Capítulo III
ÀS VÉSPERAS
Nas relações entre um governo fraco e um povo em revolta, há certos
momentos em que qualquer ação das autoridades só consegue exasperar as
massas e cada recuo ou prova de fraqueza apenas tem como resultado
aumentar seu desprezo.
O plano de evacuar Petrogrado desencadeou uma tormenta. Quando
Kerenski afirmou que não pensava em tal coisa, ergueram-se protestos e
ditos zombeteiros.
"Pressionado pela revolução", gritava o Rabótchi Put, "o Governo
Provisório de burgueses pretende livrar-se do aperto, afirmando
mentirosamente que nunca pensou em fugi.r de Petrogrado, e que não quer
entregar a capital... "
Em Khárkov, surgiu uma organização de trinta mil mineiros, que adotou
o preâmbulo dos estatutos da IWW*. "Não há nada de comum entre a classe
trabalhadora e a classe exploradora."
*Industrial Workers of the World, isto é, operários industriais do mundo: confederação
operária fundada em Chicago, em junho de 1905. (N. do E.)
Dispersados pelos cossacos, os mineiros foram, em grande parte, vítimas
do lockout dos proprietários. Os restantes declararam greve geral.
Konovalov, ministro do Comércio e da Indústria, deu carta branca ao
assistente Orlov para dominar o movimento. Orlov era odiado pelos
mineiros. Mas o Tsik não só apoiou sua indicação para o cargo, como se
recusou a agir no sentido de obrigar os cossacos a se retirarem da bacia do
Donetz.
Em seguida, foi dissolvido o Soviete de Kaluga, no qual os
bolcheviques, depois de terem conquistado a maioria, resolveram decretar a
liberdade de alguns presos políticos. Com a aprovação do representante do
governo, a Duma Municipal enviou tropas reacionárias a Minsk e
bombardeou com a artilharia a sede do soviete. Os bolcheviques renderamse.
Mas, no momento em que abandonavam o edifício, foram atacados pelos
cossacos, que investiram contra eles gritando: — É isso que precisamos
fazer com todos os outros sovietes bolcheviques, inclusive os de Petrogrado
e de Moscou! — Esse fato levantou em toda a Rússia uma violenta onda de
indignação.
Justamente nessa ocasião, o Congresso dos Sovietes do Norte realizava
em Petrogrado, sob a presidência de Krilenko, a sessão final, onde a quase
maioria se pronunciou pela tomada do poder pelo Congresso Pan-Russo. A
sessão terminou com uma saudação dirigida aos bolcheviques encarcerados,
na qual o congresso os convencia de que deviam alegrar-se porque a hora da
libertação se aproximava. Simultaneamente, a Primeira Conferência Russa
dos Comitês de Fábrica pronunciou-se, resolutamente, pelos sovietes,
fazendo esta declaração categórica:
"Depois de derrubar o jugo do czarismo, a classe trabalhadora deve
assegurar a vitória do regime democrático na esfera da atividade produtora,
vitória essa que tem sua maior expressão no controle operário da produção,
que se está constituindo, espontaneamente, em virtude da política criminosa
das classes dominantes".
O Sindicato dos Ferroviários exigiu que o ministro das Comunicações,
Liverovski, pedisse demissão...
Skobeliev, em nome do Tsik, insistia para que o nacaz fosse apresentado
na Conferência Interaliada e protestou contra a partida de Terestchenko,
como delegado do governo, para Paris. Terestchenko, por seu turno, pediu
demissão.
O General Verkhóvski, na impossibilidade de realizar seu plano de
reorganização do Exército, só muito raramente comparecia às reuniões do
gabinete.
A 3 de novembro, o Obchtcheie Dielo (A Causa Comum), de Burtzev,
publicou em letras garrafais o seguinte:
"Cidadãos! Salvemos a pátria!
"Chegou ontem ao meu conhecimento, na sessão da Comissão da Defesa
Nacional, que o ministro da Guerra, General Verkhóvski, um dos principais
responsáveis pela derrota de Kornilov, propôs que assinássemos a paz em
separado, independentemente dos Aliados.
"Isso significa trair a Rússia.
"Terestchenko declarou que o Governo Provisório nem sequer examinou
a proposta de Verkhóvski.
" 'Tem-se a impressão de que estamos numa casa de loucos!', foram as
palavras de Terestchenko.
"Os membros da comissão ficaram estupefatos com a proposta do
general.
"O General Aleksêiev chorou.
"Não! Isto não é uma loucura! É coisa pior ainda! É uma verdadeira
traição à Rússia.
"Kerenski, Terestchenko e Nekrássov precisam, o quanto antes; retratarse
publicamente com respeito às palavras de Verkhóvski.
"Cidadãos, alerta!
"A Rússia está sendo vendida!
"Salvemos a pátria!"
Na realidade, Verkhóvski havia declarado apenas que era necessário
exercer certa pressão sobre os Aliados, para que apressassem as negociações
de paz, porque o Exército russo não podia continuar combatendo.
A declaração de Verkhóvski, tanto na Rússia como no exterior, causou
impressão profunda. O general foi licenciado, "por motivos de saúde" e por
tempo indeterminado, deixando o governo. E o Obchtcheie Dielo não pôde
mais circular.
Para domingo, 4 de novembro, estavam marcados vários comícios
monstros em toda a cidade, em comemoração ao Dia do Soviete de
Petrogrado. Dizia -se que esses comícios tinham exclusivamente o objetivo
de angariar fundos para as organizações e.para a imprensa revolucionária.
Mas, realmente, a finalidade era uma demonstração de força.
Inesperadamente, anunciou-se que os cossacos iam também desfilar pela
Kréstni Kol, participando, assim, da solenidade da 'procissão da cruz, em
honra ao santo de 1812, que libertara Moscou de Napoleão.
A atmosfera estava carregada. Qualquer centelha poderia desencadear a
guerra civil. O Soviete de Petrogrado distribuiu, copiosamente, um
manifesto com o título: "Irmãos cossacos!" O manifesto dizia:
"Cossacos! Querem atirar vocês contra nós, operários e soldados. Esse
plano de Caim foi preparado pelos nossos inimigos comuns: os opressores,
as classes privilegiadas, os generais, banqueiros, grandes proprietários de
terras, antigos funcionários, os velhos servidores do czar.
"Nós somos odiados pelos usurários, pelos ricaços, pelos príncipes,
nobres e generais, como aqueles que existem entre vocês. Todos eles estão à
espera do momento oportuno para destruir o Soviete de Petrogrado e
esmagar a revolução, a fim de novamente acorrentar o povo, como nos
tempos do czar.
"Prepara-se uma procissão de cossacos para 4 de novembro. Cada um de
vocês, irmãos cossacos, vai resolver, de acordo com a própria consciência, se
deve ou não tomar parte nessa procissão. Nós não vamos nos intrometer na
questão, porque não pretendemos tolher a liberdade de ninguém. Queremos,
entretanto, dar-lhes um conselho, irmãos cossacos! Verifiquem bem se a
procissão não é um pretexto para os seus Kaledins os atirarem contra os
operários e os soldados, com o intuito de provocar um derramamento de
sangue, uma luta fratricida, a fim de esmagar a nossa libertação e a de
vocês."
E a procissão não se realizou...
Nos quartéis, nos bairros operários, em toda a cidade, os trabalhadores
espalhavam a palavra de ordem: "Todo o poder aos sovietes"; e os agentes
da reação aconselhavam o povo a amotinar-se e assassinar os judeus, os
pequenos negociantes e os chefes socialistas.
De um lado, a imprensa monárquica preconizava sangrenta repressão.
Do outro, a poderosa voz de Lênin rugia: -— Insurreição! Nem um minuto
de espera! Insurreição!
A própria imprensa burguesa estava inquieta. O jornal Birjevia
Viêdomosti (Informações da Bolsa) atacava a propaganda bolchevique,
qualificando-a de um atentado contra "os mais elementares princípios da
sociedade, dos direitos individuais e da propriedade privada".
Mas os ataques mais violentos contra os bolcheviques partiam dos
jornais socialistas moderados. "Os bolcheviques são os mais perigosos
inimigos da revolução", dizia o Dielo Naroda. O jornal menchevique Dien
escrevia: "É necessário que o governo se defenda e nos defenda". O jornal de
Plekhânov, o Edinstvo (Unidade), afirmava que os bolcheviques estavam
armando os operários de Petrogrado, reclamando, ao mesmo tempo, severas
medidas governamentais contra eles.
Mas o governo tornava-se cada dia mais impotente. A administração
municipal caía aos pedaços. Os matutinos diariamente anunciavam
assassinatos e assaltos audaciosos. Os criminosos podiam agir à vontade.
Os operários resolveram manter a ordem. À noite, saíam aos grupos,
armados, patrulhando as ruas, prendendo os ladrões e apreendendo as armas
que encontravam.
No dia 1.° de novembro, o Coronel Polkóvnikov, comandante militar de
Petrogrado, baixou a seguinte ordem-do-dia:
"O país atravessa dias difíceis. Apesar disso, surgem diariamente em
Petrogrado apelos e chamados para demonstrações armadas, incitando o
povo à matança. Os roubos e a desordem aumentam sem cessar.
"Essa situação desorganiza a vida dos cidadãos e dificulta a atividade
sistemática das instituições governamentais e municipais.
"Compreendendo perfeitamente minha responsabilidade e toda a
extensão dos meus deveres perante o país, ordeno e determino:
"1. Toda unidade militar, de acordo com normas a serem fixadas, deverá
prestar auxílio, nos limites do território onde está a guarnição, à
municipalidade, aos comissários e à milícia, em defesa das instituições
governamentais.
"2. Serão organizadas patrulhas, de acordo com o comandante do distrito
e com o representante da milícia municipal. Essas patrulhas terão a missão
de prender os criminosos e os desertores.
"3. Toda pessoa que penetrar nos quartéis para incitar os soldados a
demonstrações armadas deve ser imediatamente presa e levada à presença do
segundo comandante da praça militar.
"4. Qualquer manifestação armada e qualquer tumulto devem ser
energicamente reprimidos.
"5. A guarnição deve auxiliar os comissários, impedindo as revistas
domiciliares não autorizadas, ou as prisões que não forem ordenadas.
"6. As unidades militares devem comunicar, imediatamente, às
autoridades do Estado-Maior de Petrogrado todos os acontecimentos
anormais verificados nas zonas respectivas.
"Convido todos os comitês e organizações do Exército a cooperarem
com os seus chefes no cumprimento dessa missão."
No Conselho da República, Kerenski declarou que estava a par de todos
os preparativos da insurreição. Disse, também, que dispunha de forças
suficientes para impedir e combater toda e qualquer manifestação. Acusou o
Nóvaia Russ e o Rabótchi Put de estarem participando das atividades
subversivas dos bolcheviques. "Mas, como há absoluta liberdade de
imprensa", acrescentou, "o governo não pode lutar contra as mentiras
impressas*."
* Essa declaração era falsa. O Governo Provisório, em julho, proibira a circulação de
jornais bolcheviques, e agora, novamente, preparava-se para fazer a mesma coisa. (N. do A.)
Kerenski declarou, ainda, que "esses dois jornais representavam dois
aspectos da mesma propaganda, cujo objetivo final era a contra-revolução,
tão ardentemente desejada pelas forças reacionárias". "Eu estou perdido; não
importa o que possa acontecer; assim mesmo tenho a audácia de dizer que
não consigo compreender o inacreditável estado de provocação que os
bolcheviques criaram na cidade."
A 2 de novembro, só tinham chegado onze delegados para o Congresso
dos Sovietes. Mas, no dia seguinte, eles já eram mais de cem. No dia 4, o seu
número elevou-se a cento e setenta e cinco, dentre os quais cento e três
bolcheviques. Para o quorum, era necessária a presença de quatrocentos
delegados. E só faltavam quatro dias para a abertura do congresso.
Eu passava os dias no Smólni, onde, entretanto, não era fácil entrar.
Precisava primeiro atravessar duas fileiras de sentinelas postadas do lado de
fora da grade do jardim. Em seguida, abria -se caminho por uma muralha de
pessoas, que também desejavam entrar e que, de quatro em quatro, após
responder às perguntas de praxe sobre identidade e ocupação, recebiam um
cartão especial dando direito à entrada. Esse cartão e as formalidades para o
ingresso eram constantemente modificados, a fim de evitar os espiões, que
sempre procuravam insinuar-se usando diversas maneiras habilidosas.
Um dia, quando chegava à porta de entrada, vi Trótski e sua mulher
detidos por um soldado. Trótski remexeu em todos os bolsos, mas não
encontrou o cartão de ingresso.
— Não tem importância — disse, afinal, dirigindo-se ao soldado. —
Você naturalmente me conhece. Sou Trótski.
— Sem o cartão você não entra — respondeu-lhe o soldado. — Seu
nome não me interessa.
— Mas sou o presidente do Soviete de Petrogrado.
— Se você de fato é pessoa tão importante — replicou o soldado —,
deve trazer consigo um papel qualquer, provando sua qualidade.
Trótski não teve outro remédio senão ficar calmo:
— Leve-me à presença do comandante — disse.
O soldado hesitou um momento, murmurando entre dentes que não se
podia estar incomodando o comandante por qualquer motivo. Afinal,
chamou o chefe da guarda. Trótski explicou a situação.
