas revolucionários souberem ficar de lado e esperar, o poder cairá
em suas mãos, sem o menor esforço. É claro que, se tivermos que aguardar
mais de uma semana, o país ficará de tal forma desorganizado, que os
imperialistas alemães vencerão com a maior facilidade. Foi justamente por
isso que fomos obrigados a iniciar nosso movimento, contando apenas com a
promessa de apoio dos regimentos, que também, à última hora, se voltaram
contra nós. Só os junkers ficaram do nosso lado.
— E os cossacos?
O oficial suspirou.
— Estes nem se moveram. De início, disseram que marchariam se
fossem apoiados pela infantaria. Depois, declararam que ficariam do lado de
Kerenski, porque a maioria deles era composta de seus partidários. Também
disseram que sempre se acusavam os cossacos de serem inimigos
hereditários da democracia... Finalmente, acabaram enviando o seguinte
comunicado: "Os bolcheviques prometeram que não tirariam nossas terras.
Como nada temos a temer, ficaremos neutros".
Enquanto conversava, entravam e saíam pessoas continuamente, na
maioria oficiais que tinham arrancado os distintivos. De onde estava, podia
vê-los numa sala próxima. Ouvia também suas palavras. Discutiam em voz
baixa.
Olhando na direção do banheiro, no momento em que o vento levantou a
cortina, descobri um corpulento oficial, com uniforme de coronel,
escrevendo de cócoras. Reconheci-o. Era o Coronel Polkóvnikov, antigo
comandante militar de Petrogrado. O Comitê Militar Revolucionário daria
uma fortuna pela sua prisão.
— Qual é nosso programa? — continuou o oficial. — É o seguinte:
entrega das terras aos comitês agrários; representação dos operários na
direção da indústria; um enérgico programa de paz... Mas não um ultimatum
ao mundo inteiro, como o programa dos bolcheviques. Os bolcheviques não
poderão cumpr ir as promessas que fizeram às massas. Eles roubaram nosso
programa para obter o apoio dos camponeses. Isso é uma desonestidade! Se
esperassem pela Assembléia Constituinte...
— O importante não é a Assembléia Constituinte — aparteou outro. —
Se os bolcheviques quiserem criar na Rússia um Estado socialista, não
poderemos, em hipótese alguma, colaborar com eles. Kerenski cometeu falta
bem grave. Mostrou aos bolcheviques quais eram suas intenções, dizendo no
Conselho de Estado que havia anunciado sua prisão...
— E os senhores, que pretendem fazer agora? Os dois homens olharamse.
— O senhor verá dentro de alguns dias. Se pudermos contar com forças
suficientes, não transigiremos com os bolcheviques. Em caso contrário,
talvez sejamos obrigados a...
De volta, na Avenida Niévski, subi num bonde tão cheio, que os estribos,
de tanto peso, quase tocavam o chão. Depois de uma viagem lenta e
monótona, cheguei ao Smólni. Miechkóvski, um homenzinho vivo e cortês,
passeava no pátio com ar apreensivo. Disse-me que a greve dos ministérios
começava a surtir efeito. O Conselho dos Comissários do Povo prometera
publicar os tratados secretos. Mas Neratov, funcionário responsável por
esses papéis, havia desaparecido. Dizia -se que estava oculto na embaixada
britânica. A greve dos bancos era também bastante grave.
— Sem dinheiro — disse Miechkóvski — nada poderemos fazer. Temos
que pagar os salários dos ferroviários e dos empregados dos Correios e
Telégrafos. Todos os bancos estão fechados, inclusive o Banco do Estado. E
eles são a chave da situação. Todos os empregados bancários foram
comprados. Mas Lênin resolveu mandar forçar os porões do Banco do
Estado com dinamite e baixou um decreto ordenando a abertura de todos os
estabelecimentos bancários particulares. Se até amanhã não abrirem as
portas, nós as forçaremos.
O Soviete de Petrogrado estava em franca atividade. A maioria das
pessoas presentes tinha armas. Trótski falava:
— Os cossacos abandonaram Tsárskoie -Tseló. — (A sala em peso
aplaudiu com entusiasmo.) — Mas a batalha apenas começou. Em Pulkovo
estão se verificando sangrentos combates. É necessário enviar todas as forças
disponíveis. As notícias de Moscou são más. O Kremlin está em poder dos
junkers, e os operários têm poucas armas. Tudo depende de Petrogrado. Nas
trincheiras, a notícia da paz e da entrega das terras produziu delírio. Kerenski
distribuiu nas trincheiras grande quantidade de manifestos, anunciando que
Petrogrado está sendo arrasada e que os bolcheviques, desesperados, matam
as mulheres e as crianças. Mas ninguém acredita nesses boatos. Os
cruzadores Olieg, Aurora e República ancoraram no Nievá e apontaram os
canhões para a cidade.
