Capítulo V
AO TRABALHO
Quinta-feira, 8 de novembro. O sol ergueu-se sobre uma cidade no auge
da excitação e da desordem, sobre uma nação convulsionada, agitada por
formidável tormenta.
Aparentemente, tudo estava tranqüilo. Centenas de milhares de pessoas
dirigiam-se pacatamente para suas casas e levantavam-se cedo para o
trabalho. Em Petrogrado, os bondes circulavam. Os armazéns e os
restaurantes continuavam abertos. Os teatros, bastante concorridos.
Anunciava-se até uma exposição de pintura... A vida cotidiana continuava no
seu ritmo de sempre, com sua complexidade costumeira, que nem a guerra
conseguia modificar. Nada é tão surpreendente como essa vitalidade do
organismo social. Diante das maiores calamidades, ele continua
alimentando-se, vestindo-se e até distraindo-se...
Circulavam mil boatos. Dizia -se, por exemplo, que Kerenski conseguira
organizar um forte exército, na frente de combate, que marchava sobre a
capital.
O Vólia Naroda publicou, o seguinte prikaz*, enviado por Kerenski, de
Pskov:
*Manifesto, ordem, ultimato. (N. do E.)
"As desordens, provocadas pela louca tentativa dos bolcheviques,
levaram o país às bordas de um abismo. O esforço conjugado de todas as
vontades, a maior coragem e a maior abnegação de cada cidadão devem ser
postos a serviço da pátria, para que ela possa sair vitoriosa da terrível
provocação por que está passando.
"Até o momento da formação do novo Governo Provisório, todos devem
continuar nos seus postos e cumprir seu dever para ,com a Rússia
martirizada. Não nos devemos esquecer de que o menor obstáculo oposto à
ação dos atuais organismos militares pode determinar terríveis desgraças.
Pode provocar um enfraquecimento da resistência na frente de combate e a
invasão do país pelo inimigo. É necessário, portanto, salvaguardar a todo
custo a potência combativa das tropas e manter a mais perfeita ordem,
preservando o Exército de novos choques, assegurando a existência de uma
confiança recíproca entre comandantes e subordinados. Ordeno que todos os
chefes e comissários, em nome da salvação da pátria, permaneçam nos seus
postos? como eu permaneço no meu de chefe supremo dos exércitos, até que
o Governo Provisório da República manifeste sua vontade."
Em resposta, foi afixado em todas as paredes o seguinte manifesto:
"AVISO AO CONGRESSO PAN-RUSSO DOS SOVIETES
"Os antigos ministros Konovalov, Kíchkin, Terestchenko, Málientovitch,
Nikítin e alguns outros foram detidos pelo Comitê Militar Revolucionário.
Kerenski fugiu. Todas as organizações militares receberam ordens no
sentido de tomar as providências necessárias para a imediata captura de
Kerenski e para o seu embarque, preso, para esta cidade.
"Qualquer auxílio prestado a Kerenski será considerado como grave
crime contra o Estado e, como tal, punido. "
O Comitê Militar Revolucionário desencadeou a ofensiva a todo vapor.
Em seu caminho, surgiram como faíscas as ordens, os avisos, os apelos, os
decretos. Ordenou-se que Kornilov fosse transportado para Petrogrado.
Todos os membros dos comitês agrários que tinham sido presos pelo
Governo Provisório foram postos em liberdade. Foi abolida a pena de morte
no Exército. Os funcionários receberam ordem de continuar trabalhando, sob
pena de severos castigos. Um decreto estabelecia que a especulação ou o
saque seriam punidos com a pena capital. Foram nomeados provisoriamente
os seguintes comissários para os diferentes ministérios: Exterior, Uritski e
Trótski; Interior e Justiça, Rikov; Trabalho, Chliápnikov; Fazenda,
Menjinski; Assistência Pública, Aleksandra Kolontai; Comércio, Indústria e
Viação, Riazanov; Marinha, o marinheiro Korbir; Correios e Telégrafos,
Spiro; Teatros, Muraviov; Imprensa Nacional, Dervichev; Cidade de
Petrogrado, o Tenente Nesterov; Frente Norte, Pozern.
O Exército foi convidado a indicar comitês militares revolucionários; os
ferroviários, a manter a ordem e, principalmente, a evitar todo atraso no
transporte de víveres destinados às cidades e aos soldados da frente de
combate. Em compensação, eles, os ferroviários, seriam representados no
Ministério da Viação e Comunicações.
Um dos manifestos do comitê era endereçado aos cossacos:
"Irmãos cossacos! Querem atirar vocês contra Petrogrado. Querem
obrigá-los a combater contra os operários e os soldados revolucionários da
capital. Para isso, dizem que Petrogrado odeia os cossacos. Não dêem
ouvidos a uma só palavra dos nossos inimigos comuns, os grandes
proprietários de terras e capitalistas.
"Nosso Congresso tem representantes de todas as organizações
conscientes de operários, soldados e camponeses de toda a Rússia.
"O Congresso deseja que os trabalhadores cossacos ingressem no seu
seio. Os generais reacionários, lacaios dos grandes proprietários e de
Nicolau, o Sanguinário, são nossos inimigos. Os cossacos, que sofrem por
falta de terras, são nossos irmãos.
"Dizem a vocês que os sovietes querem tirar as terras dos cossacos. É
mentira. A revolução só quer confiscar as terras dos grandes proprietários
cossacos para entregá-las ao povo.
"Organizem seus próprios sovietes de deputados cossacos! Unam-se aos
operários, aos soldados e aos camponeses!
"Mostrem aos Cem Negros que não são traidores do povo, que não
querem ser odiados por toda a Rússia revolucionária!
"Irmãos cossacos! Não obedeçam a uma só ordem dos inimigos do povo!
Enviem seus delegados a Petrogrado, para entrarem em contato conosco,
como já fizeram nossos camaradas do Corpo* de Ciclistas e de várias forças
cossacas! Os cossacos da guarnição de Petrogrado podem orgulhar-se de não
terem correspondido às esperanças dos inimigos do povo. Negaram-se a
atacar seus irmãos. Não quiseram combater a guarnição revolucionária e os
operários de Petrogrado!
"Irmãos cossacos! O Congresso Pan-Russo dos Sovietes lhes estende
fraternalmente a mão!
"Viva a união dos cossacos, dos operários, dos soldados e aos
camponeses de toda a Rússia!"
O campo contrário respondia com uma chusma de manifestos, que
colocava em todas as paredes, distribuídos profusamente por toda parte
apareciam volantes, jornais, maldizendo, profetizando as piores desgraças...
Os adversários da revolução combatiam, agora, servindo-se apenas dos
comunicados de imprensa, porque todas as outras armas estavam em mãos
dos sovietes.
Eis aqui, por exemplo, um apelo do Comitê para a Salvação do País e da
Revolução, que foi amplamente difundido na Rússia e em toda a Europa:
"AOS CIDADÃOS DA REPÚBLICA RUSSA
"No dia 7 de novembro, contrariando a vontade das massas
revolucionárias, os bolcheviques, criminosamente, prenderam parte do
Governo Provisório, dissolveram o Conselho da República e proclamaram
um poder ilegal. Uma violência dessa índole contra o governo de toda a
Rússia revolucionária, justamente no momento em que o perigo exterior nos
ameaça mais do que nunca, é um inqualificável crime contra a pátria.
"A insurreição bolchevique é um golpe mortal desferido na causa da
defesa nacional, retardando, por mais tempo, a paz que todos desejam.
"A guerra civil, desencadeada pelos bolcheviques, ameaça atirar o país
nos horrores da anarquia e da contra-revolução e fazer fracassar a
Assembléia Constituinte, que deve consolidar o regime republicano e
entregar, para sempre, as terras ao povo. "Assegurando a continuidade de um
único poder governamental legal, o Comitê para a Salvação do País e da
Revolução, instituído na noite de 7 de novembro, vai cuidar imediatamente
da formação de um novo Governo Provisório. Esse governo, apoiando-se nas
forças da democracia, assumirá a direção do país até a realização da
Assembléia Constituinte, salvando-o da anarquia e da contra-revolução. O
Comitê para a Salvação do País e da Revolução confia em todos vocês,
cidadãos.
"Ninguém deve reconhecer a autoridade dos sectários! "Ninguém deve
cumprir suas ordens! "De pé, na defesa do país e da revolução! "Apóiem o
Comitê para a Salvação do País e da Revolução!
"Assinado:
"O Conselho da República Russa
"A Duma Municipal de Petrogrado
"O Tsik do Primeiro Congresso
"O Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses
"As facções socialistas revolucionárias menchevique,
social-democrata unificada, o grupo Iedinstvo
do 2.° Congresso."
O Partido Socialista Revolucionário, os mencheviques, os sovietes
camponeses, o Comitê Central do Exército e da Marinha, etc, também
haviam lançado seus manifestos:
"...A fome aniquilará Petrogrado. Os exércitos alemães vão calcar aos pés
a nossa liberdade. Os pogroms dos Cem Negros devastarão a Rússia, se
todos nós, operários, soldados, cidadãos conscientes, não nos unirmos.
"Não se deixem iludir pelas promessas dos bolcheviques! Sua promessa
de paz imediata é uma mentira! Sua promessa de pão, um engodo! Sua
promessa de terra, um conto de fadas!
"Camaradas! Os bolcheviques os enganaram vil e criminosamente.'Os
bolcheviques tomaram o poder sozinhos. Esconderam a sua conspiração de
todos os outros partidos, que também faziam parte dos sovietes. Eles lhes
prometem terras e liberdade. Mas a anarquia provocada pelos bolcheviques
servirá, unicamente, para que a contra-revolução triunfe, privando vocês da
terra e da liberdade..."
A linguagem dos jornais não era menos violenta: "O nosso dever",
escrevia o Dielo Naroda, "é desmascarar esses traidores da classe operária.
Nosso dever é mobilizar todas as forças para lutar em defesa da revolução!"
O Izvéstia, falando pela última vez em nome do antigo Tsik, anunciava
uma punição terrível:
"Declaramos que o Congresso dos Sovietes nunca existiu. Eis nossa
opinião sobre tal congresso. Declaramos que apenas se realizou uma
conferência privada, da facção bolchevique, que, de maneira alguma, podia
julgar-se no direito de destituir o Tsik de todos os seus poderes... "
O Nó vaia Jizn propunha a formação de novo governo, com a
participação de todos os partidos socialistas, e criticava severamente os
socialistas revolucionários e os mencheviques por se terem retirado do
Congresso. Acrescentava que a significação da insurreição bolchevique era
bem clara: depois dela, não se podia ter mais ilusão sobre a possibilidade de
coalizão com a burguesia.
O Rabótchi Put, adotando o título de Pravda*, o jornal de Lênin que fora
proibido em julho, diz ia orgulhosamente e em tom ameaçador:
* A Verdade. (N. do E.)
"Operários, soldados, camponeses! Em março, vocês derrubaram a
tirania da nobreza! Ontem, assestaram um golpe decisivo na tirania
burguesa!
"A tarefa mais urgente, agora, é defender as vizinhanças de Petrogrado.
Em segundo lugar, desarmar definitivamente os elementos contrarevolucionários
de Petrogrado.
"A terceira tarefa a executar é a organização definitiva do poder
revolucionário, assegurando a realização do seu programa..."
Apareceram poucos jornais dos cadetes. A burguesia analisava os
acontecimentos em tom irônico, como quem dissesse aos demais partidos:
"Eu não disse a vocês?" Viam-se as figuras mais destacadas do Partido
Cadete entre a Duma Municipal e o Comitê de Salvação. A burguesia
esperava o momento de agir, que com certeza não iria tardar muito.
Excetuando Lênin, Trótski, os operários de Petrogrado e os soldados,
ninguém acreditava que os bolcheviques poderiam manter-se no poder por
mais de três dias.
Nesse mesmo dia, à tarde, dirigi-me à Sala Nicolau, anfiteatro de teto
alto, onde a Duma estava em sessão permanente, sempre agitada,
congregando todas as forças da oposição. O velho Prefeito Schreider,
majestoso, com a cabeleira e a barba brancas, comunicava o resultado de sua
visita, na noite anterior, ao Smólni, para protestar em nome do Governo
Municipal Autônomo.
— A Duma, o único poder legal existente na capital, eleito pelo sufrágio
igualitário, direto e secreto, não reconhece o novo poder — dissera ele a
Trótski.
E Trótski respondera:
— A própria Constituição nos dá o remédio para tal situação:
dissolveremos a Duma e procederemos a novas eleições.
Essas palavras provocaram exclamações de furor:
— Querem fazer reconhecer um governo à força de baionetas —
continuou o velho, dirigindo-se à Duma. — Em breve, teremos tal governo!
Mas eu só considero como legítimo aquele que for reconhecido pelo povo,
pela maioria, e não um poder criado pela minoria usurpadora!
Aplausos entusiásticos em todos os bancos, menos na bancada
bolchevique. Em meio ao tumulto, o prefeito anunciou que os bolcheviques
já tinham violado a autonomia municipal, designando comissários para
diversos distritos.
O orador da facção bolchevique, procurando dominar o tumulto, gritou
que a decisão do Congresso dos Sovietes significava que toda a Rússia
aprovava a ação dos bolcheviques.
— Vocês — acrescentou — não são mais os verdadeiros representantes
da população de Petrogrado! — (Gritos: "Isso é um insulto!")
O velho prefeito, sem perder o ar solene, lembrou ao orador que a Duma
fora eleita pelo voto popular mais livre que era possível existir.
— Sem dúvida — respondeu o orador bolchevique. — Mas quando foi
isso? Há quanto tempo? Hoje, a Duma, o Tsik e os comitês do Exército não
representam mais ninguém!
— Não houve novo Congresso dos Sovietes! — gritavam na sala.
— A facção bolchevique nega-se a continuar por mais tempo neste ninho
de contra-revolução! — (Tumulto.) — Propomos a eleição de nova Duma...
E os bolcheviques abandonaram o recinto aos gritos de "Agentes da
Alemanha! Abaixo os traidores!"
Tchingariov, um cadete, exigiu que todos os funcionários municipais que
haviam aceito cargos do Comitê Militar Revolucionário fossem demitidos e
julgados pelos tribunais. Schreider levantou-se com uma moção de protesto
contra a ameaça de dissolução dos bolcheviques, na qual declarava que a
Duma, como representante legal da população, negava-se a abandonar seu
posto.
A Sala de Alexandre, onde tinha lugar a reunião do Comitê de Salvação,
estava abarrotada. Skobeliev falava novamente.