— Sou Trótski — disse, novamente.
— Trótski. Este nome não me é estranho — respondeu o chefe da
guarda, cocando a cabeça e procurando lembrar-se. — Ah, sim!... Já sei
quem é você. Pode entrar, camarada.
Encontrei-me no corredor com Karakan, membro do Comitê Central
bolchevique. Explicou-me como seria o novo governo :
— Uma organização flexível, obedecendo à vontade popular, como
acontece nos sovietes, permitindo a livre expansão das forças locais.
Atualmente, o Governo Provisório tolhe a ação das vontades democráticas
locais, que estão na mesma situação que sob o regime czarista. Na nova
sociedade, toda a iniciativa virá de baixo, das massas. A forma de governo
será decalcada na organização do Partido Social-Democrata russo. O novo
Tsik será responsável perante as constantes assembléias dos congressos panrussos
dos sovietes. Terá, desse modo, papel semelhante ao Parlamento. Em
cada ministério, em lugar do ministro, haverá um comitê diretamente
responsável perante os sovietes.
A 30 de outubro, procurei Trótski, que marcara encontro comigo numa
pequena sala do Smólni. Trótski, sentado numa cadeira comum, diante da
mesa vazia, no centro da sala, falou durante mais de uma hora, rapidamente
e em tom firme. Quase não foi preciso dirigir-lhe perguntas. Eis, em síntese,
o que me disse:
— O Governo Provisório está reduzido à impotência. Na realidade, é a
burguesia que está no poder. Procuram ocultar esse fato por meio de uma
caricatura de coalizão com os partidos que desejam prolongar a guerra até o
fim. Os camponeses, cansados de esperar pela terra que lhes prometeram,
rebelaram-se. Em todo o país, os trabalhadores estão descontentes. A
burguesia não está ainda senhora de todo o poder. Só poderá adquiri-lo
totalmente por meio da guerra civil. O método de Kornilov é o único capaz
de dar todo o poder à burguesia. Mas não tem mais forças. O Exército está
conosco. Os conciliadores e pacifistas, isto é, os socialistas revolucionários e
os mencheviques, já perderam a autoridade, porque a luta entre camponeses
e grandes senhores de terras, entre operários e patrões, entre soldados e
oficiais, torna-se extremamente feroz, mais irreconciliá vel do que nunca. Só
pela ação conjunta e organizada das massas populares, só através da vitória
da ditadura do proletariado, a revolução poderá realizar sua obra. Somente
desse modo é que o povo poderá salvar-se. Os sovietes são a mais perfeita
forma de representação popular. Encarnam a experiência revolucionária, as
idéias e os objetivos da revolução. Os sovietes são a espinha dorsal da
revolução, porque se apóiam nos operários das fábricas, nos soldados dos
quartéis e nos trabalhadores dos campos. Tentaram criar um poder sem
sovietes. Não foi possível. Nos corredores do Conselho da República Russa
combinam-se, a todo instante, os mais variados planos contrarevolucionários.
O Partido Cadete é o representante legítimo da contrarevolução
militante. Os sovietes, ao contrário, encarnam a causa do povo.
Entre os cadetes e os sovietes não há grupos de grande importância. Cest la
lutte finale. A burguesia contra-revolucionária concentra todas as suas forças
e espera a ocasião oportuna para nos atacar. Mas nossa resposta será
decisiva. Completaremos a obra que em março foi apenas começada e que
progrediu bastante durante a aventura de Kornilov.
Examinou, então, a política exterior do novo governo: — Nosso primeiro
ato será propor o armistício imediato com todos os exércitos beligerantes e
realizar uma conferência na qual os povos irão discutir as bases da paz
democrática. A paz firmada será tanto mais democrática quanto mais amplo
for o desenvolvimento da iniciativa revolucionária na Europa. A instauração
do governo soviético na Rússia contribuirá, enorme-mente, para a
pacificação da Europa, porque o governo soviético dirigir-se-á
imediatamente a todos os povos, sem intermediários, por cima dos seus
governos, propondo-lhes o armistício. Depois da guerra, a Rússia
revolucionária lutará para que essa paz seja uma paz sem nenhuma
indenização, pelo direito dos povos de disporem de si mesmos e pela criação
da República Federativa da Europa. No fim da guerra, vejo uma Europa
reconstruída, não pelos diplomatas, mas pelo proletariado. República
Federativa da Europa, eis a fórmula que convém. A autonomia nacional não
será suficiente. A evolução econômica exige a abolição das fronteiras
nacionais. Se a Europa permanecer dividida em grupos nacionalistas, o
imperialismo continuará sua obra. Só a República Federativa da Europa
poderá dar paz ao mundo. Mas esses objetivos somente poderão ser
alcançados pela ação, pela iniciativa direta das massas da Europa.
Todo mundo acreditava que, de um momento para outro, os
bolcheviques invadiriam as ruas e começariam a atirar sobre os indivíduos
de colarinhos engomados... Mas, na realidade, a insurreição começou de
maneira natural e à luz do dia.
O Governo Provisório resolveu concentrar em Petrogrado algumas tropas
que combatiam nas trincheiras.
Havia na capital uma guarnição de sessenta mil homens, que já
desempenhara importante papel no decorrer dos acontecimentos
revolucionários. Foram os sessenta mil homens que fizeram a balança pender
para o lado da revolução, nas transcendentais jornadas de março. Depois,
criaram seus sovietes e, quando Kornilov estava às portas de Petrogrado,
eles, de novo, lutaram pela revolução. Agora, quase todos eram
bolcheviques.
Quando o Governo Provisório manifestou desejo de evacuar Petrogrado,
a guarnição lhe respondeu:
— Se o governo não é capaz de defender a cidade, deve cuidar da paz, e,
se não é capaz de obter a paz, deve retirar-se e deixar o povo constituir seu
próprio governo, que fará as duas coisas, isto é, defenderá Petrogrado e
conseguirá a paz.
Era evidente, pois, que qualquer tentativa sediciosa dependia da atitude
da guarnição de Petrogrado. O governo desejava substituir os regimentos da
guarnição por tropas de sua confiança: os cossacos e os Batalhões da Morte.
Os comitês do Exército, os socialistas moderados e o Tsik, que apoiavam
essa iniciativa, começaram grande agitação na frente de combate e em
Petrogrado, atacando violentamente a guarnição da cidade, que estava há
oito meses tranqüilamente instalada nos quartéis, enquanto seus irmãos
sofriam e morriam nas trincheiras.
Sem dúvida, o argumento de que se serviam os que queriam remover a
guarnição de Petrogrado tinha um fundo verdadeiro. Os regimentos da
guarnição não estavam lá muito dispostos a trocar o relativo conforto dos
quartéis por uma campanha de inverno. Mas não era somente por isso que
não queriam partir. O Soviete de Petrogrado compreendia bem qual a
intenção do governo. E, além disso, chegavam a todo momento centenas de
delegados das frentes de combate, eleitos pelos soldados, que diziam: —
Sim. Precisamos de reforços, é claro. Mas, para nós, o mais importante é ter
a certeza de que Petrogrado e a revolução estão bem protegidas. Guardem a
retaguarda, camaradas! Nós cuidaremos da frente!
No dia 25 de outubro, o Comitê Central dos Sovietes discutiu, a portas
fechadas, a formação de um comitê militar especial para resolver a questão.
No dia seguinte, a seção de soldados do Soviete de Petrogrado nomeou um
comitê que, imediatamente, declarou o boicote da imprensa burguesa e
censurou vivamente o Tsik por sua posição diante do Congresso dos
Sovietes. No dia 28, na sessão pública do Soviete de Petrogrado, Trótski
propôs que se sancionasse a formação do Comitê Militar Revolucionário:
— Precisamos — disse — criar nossa organização especial, para ir ao
combate e para morrer, se for preciso.
Resolveu-se enviar duas delegações à frente: uma do soviete e outra da
guarnição, para conferenciar com os comitês de soldados e com o Estado-
Maior Geral.
Os delegados foram recebidos em Pskov pelo General Tcheremissov,
comandante das forças em operação na frente norte. Como resposta, o
general disse que já havia dado ordens para que a guarnição de Petrogrado
seguisse imediatamente para a frente. Acrescentou, ainda, que nada mais
tinha a dizer sobre o assunto e que não permitia que os delegados da
guarnição saíssem de Petrogrado.
Uma deputação da seção de soldados do Soviete de Petrogrado pediu que
um seu representante fosse admitido no Estado-Maior do distrito de
Petrogrado. Mas a solicitação não foi atendida. O Soviete de Petrogrado
pediu ainda que não se expedisse nenhuma ordem sem, antes, submetê-la à
aprovação da seção de soldados do soviete. Também não foi atendido. Os
delegados receberam esta resposta brutal: — Só reconhecemos o Tsik. Não
temos nada com vocês. E, se transgredirem as leis, serão presos.
No dia 30, numa reunião de representantes de todos os regimentos de
Petrogrado, foi aprovada a seguinte resolução:
"A guarnição de Petrogrado não reconhece mais o Governo Provisório.
O Soviete de Petrogrado é o nosso governo. Só obedeceremos às suas ordens
e por intermédio do Comitê Militar Revolucionário".
As unidades militares locais receberam ordens para esperar instruções da
seção de soldados do Soviete de Petrogrado.
No dia 31, o Tsik convocou uma grande reunião, da qual participaram
numerosos oficiais. Foi decidido formar-se um comitê para cooperar com o
Estado-Maior, representado por delegados em todos os bairros da cidade.
Realizou-se no dia 3 de novembro, no Smólni, uma grande assembléia de
soldados, resolvendo:
"A guarnição de Petrogrado saúda o Comitê Militar Revolucionário e
promete prestar-lhe integral apoio em todos os atos, a fim de se unir,
intimamente, na frente e na retaguarda, para a defesa dos interesses da
revolução.
"A guarnição declara, ainda, que, com o proletariado revolucionário, está
disposta a manter a ordem em Petrogrado. Todas as tentativas de provocação
dos partidários de Kornilov ou da burguesia serão impiedosamente
esmagadas."
O Comitê Militar Revolucionário, consciente agora do seu poder,
intimou energicamente o Estado-Maior de Petrogrado a se submeter.
Ordenou que nenhuma tipografia imprimisse qualquer manifesto sem ordem
do comitê. Comissários armados visitaram o arsenal de Kronverk, onde
chegaram a tempo de impedir que um carregamento de dez mil baionetas
fosse enviado para Novotcherkask, quartel-general de Kaledin.
Aterrorizado, o governo prometeu imunidade ao comitê, sob a condição
de que se dissolvesse. Mas já era tarde. No dia 5 de novembro, à noite, o
próprio Kerenski mandou Malevski convidar o Soviete de Petrogrado a
fazer-se representar no Estado-Maior. O Comitê Militar Revolucionário
aceitou. Uma hora depois, o General Manikovski, em funções de ministro da
Guerra, enviou uma contra-ordem, retirando o convite...
Na terça-feira, dia 6 de novembro, pela manhã , a cidade viu, com
assombro, afixada por toda a parte e profusamente distribuída pelas ruas,
uma proclamação assinada pelo Comitê Militar Revolucionário do Soviete
dos Deputados Operários e Soldados de Petrogrado. Ei-la:
"AOS HABITANTES DE PETROGRADO!
"Cidadãos!
"De novo, a contra-revolução levanta criminosamente a cabeça. Os
partidários de Kornilov estão mobilizando forças com o intuito de
exterminar o Congresso Pan-Russo dos Sovietes e de dissolver a Assembléia
Constituinte. Ao mesmo tempo, os pogromistas* vão tentar provavelmente
arrastar o povo a sangrentos motins e desordens. O Soviete de Petrogrado
dos Deputados Operários e Camponeses compromete-se a manter a ordem
revolucionária na cidade e a reprimir todas as intentonas contrarevolucionárias
e pogromistas.
* Adeptos dos pogroms — massacres de judeus. (N. do E.)
"A guarnição de Petrogrado não tolerará violências nem desordens. A
população fica autorizada a deter os apaches e os agitadores dos 'Cem
Negros' e a conduzi-los presos até o comissariado do soviete, no quartel mais
próximo. Serão fuzilados imediatamente todos os que tentarem provocar
distúrbios nas ruas de Petrogrado por meio de pilhagens e revoltas.
"Cidadãos! Confiamos na sua calma e na sua serenidade. A causa da
ordem e da revolução está em suas mãos, e, portanto, está em boas mãos."
A proclamação era assinada pelos regimentos que tinham comissários
representando o Comitê Militar Revolucionário.
No dia 3, os dirigentes bolcheviques realizaram, à portas fechadas, outra
reunião de importância histórica.
Informado por Zalkind, eu esperava do lado de fora. Volodarski veio ao
meu encontro, e contou-me o que havia acontecido. Lênin assim havia dito:
—No dia 6 de novembro será cedo demais. Precisamos ter uma base em toda
a Rússia para nos lançarmos à insurreição. No dia 6, os delegados ao
congresso, na sua maioria, ainda não estarão aqui, ainda não terão chegado.