— Por que você não vai combater ao lado dos seus guardas vermelhos?
— interrompeu uma voz rude.
— É justamente o que vou fazer... — respondeu Trótski, abandonando a
tribuna.
Um pouco mais pálido que habitualmente, saiu em companhia de um
amigo, dirigindo-se rápido para o automóvel que o esperava.
Kamenev pediu a palavra para relatar os trabalhos da conferência de
conciliação dos partidos.
— Os mencheviques foram repelidos com desdém — disse ele. — Até as
seções do Sindicato dos Ferroviários votaram contra... Agora, que estamos
no poder, agora, que nossa ação repercute em toda a Rússia, só nos
apresentam três "pequenas" condições: primeira, que entreguemos o poder;
segunda, que trabalhemos para convencer os soldados a continuar a guerra;
terceira, que os camponeses não falem mais em terra...
Lênin apareceu um instante na tribuna para rebater as acusações dos
socialistas revolucionários:
— Somos acusados de haver roubado seu programa agrário... Se isso
aconteceu, recebam nossos parabéns. Esse programa é a única coisa que nos
interessa.
A sessão continuou na mesma atmosfera. Vários líderes vieram à tribuna
para dar explicações, uns para defender, outros para acusar. Soldados e
operários pediam a palavra, expressando os pensamentos e sentimentos mais
íntimos. O auditório constantemente mudava e se renovava.
De vez em quando, eram chamados os membros deste ou daquele
destacamento, a fim de seguirem para a linha de fogo. Vários eram
substituídos ou dispensados por estarem feridos. Outros vinham buscar
armas no Smólni. Eram três horas da manhã. Ao sair da sala, encontrei-me
com Holtzmann, do Comitê Militar Revolucionário, que chegava correndo,
pálido e transfigurado.
— Tudo vai bem! — exclamou, apertando-me as mãos. — Um
telegrama da frente! Kerenski está perdido! Olhe!
Entregou-me uma folha de papel escrita a lápis. Vendo que não
conseguíamos decifrá-la, leu-a em voz alta:
"Pulkovo, estado-maior, duas e dez da madrugada.
"A noite de 30 para 31 de outubro ficará na história. Kerenski tentou
atirar as forças contra-revolucionárias contra a capital, mas foi
definitivamente repelido. Kerenski recua, nós avançamos. Os soldados, os
marinheiros e os operários de Petrogrado demonstraram sua vontade de
consolidar, de 'armas na mão, a autoridade da democracia. A burguesia
tentou isolar o exército revolucionário. Kerenski procurou aniquilá -lo,
valendo-se dos cossacos. Esses dois planos fracassaram completamente. A
grande idéia do domínio da democracia proletária e camponesa estreitou as
fileiras do Exército, temperando-lhe a vontade.
"De agora em diante, o país inteiro ficará convencido de que o poder
soviético não terá uma existência efêmera. O poder dos operários, dos
soldados e dos camponeses é uma realidade indestrutível! A derrota de
Kerenski é a derrota dos grandes proprietários, da burguesia e dos
kornilovistas. A derrota de Kerenski significa a confirmação do direito do
povo a uma vida de liberdade e paz, de possuir para sempre terra, pão e
poder. O destacamento de Pulkovo lutou heroicamente pela causa da
revolução operária e camponesa. Já não é mais possível voltar ao passado.
Teremos de lutar, vencer obstáculos e fazer sacrifícios. Mas o caminho está
aberto. A vitória é certa.
"A Rússia revolucionária e o poder soviético sentem-se orgulhosos pela
ação do destacamento de Pulkovo, comandado pelo Coronel Valden. Glória
eterna aos que tombaram! Glória aos combatentes da revolução! Glória aos
soldados e aos oficiais que foram fiéis ao povo!
"Viva a Rússia revolucionária, popular e socialista!
"Em nome do Conselho dos Comissários do Povo,
L. Trótski."
Ao atravessar a Praça Znamenskaia, notei grande movimento em frente à
Estação Nicolau. Em frente ao edifício, acotovelavam-se várias centenas de
marinheiros armados de fuzis. De pé, na grade, um membro do Vikjel
discutia com eles:
— Camaradas! Não podemos levá-los a Moscou. Somos neutros. Não
transportaremos forças de nenhum partido. Não podemos levá-los a Moscou,
porque lá a guerra civil já irrompeu.
Um rugido imenso foi a resposta. Os marinheiros começaram a avançar.
De repente, o portão escancarou-se, e apareceram dois ou três guarda-freios,
um maquinista e mais alguns ferroviários.
— É por aqui, camaradas! — gritou um deles. - - Nós os levaremos a
Moscou, a Vladivostok, aonde quiserem! Viva a revolução!...

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