— A revolução nunca esteve em situação tão crítica. Nunca, como agora,
a existência do Estado russo esteve tão ameaçada. Nunca a história colocou
na ordem-do-dia, de maneira tão bruta l e categórica para a Rússia, a questão
de ser ou não ser. Chegou o momento decisivo. É necessário salvar a
revolução. Compreendendo a imensa gravidade do momento, as forças vivas
da democracia revolucionária se unem num caldeamento expressivo de
vontades organizadas. Surgiu, assim, o Comitê para a Salvação do País e da
Revolução... Morreremos, mas não abandonaremos os nossos postos!
A notícia da adesão do Sindicato dos Ferroviários ao Comitê de Salvação
foi recebida com ruidosas manifestações de alegria. Momentos depois,
chegaram os representantes dos Correios e Telégrafos. Por último, entraram
alguns mencheviques internacionalistas, que foram recebidos debaixo de
palmas. Os ferroviários declararam que não reconheciam o poder
bolchevique. Já haviam assumido o controle das estradas de ferro e não o
entregariam a nenhum poder de usurpadores, fosse qual fosse. O delegado
dos telegrafistas declarou que os operadores se recusavam a trabalhar sob a
direção do comissário bolchevique. Os carteiros não entregariam a
correspondência endereçada ao Smólni. As linhas telegráficas do Smólni
estavam cortadas. Foi com vivo prazer que a assembléia ouviu a narrativa da
recepção que Uritski teve no Ministério do Exterior. Uritski exigira a entrega
dos tratados secretos, mas Neratov expulsou-o, com o auxílio de todos os
funcionários, que se declararam em greve. Era a guerra. A guerra
abertamente declarada; a guerra à maneira russa, pelas greves e pela
sabotagem. O presidente leu uma lista de nomes e distribuiu tarefas. Este
ficava encarregado da vigilância dos ministérios; outro, dos bancos, etc.
Uma comissão especial incumbiu-se de intervir junto aos soldados, nos
quartéis, a fim de mantê-los em atitude neutra. ("Soldados russos! Não
derrameis o sangue de vossos irmãos!") Uma comissão devia partir para
conferenciar com Kerenski. Outros seguiriam para diversos pontos do país, a
fim de criar sucursais do Comitê de Salvação e unificar todas as correntes
antibolcheviques.
A assembléia fervilhava de indignação: — Será possível? Então, esses
bolcheviques querem ditar leis à intelliguêntsia*, às pessoas cultas? Eles vão
ver o que é bom! — O contraste entre essa assembléia e o Congresso dos
Sovietes era, de fato, surpreendente. No Congresso, viam-se soldados
esfarrapados, operários de mãos calosas, camponeses pobres, curvados,
estampando no rosto todo o sofrimento da luta brutal pela vida. Aqui,
estavam os chefes mencheviques e socialistas revolucionários — os
Avksentiev, os Dan, os Lieber —, os antigos ministros socialistas — os
Skobeliev, os Tchernov —, ombro a ombro com os cadetes, como o melífluo
Tchátski, o perfumado Vinaver, com jornalistas, estudantes, intelectuais de
quase todas as tendências. Na Duma, todos estavam bem nutridos, bem
vestidos; entre eles, não vi mais do que três proletários...
* Elite intelectual. (N, do E.)
As notícias chegavam. Os fiéis tekintsi de Kornilov haviam degolado o
grupo de proteção pessoal do chefe, em Bikhov. Kornilov conseguira fugir.
Kaledin avançava para o norte. O Soviete de Moscou também organizara um
comitê militar revolucionário e já estava em negociações com o comandante
militar da cidade para obter o arsenal e armar os operários.
Enquanto isso, circulavam os mais disparatados boatos, na maioria sem
nenhum fundamento, exageros e deturpações de fatos, ou simples mentiras.
Assim, por exemplo, um jovem cadete, muito vivo, antigo secretário
particular de Miliukov e de Terestchenko, chamou-nos em particular para
contar pormenorizadamente a ocupação do Palácio de Inverno:
— Os bolcheviques eram comandados por oficiais alemães e austríacos
— afirmou.
— Será possível? — respondemos por cortesia. — Como foi que
conseguiu saber isso?
— Por um amigo meu. Esteve presente e viu esses oficiais.
— Como pôde ele saber que eram oficiais alemães?
— Ora, pelo uniforme!
Boatos absurdos como este circulavam às centenas. E não eram
veiculados apenas pela imprensa antibolchevique. Muitas personagens
importantes, como certos socialistas revolucionários considerados amigos da
verdade, também os levavam a sério...
Quase sempre, as histórias referiam-se a violências ou ações de
terrorismo praticadas pelos bolcheviques. Dizia -se e imprimia-se, por
exemplo, que os guardas vermelhos não só haviam saqueado o Palácio de
Inverno, como tinham assassinado os junkers, depois de desarmá-los,
matando também alguns ministros... As mulheres dos soldados haviam sido
todas violentadas tão barbaramente, que muitas, para escapar às torturas, se
tinham suicidado...
A Duma Municipal aceitava todas essas mentiras sem discutir. Mas o
pior foi que, nessas narrativas fantásticas, impressas nos jornais com
minúcias horripilantes, citavam-se, freqüentemente, os nomes das supostas
vítimas. E a Duma foi invadida por uma multidão de mães, pais e esposos,
loucos de dor, que queriam saber, ao certo, se as notícias publicadas sobre
seus parentes eram, de fato, verdadeiras.
O caso do Príncipe Tumanov foi típico. Segundo os jornais, seu corpo
fora encontrado boiando no Moika. Horas depois, a ramilia do príncipe
desmentiu a notícia, dizendo que ele estava preso. Mas, como era
absolutamente necessário identificar o cadáver, a imprensa afirmou que era o
corpo do General Deníssov. Entretanto, o general também estava vivo. De
minha parte fiz um rigoroso inquérito e, por mais que procurasse e
indagasse, não encontrei em parte alguma nem sombra desse cadáver...
Quando saí da Duma, dois homens distribuíam manifestos a uma enorme
multidão que enchia a Avenida Niévski, multidão composta quase que
exclusivamente por homens de negócios, pequenos comerciantes,
funcionários e empregados.
Apanhei um e li:
"Em sua sessão de 26 de outubro, a Duma Municipal, em virtude da
situação, decretou que os domicílios particulares são invioláveis e convidou
a população de Petrogrado, por intermédio dos 'comitês de residência', a se
opor a qualquer tentativa de invasão das residências pela força, recorrendo às
armas, sem vacilação, no próprio interesse dos cidadãos".
No extremo da Liteini, cinco ou seis guardas vermelhos e dois ou três
marinheiros cercavam um jornaleiro exigindo que lhes entregasse todos os
exemplares do jornal menchevique Rabo tchaia Gazieta (A Gazeta
Operária). Furioso, gritando e gesticulando, o jornaleiro protestava, até que
um dos marinheiros arrancou-lhe violentamente os jornais.
Uma multidão, ameaçadora, insultando a patrulha, juntou-se no local do
incidente. Um operário procurava convencer os presentes e o jornaleiro:
— Este jornal publicou a proclamação de Kerenski, dizendo que
matamos os russos e que, por isso, vai correr sangue...
O Smólni trabalhava incessantemente; não digo mais do que nunca,
porque isso era impossível. Sempre o mesmo vaivém, nos corredores maliluminados;
grupos operários, armados de fuzis; chefes políticos com as
pastas cheias de papéis, dando explicações, ordens, correndo, cercados de
amigos e de colaboradores. Homens completamente fora de si, prodígios
vivos de vigília e de trabalho, com a barba por fazer, os olhos queimados
pela febre, andando em linha reta para o objetivo fixado, arrastados por uma
irresistível excitação. Havia tanta coisa por fazer! Tanta coisa! Assumir a
direção de todos os órgãos do governo; organizar a cidade; garantir a
fidelidade da guarnição; lutar contra a Duma e o Comitê de Salvação; conter
os exércitos alemães; preparar a luta contra Kerenski; levar a notícia desses
acontecimentos às províncias; fazer propaganda em Arkanguel, em
Vladivostok... Os funcionários do Estado e da capital não queriam obedecer
às ordens dos comissários. Nos Correios e Telégrafos, eles se negavam a
garantir o funcionamento do serviço de comunicações. Os ferroviários não
atendiam aos pedidos de trens. Kerenski aproximava-se. A guarnição não
estava completamente firme e ainda vacilava. Os cossacos organizavam um
ataque... Contra os bolcheviques lutavam não só a burguesia organizada,
como todos os partidos socialistas, com exceção apenas da esquerda
socialista revolucionária, de alguns mencheviques internacionalistas e de
vários social-democratas internacionalistas. Mesmo esses não tinham ainda
tomado posição definida. Os bolcheviques só podiam contar, pois, com a
massa operária e os soldados. O número dos camponeses que os apoiavam
era até então desconhecido. Não contavam também com grande quantidade
de homens cultos e experientes.
Riazanov, enquanto subia a escadaria principal, dizia -me, gesticulando e
gracejando, que ele, comissário do Comércio, não conhecia coisa alguma de
negócios. Na sala de café do primeiro andar, só a um canto, estava um
homem envolvido num capote de pele de cabra — eu ia dizer que ele não
tirava esse capote nem para dormir, mas, na verdade, esse homem mostrava
claramente, pelo seu aspecto, que não dormia há vários dias —, com a barba
de três dias, amontoando nervosamente algarismos numa folha de papel sujo,
mordendo de vez em quando o lápis. Era Menjinski, comissário das Finanças
do Ministério da Fazenda. Fora designado para esse cargo unicamente
porque era antigo empregado do Banco Francês. E aqueles quatro homens
que saíam correndo do Comitê Militar Revolucionário, tomando
apressadamente algumas notas em pedaços de papel, eram comissários que
iam partir para os quatro cantos da Rússia, levando notícias e argumentos
para combater o inimigo por todos os meios ao seu alcance.
O Congresso reunir-se-ia à uma hora. Mas a grande sala de sessões,
muito antes, já estava cheia. Até as sete horas, a presidência não apareceu.
Os bolcheviques e os socialistas revolucionários de esquerda realizavam
reuniões em suas salas. Durante toda a tarde, Lênin e Trótski discutiam
acaloradamente, combatendo várias correntes e tendências de conciliação,
que se manifestavam dentro das próprias fileiras. Uma parte dos
bolcheviques era da opinião de que se deviam fazer tantas concessões
quantas fossem necessárias para a formação de um governo de coalizão
socialista. — Sozinhos, não nos poderemos manter — gritavam. — Todos
estão contra nós. Não temos homens para atender a todas as necessidades.
Ficaremos isolados e cairemos. — Tal era a linguagem de Kamenev,
Riazanov e outros.
Mas Lênin, apoia do por Trótski, continuava firme como um rochedo.
— Os que querem um compromisso aceitem primeiro o nosso programa.
Serão, então, imediatamente admitidos por nós. Não cederemos uma só
polegada. Se, entre nós, há indivíduos que não têm coragem nem vontade de
arriscar-se como nós nos arriscamos, que estes se retirem e se juntem aos
outros covardes e conciliadores! Com o apoio dos soldados e dos operários,
marcharemos para a frente!
Às sete e cinco, os socialistas revolucionários comunicaram que
continuariam no Comitê Militar Revolucionário.
— Vocês estão vendo? — disse Lênin. — Eles nos acompanham!
Um pouco mais tarde, na mesa de imprensa, situada na grande sala de
sessões, onde nos havíamos sentado, fomos abordados por um anarquista,
que colaborava em vários jornais burgueses, pedindo-nos que fôssemos ver o
que a presidência estava fazendo. Na sala do Tsik não havia ninguém.
Fomos à sala do Soviete de Petrogrado e também a encontramos vazia.
Percorremos todo o Smólni, sala por sala. Ninguém soube dizer onde se
encontrava o órgão dirigente do Congresso. Enquanto atravessávamos o
Smólni, meu companheiro descrevia seu passado revolucionário e as
saudades que sentia do seu longo e agradável desterro na França. Sobre os
bolcheviques, disse-me que eram indivíduos de baixa esfera, grosseiros,
ignorantes e desprovidos de sentimentos estéticos. Estava ao meu lado um
espécime típico da intelliguêntsia russa... Cheguei, afinal, à sala número 7,
onde se instalara o Comitê Militar Revolucionário, que trabalhava no meio
de uma agitação terrível. Abriu-se a porta e saiu um homem gorducho, com
o semblante abatido, vestindo uniforme sem distintivos. Parecia sorrir. Mas
logo verifiquei que aquele sorriso era quase apenas uma contração forçada e
permanente de cansaço. Era Krilenko.
Meu companheiro, jovem de educação esmerada, soltou uma exclamação
de alegria e dirigiu-se para ele:
— Nikolai Vassílievitch — disse, estendendo a mão. — Não me conhece
mais, camarada? Estivemos juntos na prisão! Krilenko parou e fez um
esforço de memória , olhando-o fixamente:
— Ah, sim! — respondeu afinal, olhando o outro com visível simpatia.
— Você é S... Como está?
Abraçaram-se.
— Que faz por aqui?
— Vim somente para vê -lo... Parece que os seus vão bem...
— Sem dúvida — respondeu Krilenko, com um tom de voz que
denotava grande força de vontade. — A revolução proletária está vitoriosa
em toda a linha. E acrescentou:
— Mas é bem possível que nos encontremos novamente na prisão.
Meu companheiro despediu-se de Krilenko e veio ao meu encontro.
Disse-me, então:
— Como sabe, sou discípulo de Kropótkin. Para nós, a revolução é um
grande erro, porque não despertou nas massas o sentimento patriótico. Isso
demonstra que o povo russo não está ainda preparado para a revolução...
Exatamente às oito horas e quarenta minutos, uma tempestade de
aplausos anunciou a chegada da presidência, com Lênin, o grande Lênin, à
frente.
Uma silhueta baixa. Cabeça redonda e calva, mergulhada entre os
ombros. Olhos pequenos, nariz rombudo, boca larga e generosa. Mandíbula
pesada. Estava completamente barbeado. Mas a sua barba, dantes tão
conhecida e que daquele momento em diante iria ser eterna, já começava a
despontar novamente. O casaco estava puído; as calças eram compridas
demais. Sua aparência física não indicava que ele poderia ser um ídolo das
multidões. Mas foi querido e venerado como poucos chefes em toda a
história. Um estranho chefe popular. Chefe só pelo poder do espírito. Sem
brilho, sem ditos chistosos, intransigente e sempre em destaque, sem a
menor particularidade interessante, mas possuindo, em alto grau, a
capacidade de explicar idéias profundas em termos simples e de analisar
concretamente as situações. Senhor de prodigiosa audácia intelectual. Assim
era Lênin.
Kamenev leu um relatório expondo a atividade do Comitê Militar
Revolucionário: abolição da pena de morte no Exército; restabelecimento da
liberdade de propaganda; libertação de todos os soldados e oficiais detidos
por motivos políticos; ordem de prisão contra Kerenski; confisco dos
estoques de gêneros de primeira necessidade acumulados nos grandes
armazéns particulares. Ouviu-se delirante salva de palmas.