Por outro lado, no dia 8, será tarde demais. Isso porque o congresso já estará
organizado e é muito difícil fazer uma grande assembléia popular se decidir,
de uma hora para outra, a entrar numa ação decisiva. Devemos, portanto, dar
o golpe no dia 7, dia em que o congresso se reúne, de modo a podermos
dizer: "Eis o poder em nossas mãos! Que irão vocês fazer com ele?"
Enquanto isso, numa dás salas do andar superior, trabalhava uma
personagem de rosto pequeno e grande cabeleira, antigo oficial do exército
do czar, que se tornara revolucionário e que fora obrigado a emigrar, noutros
tempos. Era Antónov Ovseinko, matemático e jogador de xadrez. Estava
ocupadíssimo, traçando os planos para a tomada da capital.
O governo também se preparava. Enviou, secretamente, ordens
chamando alguns dos mais leais regimentos de longínquas regiões a
Petrogrado. A artilharia dos junkers foi instalada no Palácio de Inverno. As
ruas, pela primeira vez desde as jornadas de julho, passaram a ser
patrulhadas pelos cossacos. Polkóvnikov lançava os cossacos nas ruas, com
ordens de reprimir "com mão de ferro" qualquer insubordinação.
Quíchkin, ministro da Instrução Pública, o mais odiado do gabinete, foi
nomeado comissário especial da Segurança e da Ordem de Petrogrado.
Como ajudantes, escolheu dois indivíduos tão impopulares como ele:
Rutenberg e Paltchinski. Petrogrado, Kronstadt e a Finlândia foram
declaradas em estado de sítio.
O jornal burguês Nóvoie Vriêmia fez o seguinte comentário irônico:
"Qual é o estado de sítio? O governo não constitui mais um centro de
poder. Não tem moral e não possui a organização necessária para usar a
força... Nas circunstâncias mais favoráveis, poderá apenas parlamentar com
quem estiver disposto. Sua autoridade não vai além disso..."
Segunda-feira, dia 5, pela manhã, dirigi-me ao Palácio Marinski para ver
o que se passava no Conselho da República. Agitado debate em torno da
política externa de Terestchenko. Ecos da questão de Burtzev-Verkhóvski.
Todos os diplomatas estavam presentes, com exceção apenas do embaixador
da Itália, que talvez guardasse luto em virtude do desastre de Carso. Quando
cheguei, o socialista revolucionário Karelin lia em voz alta um editorial do
Times, de Londres, que dizia: "Contra o bolchevismo só há um remédio: as
balas". E, voltando-se para os cadetes, gritou: —- Esta é também a opinião
de vocês.
Resposta na direita: — Muito bem! Muito bem!
— Sim, sei muito bem que todos os cadetes pensam desse modo. Mas
ninguém tem coragem para agir.
Skobeliev, que poderia muito bem ser o ídolo de um público de matinês,
com sua cabeleira ondulada e a barba loira, timidamente tentou defender o
nacaz do soviete. Falou em seguida Terestchenko, acolhido pelo grito de
"Peça demissão! Peça demissão!", da bancada da esquerda. Desejava que a
delegação do governo e do Tsik, de partida para Paris, pensasse do mesmo
modo, sem divergências, isto é, como ele. Referiu-se, depois, à restauração
da disciplina no Exército, à continuação da guerra, até à vitória... Grande
tumulto. Diante da tenaz obstrução da esquerda, o Conselho da República
passou simplesmente à ordem-do-dia...
Os bancos dos bolcheviques estavam vazios. Tinham saído, levando
consigo a vida do conselho. Quando descia as escadas, tive a impressão de
que, apesar dos debates encarniçados, nenhuma voz real do tempestuoso
mundo exterior podia penetrar naquela sala fria e elevada. E pensei comigo
que o Governo Provisório ia de novo naufragar nos mesmos escolhos de
"guerra e paz", que haviam feito soçobrar o Ministério Miliukov. O porteiro,
ajudando-me a vestir o sobretudo, murmurava:
— Não sei o que vai ser desta pobre Rússia. Todos esses mencheviques e
outros iques!... Essa Ucrânia, essa Finlâ ndia, esses imperialistas alemães,
esses imperialistas ingleses!... Tenho quarenta e cinco anos, mas nunca ouvi
tanta conversa fiada como aqui...
No corredor, encontrei-me com o Professor Chátski, personagem com
cara de raposa, trajando elegante casaca. Era membro influente dos cadetes.
Perguntei-lhe qual a sua opinião sobre o golpe de força projetado pelos
bolcheviques.
— Bando de canalhas! Não terão coragem. E, se se atreverem, serão
liquidados num abrir e fechar de olhos. Se tal acontecer, ficaremos
contentes, porque os bolcheviques serão destroçados completamente e não
poderão tomar parte na Assembléia Constituinte. Veja: sou membro de uma
comissão que o governo nomeou para elaborar o projeto da Constituição.
Teremos uma Assembléia Legislativa com duas câmaras, como vocês, nos
Estados Unidos. Na Câmara, terão assento os representantes dos distritos. Na
Câmara Alta, ou Senado, só tomarão parte os representantes das profissões
liberais, dos ziemstvos, das cooperativas, dos sindicatos...
Saí. Fora, soprava um vento frio e úmido. A lama gelada atravessava-me
a sola dos sapatos. Duas companhias de junkers desfilavam pela Mórskaia,
rígidos nos seus capotes. Cantavam em coro, como era costume no tempo do
czar. Na primeira esquina, verifiquei que a milícia urbana estava montada.
Além disso, trazia revólveres e cartucheiras novas. Um pequeno grupo,
assombrado, contemplava a transformação. Na esquina da Avenida Niévski,
comprei o folheto de Lênin: "Poderão os bolcheviques conservar-se no
poder?" Paguei-o com uma estampilha das que estavam, na época, servindo
de dinheiro circulante.
Nas calçadas, fileiras de desertores vendiam cigarros e sementes de
girassol. Os bondes passavam apinhados de soldados e de civis. Na Avenida
Niévski, a multidão disputava os jornais, que acabavam de sair. Centenas de
pessoas amontoavam-se em frente às paredes, tentando decifrar inumeráveis
manifestos, apelos, proclamações, etc, assinados pelos partidos socialistas
moderados, pelo Tsik, pelos sovietes de camponeses, pelos comitês do
Exército, que, em todos os tons possíveis, aconselhavam, ameaçavam,
imploravam, avisavam, pediam aos soldados e operários que se mantivessem
calmos e apoiassem o governo.
Um carro blindado ia e vinha, tocando a sereia. Em cada esquina, em
cada espaço livre, viam-se grandes grupos de soldados e estudantes
discutindo. Anoitecia rapidamente. As luzes iam-se acendendo aos poucos. E
a onda humana agitava-se sempre, incansavelmente. Petrogrado tinha o
aspecto característico das horas que precedem as grandes tempestades.
A cidade estava nervosa. Sobressaltava-se ao mínimo ruído. Não se via,
entretanto, o menor vestígio dos bolcheviques. Os soldados continuavam nos
quartéis, os operários, nas fábricas.
Entrei num cinema, nos arredores da Catedral de Kazan. Na tela,
projetavam um filme italiano, com as inevitáveis cenas de amor, sangue e
intriga. Nas primeiras filas, alguns soldados e marinheiros olhavam
fixamente para a tela, com expressão infantil, sem conseguir compreender a
razão de tanta balbúrdia, de tanta violência e de tantos assassínios.
Voltei ao Smólni. Na sala número 10, do último andar, estava reunido
em sessão permanente o Comitê Militar Revolucionário, sob a presidência de
um rapazola de dezoito anos chamado Lazímir. Lazímir deteve-se um
momento, timidamente, para apertar-me a mão.
— A Fortaleza de Pedro e Paulo acaba de cair em nossas mãos — disseme,
com um sorriso de satisfação. — Acabamos de receber o comunicado de
um regimento que o governo mandou chamar a Petrogrado. Os soldados,
desconfiando de qualquer coisa, pararam o trem em Gatchina e nos enviaram
uma delegação. "Que é que há?", mandaram perguntar. "Que têm vocês para
nos dizer? Nós somos pela revolução: todo o poder aos sovietes. E vocês?"
O Comitê Militar Revolucionário respondeu ao regimento sublevado nos
seguintes termos: "Irmãos! Recebam nossas saudações, em nome da
revolução. Devem ficar aí até receberem instruções".
Lazímir informou-me, ainda, que todas as linhas telefônicas estavam
cortadas, mas que as comunicações com as fábricas e os quartéis vinham
sendo feitas por meio de telefones de campanha.
Verdadeira avalancha de estafetas e de emissários entrava e saía a todo
instante. Na porta, havia uma dúzia de voluntários dispostos a partir para
levar mensagens a qualquer bairro distante. Um deles, que parecia cigano,
fardado de tenente, disse-me em francês:
— Está tudo pronto. Só falta apertar o botão.
Vi passar Podvóiski, magro e barbudo, cujo cérebro concebera o plano
estratégico da insurreição; depois, passou Antónov, com barba de vários
dias, o colarinho da camisa sujo, cabeceando de sono; a seguir, Krilenko,
gorducho, com a grande cara de soldado sempre a sorrir, sempre
gesticulando violentamente, sempre despejando uma torrente de palavras;
veio, então, Dibenko, marinheiro gigante, barbudo, de fisionomia calma.
Tais eram os homens do presente e do futuro.
No andar térreo, na sala dos comitês de fábrica, Seratov assinava ordens,
autorizando a direção do arsenal a entregar a cada fábrica cento e cinqüenta
fuzis.
Encontrei na sala alguns dirigentes bolcheviques de segunda categoria.
Um deles, de semblante pálido, acariciando o revólver, disse:
— Estamos numa situação tal, num momento tão decisivo, que, ou
exterminamos nossos adversários, ou eles nos exterminam.
O Soviete de Petrogrado mantinha-se em sessão contínua dia e noite.
Justamente no momento em que entrei na sala, Trótski terminava um
discurso:
— Indagam se temos intenção de fazer uma demonstração de força. Vou
responder categoricamente. O Soviete de Petrogrado compreende que, afinal,
chegou o momento de todo o poder passar às mãos dos sovietes. Não
sabemos se, para isso, haverá ou não necessidade de recorrer a uma
demonstração armada. Depende dos que se querem opor ao Congresso Pan-
Russo. Achamos que o atual governo está à espera de uma vassourada
histórica para deixar o campo livre a outro verdadeiramente popular. Mas,
mesmo agora, procuramos evitar conflito. Queremos apenas que o
Congresso Pan-Russo dos Sovietes tome todo o poder e toda a autoridade em
nome da liberdade organizada do povo. Se o governo, porém, tentar
aproveitar-se das poucas horas de vida que lhe restam — vinte e quatro,
quarenta e oito ou setenta e duas horas — para atacar-nos, nós, então,
responderemos com energia e o esmagaremos a ferro e a fogo.
A notícia de que os socialistas revolucionários da esquerda tinham
resolvido enviar delegados ao Comitê Militar Revolucionário foi recebida
com grande satisfação.
Quando saí do Smólni, às três da madrugada, vi que dois canhões de tiro
rápido haviam sido instalados nos dois lados da porta e que fortes patrulhas
de soldados guarneciam a entrada e os arredores.
Bill Chatov chegava nesse momento, subindo as escadas de quatro em
quatro degraus, a gritar:
— Muito bem! Tudo vai às mil maravilhas! Kerenski mandou os junkers
ocuparem nossos jornais, o Soldat e o Rabótchi Puí. Mas nossas tropas
destruíram todos os planos do governo. Agora, somos nós que estamos
ocupando os jornais burgueses.
Entusiasmado, deu-me uma palmada no ombro e entrou correndo no
Smólni.
No dia 6, pela manhã, precisei falar ao censor, que estava instalado no
Ministério das Relações Exteriores. Nas paredes, abundavam apelos
históricos, dirigidos ao povo, convidando-o a manter-se calmo.
Polkóvnikov publicava decretos e ordens deste gênero, uns atrás de
outros:
"Ordeno e mando que todas as unidades e destacamentos continuem nos
quartéis, esperando as instruções do Estado-Maior Militar do Distrito. Todo
oficial que se locomover sem estar autorizado pelas autoridades superiores
será sumariamente julgado pelo crime de insubordinação por um conselho de
guerra. Proíbo terminantemente que as tropas obedeçam às ordens
procedentes das diferentes organizações".
A imprensa matutina anunciou que o governo suspendera os jornais
Novata Russ, Jivóie Slóvo, Rabótchi Pút e Soldai. Dizia ainda que o governo
havia decretado a prisão dos dirigentes do Soviete de Petrogrado e dos
membros do Comitê Militar Revolucionário.
Quando atravessei a Praça do Palácio, várias baterias de artilharia dos
junkers passavam a trote pelo Arco Vermelho e colocavam-se diante do
palácio. No grande edifício vermelho do Estado-Maior, havia um movimento
fora do comum. À porta, vários carros blindados estavam postados em fila.
A todo momento, chegavam e partiam automóveis conduzindo oficiais.
O censor mostrava-se quase tão excitado quanto um garoto num circo.