Em seguida, o orador do Bund (facção social-democrata israelita) pediu
a palavra. Na sua opinião, a atitude intransigente dos bolc heviques ia
determinar a morte da revolução. Eis por que, dizia ele, os delegados do
Bund se julgavam na obrigação de não continuar participando do Congresso.
(Gritos: "Nós pensávamos que vocês já tivessem ido embora desde ontem!
Podem retirar-se, quantas vezes quiserem!")
Substituiu-o na tribuna o representante dos mencheviques
internacionalistas. (Aparte: "Que é isso? Você ainda tem coragem de
aparecer aqui?") O orador explicou que só uma parte dos mencheviques
internacionalistas havia se retirado do Congresso. Os demais estavam
dispostos a continuar.
— Julgamos que a passagem do poder para as mãos dos sovietes' será
não só perigosa como talvez fatal. (Interrupções.) Mas achamos que nossa
obrigação é permanecer no Congresso, para aqui votar contra a passagem do
poder para as mãos dos sovietes.
Outros oradores ocuparam a tribuna, aparentemente sem nenhuma
ordem. Um delegado dos mineiros da bacia do Donetz pediu que o
Congresso tomasse todas as providências necessárias para evitar que Kaledin
interrompesse o abastecimento de carvão e víveres da cidade. Alguns
soldados, recém-chegados das trincheiras, em nome de seus regimentos,
transmitiram as saudações entusiásticas dos companheiros. Afinal, Lênin
levantou-se. Apoiando-se no parapeito da tribuna, percorreu a assistência
com seus olhinhos piscos, aparentemente insensível à imensa ovação da
assembléia, que o aclamou durante vários minutos. Quando as palmas
abrandaram, disse, simplesmente:
— Passemos agora à edificação da ordem socialista. — Novamente,
estalou na sala uma formidável tempestade de aplausos. — Em primeiro
lugar — continuou —, é necessário agir praticamente, no sentido de se obter
a paz. Vamos fazer propostas de paz a todos os povos dos países
beligerantes, na base das condições soviéticas, isto é, vamos propor uma paz
sem anexações e com o direito dos povos de disporem de si próprios. Ao
mesmo tempo, como sempre prometemos, vamos publicar e repudiar os
tratados secretos. O problema da guerra e da paz é tão claro, que creio poder
ler, sem mais preâmbulos, um projeto de manifesto dirigido aos povos de
todos os países beligerantes.
Sua grande boca parecia sorrir. Abria -se inteiramente quando falava. A
voz, apesar de rouca, não era desagradável. Estava como que endurecida por
anos e anos de discursos. As palavras saíam num tom monótono, sempre
igual. Tinha-se a impressão de que sua voz nunca mais ia se interromper.
Quando desejava frisar, deixar bem clara uma frase, uma idéia, Lênin
inclinava-se ligeiramente para a frente. Não gesticulava. E, a seus pés,
milhares de rostos simples estavam voltados para ele, numa expressão de
profunda alegria interior, numa espécie de intensa adoração.
Lênin começou a ler:
"PROCLAMAÇÃO AOS POVOS E AOS GOVERNOS DE TODOS OS
PAÍSES BELIGERANTES
"O Governo Operário e Camponês, que surgiu da revolução dos dias 6 e
7 de novembro, apoiado nos sovietes dos deputados operários, soldados e
camponeses, propõe a todos os povos beligerantes e aos seus governos a
abertura imediata de negociações, visando ao estabelecimento de uma paz
democrática e justa.
"Pela expressão 'paz democrática e justa' — paz ardentemente desejada
pela imensa maioria dos operários e das classes laboriosas esgotadas pela
guerra, paz que os operários e camponeses russos, depois de terem derrubado
o governo czarista, sempre exigiram — o governo entende uma paz imediata
e sem anexações, isto é, sem a conquista de territórios de outros países, sem
a submissão violenta de populações de outras nacionalidades e sem
indenizações.
"O governo da Rússia propõe a todos os povos beligerantes a conclusão
imediata dessa paz e declara-se disposto a tomar, sem perda de tempo, todas
as medidas decisivas necessárias, até que as assembléias autorizadas dos
diferentes povos e nações ratifiquem as condições da mesma.
"Entendemos como anexação e conquista de territórios de outros países,
de acordo com a concepção do direito da democracia em geral e da classe
operária em particular, toda a união pela força de povos pouco numerosos e
débeis a um Estado grande e poderoso, sem a expressão clara, precisa e livre
do consentimento e do desejo do povo, seja qual for o grau de civilização do
povo anexado ou mantido anexado, seja qual for a época em que tal união se
tenha realizado pela força dentro das fronteiras de outro Estado, esteja esse
povo na Europa ou nos longínquos países de além-mar.
"Se um povo se encontra submetido pela força dentro das fronteiras de
outro Estado; se, apesar do desejo por ele expresso através da imprensa, de
comícios populares, de resoluções de partidos políticos ou através de motins
e sublevações contra a opressão nacionalista, esse povo não obtiver o direito
de escolher a sua forma de governo por sufrágio universal livre, isto é sem a
menor pressão e depois da retirada de todas as forças militares do Estado que
realizou a 'união' ou que é o mais forte, tal 'união' será uma anexação, uma
conquista e um ato de violência.
"Na opinião do governo, a continuação desta guerra para resolver a
questão da divisão entre as nações fortes e ricas das nacionalidades débeis
por elas conquistadas é o maior crime que se pode cometer contra a
humanidade. Por isso, proclama, solenemente, sua resolução de assinar
imediatamente a paz para pôr fim a esta guerra, nas condições acima
expostas, paz igualmente justa para todas as nacionalidades, sem exceção.
"Por outro lado, o governo declara que não dá às suas condições de paz o
caráter de um ultimatum; isto é, está disposto a examinar todas as que lhe
vierem a ser apresentadas, mas insiste em que essas propostas sejam
formuladas com a maior rapidez possível, com a maior clareza, sem
nenhuma ambigüidade e nenhum caráter secreto.
"O governo resolve abolir a diplomacia secreta e manifesta sua firme
vontade de realizar todas as negociações à luz do dia, diante dos olhares do
mundo inteiro. Resolve, também, publicar imediatamente todos os tratados
secretos ratificados e concluídos pelo governo dos grandes proprietários e
dos capitalistas no período compreendido entre março e 7 de novembro de
1917. Todas as cláusulas desses acordos secretos, cuja finalidade era apenas
proporcionar vantagens e privilégios aos grandes proprietários de terras e
capitalistas russos, bem como manter e aumentar as anexações já realizadas
pelo imperialismo russo, ficam denunciadas desde agora e sem reservas pelo
governo.
"Propondo a todos os governos e a todos os povos a abertura de
negociações públicas no sentido da obtenção da paz, o governo declara-se
disposto a negociar telegraficamente, por escrito ou por meio de
conversações, com os representantes dos diversos países, ou por meio de
conferências em que se reúnam esses representantes. Para facilitar tais
conversações, o governo enviará plenipotenciários aos países neutros.
"Este governo propõe a todos os governos e a todos os ovos dos países
beligerantes a aceitação de um armistício imediato, julgando que a duração
desse armistício deverá ser, no mínimo, de três meses, isto é, um prazo
suficiente, não só para e se realizem as conferências entre os representantes de
todos os povos, sem exceção de nenhum, que foram arrastados à guerra ou
obrigados a dela participarem, como para que nos diferentes países sejam
convocadas assembléias com poderes para ratificar definitivamente as
condições de paz.
"Ao mesmo tempo que dirige a presente proposta de paz aos governos e
aos povos de todos os países beligerantes, o Governo Provisório Operário e
Camponês da Rússia dirige-se, particularmente, aos operários conscientes
das três nações mais adiantadas da humanidade e aos três Estados mais
importantes e mais interessados na guerra atual: a Inglaterra, a França e a
Alemanha. Os operários desses países são os trabalhadores que prestaram
enormes serviços à causa do progresso e do socialismo. Os magníficos
exemplos do cartismo, na Inglaterra; a série de revoluções de importância
mundial, realizadas pelo proletariado francês, e, também, na Alemanha, a
heróica luta contra as leis de exceção, da mesma forma que a lenta formação
das organizações de massas do proletariado alemão através de esforço tenaz
e disciplinado que pode servir de exemplo ao proletariado do mundo inteiro;
todos esses exemplos de heroísmo proletário, esses monumentos da evolução
histórica, constituem para nós garantia segura de que os operários dos
referidos países compreenderão que o seu dever é libertar a humanidade dos
horrores e das conseqüências da guerra; é uma garantia de que esses
operários, por meio de uma ação geral, decisiva e irresistivelmente enérgica,
ajudar-nos-ão a conduzir a causa da paz até uma solução feliz e, ao mesmo
tempo, a libertar as massas exploradas de toda escravidão e de toda
exploração."
Quando a tempestade de aplausos serenou, Lênin acrescentou:
— Propomos que o Congresso ratifique esta declaração. Vamos dirigi-la
ao mesmo tempo aos governos e aos povos porque, dirigindo-a unicamente
aos povos dos países beligerantes, poderíamos retardar a conclusão da paz.
As condições de paz, elaboradas durante o armistício, serão ratificadas pela
Assembléia Constituinte. Fixamos o prazo em três meses, porque desejamos
conceder aos povos um repouso tão grande quanto possível depois de tão
sangrento extermínio e porque, nesse prazo, poderão eleger seus
representantes. Esta proposição de paz vai merecer a oposição de todos os
governantes imperialistas. Não temos a esperança de que a revolução vá
estourar, dentro de pouco tempo, em todos os países beligerantes. Por esse
motivo dirigimo-nos particularmente aos operários da França, da Inglaterra e
da Alemanha. A Revolução de 6-7 de novembro — disse, terminando —
inaugurou na história a Era da Revolução Social. O movimento operário, em
nome da paz e do socialismo, vencerá e realizará sua missão.
Em tudo isso, havia algo de impressionante. O tom calmo e poderoso
com que ele dizia as coisas comovia as almas. Era por isso que a multidão
acreditava, quando Lênin falava.
Foi rapidamente resolvido que só os representantes dos grupos políticos
usariam da palavra para manifestar-se a respeito do projeto e que o tempo
máximo de cada intervenção seria de quinze minutos.
O primeiro orador foi Karelin. Falou em nome da esquerda socialista
revolucionária.
— Nosso grupo — disse — não teve oportunidade de participar da
elaboração da proclamação que acaba de ser lida. Ela foi redigida
unicamente pelos bolcheviques. Mas votamos a favor do texto dessa
proclamação, cujo espírito se harmoniza com o nosso ponto de vista.
Kamarov falou em nome dos social-democratas internacionalistas.
Volumoso, míope, mais tarde iria tornar-se célebre no papel de palhaço da
oposição.
— Só um governo organizado com a participação de todos os partidos —
disse — pode ter autoridade necessária para entabular negociações de tão
grande vulto. Se se organizar um governo de coalizão socialista, o grupo que
represento apoiará integralmente o programa; caso contrário, só poderemos
apoiá-lo parcialmente. Sobre o manifesto que foi lido, devo declarar que nós,
internacionalistas, concordamos com seus artigos fundamentais.
No meio de crescente entusiasmo, os diferentes grupos votaram a favor
da proclamação: os social-democratas ucranianos, os social-democratas
lituanos, os social-democratas populares, os social-democratas poloneses, os
socialistas poloneses (estes manifestaram sua preferência por um governo de
coalizão socialista), os social-democratas letões.
Alguma coisa havia despertado bruscamente em todos aqueles homens.
Um deles falou na "revolução mundial em marcha, já que somos a
vanguarda". Outro, da "nova era de fraternidade, em que todos os povos
formarão uma só família..."
Um delegado fez a seguinte observação, em caráter pessoal:
— Há uma contradição: inicialmente, vocês disseram que desejam uma
paz sem anexações. Em seguida, vocês dizem que vão tomar em
consideração todas as propostas de paz. Tomar em consideração significa
aceitar...
Lênin interrompeu-o bruscamente, dizendo: — Queremos uma paz justa.
Mas não receamos uma guerra revolucionária. É bem provável que os
governos imperialistas não respondam ao nosso apelo. Evitamos, no entanto,
lançar um ultimatum, porque poderiam responder facilmente com um não.
Se o proletariado alemão compreender que estamos dispostos a examinar
todas as propostas de paz que nos forem dirigidas, isso poderá muito bem
tornar-se a gota d'água que fará transbordar o copo... E a revolução rebentará
na Alemanha! Estamos dispostos a examinar todas as condições de paz, mas
isto não quer dizer que as aceitaremos. Estamos dispostos a lutar até o fim
por algumas das nossas condições, mas há outras pelas quais não vale a pena
continuar a guerra. O que desejamos, antes de mais nada, sobretudo, é acabar
com a guerra.
Às dez e trinta e cinco, Kamenev pediu que todos os que estivessem de
acordo com a proclamação erguessem os braços. Um só delegado ousou
votar contra. Mas os protestos contra sua atitude foram tão violentos, que
retirou o voto... A proclamação foi aprovada, assim, por unanimidade.
Sob o domínio de um" sentimento comum, todos, insensivelmente, se
levantaram. Então, irrompeu em uníssono, num lento crescendo, de todas as
bocas, a Internacional. Um velho soldado de cabelos brancos chorava como
criança. E o canto reboava pela sala, fazendo estremecer as janelas e as
portas, indo perder-se, correndo, no céu silencioso. — A guerra acabou! A
guerra acabou! — gritava ao meu lado um jovem operário, radiante de
contentamento. Em seguida, quando terminaram e ainda continuavam de pé,
alguém gritou: — Camaradas! Lembremo-nos dos que tombaram pela causa
da liberdade! — Entoaram, então, a Marcha fúnebre, esse cântico ao mesmo
tempo Majestoso, melancólico e triunfante, tão russo, tão comovente. A
internacional era, afinal, um hino estrangeiro. A Marcha fúnebre, ao
contrário, parecia ser a própria alma das grandes massas russas, cujos
delegados, reunidos naquela sala, construíram, com sua visão ainda
imprecisa, uma Rússia nova... e talvez muito mais.
Oh! irmãos caídos na luta fatal,
Vítimas do sagrado amor pelo povo,
Por ele tudo destes;
Por sua honra, a vida e a liberdade...
Sofrestes em tenebrosos presídios,
Condenados por verdugos infames;
Sofrestes no desterro, sob o peso dos grilhões...
Adeus, irmãos! Trilhastes pela senda verdadeira.
Um dia há de chegar, e o povo há de despertar,
Grande, poderoso e livre...
Adeus, irmãos...