Disse-me que Kerenski acabava de pedir demissão do Conselho da
República. Saí correndo para o Palácio Marinski. Alcancei ainda o final do
famoso discurso de Kerenski, mistura de paixão e de incoerência no qual
procurava justificar-se e acusar os inimigos:
— Vou citar aqui um dos mais característicos tópicos de uma série de
artigos publicados no Rabótchi Put por Uliánov Lênin, criminoso de Estado,
que se esconde, mas que, mais dia, menos dia, cairá em nossas mãos. Este
bandido, nos manifestos intitulados "Cartas aos camaradas", convida o
proletariado e a guarnição de Petrogrado a repetir a experiência de 16 e 18
de julho, e insiste na necessidade imediata da insurreição. Além;, disso,
outros chefes bolcheviques, nos comícios em que tomaram parte, chamaram
também as massas para a insurreição armada. É preciso destacar,
particularmente, a atividade do atual presidente do Soviete de Petrogrado,
Bronstein-Trótski. É preciso dizer, ainda, que todos os artigos do Rabótchi
Put e do Soldai, tanto pelo estilo como pelas expressões utilizadas, são
absolutamente semelhantes aos do Nóvaia Russ. No momento, temos de
fazer frente não a um movimento de tal ou qual partido, mas à explosão da
ignorância política e dos instintos criminosos de parte da população. Isto é,
temos de lutar contra uma espécie de organização, cuja finalidade é
provocar, na Rússia, custe o que custar, uma inconsciente revolta para a
destruição e a pilhagem. Sim, na Rússia, porque, no estado de espírito atual
das massas, qualquer movimento em Petrogrado será acompanhado,
inevitavelmente, das mais terríveis matanças. E o nome da Rússia ficará para
sempre coberto com um manto de ódio. Conforme o próprio Uliánov Lênin
confessa, a atitude da extrema esquerda da social-democracia internacional
lhe é favorável.
Em seguida, Kerenski leu o seguinte trecho de um artigo de Lênin:
"É preciso não esquecer que os camaradas alemães só têm Liebknecht.
Não possuem jornais, nem liberdade de reunião, nem sovietes. Têm contra si
a brutal hostilidade de todas as classes sociais. Mas, apesar disso, os
camaradas alemães trabalham ativamente. Já organizaram uma sublevação
na Marinha. Quanto a nós, possuímos dezenas de jornais, podemos reunirnos
livremente, e a maioria dos sovietes é nossa. Somos os proletários
internacionalistas que estão, atualmente, na situação mais favorável no
mundo inteiro. Nessas condições, podemos deixar de apoiar os
revolucionários alemães e suas organizações, que lutam pela insurreição?..."
Kerenski prosseguiu:
— Implicitamente, os fomentadores da rebelião reconhecem que
atualmente existem na Rússia as condições mais favoráveis para a ação livre
de um partido político, sob um governo provisório, à frente do qual se
encontra um usurpador, um homem vendido à burguesia, o Presidente
Kerenski... Os promotores da insurreição não auxiliam os proletários
alemães, mas as classes que governam a Alemanha. Abrem a frente russa ao
punho de ferro de Guilherme II e da sua corja. Ao Governo Provisório não
interessa verificar se os bolcheviques agem como agentes de Guilherme II de
maneira consciente ou inconsciente. Do alto desta tribuna, compreendendo
toda a minha responsabilidade, qualifico a ação do Partido Bolchevique
como uma traição à pátria, como uma traição à Rússia. Adoto o ponto de
vista da direita e proponho, com ela, que se instaure imediatamente um
inquérito sumário e se ordenem urgentemente as prisões necessárias. —
(Tumulto na extrema esquerda.) — Ouçam! — gritou com voz forte. — No
momento em que o Estado está em perigo em virtude de uma traição
premeditada ou não, o Governo Provisório, e eu em primeiro lugar,
preferimos a morte a comprometer a vida, a honra e a independência da
Rússia!
Nesse momento, um papel foi entregue a Kerenski, que continuou:
— Acabo de receber a proclamação que eles estão distribuindo aos
regimentos. Eis o seu conteúdo:
"O Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado está
ameaçado. Damos ordens imediatas aos regimentos para se mobilizarem em
pé de guerra e esperar novas ordens. Todo atraso na execução dessas ordens
será considerado um ato de traição à revolução.
"O Comitê Revolucionário Militar;
pelo Presidente Podvóiski.
O Secretário Antónov."
Kerenski prosseguiu:
— Na realidade, é um atentado para sublevar o populacho contra a
ordem estabelecida, para violar a Constituição e facilitar a entrada das tropas
de choque da infantaria do cáiser... "Digo populacho, intencionalmente,
porque há a democracia consciente e seus comitês centrais, e todas as
organizações do Exército. Tudo o que a Rússia livre glorifica, o bom senso,
a honra e a consciência da grande democracia russa protestam contra este
estado de coisas...
"Não vim aqui me lamentar", continuou Kerenski, "mas dizer com
energia que o Governo Provisório, que neste momento defende a nova
liberdade — e a liberdade do novo Estado russo, a quem a história destina
um futuro brilhante —, terá por certo o apoio de todos os cidadãos da nossa
pátria, com exceção unicamente daqueles que não têm coragem de encarar a
verdade frente a frente. O Governo Provisório nunca violou a liberdade e o
direito que os cidadãos têm de adotar esta ou aquela convicção política. Mas,
agora, o Governo Provisório declara: É preciso exterminar imediatamente
todos os grupos políticos e partidos que ousarem levantar-se, que ousarem
erguer as mãos contra a livre vontade do povo russo, que tentarem romper
nossa resistência para dar passagem aos alemães. A população de Petrogrado
vai compreender que ainda há na Rússia um poder resoluto, firme, disposto a
tudo para salvar a pátria ameaçada. É possível que, na última hora, o bom
senso, a consciência e a honra se avivem nos corações daqueles em que não
se extinguiram..."
Na sala, durante este discurso, por várias vezes se levantaram clamores
ensurdecedores. Quando o presidente do Conselho desceu da tribuna, pálido,
coberto de suor, e saiu entre a escolta de oficiais, os oradores da esquerda
começaram a atacar a direita no meio dos protestos, da indignação e do furor
geral da assistência. Os próprios socialistas revolucionários, por intermédio
de Gotz, fizeram coro com a direita:
— Os bolcheviques estão fazendo uma política demagógica e criminosa.
Exploram o descontentamento do populacho. Mas é preciso reconhecer,
abertamente, que algumas reivindicações populares não foram até agora
satisfeitas. Os problemas da paz, da terra, da democratização do Exército
foram tratados de maneira tal pelo governo, que nenhum soldado, nenhum
camponês, nenhum operário acredita que o governo esteja seriamente
disposto a resolvê-los. Nós, mencheviques, não queremos provocar uma
crise de gabinete. Estamos dispostos a defender o governo com todas as
nossas forças, até a última gota do nosso sangue. Mas é necessário que o
Governo Provisório faça declarações precisas sobre os tão palpitantes
problemas, que o povo há tanto tempo espera...
Em seguida, Martov declarou violentamente: — As palavras do
presidente do Conselho são inadmissíveis. Ele empregou o termo
"populacho", referindo-se a uma importante parte do proletariado e do
Exército. Mesmo que o movimento presente siga orientação falsa, tais
palavras significam verdadeira incitação à guerra civil!
A ordem-do-dia proposta pela esquerda foi posta em votação. Na prática,
equivalia a um voto de desconfiança:
"I. A demonstração armada, que vem sendo preparada há alguns dias,
visando a um golpe de Estado, ameaça provocar a guerra civil. Cria um
estado de coisas favorável aos pogroms e à mobilização das forças contrarevolucionárias
como os Cem Negros. Ademais, abre perspectivas para a
impossibilidade de reunir a Assembléia Constituinte, para uma nova
catástrofe militar, para o fracasso da revolução, para a paralisação da vida
econômica e o desmoronamento total do país.
"II. A agitação nesse sentido tem obtido êxitos, não só em virtude das
condições objetivas do estado de guerra em que nos encontramos, como,
principalmente, em virtude do atraso verificado na solução de alguns
problemas urgentes. É, portanto, necessário, antes de mais nada, entregar a
terra aos comitês agrários e adotar uma política externa enérgica, capaz de
obrigar os Aliados a ouvir nossas propostas de paz, proclamar as suas e
iniciar as negociações.
"III. É necessário tomar providências imediatas, a fim de interromper a
propagação da onda de anarquia e de agitação pogromista. A criação
imediata, em Petrogrado, de um comitê de segurança pública, formado por
delegados da municipalidade e dos órgãos da democracia revolucionária,
atuando conjuntamente com o Governo Provisório, torna-se uma providência
inadiável."
É interessante assinalar que os mencheviques e os socialistas
revolucionários aprovaram essa resolução por unanimidade. Kerenski
chamou, então, Avksentiev ao Palácio de Inverno para pedir-lhe explicações.
Se a resolução aprovada correspondia a um voto de desconfiança no
governo, estava disposto a convidar Avksentiev a formar novo gabinete.
Dan, Gotz e Avksentiev, chefes dos "conciliadores", tentaram uma última
"conciliação". Disseram que a resolução de modo algum significava uma
crítica ao governo.
Na esquina da Mórskaia e da Niévski, destacamentos de soldados, de
baioneta calada, faziam parar todos os automóveis particulares, obrigavam
os passageiros a descer e enviavam os carros para o Palácio de Inverno.
Enorme multidão acompanhava curiosamente os movimentos dos soldados.
Ninguém sabia se agiam em nome do governo ou em nome do Comitê
Militar Revolucionário. Nas imediações da Catedral de Kazan, acontecia a
mesma coisa: todos os carros eram detidos pelos soldados, e faziam meia -
volta. Cinco ou seis marinheiros, armados de fuzis, riam, cheios de coragem.
Nas fitas de seus gorros liam-se os nomes Avrora (Aurora) e Zariá Svobódi
(Alvorada da Liberdade), os dois encouraçados bolcheviques do Báltico.
"Kronstadt já está a caminho", disse um deles. Era o mesmo que dizer-se, em
1872, nas ruas de Paris: "Os marselheses já estão a caminho". Porque, em
Kronstadt, havia vinte e cinco mil marinheiros, bolcheviques até a medula,
que não temiam a morte...
Acabava de aparecer o Rabótchi i Soldai. Uma proclamação monumental
ocupava a primeira página:
"SOLDADOS! OPERÁRIOS! CIDADÃOS!
"Os inimigos do povo passaram esta noite à ofensiva.
"Os kornilovistas do Estado-Maior estão fazendo vir dos subúrbios os
junkers e os batalhões de voluntários. Os junkers de Oranienbaum e os
voluntários de Tsárskoie -Tseló recusaram-se a marchar. Prepara-se um golpe
de alta traição contra o Soviete de Petrogrado. Trama-se uma conspiração
contra-revolucionária contra o Congresso Pan-Russo dos Sovietes nas
vésperas da sua abertura, contra a Assembléia Constituinte e contra o povo.
"O Soviete de Petrogrado foi encarregado de defender a revolução. O
Comitê Militar Revolucionário incumbiu-se da missão de repelir o ataque
dos conspiradores. Todo o proletariado e toda a guarnição de Petrogrado
estão prontos para dar aos inimigos do povo a resposta que merecem.
"O Comitê Militar Revolucionário decreta: "I. Todos os comitês de
regimentos, companhias e unidades navais, bem como os comissários do
soviete e todas as organizações revolucionárias permanecerão de prontidão a
fim de receberem as informações concernentes aos propósitos e manejos dos
conspiradores.
"II. Nenhum soldado poderá abandonar sua unidade sem autorização do
comitê.
"III. Cada unidade militar deve enviar imediatamente dois delegados ao
Smólni, e cada soviete de distrito, cinco delegados.
"IV. Todos os membros do Soviete de Petrogrado e todos os delegados
ao Congresso Pan-Russo dos Sovietes são convocados, imediatamente, a
reunir-se num comício extraordinário no Smólni.
"A contra-revolução, criminosamente, levantou a cabeça.
"Um grande perigo ameaça aniquilar todas as conquistas e as esperanças
dos soldados e dos trabalhadores, mas as forças da revolução excedem de
muito as dos seus inimigos.
"A causa do povo acha-se em mãos fortes. Os conspiradores serão
aniquilados.
"Nada de vacilações nem de dúvidas!
"Firmeza, disciplina, tenacidade e coragem!
"Viva a revolução!
"O Comitê Militar Revolucionário."
O Soviete de Petrogrado estava reunido em sessão permanente no
Smólni, o coração da tormenta. Os delegados deitavam-se no chão para
repousar um pouco, pois caíam de sono. Em seguida, levantavam-se para
tomar parte nos debates. Trótski, Kamenev, Volodarski falavam seis, oito,
doze horas por dia...
Desci ao primeiro andar e dirigi-me à sala 18, onde os delegados
bolcheviques realizavam uma reunião partidária. Ouvi uma voz forte,
falando sem descanso. Mas a multidão, na minha frente, não me deixava ver
quem falava:
— Os "conciliadores" dizem que estamos isolados. É preciso não lhes
dar importância às palavras. Assim que começarmos as operações, não terão
outro remédio senão acompanhar-nos. Em caso contrário, as massas que
ainda os acompanham virão conosco e eles ficarão sozinhos.
Vi, nesse momento, que o orador agitava na mão uma folha de papel:
— Já nos acompanham — continuou. — Eis aqui uma Mensagem dos
socialistas revolucionários e dos mencheviques. Dizem que não concordam
com nossa ação. Mas, na hipótese de o governo nos atacar, não combaterão
contra a causa do proletariado.
Os ouvintes não podiam ocultar a alegria que experimentavam diante
dessas palavras. Ao cair da tarde, a grande sala de sessões ficou cheia de
soldados e de operários, formando imensa massa sombria da qual se
desprendiam nuvens de fumaça azul e se elevava um murmúrio profundo.
O antigo Tsik resolveu, finalmente, receber os delegados do novo
congresso. Isto significava não só a própria queda do Tsik como a derrocada
da ordem revolucionária por ele instaurada. Nessa sessão, entretanto, apenas
os membros do antigo Tsik tiveram direito a voto.
Só depois da meia -noite, Gotz abriu a sessão. Dan levantou-se em meio
de um silêncio impressionante, que me pareceu cheio de ameaças.
— As horas que vivemos — disse — adquiriram um significado bem
trágico. O inimigo está às portas de Petrogrado. As forças da democracia
estão se organizando para combatê-lo. Mas há também o perigo de um
derramamento de sangue na capital. E a fome ameaça destruir não só nosso
governo homogêneo, como a própria revolução. As massas estão debilitadas,
esgotadas. Já começam a afastar-se da senda revolucionária. Se os
bolcheviques, apesar de tudo, quiserem sublevar-se, pode-se dizer que a
revolução fracassou... — (Gritos: "É mentira!") — Os contrarevolucionários
estão aguardando a ação dos bolcheviques para iniciar a
matança. Se os bolcheviques derem um golpe de força, não haverá
Assembléia Constituinte. — (Gritos: "Mistificador! É uma vergonha!") — É
inteiramente inadmissível que, na zona de operações militares, a guarnição
de Petrogrado se recuse a executar as ordens do Estado-Maior e do Tsik, que
vocês mesmos elegeram. Conceder todo o poder aos sovietes? Será a morte!
Os bandidos e os ladrões só desejam isso para iniciar os incêndios e os
saques. Quando se lançam palavras de ordem dessa espécie: "Invadam as
casas! Apoderem-se das roupas e dos calçados da burguesia!" — (Tumulto,
gritos: "Ninguém lançou tais palavras de ordem! Mentiroso! Cínico!") —
Bem, seja. É possível que as coisas não se dêem assim, no começo. Mas, no
fim, é inevitável! O Tsik dispõe de plenos poderes. Deve ser obedecido! Não
temos medo das baionetas. Defenderemos a revolução! Ninguém conseguirá
tocar na revolução, antes de passar por cima dos nossos corpos.
Alguém gritou:
— Esses corpos há muito tempo já são cadáveres!
No meio de grande tumulto, Dan respondeu, com voz estridente, dando
violentos socos na mesa:
— Os que assim falam são criminosos! Uma voz respondeu:
— Criminoso é você, que tomou o poder para entregá -lo à burguesia!
Gotz, agitando nervosamente a campainha:
— Silêncio! Do contrário, mando evacuar a sala! Uma voz:
— Experimente, se for capaz! — (Assuadas, assobios, risos.)
— Passemos à nossa política sobre a paz. — (Risos.) —
Desgraçadamente, a Rússia não poderá continuar muito tempo em guerra.
Vamos, pois, fazer a paz, mas não uma paz permanente, não a paz
democrática... Hoje, no Conselho da República, votamos uma resolução, a
fim de evitar derramamento de sangue, pedindo a entrega da terra aos
comitês agrários e as negociações imediatas de paz... — (Risos e gritos:
"Muito tarde!")
Trótski, sob uma onda de aplausos, subiu à tribuna. A sala inteira o
saudou, erguendo-se numa tempestade de aclamações.
Com fina ironia, começou:
— A tática de Dan mostra, de maneira clara, que as massas, essas
grandes massas passivas e indiferentes, estão completamente do seu lado. —
(Estrepitosa gargalhada geral.) Em seguida, voltando-se para o presidente,
prosseguiu, em tom dramático: — Quando propusemos a entrega da terra aos
camponeses, vocês foram contra. Nós, então, dissemos aos camponeses:
"Tomem a terra, por sua própria iniciativa. Não esperem por coisa alguma
nem por ninguém". Os camponeses seguiram o nosso conselho. Hoje, vocês
estão propondo o que já fizemos há mais de seis meses... Não acredito que
Kerenski tivesse abolido a lei marcial e a pena de morte por motivos de
ordem idealística ou sentimental. Ninguém ignora que a guarnição de
Petrogrado, não lhe cumprindo as ordens, obrigou-o a retroceder e a voltar à
realidade. Hoje, Dan está sendo acusado de haver feito, no Conselho da
República, um vergonhoso discurso, de caráter nitidamente bolchevique.
Não ficarei admirado se um dia Dan chegar a dizer que a fina flor da
revolução tomou parte na sublevação de 16 e de 17 de julho... Na resolução
que Dan apresentou hoje ao Conselho da República não há uma palavra
sobre o estabelecimento da disciplina no Exército. Entretanto, isto faz parte
do programa do seu partido... A história destes últimos meses mostra-nos
que as massas já abandonaram os mencheviques. Os mencheviques e os
socialistas revolucionários venceram os cadetes. Mas, quando tomaram o
poder, deixaram-no praticamente nas mãos dos cadetes... Dan acaba de dizer
que as massas não têm o direito de se sublevar. Mas a insurreição é um
direito de todos os revolucionários! Quando as massas oprimidas se rebelam,
elas estão fazendo uso de um direito seu.
Falou em seguida Lieber. A sua fisionomia e a sua língua venenosa
provocaram risos e murmúrios:
— Engels e Marx sempre disseram que o proletariado não tem o direito
de conquistar o poder, antes de se achar preparado para isso. Numa
revolução burguesa como a atual... a conquista do poder pelas massas será o
fim trágico da revolução. Trótski é um teórico da social-democracia. Não
pode, portanto, pensar o que diz agora. — (Gritos: "Basta!" "Basta!" "Rua
com ele!")
Martov foi também constantemente interrompido:
— Os internacionalistas como nós não se opõem à passagem do poder
para as mãos da democracia. Condenamos, apenas, os métodos dos
bolcheviques. Ainda não chegou o momento de tomar o poder...
Dan subiu novamente à tribuna para protestar violentamente contra os
atos do Comitê Militar Revolucionário, que estava censurando, por meio de
um comissário, o jornal Izvêstia. Suas palavras provocaram desordem e
tumulto na assembléia. Martov tentou falar, mas não o conseguiu. Por toda
parte, levantavam-se delegados do Exército e da frota do.Báltico, gritando
que o seu governo eram os sovietes!
No meio de confusão indescritível, Ehrlich apresentou uma moção
aconselhando calma aos operários e aos soldados, convidando-os a não
responder às provocações, reconhecendo a necessidade da criação imediata
de um comitê de segurança pública, reclamando do Governo Provisório os
decretos sobre a entrega da terra aos camponeses e o início das negociações
de paz.
Volodarski precipitou-se e declarou brutalmente que o Tsik não tinha o
direito, na véspera do Congresso dos Sovietes, de usurpar as funções deste.
— Na realidade — disse —, o Tsik já deixou de existir. Essa resolução é
simplesmente uma manobra de seus membros para recuperar o poder. Nós,
bolcheviques, não tomaremos parte na votação dessa resolução.
Depois dessas palavras, os bolcheviques retiraram-se da sala e a
resolução foi aprovada.
Pelas quatro horas da madrugada, encontrei-me com Zorim no vestíbulo,
de fuzil ao ombro.
— Tudo vai bem — disse-me, tranqüilo e satisfeito. — Deitamos as
mãos no suplente do ministro da Justiça e no ministro de Cultos. Esses dois
já estão na cadeia. Seguiu um regimento para tomar a Central Telefônica;
outro tomará a Agência Telegráfica, e um terceiro o Banco do Estado. O
Exército Vermelho está pronto para a ação.
Nas grades do Smólni, expostos ao frio da noite, vi, pela primeira vez, a
Guarda Vermelha. Era um grupo de jovens, com roupas de operários,
armados de fuzis com baionetas caladas. Conversavam nervosamente,
trocando impressões entre si.
Do oeste, por cima dos telhados das casas, chegava aos meus ouvidos o
crepitar da fuzilaria. Eram os marinheiros de Kronstadt que pretendiam
fechar as pontes do Nievá, que os junkers queriam conservar a todo custo
abertas para impedir que os operários das fábricas e do bairro de Viborg se
unissem às forças soviéticas do centro da cidade*.
Atrás de mim, o imenso Smólni, profusamente iluminado, zumbia como
uma gigantesca colméia.
*Trata-se de pontes giratórias, para permitir a passagem de embarcações maiores, pelo
rio. (N. do E.)
Capítulo IV
A QUEDA DO GOVERNO PROVISÓRIO
Na quarta-feira, dia 7 de novembro, levantei-me muito tarde. A Fortaleza
de Pedro e Paulo dava o tiro do meio-dia quando eu descia pela Avenida
Niévski. Fazia um frio úmido e irritante. As portas do Banco do Estado
estavam fechadas e guardadas por soldados com baionetas caladas.
— De que lado estão vocês? — perguntei. — Do governo?
— Já não há mais governo, Slava Bogu! (Graças a Deus) — respondeu
um deles, com uma risada.
Foi tudo o que consegui saber. Os bondes passavam correndo pela
Avenida Niévski, com homens, mulheres e crianças pendurados nos
balaústres. As lojas estavam abertas e a multidão na rua parecia menos
alarmada do que no dia anterior. A noite fizera nascer pelas paredes nova
floração de apelos aos camponeses, aos soldados que combatiam nas
trincheiras e aos operários de Petrogrado, condenando a insurreição.
Eis o que dizia um desses cartazes:
"A DUMA MUNICIPAL DE PETROGRADO
"Informa aos cidadãos que, em sessão extraordinária, a 6 de novembro,
foi criado um comitê de segurança pública, composto de membros da Duma
Central e das dumas dos distritos e representantes das seguintes organizações
revolucionárias democráticas: Tsik, Comitê Executivo Pan-Russo dos
Deputados Camponeses, organizações do Exército, Tsentroflot, Soviete de
Deputados Operários e Camponeses de Petrogrado (!), sindicatos, etc.
"Os membros em serviço do Comitê de Segurança Pública estarão
reunidos, em sessão permanente, no edifício da Duma Municipal. Telefones:
15-40, 223-77, 130-36.
"7 de novembro de 1917."
Naquele momento, não compreendi que esse apelo era uma declaração
de guerra da Duma contra os bolcheviques.
Comprei um número do Rabótchi Put, único jornal que estava à venda.
Pouco depois, um soldado cedeu-me, por cinqüenta copeques, o seu número
do Dien. O órgão dos bolcheviques, em grande formato, fora impresso nas
oficinas do Rússkaia Volta, jornal reacionário. No alto, o Dien trazia em
letras garrafais os seguintes dizeres: "Todo o poder aos sovietes de operários,
soldados e camponeses! Paz, pão e terra!" O artigo era assinado por
Zinoviev, companheiro de esconderijo de Lênin. Começava assim:
"Todo operário, todo soldado, todo verdadeiro socialista, todo democrata
sincero e honesto compreende que a situação atual nos colocou perante um
dilema: ou o poder continuará nas mãos da camarilha de burgueses e grandes
proprietários de terra, e, nesse caso, os operários, os soldados e os
camponeses só poderão esperar do governo as mais terríveis perseguições e
repressões, a continuação da guerra, a fome e a morte, ou o poder passará às
mãos dos operários, dos soldados e dos camponeses revolucionários, e,
assim, a tirania dos grandes proprietários de terras será para sempre abolida,
os capitalistas serão rapidamente aniquilados e o novo governo cuidará logo
de propor as condições para a assinatura de uma paz verdadeiramente justa.
Deste modo, os camponeses terão garantida a posse da terra, e os operários,
o controle da indústria; os famintos terão pão, e a criminosa e estúpida
carnificina terminará".
O Dien publicava ainda algumas notícias fragmentárias a respeito
daquela noite agitada: os bolcheviques haviam ocupado a Central
Telefônica, a Estação Báltica, a Agência Telegráfica; os junkers de Peterhof
não podiam mais vir até Petrogrado; os cossacos continuavam indecisos;
alguns ministros tinham sido presos e o chefe da milícia municipal, Meyer,
fuzilado; por toda parte, prisões, libertações de presos, escaramuças entre
patrulhas de soldados, junkers e Guardas Vermelhos.
Numa esquina da Mórskaia, encontrei-me com o Capitão Gomberg,
menchevique, secretário da seção militar do seu partido. Perguntei-lhe se a
insurreição já começara. Encolheu os ombros e, demonstrando cansaço,
respondeu-me:
— Tchort znâiet! (O Diabo é quem sabe!) Os bolcheviques são, talvez,
capazes de tomar o poder; mas não poderão conservá-lo por mais de três
dias. Não possuem estadistas. Na minha opinião, é melhor mesmo que se
aventurem. Para eles, isso será o fim...