Pela vitória da grande causa, muitos mártires tombados na primavera
haviam descido, para descansar para sempre no Túmulo Fraternal do Campo
de Marte. Pela causa, milhares e dezenas de milhares de homens haviam
morrido nos presídios, no desterro, nas minas, na Sibéria. Talvez nem tudo
tenha se passado como eles esperavam, nem tampouco como a
intelliguêntsia desejava. Mas o fato estava consumado. O fenômeno se
produzira, brutal, irresistivelmente, desprezando as fórmulas e o
sentimentalismo, em toda a sua realidade!
Em seguida, Lênin leu o decreto sobre a terra:
"1. Fica abolida a propriedade privada da terra, sem qualquer
indenização.
"2. Todas as grandes propriedades territoriais, todas as terras
pertencentes à Coroa, às ordens religiosas, à Igreja, compreendendo o gado,
o material agrícola e os edifícios com todas as suas dependências, ficam à
disposição dos comitês distritais agrários e de camponeses até a reunião da
Assembléia Constituinte.
"3. Todo e qualquer prejuízo causado à propriedade confiscada, que
pertence definitivamente ao povo, será considerado como grave delito, e os
culpados serão julgados pelos tribunais revolucionários. Os sovietes distritais
dos deputados camponeses devem adotar as medidas necessárias à
manutenção da ordem mais rigorosa no momento da transmissão da
propriedade da terra, no sentido de determinar sua superfície e a designação
das submetidas ao confisco, com o fim de se estabelecer o inventário je todas
as propriedades confiscadas e a mais severa proteção revolucionária das
explorações agrícolas, dos edifícios, dos utensílios, do gado, dos produtos,
etc, que devem ser entregues ao povo.
"4. Até decisão definitiva da Assembléia Constituinte, a aplicação das
grandes reformas agrárias deve ser orientada pela Instrução camponesa
apensa a este decreto, estabelecida de acordo com as duzentas e quarenta e
duas instruções camponesas locais pela redação do Izvéstia do Soviete Pan-
Russo dos Deputados Camponeses e publicada no número 88 do Izvéstia.
(Petrogrado, número 88, de 1.9 de agosto de 1917.)
"As terras dos camponeses e dos cossacos que servem como soldados no
Exército não serão confiscadas."
— Não se trata — declarou ainda Lênin — de um projeto semelhante ao
do antigo Ministro Tchernov, que queria realizar as reformas por cima. O
problema da divisão da terra deve ser resolvido pela base, por baixo, no
próprio campo. A porção de terra que cada camponês irá receber não será a
mesma em todos os lugares. Sob o Governo Provisório, os grandes
proprietários negavam-se pura e simplesmente a obedecer às ordens dos
comitês agrários, desses comitês concebidos por Lvov, realizados por
Tchingariov e administrados por Kerenski.
Antes do começo dos debates, um homem abriu passagem, aos
empurrões, através da assistência e subiu precipitadamente à tribuna. Era
Pianikh, membro do Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses. Estava
extraordinariamente furioso.
— O Comitê Executivo do Congresso Pan-Russo dos Deputados
Camponeses protesta contra a prisão de nossos camaradas, os ministros
Salazkin e Máslov — gritou brutalmente, fixando a assembléia. — Exigimos
sua libertação imediata! Estão na Fortaleza de Pedro e Paulo. Precisamos
agir imediatamente. Não há um instante a perder.
Foi substituído na tribuna por um soldado, com a barba em desordem e
os olhos chamejantes:
Vocês estão aqui sentados, falando em dar as terras aos camponeses.
Mas agem como tiranos e usurpadores no que diz respeito aos representantes
eleitos pelos camponeses. Quero preveni-los — acrescentou, levantando o
punho em atitude ameaçadora de que, se tocarem num só dos seus cabelos,
haverá uma revolta.
A assembléia começou a agitar-se.
Trótski levantou-se, tranqüilo, sarcástico, consciente da sua força,
saudado por aclamações:
— Ontem mesmo — disse — o Comitê Militar Revolucionário resolveu
soltar os ministros socialistas revolucionários e os mencheviques Máslov,
Salazkin, Gvósdiov e Maliantovitch. Se eles ainda estão na Fortaleza de
Pedro e Paulo é porque estamos imensamente ocupados, sem tempo para
nada. Mas, mesmo depois de soltos, ficarão em suas casas severamente
vigiados até que possamos esclarecer o grau de sua cumplicidade na traição
de Kerenski, durante a tentativa de Kornilov.
— Em nenhuma revolução, em nenhuma época, se viu ação semelhante
— vociferou Pianikh.
— Você está enganado — replicou Trótski. — Vimos muita coisa dessa
natureza no decorrer da revolução. Durante as jornadas de julho, centenas de
nossos camaradas foram presos... Quando a companheira Kolontai foi posta
em liberdade por ordem do médico, Avksentiev colocou-lhe na porta dois
antigos agentes da polícia secreta czarista.
Os camponeses bateram em retirada," resmungando, no meio de
exclamações irônicas.
Em seguida, o representante dos socialistas revolucionários da esquerda
falou sobre o decreto das terras. Seu grupo o aprovara em linhas gerais, mas
não aceitava a votação sem discussão prévia. Era necessário consultar os
sovietes.
Os mencheviques internacionalistas não queriam votar sem antes reunir
seu grupo.
O chefe dos maximalistas — a ala anarquista dos camponeses —
expressou-se da seguinte maneira:
— Devemos inclinar-nos diante do partido que, desde os primeiros
momentos, sem frases, agiu concretamente, tomando tal providência.
Depois, um camponês típico, de longos cabelos e botas, apareceu na
tribuna. Inclinou-se para cada canto da sala, cumprimentando, e disse:
— Saúdo a todos, camaradas e cidadãos. Perto daqui, alguns cadetes
estão passeando. Se prenderam nossos camponeses socialistas, por que não
prendem também esses?
Tais palavras levantaram viva discussão entre os camponeses, muito
semelhante à da véspera, entre os soldados. Via -se que, indiscutivelmente,
estavam ali os verdadeiros proletários da terra.
Um deles declarou:
— Os membros do nosso Comitê Executivo, da marca de Avksentiev e
dos outros, que nós pensávamos serem nossos protetores, defensores dos
interesses dos camponeses, não são senão cadetes sem-vergonhas! Precisam
também ir para a cadeia! É preciso prendê-los.
E outro:
— Quem são Pianikh e Avksentiev? Não são camponeses. São bons para
conversa fiada.
A assembléia viu que esses camponeses eram seus irmãos e os aplaudiu.
Os socialistas revolucionários propuseram que se suspendessem os trabalhos
por meia hora. Alguns delegados já se encaminhavam para as portas. Mas
Lênin ergueu-se e disse:
— Não temos tempo a perder, camaradas! É preciso que os jornais
matutinos de amanhã publiquem notícias da maior importância para a
Rússia. Não podemos, portanto, perder tempo.
Dominando o ruído das discussões e o arrastar dos pés no chão, ouviu:se
a voz de um emissário do Comitê Revolucionário, que gritava: — Quinze
agitadores para a sala número 7. Imediatamente! Vão para as trincheiras!...
Duas horas e meia depois, os delegados começaram a aparecer. A
presidência novamente se instalou à mesa. E reabriu-se a sessão com a
leitura de telegramas anunciando a adesão de vários regimentos ao Comitê
Militar Revolucionário. A assembléia pouco a pouco foi se ambientando,
sentindo-se mais à vontade.
Um delegado das tropas russas em operações na frente macedônica fez
uma descrição comovedora da situação dos soldados: — Os nossos "aliados"
fazem-nos sofrer mais que os próprios inimigos. — Os delegados do 10.° e
do 12.° exércitos, recém-chegados, declararam: — Estamos com vocês.
Todas as nossas forças estão à disposição de vocês. — Um soldado
camponês protestou contra a libertação dos "social-traidores Máslov e
Salazkin". Referiu-se ao Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses
dizendo que seus membros deviam ser presos em massa.
Agora, falava-se a verdadeira linguagem revolucionária. Um deputado
das tropas russas da Pérsia declarou que tinha ordens de exigir a entrega de
todo o poder aos sovietes. Outro orador, ofic ial ucraniano, falando no idioma
materno, disse: — O nacionalismo não tem nada a ver com a crise atual.
Viva a ditadura mundial do proletariado! — Desse momento em diante,
ninguém poderia reduzir a Rússia ao silêncio.
Kamenev afirmou, então, que as forças antibolcheviques procuravam
fomentar desordens no país e leu o seguinte apelo do Congresso dirigido a
todos os sovietes da Rússia:
"O Congresso Pan-Russo dos Sovietes convida o Governo Provisório a
tomar sérias medidas contra as tentativas contra-revolucionárias e os
pogroms anti-semitas ou de outra natureza. A honra da revolução dos
operários, dos camponeses e dos soldados exige que nenhum pogrom seja
tolerado.
"A Guarda Vermelha de Petrogrado, a guarnição revolucionária e os
marinheiros estão mantendo a mais estrita ordem na capital.
"Operários, soldados, camponeses! Sigam em todos os lugares o
exemplo dos operários e dos soldados de Petrogrado!
"Camaradas, soldados e cossacos! A conservação da verdadeira ordem
revolucionária é uma tarefa que cabe a vocês."
Às duas horas, foi posto em votação o decreto sobre a terra. Só se
registrou um voto contra. Os delegados camponeses estavam radiantes de
alegria. Desta maneira, os bolcheviques, destruindo todas as oposições,
lançavam-se à ação, irresistivelmente. Eram os únicos que possuíam
programa claramente definido. Todos os outros, há oito meses, em lugar de
agir, entregavam-se, unicamente, a discussões acadêmicas e estéreis.
Um soldado, muito magro, esfarrapado, protestou veementemente contra
o artigo da Instrução camponesa que privava os desertores de todos os
direitos na partilha da terra nas aldeias. Foi recebido, a princípio, com
protestos e assobios. Mas sua palavra simples e comovente impôs pouco a
pouco o silêncio.
— Atirado contra a vontade à matança das trincheiras — gritou —, nesta
criminosa e absurda carnificina que vocês mesmos condenam no decreto
sobre a terra, o soldado concentrou na revolução todas as suas esperanças de
paz e liberdade. De paz? O governo de Kerenski obrigou-o a voltar à Galícia
para continuar matando. E Terestchenko respondeu com gargalhadas aos
pedidos dos soldados nesse sentido. De liberdade? No governo de Kerenski,
os comitês de soldados foram dissolvidos, seus jornais interditados, seus
oradores detidos. Nas aldeias, os grandes proprietários zombavam dos
comitês agrários e prendiam seus membros. Em Petrogrado, a burguesia,
aliada aos alemães, obstruía as remessas de víveres e de munições,
destinadas ao Exército que morria de fome, sem calçado e sem roupas.
Quem foi o culpado da deserção? O governo de Kerenski, que vocês
derrubaram!
Quando desceu da tribuna, recebeu vibrantes aplausos. Mas outro
soldado refutou, apaixonadamente:
— O governo de Kerenski não pode ser invocado para justificar um ato
tão indigno como a deserção — declarou. — Os desertores são covardes,
porque voltam para as suas casas, deixando os camaradas nas trincheiras.
Todo desertor é traidor e merece ser castigado... — (Tumulto. Gritos:
"Basta! Silêncio!")
Kamenev, para evitar que a discussão se prolongasse, propôs que o
governo se incumbisse de resolver a questão.
Às duas e meia da madrugada, em meio a profundo silêncio, Kamenev
começou a ler o decreto sobre a formação do novo governo:
"As diferentes funções do Estado ficarão a cargo de comissões.
"Os membros dessas comissões serão encarregados da realização do
programa do Congresso, em estreita ligação com as organizações de
operários, de marinheiros e soldados, de camponeses e funcionários. O poder
governamental caberá a um conselho formado pelos presidentes das
comissões, que será o Conselho dos Comissários do Povo.
"O controle da atividade dos comissários e o direito de demiti-los cabem
ao Congresso Pan-Russo e ao seu Comitê Central Executivo."
O silêncio continuou. Mas, quando Kamenev começou a ler a lista de
comissários, os aplausos estouraram depois de cada nome, principalmente
depois dos de Lênin e de Trótski.
"Presidente do Conselho: Vladímir Uliánov (Lênin). "Interior (governo):
A. I. Rikov. "Agricultura: V. P. Miliutin.
"Guerra e Marinha: um comitê formado por V. A. Ovseienko (Antónov),
N. V. Krilenko e R. M. Dibenko. "Comércio: V. P. Nóguin. "Instrução
Pública: A. V. Lunatcharski.
"Finanças (Fazenda): LI. Skvortsov (Stepánov). "Exterior: L. D.
Bronstein (Trótski). "Justiça: G. I. Oppokov (Lomov). "Abastecimento: I. A.
Teodórovitch. "Correios e Telégrafos: N. P. Avílov (Gliebov). "Encarregado
das Nacionalidades: I. V. Djugatchvili (Stálin).
"Estradas de Ferro: ainda não nomeado."
A sala estava repleta de baionetas. O Comitê Militar armava todo
mundo, preparando-se o bolchevismo para o combate decisivo contra
Kerenski. O vento soprava do sudoeste, trazendo o som das cometas de suas
tropas. Ninguém pensou em voltar para casa. Ao contrário, a todo momento,
entravam na sala centenas de novos delegados. Caras rudes de soldados e de
camponeses que, de pé, ouviam horas inteiras os discursos, sem demonstrar
cansaço. O ar estava pesado, carregado de fumaça de cigarro, rarefeito pela
respiração de centenas de homens e impregnado do cheiro das roupas
pesadas e suarentas.
Avílov, redator-chefe do Novata Jizn, falou em nome dos socialdemocratas
internacionalistas e dos mencheviques inter-nacionalistas, que
continuavam no Congresso. Sua fisionomia jovem e inteligente, suas roupas
bem talhadas, contrastavam com o ambiente.
— Precisamos indagar — disse — para onde vamos... Devemos ver na
facilidade com que foi derrubado o governo de coalizão não a força da ala
esquerda da democracia, mas a incapacidade daquele governo de resolver os
problemas do pão e da paz. A ala esquerda não conseguirá manter-se no
poder porque também não poderá solucionar esses problemas... Poderá dar
pão ao povo? Há pouco trigo. A maioria dos camponeses não está com
vocês, porque não lhes podem dar as máquinas que desejam. É quase
impossível encontrar combustível e outras matérias-primas de primeira
necessidade... No que se refere à paz, as dificuldades ainda são maiores. Os
Aliados não quiseram entabular negociações com Skobeliev. Nunca poderão
aceitar a paz dentro das condições estipuladas por vocês. A paz não será
assinada, nem em Londres, nem em Paris, nem em Berlim. Tampouco
devem esperar auxílio eficiente do proletariado dos países aliados, que ainda
está muito distante da luta revolucionária. É preciso não esquecer que a
democracia dos países aliados não entrou em acordo na Conferência de
Estocolmo. Soube também, agora, pelo camarada Goldenberg, um dos
nossos delegados à Conferência de Estocolmo, que os representantes da
extrema esquerda da social-democracia alemã declararam que a revolução
será impossível, se a guerra continuar.