O Hotel Militar, num dos cantos da Praça de Santo Isaac, estava cercado
por um pelotão de marinheiros armados. Numerosos oficiais, moços e
elegantes, passeavam no vestíbulo, conversando em voz baixa. Os
marinheiros não consentiam que saíssem.
De repente, ouviu-se um tiro na rua, logo acompanhado de uma
descarga. Saí correndo. Perto do Palá cio Maria, onde estava reunido em
sessão o Conselho da República, acontecia alguma coisa de anormal.
Através da grande praça, de forma diagonal, estendia -se uma linha de
soldados com os olhos fixos no telhado do hotel, dispostos a fazer fogo.
— Provokátsia! Dispararam contra nós! — gritou um deles, enquanto os
demais se precipitavam para a porta.
No ângulo oeste do palácio estacionava um grande automóvel blindado,
sobre o qual flutuava ao vento uma bandeira vermelha com uma inscrição
recente: SRSD* (Soviete dos Deputados Operários e Soldados). Seus canhões
estavam apontados para Santo Isaac. Logo no começo da Nóvaia Úlitza (Rua
Nova), haviam levantado uma barricada com caixas, tonéis, móveis velhos e
um vagão. A entrada do cais do Moika estava atravancada com grande pilha
de madeira.
*Soviet Rabótchik Soldatshik Deputátov, em russo (N. do T.)
— Vai haver combate? — perguntei.
— Não deve demorar — respondeu nervosamente um soldado.
— Vá embora, companheiro, senão pode ser ferido. Eles vão chegar por
ali — acrescentou, apontando o Almirantado.
— Quem é que vem?
— Ah! Isso, irmão, para dizer a verdade, não sei ao certo. E cuspiu.
Diante do palácio, aglomerava-se uma multidão de soldados e
marinheiros. Um dos marinheiros contava como terminara a sessão do
Conselho da República:
— Chegamos e tomamos conta de todas as portas. Então, dirigi-me ao
kornilovista contra-revolucionário que estava na cadeira da presidência e
disse-lhe: "O Conselho não existe mais. Levante-se e vá para casa".
Todos riram. Depois de exibir os papéis, consegui chegar à porta da
galeria de imprensa. Um marinheiro gigantesco deteve me, sorrindo, e, ao
ver que lhe mostrava meu salvo-conduto, disse-me: ,.
— Mesmo que você tosse o próprio São Miguel, não passaria, camarada.
Através dos vidros da porta, via -se o rosto convulsionado de um
correspondente dos jornais franceses que, não podendo sair dali, com certeza
protestava, pois gesticulava desesperada-mente Pouco além, um homenzinho
fardado de general, com um bigodinho grisalho, no meio de um grupo de
soldados, estava rubro de cólera.
— Sou o General Aleksêiev — gritava. — Como superior de vocês e
membro do Conselho da República, exijo que me deixem passar.
A sentinela cocou a cabeça, desviando o olhar para ocultar o embaraço.
Depois, chamou um oficial, que também ficou todo atrapalhado, quando
soube de quem se tratava. E, sem perceber bem o que fazia, perfilou-se:
— Excelência — balbuciou, empregando involuntariamente a fórmula
do velho regime —, a entrada no palácio foi terminantemente proibida. Não
tenho o direito.
Chegou um automóvel no qual reconheci Gotz, que parecia rir
gostosamente. Alguns minutos depois, veio outro automóvel, ocupado por
soldados armados, que conduziam, presos, os membros do Governo
Provisório. Justamente nesse momento, Peters, um letão, membro do Comitê
Militar Revolucionário, atravessou a praça correndo:
— Julgava — disse eu — que desde ontem à noite esses senhores já
tinham sido postos em lugar seguro.
— Oh — respondeu-me com um gesto de contrariedade —, os imbecis
deixaram sair quase todos, antes que pudéssemos intervir!
Ao longo da Avenida Voskressenski, postavam-se marinheiros. Ao
longe, só se viam soldados marchando.
Dirigi-me, então, para o Palácio de Inverno, seguindo a Admiralteiski.
Todas as entradas da Praça tio Palácio estavam guardadas por sentinelas. A
oeste, um cordão de tropas continha a multidão agitada. Na praça, a não ser
alguns soldados transportando pedaços de madeira, do pátio para a porta
principal, tudo o mais permanecia tranqüilo. Impossível saber se as
sentinelas eram a favor do governo ou dos sovietes. Os papéis que obtivera
no Smólni não serviam para nada. Resolvi, então, dar um golpe de audácia.
Avancei com ar importante até a fileira de guardas e, exibindo meu
passaporte norte-americano, disse em tom enérgico: "Serviço oficial", e
consegui passar. No saguão do palácio, estavam os mesmos porteiros de
sempre, que gentilmente me desembaraçaram do chapéu e do capote. Subi.
No corredor, sombrio e lúgubre, despojado de seus tapetes, passavam criados
sem saber o que fazer. Diante da porta de Kerenski, estava um oficial ainda
jovem, mordendo o bigode nervosamente. Indaguei se era possível
entrevistar o presidente do conselho. Juntou os calcanhares, inclinou-se e
respondeu-me em francês:
— Sinto muito, mas não é possível. Aleksandr Fiódorovitch está muito
ocupado neste momento...
Depois, examinando-me, acrescentou:
— Na verdade, agora não está aqui.
— Onde poderei encontrá-lo?
— Partiu para a frente de combate... E, como seu automóvel estava sem
gasolina, fomos obrigados a pedi-la emprestada no Hospital Inglês...
— E os ministros?
— Estão reunidos em sessão, mas não sei exatamente em que sala.
— Saberá dizer-me se é verdade que os bolcheviques vêm para cá?
— Sem dúvida. Não devem tardar. Espero, de um momento para outro,
um telefonema anunciando sua chegada. Mas estamos preparados. Os
junkers estão no palácio. Ali atrás daquela porta.
— Pode-se entrar?
— Não, impossível. É proibido.
Apertou-me as mãos, precipitadamente, e afastou-se. Dirigi-me à porta
proibida, aberta num tabique improvisado, que dividia o corredor ao meio.
Estava fechada. No outro lado, ouviam-se vozes e alguém ria. Único ruído
no palácio; no mais, era tudo silêncio de túmulo.
Aproximou-se um velho porteiro:
— Bárin*, é proibida a entrada.
*Senhor. (N. do E.)
— Por que esta porta está fechada a chave?
— Para os soldados não saírem.
Após alguns minutos, afastou-se, dizendo que ia tomar uma xícara de
chá. Dei volta à chave e abri a porta. Os soldados viram-me entrar, mas nada
disseram.
No fim do corredor, encontrei uma vasta sala, com cornijas douradas e
enfeitada com enormes candelabros de cristal. Logo adiante, havia uma série
de salas menores, sobriamente decoradas. Ao longo do corredor, junto às
paredes, de ambos os lados, alinhavam-se mantas e colchões sujos, sobre os
quais alguns soldados se estendiam. O chão estava recoberto por verdadeira
camada de pontas de cigarro, pedaços de pão, roupas, garrafas vazias, com
rótulos indicando bebidas francesas. Os soldados, com os distintivos
vermelhos das escolas militares dos junkers, andavam de um lado para outro,
envoltos em pesada atmosfera, carregada de fumaça e recendendo a suor.
Um junker tinha na mão uma garrafa de borgonha, naturalmente subtraída da
adega do palácio. Todos se mostravam admirados de ver-me ali.
Cheguei, afinal, a outra série de grandes e luxuosos salões. As janelas
muito altas davam para a praça. Nas paredes, em molduras douradas e
maciças, viam-se quadros representando cenas históricas: "12 de outubro de
1812", "6 de novembro de 1812", "16-28 de agosto de 1813". Um deles tinha
um buraco na parte de cima, ao lado direito.
Esses salões estavam transformados num imenso quartel há várias
semanas. Era o que se podia concluir pelo aspecto do assoalho e das paredes.
Ao pé das janelas, metralhadoras. No chão, entre os colchões, amontoavamse
feixes de fuzis.
Eu e meus colegas olhávamos os quadros, quando senti junto a mim um
hálito cheirando a álcool. Quase ao mesmo tempo, uma voz grossa disse bem
perto de nós, num francês detestável:
— Pela maneira como olham os quadros, vejo que os senhores são
estrangeiros.
Voltamo-nos. Estava ao nosso lado um homenzinho baixo, encorpado e
calvo, que nos cumprimentava:
— São norte-americanos? Estou encantado. Sou o capitão do EstadoMaior,
Vladimir Artsibachev, à disposição dos senhores...
Não parecia estranhar que quatro estrangeiros, e entre eles urna mulher,
tivessem conseguido atravessar as linhas do Exército, que se preparava para
repelir um ataque. Começou a lamentar a situação da Rússia:
Ah!... Não são só os bolcheviques! Se pelos menos as belas tradições do
Exército russo não fossem tão desprezadas! Vejam os senhores os alunos das
escolas militares, os futuros oficiais do nosso Exército. São por acaso
gentlemen? Kerenski abriu as portas aos inferiores, a qualquer soldado capaz
de passar num exame. É natural que muitos, muitos mesmo, estejam
contaminados pelas idéias revolucionárias... E, passando bruscamente a
outro assunto:
— Tenho vontade de sair da Rússia. Estou disposto a entrar para o
Exército norte-americano. Os senhores serão capazes de ajudar-me? Se
falassem com o cônsul, talvez tudo se arranjasse... Vou dar-lhes o meu
endereço.
Apesar de nos desculparmos, escreveu o endereço num pedaço de papel.
Pareceu, depois disso, sentir-se melhor. Guardei o endereço que nos deu:
"Segunda Escola Militar de Oranienbaum. Velho Peterhof".
— Hoje de manhã, passamos em revista as tropas — continuou, guiandonos
pelas salas e dando-nos explicações. — O Batalhão Feminino resolveu
continuar fiel ao governo.
— As mulheres-soldados estão no palácio?
— Sim, mas nas salas de trás, para não sofrerem nada em caso de
combate.
— É uma grande responsabilidade.
Ficamos algum tempo junto a uma janela contemplando três companhias
de junkers que, vestindo compridos capotes, estavam formadas diante do
palácio. Um oficial de grande estatura, ar enérgico, discursava. Reconheci
nele Stankievitch, comissário militar chefe do Governo Provisório. Passados
alguns minutos, duas companhias levaram as armas aos ombros. Deram três
vivas, atravessaram a praça e desapareceram por trás do Arco Vermelho,
marchando em direção à pacífica cidade.
— Vão ocupar a Central Telefônica — disse alguém. Começamos a
conversar com três cadetes. Disseram-nos
que acabavam de ingressar na Escola Militar. Antes, eram inferiores.
Deram seus nomes: Roberto Oliev, Aleksiei Vassílenko e Erni Sachs. Este
último, estoniano. Não sentiam mais, naquele momento, a antiga vontade de
ser oficia is, porque estes eram muito impopulares. Pareciam não saber que
atitude adotar. Mostravam-se indecisos e desgostosos.
Apesar disso, não deixaram de dizer em tom fanfarrão:
— Se os bolcheviques vierem, nós lhes mostraremos como se combate.
São uns patifes. Têm medo de lutar. Mas, se porventura formos vencidos,
cada um de nós guardará uma bala para si mesmo...
Justamente nesse instante crepitou um tiroteio bem perto. Na praça, uns
fugiam, outros deitavam-se no chão.
Os izvóztchiks* voltaram aos pontos. As pessoas começaram a levantarse.
Os junkers desembocaram pelo Arco Vermelho. Não vinham mais em
marcha cadenciada. E um deles era carregado por dois companheiros.
* Cocheiros típicos de carros de praça. (N. do T.)
A tarde caía. O grande semicírculo dos edifícios das repartições do
governo parecia deserto. Fomos cear no Hotel da França. Não tínhamos
ainda acabado de tomar a sopa, quando o chefe dos garçons chegou, muito
pálido, convidando-nos a passar para o salão dos fundos porque iam apagar
as luzes do café.
— Vai haver barulho — disse.
Quando saímos, a Mórskaia estava completamente às escuras. Só no fim
da Avenida Niévski é que havia uma pequena claridade. Via -se aí um grande
carro blindado, com o motor em movimento e soltando espessa fumaça
escura. Um menino, trepado no pára-lama, olhava para dentro do cano da
metralhadora. Em torno do carro, um grupo de soldados parecia esperar
qualquer coisa.
Voltamos para o Arco Vermelho, onde outro grupo de soldados discutia,
acaloradamente, olhando de vez em quando para a fachada brilhantemente
iluminada do Palácio de Inverno.
— Não, camaradas — dizia um deles —, não podemos atirar. O Batalhão
Feminino está lá dentro. Vão depois dizer que atiramos contra mulheres
russas.
Quando dobramos a Avenida Niévski, outro carro de assalto aproximouse
da esquina. Um homem levantou a cabeça, no alto da torre, e gritou:
— Para a frente! Chegou o momento de atacar.
O motorista do primeiro carro aproximou-se e gritou bem alto, a fim de
dominar com a voz o ruíd o do motor:
— O comitê mandou-nos esperar. Colocaram a artilharia por trás de uma
trincheira de madeira, lá embaixo.