Avílov começou a ser assediado por apartes, mas enfrentou-os:
— A Rússia ficará isolada e, com isso, virá a derrota. E a coalizão
austro-alemã e a franco-britânica assinarão a paz à custa da Rússia. Se
conseguirmos uma paz em separado com a Alemanha, será também em más
condições para a Rússia. Há pouco fui informado de que os embaixadores
dos Aliados vão partir e que estão sendo organizados em todas as cidades
comitês para a salvação do país e da revolução. Nenhum partido poderá
vencer essas enormes dificuldades. Só um governo de coalizão, apoiado pela
maioria do povo, poderá levar a revolução até o fim.
Leu, a seguir, a resolução das duas facções:
"Reconhecendo que, para salvar as conquistas da revolução, é
indispensável constituir-se um governo que se apóie na democracia
revolucionária organizada sob a forma de sovietes dos deputados operários,
soldados e camponeses; reconhecendo, por outro lado, que a missão desse
governo deve ser a conclusão de uma paz democrática o mais depressa
possível, a entrega da terra aos comitês agrários, a organização do controle
da produção industrial e a convocação da Assembléia Constituinte na data
fixada, o Congresso indica um comitê executivo encarregado de constituir
esse governo media nte o acordo prévio dos diversos grupos democráticos
que tomam parte no Congresso".
Apesar da exaltação revolucionária da assembléia vitoriosa, a
argumentação objetiva de Avílov exerceu profunda impressão nos presentes.
Quando terminou, não houve assobios nem protestos. Houve, até, quem o
aplaudisse.
Subiu à tribuna Karelin, jovem de coragem a toda prova e de uma
sinceridade unanimemente reconhecida. Falou em nome dos socialistas
revolucionários da esquerda, do partido de Maria Spiridonova, o único que
acompanhou os bolcheviques, o partido que representava os camponeses
revolucionários.
Nosso partido — disse — não aceitou nenhum cargo no Conselho dos
Comissários do Povo porque não queremos nos separar para sempre do
exército revolucionário que abandonou o Congresso. Essa separação
impossibilitaria, no futuro, o papel que temos desempenhado de
intermediários entre os bolcheviques e os demais grupos democráticos.
Achamos que esta é a nossa principal tarefa, no momento presente. Não
podemos, por isso, apoiar senão um governo de coalizão socialista.
Protestamos contra a conduta tirânica dos bolcheviques. Nossos comissários
foram violentamente afastados dos seus cargos. Nosso único órgão, o
Známia Trudá (A Bandeira do Trabalho), foi ontem suspenso. A Duma
Central está organizando contra vocês um poderoso Comitê para a Salvação
do País e da Revolução. Vocês já estão isolados, seu governo não conta com
o apoio de nenhum outro grupo democrático.
Trótski subiu de novo à tribuna, seguro de si mesmo, com ar dominador,
com aquela expressão sarcástica no canto da boca, que já era por si só uma
zombaria. Falou com voz sonora. E a multidão levantou-se para aclamá-lo.
— As observações sobre o isolamento de nosso partido não são novas.
Nas vésperas da insurreição, todos diziam que nosso fracasso seria fatal.
Todos estavam contra nós, com exceção do grupo dos socialistas
revolucionários da esquerda, que colaborava conosco no Comitê Militar
Revolucionário. Como conseguimos, nessas condições, derrubar o governo
quase sem derramamento de sangue? O fato basta para demonstrar que não
nos encontrávamos isolados. Na realidade, era o Governo Provisório que
estava abandonado. Os partidos democráticos que lutam contra nós é que
estavam e que estão isolados e separados para sempre do proletariado.
Falaram na necessidade de coalizão. Só há uma possível: a dos operários,
soldados e camponeses pobres... A que espécie de coalizão se refere Avílov?
A uma coalizão com os que apoiaram o governo de traição ao povo?
Coalizão nem sempre quer dizer força. Por exemplo: teríamos podido
realizar a insurreição se tivéssemos Dan e Avksentiev entre nós? —
(Gargalhadas.) — Avksentiev não conseguiu dar muito pão. Uma coalizão
com os partidários da guerra poderia dar mais pão que ele ? Entre os
camponeses e Avksentiev, que mandou fechar os comitês agrários,
preferimos ficar com os camponeses! A nossa revolução vai ser, na história,
um exemplo clássico de revolução. Fomos acusados de repelir um pacto com
os demais partidos democráticos. Mas de quem foi a culpa? Nossa, ou deles?
Ou, como pretende Karelin, houve algum mal-entendido? Não, camaradas!
Quando um partido, em plena luta revolucionária, envolto ainda na fumaça
da pólvora, diz: "Eis o poder: tomem-no", e as pessoas, diante desse
oferecimento, passam-se para o lado do inimigo, não se trata de equívoco ou
de engano. Isso significa uma declaração de guerra sem quartel. Mão fomos
nós que declaramos essa guerra... Avílov afirma que nossos esforços em
favor da paz serão inúteis, se continuarmos isolados. Repito: uma coalizão
com Skobeliev, ou mesmo com Terestchenko, não poderia auxiliar na luta
pela paz. Avílov ameaça-nos com a perspectiva de uma paz à nossa custa. A
isso respondo: a Rússia revolucionária estará inevitavelmente perdida se a
Europa continuar sob o governo da burguesia imperialista. Se a Revolução
Russa não conseguir desencadear um movimento revolucionário na Europa,
as potências européias esmagarão a Revolução Russa!
Este discurso foi recebido com delirante entusiasmo por todos aqueles
que se sentiam os campeões da causa da libertação da humanidade. Daquele
momento em diante, houve em todos os atos das massas um sentimento de
consciência e uma decisão que nunca mais iria abandoná-las.
Mas, no outro campo, organizava-se também a luta... Kamenev deu a
palavra a um delegado do Sindicato dos Ferroviários, homem corpulento e
de fisionomia rude, deitando hostilidade por todos os poros. Suas palavras
caíram como bombas no meio da assembléia:
— Em nome da mais poderosa organização da Rússia, reclamo o direito
à palavra e declaro que fui encarregado pelo sindicato de transmitir a todos
vocês sua resolução sobre o problema da formação de um novo governo. O
Comitê Central não prestará o menor apoio aos bolcheviques se continuarem
no seu propósito de se isolarem do conjunto da democracia russa. —
(Grande tumulto em toda a sala.) — Em 1905, durante a "aventura
Kornilov", os ferroviários foram os melhores defensores da revolução. Mas,
apesar disso, não foram convidados a participar deste congresso...
Uma voz: — Foi o antigo Tsik que não os convidou! O orador não
respondeu ao aparte, e prosseguiu:
— Não reconhecemos a legalidade deste congresso, desde que os
socialistas revolucionários e os mencheviques dele se retiram. O sindicato
não é partidário do antigo Tsik, mas declara que o Congresso não tem o
direito de eleger um novo comitê. U poder deve pertencer a um governo
socialista e revolucionário, responsável perante os órgãos de toda a
democracia. Até a constituição de um poder semelhante, o Sindicato dos
Ferroviários, que se nega a transportar para Petrogrado as tropas contrarevolucionárias,
negar-se-á, igualmente, a executar as ordens que não forem,
antes, aprovadas pelo seu Comitê Executivo. O sindicato resolveu assumir
sozinho a direção das estradas de ferro de toda a Rússia.
Suas últimas palavras foram abafadas por furiosa saraivada de insultos.
Mas o semblante preocupado dos membros da presidência demonstrava
que a declaração constituía um golpe bem rude desfechado contra a
assembléia. Kamenev, entretanto, limitou-se a dizer que a legalidade do
Congresso era uma questão acima de qualquer discussão.
Passou-se à votação. O Conselho dos Comissários do Povo foi aprovado
por enorme maioria.
A eleição do novo Tsik, o novo Parlamento da Repúblic a Russa, durou
apenas quinze minutos. Trótski anunciou sua composição: cem membros,
dentre os quais setenta bolcheviques. Os postos correspondentes aos
camponeses e aos grupos dissidentes continuariam vagos. — Receberemos
no governo todos os grupos que adotarem o nosso programa — terminou
Trótski.
Depois dessas palavras, o Segundo Congresso Pan-Russo dos Sovietes
dissolveu-se e, imediatamente, seus membros partiram para os quatro cantos
da Rússia espalhando a notícia dos grandes acontecimentos.
Eram sete horas, mais ou menos, quando eu e meu colega acordamos os
condutores de bondes, que o Sindicato dos Empregados dos Bondes enviava
sempre para o Smólni, a fim de conduzir os delegados às suas casas. No
interior dos carros, abarrotados de gente, não reinava tanta alegria como na
noite anterior. Muitos mostravam-se preocupados. Alguns chegavam até a
dizer: — Somos os donos. Como poderemos fazer executar nossas vontades?
Ao chegar ao nosso domicílio, fomos detidos na escuridão por uma
patrulha de cidadãos armados, que nos revistou minuciosamente. O
manifesto da Duma estava dando resultado.
A dona da casa, vestindo um robe de seda cor-de-rosa, quando percebeu
que chegávamos, veio nos dizer:
— O Comitê de Residência insiste novamente em que os senhores
prestem também serviços na guarda, como os outros homens desta casa.
— Para que serve a guarda?
— Para proteger as casas, as mulheres e as crianças.
— Mas proteger de quê?
— Dos ladrões e dos assassinos.
— E se vier aqui um comissário do Comitê Militar Revolucionário
revistar a casa e verificar se temos armas?
— Ora! Todos dizem sempre que são comissários Além disso, qual a
diferença entre uns e outros?
Afirmei, então, solenemente, que o cônsul havia proibido qualquer
cidadão norte-americano de pegar em armas, principalmente ao lado da
intelliguêntsia russa...
Capítulo VI
O COMITÊ DE SALVAÇÃO
"Sexta-feira, 9 de novembro.
"Novotcherkask, 8 de novembro.
"Ante a sublevação bolchevique e as tentativas levadas a cabo em
Petrogrado e em outras cidades para destituir o Governo Provisório e tomar
o poder, o governo cossaco, considerando criminosos e absolutamente
inadmissíveis semelhantes atos, prestará, solidário com todas as tropas
cossacas*, seu inteiro apoio ao Governo Provisório atual, que é um governo
de coalizão. Dada a situação excepcional e a momentânea interrupção das
comunicações com o poder central, o governo cossaco, enquanto aguarda a
volta ao poder do Governo Provisório e o restabelecimento da ordem na
Rússia, assumiu, na data de 7 de novembro, todo o poder na região do Don.
* O Exército russo era composto por três espécies de tropas: a Guarda Imperial, o
exército regular e os cossacos. A guarda era uma tropa de elite, seus oficiais não recebiam
soldo e eram nobres. O exército propriamente dito era formado por convocados, camponeses
na sua maioria, que serviam durante três anos. Os cossacos constituíam um corpo de tropas
à parte, permanentemente mobilizado. (N. do E.)
"Assinado: Ataman Kaledin. Presidente do governo das tropas cossacas."
"PRIKAZ DO PRESIDENTE DO CONSELHO, KERENSKI
(Expedido de Gatchina):
"Eu, presidente do Conselho do Governo Provisório e chefe supremo de
todas as Forças Armadas da República Russa, comunico que assumi o
comando das tropas da frente fiéis à pátria.
"Ordeno que todas as forças do Distrito Militar de Petrogrado que, por
ignorância ou irreflexão, se passaram para o lado dos traidores do país e da
revolução voltem, imediatamente, ao cumprimento do dever.
"Esta ordem deve ser lida perante cada regimento, batalhão e esquadrão.
"Assinado: O presidente do conselho do Governo Provisório e supremo
comandante,
A. F. Kerenski.''
"TELEGRAMA DE KERENSKI AO COMANDANTE-EM-CHEFE DA
FRENTE NORTE:
"A cidade de Gatchina foi tomada pelos regimentos fiéis, sem
derramamento de sangue.
"Alguns destacamentos de marinheiros de Kronstadt e regimentos de
Semiônov e Ismaílov entregaram suas armas sem resistência e aderiram às
tropas do governo.
"Ordeno a todas as unidades designadas que avancem o mais
rapidamente possível.
"O Comitê Militar Revolucionário já transmitiu às suas tropas a ordem
de bater em retirada."
Gatchina, situada a cerca de trinta quilô metros a sudoeste, fora tomada
durante a noite. Alguns destacamentos dos referidos regimentos, mas não os
marinheiros, tinham sido, de fato, sitiados pelos cossacos, enquanto erravam
sem chefe pelas vizinhanças, razão por que se viram obrigados a entregar as
armas. Era, porém, inexato que se tivessem unido às tropas do governo, pois
grande número deles, confusos e envergonhados, dirigiram-se imediatamente
ao Smólni para explicar seu procedimento: não julgavam que os cossacos
estivessem tão perto... tinham procurado entrar em conversação com eles...
Aparentemente, na frente revolucionária, reinava a maior confusão. As
guarnições das pequenas cidades situadas ao sul tinham-se
irremediavelmente cindido em duas facções e até em três: o alto comando
era partidário de Kerenski, na falta de autoridade mais forte; a maioria dos
homens pertencia aos sovietes; o restante vacilava lamentavelmente.
O Comitê Revolucionário nomeou a toda pressa, para a defesa de
Petrogrado, um capitão de carreira, Muraviov, homem ambicioso, o mesmo
que organizara, no verão, os Batalhões da Morte e que induzira o governo a
"ser mais duro com os bolcheviques e varrê-los de uma vez por todas".
Homem de temperamento militar, admirador da força e da audácia, talvez
sinceramente.
Ao sair à rua, no dia seguinte de manhã, encontrei ao pé da minha porta
dois novos grupos do Comitê Militar Revolucionário insistindo para que se
abrissem, como de costume, as lojas e os armazéns e para que se pusessem à
disposição do comitê os locais vagos...
Havia trinta e seis horas que os bolcheviques se achavam isolados da
província e do resto do mundo. Os ferroviários e os telegrafistas negaram-se
a transmitir os comunicados, e os empregados dos Correios, a expedir a
correspondência. Somente a estação telegráfica do Estado, em Tsárskoie -
Tseló, lançava de meia em meia hora os comunicados e os manifestos aos
quatro pontos cardeais.
Os comissários do Smólni rivalizavam em presteza com os da Duma
Municipal na expedição dos trens através da metade do globo terrestre. Dois
aviões, carregados de propaganda, alçaram vôo em demanda das frentes.
E a onda da insurreição estendia -se pela Rússia, com uma rapidez que
sobrepujava a de todas as transmissões humanas. O Soviete de Helsinque
votou sua adesão à revolução; os bolcheviques de Kíev apoderaram-se do
arsenal e da agência dos telégrafos, sendo, porém, expulsos pelos delegados
do Congresso Cossaco que realizava sessões na cidade; em Kazan, um
comitê militar revolucionário prendeu o estado-maior da guarnição local e o
comissário do Governo Provisório; do longínquo Krasnoiarsk, na Sibéria,
chegava a notícia de que os sovietes tinham-se apoderado dos órgãos
municipais; em Moscou, onde se agravara a situação por uma grande
"parede" dos operários da indústria do couro e por uma ameaça dejockout
geral, os sovietes haviam votado, por esmagadora maioria, o apoio à ação
bolchevique de Petrogrado, e funcionava já um comitê militar
revolucionário. Idênticos acontecimentos verificavam-se por toda parte. Os
soldados e os operários das fábricas eram, na maioria, partidários dos
sovietes; os oficiais, os junkers e a classe média, geralmente, estavam ao
lado do governo, assim como os cadetes e os partidos socialistas moderados.
Surgiram em todas as cidades comitês para a salvação do país e da
revolução, armando-se para a guerra civil.
A imensa Rússia encontrava-se em plena desagregação. Aliás, esse
processo já se desenvolvia desde 1906. A Revolução de Março veio apenas
precipitá-lo, traçando o esboço de um novo regime, mas conservando a
estrutura do antigo. Agora, os bolcheviques, como se dissipassem com um
sopro uma nuvem de fumaça, haviam derrubado esse arcabouço numa só
noite.
A velha Rússia não mais existia. A sociedade humana retornara ao
primitivo estado de fusão. E, sobre o encapelado mar de chamas, onde a luta
de classes se desenvolvia rude e implacavelmente, surgia, lentamente, a
frágil casca de novos sistemas. Em Petrogrado, os dezesseis ministérios
estavam em greve, chefiados pelo Ministério do Trabalho e do
Abastecimento, criado pela coalizão socialista de agosto.
Nunca nenhum grupo de homens se viu tão abandonado como aquele
"punhado de bolcheviques", nessa escura e fria manha em que se
acumulavam sobre suas cabeças nuvens de terríveis tempestades. Entre a
espada e a parede, o Comitê Militar Revolucionário lutava desesperadamente
para continuar existindo. "De 1'audace, encore de l’audace, et toujours de
l’audace..*1" Às cinco horas da madrugada, os guardas vermelhos
invadiram, inesperadamente, a Imprensa Nacional; confiscaram milhões de
exemplares do manifesto da Duma e suprimiram o órgão municipal oficial,
Viístnik Gorodskovo Samovpravlenia. Invadiram, também, as oficinas dos
jornais burgueses, inclusive as do Golos Soldata, órgão do antigo Tsik, que,
entretanto, fora publicado com o nome trocado para Soldâtski Golos, com
uma tiragem de cem mil exemplares:
*Audácia, ainda audácia, e sempre audácia." Frase de Danton. Em francês no original.
(N. do T.)
"Os homens que nos atraiçoaram durante a noite, que suprimiram os
jornais, não poderão conservar o país por muito tempo na ignorância! O país
saberá a verdade! O país vai julgá-los, senhores bolcheviques! Esperem um
pouco!..."
Quando descia pela Avenida Niévski, pouco depois do meio-dia,
encontrei enorme multidão estacionada em frente à Duma, obstruindo
completamente a rua, e vi alguns guardas vermelhos e marinheiros, com
baioneta calada, cada qual cercado por uma centena de pessoas —
empregados, estudantes, funcionários — que os ameaçavam com os punhos
cerrados, insultando-os. Na escadaria, escoteiros e oficiais distribuíam o
Soldátski Golos. Um operário, empunhando um revólver, tremendo de
cólera, exigia, no meio da multidão hostil, que lhe entregassem os
exemplares do jornal.
Creio que nunca houve na história coisa alguma que se possa comparar
aos acontecimentos dessa revolução. De um lado, um punhado de operários e
soldados, de armas na mão, representando a insurreição vitoriosa, sereno,
mas com aspecto miserável; do outro, uma multidão furiosa, formada pela
mesma espécie de indivíduos que se aglomeravam ao meio-dia nas esquinas
da Fifth Avenue, de Nova York, rindo, injuriando, vociferando: —
Traidores! Provocadores!
As portas da Duma estavam guardadas por estudantes e oficiais que
traziam no braço uma fita branca com a seguinte inscriç ão, em letras
vermelhas: "Milícia do Comitê de Salvação Pública". Uns seis escoteiros
iam e vinham, incessantemente. No interior, reinava grande agitação.
Quando eu e meu companheiro subíamos as escadas, o Capitão Gomberg,
que descia, nos disse:
— Vão dissolver a Duma. O comissário bolchevique está falando com o
prefeito.
Realmente, quando chegamos lá em cima, vimos Riazanov, que logo
depois saiu correndo e desapareceu. Tinha vindo pedir à Duma que
reconhecesse o governo no Conselho dos Comissários do Povo. Mas o
prefeito, em nome da Duma, respondera-lhe com uma negativa categórica.
No interior do edifício, a multidão barulhenta corria, gritava e
gesticulava: políticos, funcionários, intelectuais, jornalistas, correspondentes
estrangeiros, oficiais franceses e ingleses... O engenheiro-chefe da cidade,
apontando para esses oficiais, dizia com ar triunfante:
— As embaixadas reconhecem que a Duma é o único poder legal. Esses
assassinos e bandidos bolcheviques, dentro de algumas horas, não existirão
mais. Toda a Rússia vai passar para o nosso lado...
O Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução estava reunido na
Sala Alexandre, sob a presidência de Filippovski Skobeliev mais uma vez
ocupava a tribuna, para comunicar, no meio de aplausos, as novas adesões: o
Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses; o antigo Tsik; o Comitê
Central do Executivo; o Tsentroflot; os grupos mencheviques e socialistas
revolucionários, assim como o grupo dissidente do Congresso dos Sovietes;
os comitês centrais dos partidos Menchevique, Socialista Revolucionário e
Socialista Popular; o grupo Iedinstvo; a União Camponesa; as cooperativas;
os ziemstvos; as municipalidades; o Sindicato dos Correios e Telégrafos; o
Sindicato dos Ferroviários; o Conselho da República Russa; a União das
Uniões; a Associação Comercial; a Associação dos Industriais...
—...O poder dos sovietes não é um poder democrático. Não é uma
ditadura do proletariado: é uma ditadura contra o proletariado. Todos
aqueles que já se sentem ou que são capazes de sentir o entusiasmo
revolucionário devem cerrar fileiras em torno de nós, para a defesa da
revolução! Neste momento, não temos apenas que neutralizar a campanha
dos demagogos irresponsáveis. Precisamos, também, combater a contrarevolução.
Consta que alguns generais, nas províncias, procuram aproveitarse
da situação atual para marchar sobre Petrogrado. Se essas notícias forem
verdadeiras, só vêm provar, mais uma vez, que é necessário organizar um
governo democrático sobre sólidas bases. De outro lado, as tropas da direita
substituirão as tropas da esquerda... A guarnição de Petrogrado não pode
conservar-se neutra no momento em que os cidadãos que compram o Golos
Soldata e os jornaleiros que vendem a Rabótchaia Gazieta estão sendo
presos nas ruas... A hora das resoluções parlamentares já passou! Os que não
têm fé na revolução devem abandonar esta sala! Para organizarmos um
poder único precisamos, antes de tudo, restaurar o prestígio da revolução.
Devemos jurar que, para salvar a revolução, estamos todos prontos a
sacrificar as nossas vidas!
Toda a sala se levantou, com os olhos febris, e aplaudiu
entusiasticamente. Não havia ali um só representante do proletariado...
Em seguida, falou Veinstein:
— Precisamos ter calma e não agir enquanto a opinião pública não
estiver nitidamente do nosso lado, apoiando o Comitê para a Salvação da
Rússia e da Revolução. Nesse momento, poderemos, então, passar da
defensiva à ação!
O delegado do Sindicato dos Ferroviários comunicou que sua
organização ia tomar a iniciativa de formar um novo governo e que seus
representantes já estavam negociando nesse sentido com o Smólni. Deviam
admitir os bolcheviques no novo governo?
Martov falou a favor da admissão:
É indiscutível que eles representam um dos mais importantes partidos
políticos.
As opiniões estavam divididas. A ala direita dos mencheviques e dos
socialistas revolucionários, os socialistas populares as cooperativas e os
elementos burgueses opunham-se encarniçadamente à participação dos
bolcheviques.
— Eles traíram a Rússia — disse um orador. — Desencadearam a guerra
civil, abrindo caminho para os alemães. Precisamos esmagá -los sem a menor
piedade!
Skobeliev manifestou-se a favor da exclusão, tanto dos bolcheviques
como dos cadetes.
Conversamos com um jovem socialista revolucionário que se retirara da
Conferência Democrática junto com os bolcheviques, na noite em que
Tseretelli e os "conciliadores" haviam imposto uma coalizão da democracia
russa.
— Você por aqui? — perguntei espantado. Seus olhos relampejaram.
— Sim! — gritou. — Retirei-me do Congresso com meu partido, quartafeira
à noite. Não expus minha vida durante vinte anos para agora submeterme
à tirania dessas feras. Seus métodos são intoleráveis. Mas eles não se
lembraram dos camponeses... Quando os camponeses começarem a se
mover, em menos de um minuto eles deixarão de existir!
— Mas os camponeses irão contra eles? Não acha que ficaram satisfeitos
com o decreto sobre a terra? Que mais poderão querer?
— Ah, o decreto sobre a terra! — respondeu, furioso. — Sabe o que
significa esse decreto? É integralmente o programa do Partido Socialista
Revolucionário! Foi o meu partido que elaborou essa política, depois de
estudar cuidadosamente as aspirações dos próprios camponeses. Isto é um
ultraje!...
— Se o decreto corresponde exatamente à política de vocês, não
compreendo suas objeções. Ele não corresponde aos desejos dos
camponeses? Como querem vocês agora combatê-lo?
— Será possível que não me compreende? Não vê que os camponeses
vão verificar que foram enganados; que esses usurpadores roubaram o
programa do Partido Socialista Revolucionário?
Resolvi mudar de assunto. Perguntei se era verdade que Kaledin estava
avançando para o norte.
Respondeu-me afirmativamente, com um gesto. E, esfregando as mãos,
com uma espécie de amarga satisfação:
— Sim. Veja agora o que esses bolcheviques fizeram. Dirigiram a
contra-revolução contra nós. A revolução está perdida! A revolução está
perdida!
— Vocês vão lutar para defendê-la?
— Claro que sim. Vamos defendê-la até a última gota de nosso sangue.
Mas não daremos a mão aos bolcheviques.
— Entretanto, se Kaledin ameaçar Petrogrado e os bolcheviques
organizarem a defesa da cidade, vocês não lutarão ao lado deles?
— Claro que não. Nós também defenderemos a cidade, mas não ao lado
dos bolcheviques. Kaledin é um inimigo da revolução, mas os bolcheviques
também.
— Quem vocês preferem: Kaledin ou os bolcheviques?
— Isso não se discute! — respondeu, irritado. — Repito mais uma vez: a
revolução está perdida e a culpa é dos bolcheviques. Mas por que falarmos
nisso? Kerenski vem aí... Depois de amanhã, passaremos à ofensiva. O
Smólní já enviou delegados, convidando-nos a organizar com eles o novo
governo.. Agora, a situação já é outra. Estão reduzidos à impotência! Não
estenderemos a mão aos bolcheviques...
Ouvi o estampido de um tiro, disparado do lado de fora. Corri para a
janela. Um guarda vermelho, perdendo a paciência diante dos insultos
recebidos, disparara a sua arma, ferindo uma jovem no braço. Vi um carro
transportá-la no meio da multidão irritada, cujos gritos chegavam até mim.
De repente, apareceu um carro blindado no extremo da Mikhailovskaia com
as metralhadoras voltadas para o povo. Imediatamente, o formigueiro
humano dispersou-se. Os habitantes de Petrogrado já estavam habituados a
fugir das balas; num abrir e fechar de olhos, os homens deitaram-se por terra,
no meio da rua ou nos passeios, ou refugiaram-se atrás de postes, para se
protegerem da metralha. O carro blindado avançou, lentamente, chegando
até a porta da Duma. Um homem pôs a cabeça para fora e pediu que lhe
entregassem todos os exemplares do Soldâtski Golos. Os jornaleiros, rindo,
correram com os jornais para dentro do edifício. Depois de alguns instantes,
o carro blindado, hesitante, fez manobras e desapareceu na Avenida Niévski,
enquanto os homens e as mulheres se levantavam, sacudindo as roupas.
No interior da Duma, todo mundo corria, procurando nervosamente
esconder em qualquer lugar as pilhas do Soldâtski Golos.
No meio da confusão, entrou precipitadamente um jornalista, gritando e
agitando um papel:
— Vejam! Manifesto de Krasnov!
Todos correram para ele:
— Precisamos reimprimi-lo imediatamente e distribuí-lo nos quartéis.
"Por ordem do chefe supremo dos Exércitos, fui nomeado comandante
das tropas concentradas em Petrogrado.
"Cidadãos, soldados, bravos cossacos do Don, do Kuban, da Transbaikal,
do Amur, do Ienissei! Dirijo-me a todos que se conservaram fiéis ao seu
juramento de soldados, que prometeram nunca violar seu juramento de
cossacos!
"Em Petrogrado, reina a anarquia e a tirania! Petrogrado está sob a
ameaça da fome! Cabe a vocês salvá-la. Cabe a vocês salvar a Rússia da
vergonha a que foi exposta por um punhado de ignorantes, vendidos ao ouro
do Imperador Guilherme II.
"O Governo Provisório, ao qual todos vocês juraram obedecer fielmente,
durante as jornadas de março, não foi vencido. Foi derrubado pela violência,
mas prepara-se para retomar as posições perdidas com o auxílio das tropas
da frente.
"Fiel ao seu dever, o Conselho da União dos Exércitos Cossacos, depois
de reunir todos os cossacos sob seu comando, firme na convicção que o
anima, apoiado pela vontade unânime do povo russo, jurou servir ao nosso
país, como nossos antepassados serviram em 1612, durante o terrível período
de revoltas, quando os cossacos do Don libertaram Moscou, ameaçada pelos
suecos, polacos e lituanos e destroçada pelas dissensões interiores.
"As tropas regulares olham para esses criminosos com horror e desprezo.
Seus saques, suas violências, seus assassinatos, sua forma germânica de
tratar as vítimas que tombam momentaneamente, mas que não estão
vencidas, fazem com que todo o povo esteja voltado contra eles.