Os bondes não trafegavam mais. As ruas estavam desertas e as luzes,
apagadas. Mas, pouco adiante, víamos os bondes passando, a multidão, as
fachadas das casas iluminadas, os anúncios luminosos na fachada dos
cinemas. A vida continuava, como de costume. Tínhamos conosco entradas
para o espetáculo de bale do Teatro Maria. Aliás, todos os teatros davam
espetáculo. Mas o de fora era muito mais interessante. Tropeçamos, na
escuridão, com os montões de madeira que fechavam a Ponte da Polícia.
Alguns soldados assentaram uma peça de três polegadas, pronta para
disparar, em frente ao Palácio Stroganof. Grupos de homens, com uniformes
diferentes, iam e vinham, sem saber que rumo tomar, discutindo
ininterruptamente.
Tinha-se a impressão de que toda a cidade viera passear na Avenida
Niévski. Em cada esquina, uma multidão discutia acaloradamente. Em cada
cruzamento, piquetes de dez ou mais soldados montavam guarda. Homens já
velhos, envolvidos em luxuosos capotes de peles, rubros de cólera,
levantavam os punhos fechados para os soldados, numa ameaça impotente.
Mulheres elegantes injuriavam a tropa. Os soldados respondiam
delicadamente, atrapalhados, confusos...
Os carros blindados subiam e desciam as ruas, trazendo, ao lado dos
nomes dos primeiros czares — Olieg, Riúrik, Sviatoslav —, grandes iniciais,
em vermelho, do Partido Operário Social-Democrata Russo: RSDRP*.
* Rossískaia Sotsial-Demokráteietcheskaia Rabótchaia Partia, em russo. (N. do T.)
Na Avenida Mikháilovski, um homem, que levava debaixo do braço um
volumoso maço de jornais, foi assaltado pela multidão, que, com frenesi,
disputava as folhas, arrancando-as violentamente, como um bando de lobos
famintos sobre uma presa. Houve quem oferecesse um rublo, cinco rublos,
dez rublos por um exemplar. Era o Rabótchi i Soldat anunciando a vitória da
Revolução Proletária e a libertação de todos os bolcheviques que ainda
estavam presos. O jornal pedia o auxílio dos exércitos da frente e da
retaguarda. Era um jornal ardente, impresso em caracteres enormes, sem
qualquer notícia.
Na esquina da Avenida Sadovaia reuniam-se mais ou menos umas
duzentas pessoas, olhando para o telhado de um alto edifício, onde uma
centelha brilhava e logo se extinguia.
— Olhem! — disse um camponês alto, apontando para o telhado. — É
um provocador. É capaz de atirar no povo... Tinha-se a impressão de que
ninguém pensava em ir investigar.
Chegamos ao Smólni, cuja fachada maciça estava toda iluminada. Das
ruas mergulhadas na escuridão chegavam sombras de forma imprecisa,
movendo-se com precipitação. Passavam automóveis e motocicletas. Um
enorme carro blindado, cor de elefante, avançava, buzinando, com duas
bandeiras vermelhas nas portinholas. Fazia frio. Os soldados vermelhos
tinham acendido uma fogueira ao lado da grade. Na parte de dentro, à luz do
fogo, as sentinelas decifraram com dificuldade nossos passaportes e nos
examinaram. Os canhões e as metralhadoras, postados aos dois lados da
entrada, estavam à mostra. As fitas de balas pendiam das culatras como
serpentes metálicas. Alguns carros blindados, com os motores em
movimento, formavam em fileira, no pátio, debaixo das árvores. Os longos
corredores, sem nenhum revestimento, estremeciam sob o ruído
ensurdecedor dos passos e dos gritos. Estavam quase às escuras. Reinava
febril atmosfera de agitação. Multidões de homens espremiam-se na escada:
operários com blusas e gorros de pele negra, muitos trazendo o fuzil ao
ombro, ou soldados com pesados capotes cor de terra e com a chapka*
cinzenta achatada na parte mais alta. Alguns chefes, Lunatcharski, Kamenev,
corriam, rodeados por grupos de camaradas, falando todos ao mesmo tempo,
com a ansiedade estampada na fisionomia, com pastas de papéis debaixo dos
braços. A sessão extraordinária do Soviete de Petrogrado terminara naquele
momento.
* Gorro de pele. (N. do E.)
Fiz Kamenev parar. Pequeno, movimentos vivos, rosto largo e
expressivo, quase sem pescoço, Kamenev traduziu-me rapidamente para o
francês a resolução que acabava de ser aprovada:
"O Soviete dos Deputados Operários e Soldados de Petrogrado saúda a
revolução vitoriosa do proletariado e da guarnição de Petrogrado. Ao mesmo
tempo, deseja salientar, em particular, a uniã o, a organização, a disciplina e
cooperação admiráveis das massas, durante a sublevação. Poucas revoluções
venceram com tão pequeno derramamento de sangue, tão rapidamente e de
maneira tão completa.
"O soviete declara que está firmemente convencido de que o Governo
Soviético Operário e Camponês, que vai ser criado pela revolução e que
assegura a aliança entre o proletariado das cidades e as massas camponesas
pobres, entrará no caminho que conduz ao socialismo, uma vez que o
socialismo é a única maneira de eliminar para sempre a crise, a miséria e os
terríveis horrores da guerra.
"O novo Governo Operário e Camponês vai apresentar imediatamente a
todos os países beligerantes propostas no sentido de obter uma paz
democrática e justa.
"Vai suprimir imediatamente a grande propriedade senhorial da terra e
entregar as terras aos camponeses. Vai também estabelecer o controle
operário sobre a produção e a divisão dos produtos manufaturados,
instaurando, simultaneamente, o controle de todos os bancos, que vão ser
transformados em monopólio do Estado.
"O Soviete dos Deputados Operários e Soldados de Petrogrado apela a
todos os operários de todos os países da Rússia para que se coloquem com
toda a energia e com a maior abnegação a serviço da revolução operária e
camponesa. O soviete declara ter a certeza de que os operários das cidades,
aliados aos camponeses pobres, saberão forjar uma disciplina inflexível e
assegurar a ordem revolucionária mais perfeita, sem a qual será impossível
fazer triunfar o socialismo. O soviete igualmente está seguro de que o
proletariado dos países da Europa Ocidental auxiliará o proletariado russo na
transformação socialista da Rússia, até a vitória completa e definitiva do
socialismo em todo o mundo."
— Então, vocês acham que a partida está ganha? — perguntei. Kamenev
encolheu os ombros.
— Ainda há muita coisa por fazer, muita coisa mesmo. Estamos apenas
começando.
Encontrei Riazanov no vestíbulo. Era vice-presidente do Conselho dos
Sindicatos. Estava taciturno e mordia a todo instante o bigode grisalho:
— É uma loucura, uma loucura! — gritava. — Os trabalhadores da
Europa não vão se mover. Toda a Rússia...
Levantou desesperadamente os braços para o céu e afastou-se,
rapidamente. Riazanov e Kamenev opunham-se à insurreição, e tinham sido,
por isso, severamente criticados por Lênin.
A sessão foi decisiva. Em nome do Comitê Militar Revolucionário,
Trótski declarou que o Governo Provisório não existia mais.
— Todos os governos burgueses — dizia ele — têm a característica de
sempre enganar o povo. Nós, o Soviete dos Deputados Operários, Soldados e
Camponeses, vamos fazer uma experiência sem precedentes na história.
Vamos criar um governo cuja finalidade única será satisfazer as
necessidades dos operários, dos soldados e dos camponeses.
Lênin foi recebido com imensa ovação. Profetizou a revolução social no
mundo inteiro. E Zinoviev gritou:
— Hoje, pagamos uma dívida ao proletariado internacional. Assestamos
terrível golpe na guerra. Desferimos terrível golpe em todos os
imperialismos, particularmente no imperialismo alemão, em Guilherme II, o
Carrasco... '
Logo depois, Trótski anunciou que haviam sido enviados telegramas
comunicando a vitória a todas as frentes do Exército. Mas até aquele
momento nenhuma resposta chegara. Falava-se que tropas marchavam sobre
Petrogrado. Era preciso enviar uma delegação ao seu encontro para fazê-las
conhecer a verdade.
Alguém gritou:
— Vocês não esperaram que o Congresso Pan-Russo dos Sovietes
manifestasse sua vontade!
Trótski respondeu friamente:
— A vontade do Congresso Pan-Russo dos Sovietes foi precedida pela
sublevação dos operários e soldados de Petrogrado.
Depois de abrir caminho através da multidão, que se comprimia na porta,
consegui entrar na sala de sessões. Comprimidos nos bancos, sob os brancos
candelabros, apertados uns contra os outros nos corredores e nos cantos,
sentados nos parapeitos das janelas e até nos bordos da tribuna, os
representantes dos operários e dos soldados de toda a Rússia esperavam, uns
em silêncio cheio de ansiedade, outros num estado de excitação indescritível,
que o presidente tocasse a campainha, abrindo os trabalhos.
Era sufocante a temperatura da sala, apenas aquecida pelo calor de
centenas de corpos humanos suados. Espessa nuvem azulada elevava-se
dessa multidão, tornando o ar irrespirável. De vez em quando, um dos
presentes subia à tribuna e pedia aos camaradas que não fumassem. Então
toda a sala, inclusive os fumantes, começava a gritar: — Não fumem,
camaradas! — E todos continuavam fumando. Petróvski, delegado
anarquista das fábricas de Obukovo, arranjou-me lugar ao seu lado. Com a
barba por fazer, sujo de óleo, estava morto de cansaço, esgotado por várias
noites passadas em claro no Comitê Militar Revolucionário.
Os antigos dirigentes do Tsik ocupavam a tribuna. Pela última vez, iam
presidir esses turbulentos sovietes, a que atacavam desde o começo da
revolução, e que agora se voltavam contra eles. Assim terminava a primeira
etapa da revolução, que aqueles homens tinham procurado conservar nos
limites da prudência. Mas os três principa is elementos não estavam
presentes: Kerenski, a caminho da frente de combate, atravessava províncias
que já começavam também a agitar-se de maneira assustadora; Tchkeidze, a
velha águia, retirara-se, desdenhosa-mente, para as montanhas da Geórgia,
onde, pouco depois, iria morrer tísico; por último, o sempre otimista
Tseretelli, também já atacado pela tuberculose, devia, entretanto, continuar
ainda pondo sua eloqüência sem par a serviço de uma causa perdida. Gotz,
Dan, Lieber, Bogdánov, Broido, Filikovski estavam presentes, com as
fisionomias pálidas, os olhos fundos, faiscando de indignação. Por cima de
suas cabeças, fervia e borbulhava o Segundo Congresso Pan-Russo dos
Sovietes; o Comitê Militar Revolucionário forjava o ferro em brasa,
manejava arrojadamente todos os fios da insurreição, martelava com toda a
força do seu poderoso braço...
Eram dez horas e quarenta minutos da noite. Dan, homem de aspecto
sereno, calvo, trajando um uniforme mal talhado de médico militar, agitou a
campainha.
Instantaneamente, fez-se silêncio, um silêncio imponente, perturbado
apenas pelos empurrões e pelas discussões na porta. — O poder está em
nossas mãos — começou, com voz triste. E, em seguida, depois de breve
pausa, baixando a voz: — Camaradas! O Congresso dos Sovietes reúne-se
em circunstâncias inesperadas, num momento tão extraordinário, que todos
os presentes compreenderão por que o Tsik julga desnecessário abrir esta
sessão com um discurso político. Compreenderão ainda melhor, quando
souberem que sou membro da presidência do Tsik e que, agora mesmo,
nossos camaradas de partido estão no Palácio de Inverno, sob bombardeio,
sacrificados no cumprimento das funções de ministros que o Tsik lhes
confiou. — (Tumulto.) — Está aberta a primeira sessão do Segundo
Congresso dos Sovietes dos Deputados Operários e Soldados.
A eleição do presidente fez-se num ambiente de grande agitação.
Avanessov anunciou que, em virtude de um acordo realizado entre
bolcheviques, socialistas revolucionários e mencheviques, a presidência
devia ser eleita por meio de votação proporcional. Vários mencheviques
ergueram-se para protestar.
Um soldado barbudo gritou: — Vocês precisam lembrar-se do seu
procedimento conosco, os bolcheviques, quando ainda éramos minoria.
A votação deu o seguinte resultado: catorze bolcheviques, sete socialistas
revolucionários e um internacionalista (grupo Górki). Hendelmann declarou
que os socialistas revolucionários da direita e do centro recusavam-se a
tomar parte na presidência. Khintchuk subiu à tribuna para fazer a mesma
declaração, em nome dos mencheviques. Os mencheviques internacionalistas
também declararam que, enquanto aguardavam os acontecimentos, não
podiam tomar parte na presidência. (Aplausos isolados e protestos.) Uma
voz: — Renegados! Como vocês têm coragem de usar o nome de
socialistas?!
Um delegado ucraniano pediu e obteve um posto. Logo após, o antigo
Tsik desceu da tribuna. E, em seu lugar, subiram Trótski, Kamenev,
Lunatcharski, Kolontai, Nóguin. A sala inteira ergueu-se numa tempestade
entusiástica de aplausos. Os bolcheviques eram uma seita desprezada e
perseguida quatro meses atrás. E, agora, estavam no posto supremo, no leme
da imensa Rússia em plena insurreição!