"Cidadãos, soldados, bravos cossacos de Petrogrado! Enviem-me seus
delegados, para que eu possa saber quem são os traidores da pátria e quem
são seus defensores e para evitar que se derrame sangue inocente!"
Nesse momento, de boca em boca, circulou a notícia de que o edifício
estava cercado pelos guardas vermelhos. Entrou um oficial, com fita
vermelha no braço, que logo penetrou no gabinete do prefeito. Alguns
instantes depois, o velho Schreider apareceu à porta do gabinete. Estava
desfigurado. Seu rosto avermelhava e empalidecia, alternativamente.
— A Duma vai reunir-se agora mesmo em sessão extraordinária —
gritou. Na sala de sessões, todos os trabalhos foram suspensos.
— Todos os membros da Duma para a sessão extraordinária!
— Que houve?
— Não sei... Vão prender-nos... Vão dissolver a Duma... Os deputados
estão sendo detidos na porta...
Começaram a fervilhar os comentários.
Na Sala Nicolau, havia apenas lugar para se ficar de pé. O prefeito
declarou que todas as saídas estavam guardadas por destacamentos militares
e que ninguém podia entrar ou sair.
Um comissário dissera que a Duma ia ser dissolvida e que todos os seus
membros seriam encarcerados. Após essa declaração, uma tempestade de
discursos sacudiu a sala. Tanto dos bancos dos deputados, como até da
assistência, ergueram-se numerosas vozes dizendo que ninguém tinha o
direito de dissolver um conselho municipal livremente eleito. As pessoas dos
prefeitos e dos membros da Duma eram invioláveis. Os tiranos, os
provocadores, os agentes da Alemanha nunca seriam reconhecidos! Quanto
às ameaças de dissolução, viessem executá-las!
— Para se apoderarem desta câmara, terão primeiro de passar por cima
dos nossos cadáveres! Faremos como os senadores romanos. Esperaremos
com dignidade a chegada dos bárbaros!
Em seguida, votaram uma série de resoluções. Uma pedia que se
pusessem as dumas e os ziemstvos de toda a Rússia a par da situação da
Duma Municipal de Petrogrado. Outra estabelecia que o prefeito e o
presidente da Duma não poderiam nunca entrar em negociações com os
representantes do Comitê Militar Revolucionário ou com o intitulado
Conselho dos Comissários do Povo. Uma terceira resolução pedia que se
imprimisse novo apelo dirigido à população de Petrogrado, exortando-a a
defender a municipalidade que havia eleito. Uma quarta propunha que a
Duma ficasse reunida em sessão permanente.
Enquanto isso, um delegado telefonou para o Smólni e soube que o
Comitê Militar Revolucionário não ordenara que a Duma fosse cercada. As
tropas iam ser retiradas.
Quando descia a escadaria, Riazanov passou corno venda vai pela porta
adentro, muito agitado.
Você vem para dissolver a Duma? — perguntei-lhe.
— Céus! Nada disso! Houve algum engano. Hoje, pela manhã, garanti ao
prefeito que não incomodaríamos a Duma.
Ao cair da noite, chegou pela Avenida Niévski uma dupla fileira de
ciclistas, com os fuzis a tiracolo. Fizeram alto. A. multidão crivou-os de
perguntas.
— Quem são vocês? De onde vêm? — perguntou um homem gordo,
com o cigarro no canto da boca.
— Somos do 12.° Exército. Chegamos da frente para ajudar os sovietes a
esmagar a maldita burguesia!
Gritos furiosos:
— São os polícias bolcheviques, os cossacos bolcheviques! Um
oficialzinho, metido numa capa de couro, descia as escadas correndo.
— A guarnição dá meia -volta — segredou-me ao ouvido. — É o começo
do fim dos bolcheviques. O senhor quer assistir à transformação? Quer ver
como a maré vai baixar do lado deles? Acompanhe-me.
Entrou na Mikhailovskaia. Seguimos, andando a passos rápidos.
— Que regimento mudou de atitude?
— Os bronoviki...
A coisa era grave. Os bronoviki, a tropa dos carros blindados,
representava, de fato, a chave da situação. Quem a tivesse ao seu lado
poderia considerar-se vitorioso.
— Seguiram para lá os comissários do Comitê para a Salvação da Rússia
e da Revolução e os da Duma. Neste momento, estão deliberando...
— Deliberando o quê? Para resolver de que lado vão combater?
— Ah, não! Não poderíamos apresentar a questão deste modo! Eles
nunca combateriam contra os bolcheviques. Estamos vendo se conseguimos
que fiquem neutros. Então, os junkers e os cossacos...
A porta da grande Auto-Escola Mikháilovski estava escancarada. Duas
sentinelas quiseram deter-nos, mas não lhes demos importância e, aos gritos,
fomos entrando. O interior aparecia iluminado apenas por uma lâmpada
pendente do teto do grande pátio. As colunas e janelas laterais estavam
imersas na sombra. Imensas silhuetas de carros blindados destacavam-se
dessa penumbra. Em torno de um deles, que fora colocado no meio do pátio,
debaixo da luz, aglomeravam-se cerca de dois mil soldados, de uniformes
escuros, que pareciam perdidos na imensidão do edifício imperial. Uma
dúzia de homens — oficiais, presidentes e oradores dos comitês de soldados
— estavam encarapitados em cima do carro blindado. Um orador falava do
alto da torre do carro.
Era Kanionov, que, no ultimo verão, presidira o Congresso Pan-Russo
dos bronoviki. Ágil e elegante, com seu capote de couro e dragonas de
tenente, defendia, eloqüentemente, a neutralidade.
— Para nos, e horrível ter de matar nossos irmãos, russos como nós. É
necessário evitar que os soldados, que juntos lutaram contra o czar e que
venceram o inimigo externo em combates para sempre gravados nas páginas
da história, se chacinem, agora, mutuamente, numa guerra civil. Nós,
soldados, que temos a ver com disputas entre partidos políticos? Não quero
dizer que o Governo Provisório seja um governo democrático. Também não
queremos uma coalizão com a burguesia. Isso, de modo algum aceitaríamos.
Mas é preciso organizar o governo da democracia unificada; caso contrário,
a Rússia estará perdida! Só um governo desse gênero poderá evitar a guerra
civil, a carnificina entre irmãos!
O discurso foi recebido com simpatia. Todos pareciam concordar.
O orador foi aplaudido, quando desceu da tribuna improvisada. Ergueuse,
então, um soldado, com a fisionomia pálida, contraída:
— Camaradas! — gritou. — Cheguei neste momento da frente romena
para dizer a todos: "Queremos paz, queremos paz, sem perda de um minuto!"
Para conseguirmos isso, acompanharemos tanto os bolcheviques como esse
novo governo. Paz! Não podemos mais combater. Não queremos lutar contra
alemães, ou contra russos.
Depois dessas palavras, pulou para o chão. Daquela massa ja alvoroçada
elevou-se um murmúrio confuso e angustioso, que se transformou em
agitação de cólera, quando o orador seguinte, um menchevique partidário da
guerra até o fim, tentou mostrar que a luta.só poderia terminar pela vitória
dos Aliados.
Fala como Kerenski — bradou a voz rude de um soldado.
Em seguida, um delegado da Duma falou a favor da neutralidade. Os
presentes ouviram-no com visível aborrecimento, iam que o orador não era
um dos seus. Nunca, em parte alguma, vi homens se esforçando tanto para
compreender e tomar uma resolução. Os soldados estavam imóveis como
estátuas de pedra, os olhos cravados no orador, fixando-o sem pestanejar de
maneira aterradora. Das fontes, gotejava-lhes o suor. Eram gigantes, de
olhos límpidos e ingênuos de crianças e expressão de guerreiros de epopéia.
Prosseguindo no comício, um bolchevique, membro da unidade, falou
com ódio e violência. Mas, do mesmo modo que o outro orador, tampouco
conseguiu o apoio da assistência.
Os soldados, naquele momento, viviam num mundo diferente das suas
preocupações habituais. Seus espíritos estavam cheios de Rússia, de
socialismo, como se deles dependesse a vida ou a morte da revolução.
Sucediam-se os oradores, que falavam, ora no meio de um silêncio
carregado de hostilidades, ora no meio de clamores de aprovação" ou de
cólera. Devemos intervir ou permanecer neutros? Kanionov voltou,
persuasivo e simpático. Mas, apesar de todos os seus discursos sobre a paz,
não era ele um oficial, um partidário da guerra até o fim?
Um operário da ilha de Vassíli foi recebido com as seguintes palavras:
— Será você, trabalhador, que nos poderá dar a paz?
Ao meu lado, uma espécie de claque, formada quase que exclusivamente
por oficiais, aplaudia os defensores da neutralidade, gritando a todo instante:
"Kanionov! Kanionov!", assobiando e insultando quando os bolcheviques
tentavam falar. De repente, na coberta do carro, os delegados dos comitês e
os oficiais começaram a discutir com vivacidade, gesticulando
animadamente. Os presentes quiseram saber o que se passava. Aquela massa
humana começou a agitar-se com violência.
De súbito, um soldado, desprendendo-se violentamente das mãos de um
oficial, que procurava segurá-lo, levantou a mão e gritou:
— Camaradas! O camarada Krilenko está aqui e quer falar. Uma
tempestade de aplausos, de assobios, de gritos:
— Que fale! Queremos ouvi-lo!
— Para fora! Não queremos ouvir!
No meio da confusão, o comissário do povo para a Guerra subiu no
carro, ajudado por numerosas mãos que o empurraram pela frente e pelas
costas. Ficou um momento imóvel. Depois, avançando para o radiador do
carro, percorreu a assistência com olhar sorridente. Era gorducho, de pernas
curtas. Estava com ° cabeça descoberta e sem nenhum distintivo no
uniforme. A claque, ao meu lado, assobiava sem descanso: — Kanionov!
Queremos Kanionov! Fora! Abaixo o traidor!
A multidão tornou-se tumultuosa, avançando lentamente para o nosso
lado, como uma avalancha. Alguns homens de cenho carregado abriram
caminho na minha direção:
— Quem é que está perturbando nosso comício? — gritaram. — Quem
está assobiando e vaiando o orador?
A claque não respondeu, dissolvendo-se para não se juntar mais.
— Camaradas, soldados — começou Krilenko com a voz amortecida
pelo cansaço. — Quase não posso falar. Sinto muito, mas há quatro noites
que não durmo. Não preciso dizer-lhes que também sou soldado. Do mesmo
modo não preciso afirmar que desejo a paz. O que lhes quero dizer,
companheiros, é que o Partido Bolchevique, conduzindo a revolução
vitoriosa dos operários e dos soldados com o apoio de todos nós, os bravos
camaradas, que derrubaram para sempre o poder da sanguinária burguesia,
prometeu propor a paz e, hoje mesmo, cumpriu essa promessa. —
(Tempestade de aplausos.) — Pedem-lhes agora que fiquem indiferentes
enquanto os junkers e os Batalhões da Morte, que nunca ficarão neutros,
estão nos fuzilando nas ruas e apoiando a marcha de Kerenski e de outros da
sua laia sobre Petrogrado. Kaledin vem da frente do Don; Kornilov reúne
seus tekintsi para renovar a intentona de agosto. Todos esses socialistas
revolucionários e mencheviques, que lhes insinuavam para ficar neutros,
como conseguiram manter-se no poder de julho em diante? Não foi pela
guerra civil, na qual sempre se colocaram ao lado da burguesia, como ainda
o fazem? Não preciso convencê-los, porque todos aqui já tomaram há muito
tempo um partido. A questão é bem simples. De um lado estão Kerenski,
Kaledin, Kornilov, os mencheviques, os socialistas revolucionários, os
cadetes, a Duma, dizendo a todo o instante que suas intenções são as
melhores possíveis. Do outro, estão os operários, os soldados, os
marinheiros, os camponeses pobres... O governo está em nossas mãos. Sois
os donos. A imensa Rússia vos pertence. Dar-lhe-eis as costas?
Krilenko só se conservava de pé à custa de enorme esforço. De sua voz
cansada, de suas palavras, transpirava a sinceridade. Por fim, cambaleou e
quase caiu. Cem braços estenderam-se para ajudá-lo a descer.
Então, o enorme pátio escuro estremeceu, sacudido por estrondosa
ovação.
Kanionov tentou falar novamente. Mas, como todos gritassem "Vamos
votar! Vamos votar!", inclinou-se e leu uma resolução propondo que a
delegação dos bronoviki abandonasse o Comitê Militar Revolucionário e que
o regimento se conservasse neutro na guerra civil.
Passou-se à votação. Os que se manifestassem de acordo com a proposta
apresentada por Kanionov deveriam passar para o lado direito, e os que
estivessem contra, para o esquerdo. Houve alguns segundos de indecisão, de
muda expectativa. Afinal, os homens começaram a passar cada vez mais
rapidamente para o lado esquerdo. Centenas de vigorosos soldados,
atropelando-se, avançaram, formando uma massa compacta, sobre o solo
sujo, no meio da escuridão. Ao meu lado, cerca de cinqüenta homens,
distanciados uns dos outros, abandonados pela avalancha, continuavam
votando a favor da resolução. Quando um hurra de triunfo estremeceu o
pátio, eles deram meia -volta e retiraram-se precipitadamente do edifício, e
alguns deles, nesse momento, haviam abandonado também a revolução...
Imagine-se a mesma luta em todos os quartéis da cidade, em todos os
distritos, em toda a frente, na Rússia inteira. Imagine-se, em todos os
quartéis, os Krilenkos, caindo de cansaço, correndo de um lugar para outro,
discutindo, ameaçando, suplicando. Imagine-se, finalmente, as mesmas
cenas em todos os sindicatos, nas fábricas, nas aldeias, em todos os navios
da esquadra espalhados pelos mais longínquos mares. Imagine-se, em todo o
país, centenas de milhares de russos, de operários, camponeses, marinheiros,
com os olhos cravados nos oradores, esforçando-se intensamente para
compreender e em seguida resolver, pensando com todas as suas forças...
para, afinal, com a mesma unanimidade, tomarem idêntica decisão. Eis o que
foi a Revolução Russa.
No Smólni, o novo Conselho dos Comissários do Povo não estava
inativo. Seu primeiro decreto já fora impresso e, à tarde, era distribuído aos
milhares nas ruas das cidades, enquanto os trens partiam carregados de
milhões de exemplares para o norte e para o leste:
"Em nome do governo da República Russa, eleito pelo conselho Pan-
Russo dos Deputados Operários e Soldados, com participação de deputados
camponeses, o Conselho dos Comissários do Povo decreta:
"1." As eleições para a Assembléia Constituinte devem ser realizadas na
data fixada, dia 12 de novembro.
"2." Todas as comissões eleitorais, todos os órgãos municipais locais, os
sovietes de deputados operários, soldados, camponeses, as organizações de
soldados da frente não devem poupar esforços no sentido de garantir a
liberdade e a normalidade da votação na data fixada.
"Em nome do governo da República Russa,
"O presidente do Conselho de Comissários do Povo,
Vladímir Uliánov Lênin."
A Duma Municipal também continuava trabalhando ativamente. Quando
chegamos, um membro do Conselho da República discursava:
— O conselho — dizia — não se considera dissolvido. Acha apenas que
não poderá prosseguir os trabalhos enquanto não tiver novo local para
realizar as reuniões. Por isso, para não ficar inativo, o Comitê Diretor
resolveu incorporar-se ao Comitê para a Salvação da Rússia e da Revolução.
Foi esta a última vez que a história mencionou o Conselho da República
Russa...
Em seguida, como de costume, desfilaram os delegados dos ministérios,
do Vikjel, do Sindicato dos Correios e Telégrafos, afirmando pela centésima
vez que estavam resolvidos a não trabalhar para os usurpadores
bolcheviques. Um junker que estivera no Palácio de Inverno traçou, com
cores vivas, o quadro da sua atitude heróica, ao lado dos companheiros,
confrontando-a com o vergonhoso procedimento dos guardas vermelhos...
Todo mundo aplaudia, bebendo-lhe as palavras. Um indivíduo leu um artigo
do jornal socialista revolucionário, o Narod, que avaliava os estragos do
Palácio de Inverno em quinhentos milhões de rublos e descrevia, com
abundantes pormenores, as cenas das pilhagens e dos prejuízos sofridos pelo
palácio...
De vez em quando, alguém comunicava as últimas notícias recebidas
pelo telefone. Os quatro ministros socialistas tinham sido postos em
liberdade. Krilenko apresentara-se na Fortaleza de Pedro e Paulo para avisar
ao Almirante Verderevski que a Pasta da Marinha estava vaga, pedindo-lhe,
em nome de toda a Rússia, que assumisse o cargo, sob o controle dos
comissários do povo. E o velho marinheiro aceitara. Kerenski avançava. As
guarnições bolcheviques recuavam ante a sua ofensiva. O Smólni publicara
novo decreto, ampliando os poderes da Duma Municipal na parte relativa ao
abastecimento de víveres.
Essa última "insolência" provocou uma explosão de furor. Esse Lênin, o
usurpador, o tirano, tivera a audácia de mandar seus comissários tomarem
conta da garagem municipal! Atrevera-se até a invadir os depósitos
municipais e a imiscuir-se nas atividades do Comitê de Abastecimento e na
distribuição de víveres! Esse Lênin pretendia até definir os limites do poder
de um município livre, independente e autônomo! Um deputado, com o
punho crispado, propôs privar a cidade de víveres, caso os bolcheviques
tentassem intervir no funcionamento do Comitê de Abastecimento. Outro,
representante especial do Comitê de Abastecimento, comunicou que a cidade
estava quase sem alimentos. Diante dessa gravíssima situação, pediu que se
enviassem delegados a fim de apressar a chegada dos trens de víveres.
Diedonenko anunciou, dramaticamente, que a guarnição vacilava: o
regimento de Semiônov já havia resolvido colocar-se à disposição do Partido
Socialista Revolucionário; os tripulantes dos torpedeiros do Nievá
continuavam indecisos. A Duma escolheu logo sete delegados a fim de
intensificarem a propaganda entre os soldados e marinheiros.
Em seguida, o velho prefeito subiu à tribuna:
— Camaradas e cidadãos! Acabo de receber uma notícia alarmante.
Disseram-me que os prisioneiros da Fortaleza de Pedro e Paulo correm
perigo. Catorze junkers da Escola Pavlóvski foram despidos e torturados
pelos guardas bolcheviques. Um deles enlouqueceu. Os ministros estão
ameaçados de linchamento!
Estas palavras levantaram uma onda de indignação e de gritos de horror,
que se tornaram mais violentos quando uma mulher pequena e gorducha,
trajando vestido cinza, pediu a palavra, falando com a voz dura e metálica.
Era Viera Slútskaia, antiga revolucionária e representante bolchevique na
Duma.
— Isso é mentira! É uma provocação! — gritou impassível sob uma
chuva de apartes e insultos. — O Governo Operário e Camponês, que aboliu
a pena de morte, não admite em hipótese alguma atos dessa natureza! Exijo
que se nomeie imedia tamente uma comissão para verificar se tais fatos são
verdadeiros! Se a declaração que acaba de ser feita contiver a menor parcela
de verdade, o governo tomará as mais enérgicas providências para punir os
responsáveis!
Formou-se num instante uma comissão, com a participado de membros
de todos os partidos, que se dirigiu logo à Fortaleza de Pedro e Paulo, a fim
de averiguar. Saí atrás dela. Deixei a Duma organizando outra comissão
encarregada de ir ao encontro de Kerenski, para evitar derramamento de
sangue na ocasião da sua entrada na capital.
Tá era mais de meia -noite quando passei em frente às sentinelas da
fortaleza. Sob a fraca claridade de algumas lâmpadas elétricas, contornei a
igreja, onde estão as tumbas dos czares. Passei debaixo da sua elegante torre
dourada, cujo relógio continuou, durante muitos meses depois.da revolução,
a tocar ao meio-dia o Boie Tzaria Khrani1... Naquele lugar não se via
vivalma. A maioria das janelas não estava sequer iluminada. De quando em
quando, esbarrava com vultos tateando na escuridão, que respondiam às
minhas perguntas com o habitual lá niê znáiu 2. À minha direita, erguia -se a
massa sombria do Edifício Trubetskoi, cemitério dos vivos, em que tantos
mártires da liberdade perderam a vida ou a razão nos tempos do czar, e onde,
depois, o Governo Provisório encarcerara os ministros do czar; atualmente,
servia aos bolcheviques para encarcerar os ministros do Governo Provisório.
1 Deus proteja o czar. (N. do T.)
2 Não sei. (N. do T.)
Um marinheiro, gentilmente, conduziu-me ao gabinete do comandante.
Meia dúzia de guardas vermelhos, marinheiros e soldados estavam sentados
numa sala de temperatura agradável, cheia de fumaça, impregnada do
delicioso cheiro de um fumegante samovar. Fui recebido cordialmente.
Ofereceram-me chá. O comandante não estava. Saíra para acompanhar uma
comissão de sabotajniki (sabotadores) da Duma Municipal, que diziam
terem sido os junkers assassinados. E todos riram gostosamente, achando
graça na visita da comissão.
A um canto da sala, estava sentado um homenzinho calvo, com o
semblante abatido, envolto em luxuoso capote de peles. Mordia o bigode e
olhava assustado para os lados. Parecia um rato numa ratoeira. Fora preso
naquele instante. Alguém disse, apontando displicentemente para seu lado,
que era um ministro °u coisa semelhante.
O homenzinho parecia não ouvir. Estava evidentemente aterrorizado,
embora os que se achavam na sala não lhe manifestassem a menor
hostilidade.
Dirigi-me a ele, falando-lhe em francês.
— Sou o Conde Tolstói — respondeu-me, inclinando-se gravemente. —
Não sei por que fui preso... — Quando me dirigia para casa e atravessava a
Ponte Tróitki, dois desses.. desses... indivíduos prenderam-me. Fui
comissário do Governo Provisório, adido ao Estado-Maior. Mas não fui, de
modo algum, membro do governo.
— Acho que devemos mandá-lo embora — disse um marinheiro. — Ele
é inofensivo.
— Não! — respondeu o soldado que o trouxera. — É preciso falar com o
comandante.
— Com o comandante?! — disse o marinheiro, afinal. — Fizeram a
revolução para continuar obedecendo a oficiais?
Um intendente do Regimento Pavlovski contou-me como a insurreição
começara.
— O regimento achava-se de serviço no Estado-Maior Geral, na noite do
dia 6. Eu e mais alguns camaradas estávamos de guarda: Ivan Pávlovitch e
outro camarada, cujo nome não me recordo, esconderam-se atrás das
cortinas da janela, na sala onde se realizava a reunião do Estado-Maior.
Ouviram toda a conversa. Souberam, assim, que o Estado-Maior ia dar
ordens aos junkers de Gatchina para virem, à noite, para Petrogrado, e avisar
os cossacos para estarem aqui no dia seguinte de manhã. Os principais
pontos da cidade deviam ser ocupados antes do romper da aurora.
Resolveram também tomar as pontes. Mas, quando falaram em cercar o
Smólni, Ivan Pávlovitch não pôde mais resistir. Àquela hora havia pouco
movimento. Aproveitou-se disso para sair cautelosamente do seu esconderijo
e descer até o corpo da guarda, deixando seu camarada escutando na sala do
Estado-Maior. Eu também desconfiei de que o Estado-Maior estava
preparando qualquer coisa, porque a todo instante chegavam automóveis
com oficiais e todos os ministros estavam presentes. Ivan Pávlovitch contoume
tudo que acabara de ouvir. Eram duas e meia da madrugada. O secretário
do comitê do regimento estava presente. Transmitimos-lhe o que estava
ocorrendo, pedindo a sua opinião. "Precisamos prender todas as pessoas que
entrarem ou saírem", disse ele. Foi o que fizemos. Ao fim de uma hora, já
tínhamos prendido vários oficiais e dois ministros, que enviamos
diretamente para o Smólni. Mas o Comitê Militar Revolucionário não sabia
do que se tratava pouco depois, recebemos ordem para deixar que todas as
pessoas circulassem livremente e não prender ninguém. Fomos correndo ao
Smólni. Só depois de uma hora é que o Comitê Militar Revolucionário
começou a compreender que tínhamos razão e que estavam preparando uma
guerra contra nós. Quando voltamos ao Estado-Maior, já eram cinco horas
da manhã e quase todos se haviam retirado. Assim mesmo, prendemos
alguns. Mas a guarnição já estava prevenida. E isso era o mais importante.
Um guarda vermelho da ilha de Vassíli contou, com grande riqueza de
minúcias, como começara no seu distrito o grande dia da insurreição.
— Não tínhamos metralhadoras — disse, rindo — e não podíamos ir
buscá-las no Smólni. O camarada Zalkind, membro do Uprava*, lembrou-se,
de repente, que na sala da Duma havia uma metralhadora tomada aos
alemães. Dirigimo-nos para lá, em companhia de outro camarada. Os
mencheviques e os socialistas revolucionários estavam reunidos justamente
naquele momento. Abrimos a porta e entramos. Eles eram doze ou treze.
Nós, apenas três. Quando nos viram entrar, não disseram coisa alguma.
Deixaram apenas de falar e fecharam a porta. Desmontamos, então, a
metralhadora. O camarada Zalkind levou sobre o ombro uma parte, e eu,
outra. Saímos. Ninguém disse uma palavra.
*Escritório central. (N. do T.)
— Sabe como foi ocupado o Palácio de Inverno? — perguntou um
marinheiro. — Às onze horas, mais ou menos, verificamos que não havia
mais nenhum junker do lado do Nievá. Então, derrubamos as portas e
começamos a entrar e a subir pelas escadas, em grupos pequenos. Quando
chegamos em cima, fomos presos pelos junkers, que nos desarmaram. Mas
nossos companheiros, que continuavam chegando, nos ajudaram e aí fomos
nós que desarmamos os junkers...
Nesse momento, chegou o comandante. Era um suboficial ainda moço e
de aspecto jovial. Estava com um dos braços numa tipóia e com os olhos
fundos. Havia várias noites que não dormia. Olhou em primeiro lugar para o
prisioneiro, que começou logo, sem preâmbulos, a explicar sua situação.
— Ah, perfeitamente! — interrompeu o suboficial. — Você fazia parte
do comitê que não quis entregar o Estado-Maior, quarta-feira à tarde, não é?
Bem, não precisamos de sua presença aqui, cidadão. Queira desculpar-me.
Abriu a porta e, com um gesto, indicou ao Conde Tolstói que podia ir-se
embora. Ouvi alguns murmúrios de protestos, principalmente do lado dos
guardas vermelhos. O marinheiro gritou triunfalmente:
— Estão vendo? Eu não disse?
Dois soldados dirigiram-se ao comandante. Tinham sido enviados pela
guarnição da fortaleza para protestar, porque os presos — diziam —
recebiam a mesma comida que os soldados. E havia muito pouca comida,
apenas o suficiente para não se morrer de fome. Por que os contrarevolucionários
estavam sendo tratados tão bem?
— Camaradas! Somos revolucionários e não bandidos! — respondeu o
comandante.
E voltou-se para o lado em que estávamos, eu e meu colega.
Dissemos-lhe ser voz corrente que os junkers estavam sendo torturados e
que ministros corriam perigo de vida. Poderíamos ver os prisioneiros, a fim
de desmentir para o mundo esses boatos mentirosos?...
— Não — respondeu o jovem oficial, nervosamente. — Não quero
incomodar os presos outra vez. Ainda há pouco fui obrigado a acordá-los.
Eles, com toda a certeza, pensaram que íamos assassiná-los. A maioria dos
junkers já foi posta em liberdade. Os poucos que ainda estão presos serão
soltos amanhã.
E voltou-nos as costas, bruscamente.
— Poderemos falar com a comissão da Duma?
O comandante, que enchia de chá a sua xícara, fez um gesto afirmativo.
— Devem estar ainda aí, no pátio — disse, displicentemente.
De fato: os membros da comissão estavam do outro lado da porta,
formando um grupo ao redor do prefeito. Discutiam animadamente, sob a luz
fraca de uma lâmpada.
— Senhor prefeito — disse eu —, somos correspondentes de jornais dos
Estados Unidos da América do Norte. O senhor pode comunicar-nos
oficialmente o resultado da investigação que realizaram?
Voltou-nos o rosto digno e venerável:
— As acusações são absolutamente falsas — disse lentamente,
destacando as sílabas. — Os ministros estão sendo tratados com toda a
consideração. Só podem queixar-se dos incidentes verificados quando foram
trazidos para cá. Quanto aos junkers, não sofreram coisa alguma;
absolutamente nada.
Ao longo da Avenida Niévski, através das trevas da cidade deserta,
passava em silêncio uma interminável coluna de soldados, que seguia ao
encontro de Kerenski. Os automóveis, com os faróis apagados, circulavam
pelas vielas escuras. No número 6 da Fontanka, sede do Quartel-General do
Soviete de Camponeses, assim como em certo edifício da Avenida Niévski e
na Escola de Engenharia, trabalhava-se furtivamente. A Duma estava com as
luzes acesas.
No Smólni, das salas do Comitê Militar Revolucionário pareciam sair
chispas e centelhas, como de um dínamo que trabalhasse no máximo da sua
capacidade, com corrente de alta potência.
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