Kamenev leu a ordem-do-dia: — "1. Organização do poder. 2. A guerra
e a paz. 3. A Assembléia Constituinte".
Lozóvski levantou-se para dizer que, de acordo com o que havia sido
combinado entre os diferentes grupos, propunha, em primeiro lugar, a leitura
e a discussão do informe do Soviete de Petrogrado. Em seguida, os membros
do Tsik e os representantes dos diferentes partidos poderiam fazer uso da
palavra. Depois disso é que a ordem-do-dia seria discutida.
Mas, de repente, ouviu-se uma nova voz, mais profunda, dominando o
tumulto da assembléia. Era a voz surda do canhão! Todos os olhares
voltaram-se ansiosamente para as janelas. Uma espécie de febre ardente
dominou a assembléia.
Martov pediu a palavra. E, com voz rouca, disse:
— Camaradas! A guerra civil já começou. É necessário discutir em
primeiro lugar a solução pacífica da crise. Tanto por questões de princípios,
como por motivos políticos, devemos começar a sessão de hoje discutindo
com a maior urgência os meios de fazer cessar a guerra civil. Nossos irmãos
estão morrendo nas ruas... neste momento em que se procura resolver a
questão do poder, antes da abertura do Congresso dos Sovietes, por meio de
uma conspiração militar organizada por um único dos partidos
revolucionários — (Durante alguns instantes o trovejar da artilharia
abafou-lhe as palavras.) —... Todos os partidos devem encarar este
problema de frente. A primeira questão que o Congresso vai discutir é a do
poder. Mas ela já está sendo resolvida nas ruas, pela força das armas...
Temos a missão de criar um poder que toda democracia possa reconhecer. Se
este congresso quer ser o porta-voz da democracia revolucionária, não deve
ficar de braços cruzados ante a guerra civil que ameaça fazer explodir uma
perigosa contra-revolução. Só há uma solução pacífica para a crise atual: a
formação de um poder com a participação de todas as organizações
democráticas num bloco unido... Proponho que se eleja uma delegação para
negociar com todos os partidos e organizações socialistas.
O surdo ribombar do canhão continuava a fazer estremecer os vidros das
janelas, com intermitências regulares, enquanto os deputados discutiam e se
insultavam.
Foi assim, sob o troar da artilharia, na obscuridade, no meio de ódios, de
medo e da mais temerária das audácias, que nasceu a nova Rússia.
A esquerda socialista revolucionária e os social-democratas unificados
apoiaram a proposição de Martov, que, posta em votação, foi aprovada. Um
soldado comunicou que o Soviete Pan-Russo dos Camponeses se havia
recusado a enviar delegados ao Congresso. Propôs que se delegassem
poderes a um comitê para convidá-lo oficialmente. — Mas, ao mesmo
tempo, como estão presentes alguns deputados camponeses, proponho que
tenham direito a voto. — Essa proposta foi imediatamente aprovada.
Kharrach, com dragonas de capitão, pediu a palavra em tom violento:
— Os politiqueiros hipócritas que governam esta assembléia — disse —
declararam que estamos aqui para resolver a questão do poder. Pois bem,
essa questão estava sendo resolvida em nossas costas, antes da abertura do
Congresso. Mas os golpes que se desfecham no momento contra o Palácio de
Inverno são as pancadas que enterram os pregos no caixão do partido
político responsável por essa aventura. — (Tumulto.) A seguir, Kharrach
disse: — Enquanto discutimos aqui os problemas da paz, combate-se nas
ruas... Os socialistas revolucionários e os mencheviques declaram-se
absolutamente contrários a esse movimento e concitam os poderes públicos a
lutar com todas as forças contra qualquer tentativa de conquista do poder
pela violência!
Kútchin, delegado do 12.° Exército e representante de um ique qualquer,
declarou:
— Estou aqui apenas em caráter informativo. Vou voltar para a frente de
combate. Lá, todos os comitês acham que a posse do poder pelos sovietes,
três semanas antes da reunião da Constituinte, é uma punhalada que se
desfecha pelas costas no Exército. É um crime contra a nação. — (Gritos: "É
mentira! É mentira!") Quando Kútchin conseguiu novamente falar,
continuou: — Isso não pode continuar. Vamos pôr um ponto final, agora
mesmo, nessa criminosa aventura! Peço a todos os delegados que
abandonem a sala, para o bem do país e da revolução!
E encaminhou-se para a porta, debaixo de uma gritaria ensurdecedora.
Vários delegados atiraram-se a ele em atitude de ameaça. Ouviu-se, então, a
voz adocicada e persuasiva de um oficial de barba pontiaguda:
— Falo em nome dos delegados da frente de combate. O Exército está
representado neste congresso de maneira imperfeita. Por outro lado, não
acredito que seja necessária a realização de um Congresso dos Sovietes três
semanas antes da abertura da Constituinte.
Gritos irromperam de todos os lados, cada vez mais violentos. Ele
continuou:
— O Exército não acredita que o Congresso dos Sovietes tenha
autoridade suficiente...
Os soldados levantaram-se em toda a sala gritando:
— Em nome de quem você está falando? Quem você representa aqui?
— O Comitê Central Executivo dos Soldados do 5.° Exército, o 2°
Regimento F, o 1.° Regimento N, o 3.° de Fuzileiros C.
— Quando você foi eleito? Você representa os oficiais e não os
soldados! Cale a boca! Deixe os soldados falarem! — (Aplausos e
protestos.)
— Nós, o grupo da frente de combate — continuou o oficial de barba
pontiaguda —, abrimos mão de toda responsabilidade nos acontecimentos
passados e presentes. Achamos que é necessário mobilizar todas as forças
revolucionárias conscientes para salvar a revolução. O lugar do grupo
combatente é na rua, e não nesta sala.
A assembléia agitou-se:
— Você fala em nome do Estado-Maior e não do Exército!
— Convido todos os soldados conscientes a abandonarem o Congresso!
— Kornilovista! Contra-revolucionário! Provocador!
Em nome dos mencheviques, Khintchuk declarou que só havia uma
maneira de solucionar pacificamente a situação: entabular negociações com
o Governo Provisório para a formação de novo gabinete que contasse com o
apoio de todas as camadas sociais. Durante vários minutos não pôde
continuar. Quando a gritaria abrandou, levantou a voz e leu, aos gritos, a
seguinte declaração menchevique:
"Tendo os bolcheviques fomentado uma conspiração militar com o
auxílio do Soviete de Petrogrado, sem consultar os demais grupos e partidos,
achamos que não podemos mais continuar neste congresso. Retiramo-nos,
pois, convidando os demais grupos para uma reunião a fim de discutirmos a
situação".
— Desertor! — Em seguida, ouviu-se que, no meio da algazarra, em
nome dos socialistas revolucionários, Hendelmann protestava contra o
bombardeio do Palácio de Inverno:
— Nós protestamos contra semelhante anarquia!
Mal descera da tribuna, um jovem soldado, magro, olhos fulgurantes,
precipitou-se e, estendendo os braços numa gesticulação dramática, impôs
silêncio:
— Camaradas! Chamo-me Peterson e represento o 2.° de Infantaria
letão. Vocês já ouviram declarações dos delegados do Exército. Essas
declarações seriam aceitáveis se aqueles que as fizeram fossem verdadeiros
representantes do Exército. — (Aplausos entusiásticos.) — Sei o que estou
dizendo. Esses delegados não representam os soldados. Há bastante tempo
que o 2.° Exército está exigindo a reeleição do Soviete e do Comitê
Executivo dos Soldados. Foi convocado um "pequeno" soviete, mas a
convocação do "grande" soviete foi adiada até fins.de setembro, para que
esses senhores reacionários pudessem aparecer aqui como delegados dos
soldados. Os soldados letões disseram muitas vezes: "Basta de resoluções!
Basta de mistificação! Exigimos fatos, ação! Queremos o poder!" Esses
impostores, que aqui se apresentaram como delegados, podem abandonar o
Congresso, porque não representam o Exército. O Exército não está com
eles.
A sala foi sacudida por aplausos. No começo da sessão, os delegados,
surpreendidos pela rapidez dos acontecimentos e pelos estampidos do
canhão, não sabiam que posição deviam tomar. Vacilavam. Durante uma
hora haviam desfechado sobre suas cabeças marteladas e marteladas do alto
da tribuna. Haviam se fundido numa massa única. Mas ficaram também
aniquilados. Seria possível? Iriam ficar sozinhos? Toda a Rússia estaria
contra eles? Era verdade que o exército marchava sobre Petrogrado? Mas
aquele soldado, com olhar límpido, havia chegado e, como um relâmpago,
toda a verdade lhes havia aparecido diante dos olhos. Seu pensamento era
bem o pensamento dos soldados. Os milhões de operários e de camponeses
eram homens como eles. Pensavam e sentiam da mesma maneira.
Outros soldados ocuparam a tribuna, entre os quais Gjelchtchak, que
falou em nome dos delegados do Exército em operações na frente de
combate. A resolução de abandonar o Congresso, disse, havia sido aprovada
por pequena maioria. Além disso, os membros bolcheviques não haviam
tomado parte na votação, pois entendiam que a votação devia ser feita por
partidos políticos e não por grupos, distritos, territórios ou profissões.
— Centenas de delegados das trincheiras — continuou — foram eleitos
sem a participação dos soldados. A maioria dos comitês do Exército não
representa mais os sentimentos nem o pensamento dos soldados.
Lukiánov proclamou que oficiais como Kharrach e Khintchuk não
podiam representar nesse congresso o pensamento do Exército, mas
unicamente o ponto de vista do comando:
— Os que estão nas trincheiras desejam do fundo do coração que o poder
passe para as mãos dos sovietes!
A maré no Congresso voltava à preamar.
Falou, em seguida, Abrámovitch, com os olhos piscando atrás das
espessas lentes dos óculos, tremendo de raiva. Representava no Congresso o
Bund, o partido dos social-democratas judeus:
— O que se passa em Petrogrado, neste momento, é uma espantosa
calamidade. O grupo do Bund coloca-se ao lado da declaração dos
mencheviques e dos socialistas revolucionários e retira-se do Congresso.
Temos o dever de agir assim, pois, do contrário, trairíamos o proletariado
russo. Não podemos assumir a responsabilidade dos crimes que estão sendo
cometidos. O bombardeio do Palácio de Inverno continua. A Duma
Municipal também está sendo bombardeada. O Bund resolveu, de acordo
com os socialistas revolucionários e os mencheviques, morrer com o
Governo Provisório. Vamos para seu lado e, sem armas, lutaremos de peito
aberto contra as metralhadoras dos terroristas. Convidamos os delegados do
presente congresso...
Não pôde continuar. Suas palavras perdiam-se entre protestos, ameaças,
assobios, vaias, insultos, que atingiram o auge quando cinqüenta delegados
se ergueram e caminharam para a saída.
Kamenev agitava desesperadamente a campainha.
— Continuem em seus lugares! Continuemos os trabalhos! — gritava.
Trótski levantou-se. O rosto pálido e a expressão cruel, pronunciou bem
claramente, com frieza e desprezo, na sua voz metálica e sonora:
— Todos esses oportunistas que se dizem socialistas, tais como os
mencheviques, os socialistas revolucionários, o Bund, podem ir embora. Não
são mais que lixo do passado, que a mão da História vai varrer e atirar no
monturo!
Riazanov comunicou, em nome dos bolcheviques, que, a pedido da
Duma Municipal, o Comitê Militar Revolucionário enviara uma delegação
ao Palácio de Inverno para entabular negociações.
— Vamos fazer todo o possível para evitar derramamento de sangue.
Saímos apressadamente. Paramos um momento na sala do Comitê
Militar Revolucionário. Ali trabalhava-se a todo vapor. Incessantemente,
entravam e saíam estafetas, esbaforidos. A todo instante partiam
comissários, com poderes de vida e de morte, para todos os cantos da cidade.
As campainhas dos telefones tilintavam constantemente. Abriu-se a porta e,
do interior da sala, saiu uma baforada de ar quente, uma nuvem de fumaça
de cigarro. Vimos os vultos de alguns homens com os cabelos revoltos,
debruçados sobre um mapa, debaixo de lâmpadas elétricas. O camarada
Josefov-Dukhvinski, jovem, sorridente, com uma mecha de cabelos muito
loiros caídos sobre a testa, entregou-nos os salvo-condutos.
Quando saímos pela noite fria, vimos toda a praça fronteira ao Smólni
transformada em imenso parque de automóveis. Dominando o ruído dos
motores, ressoava ao longe a voz dos canhões. Diante da porta, estacionava
um grande caminhão sacudido pela trepidação do motor. Alguns homens
carregavam-no. Ao lado, estavam seus fuzis.
— Para onde vão? — gritei.
— Para a cidade, para qualquer lugar — respondeu-me um operário,
fazendo um grande gesto de entusiasmo.
Mostramos nossos salvo-condutos.
— Podem vir com a gente. Mas vai haver tiroteio...
Subimos. O motorista deu partida ao grande caminhão, que se precipitou
para a frente, atirando-nos de encontro aos que subiam. Passamos em frente
às fogueiras dos portões, que projetavam um clarão avermelhado no rosto
dos operários armados que as cercavam. Saímos a toda velocidade pela
Avenida Suvorovski, sacudidos por violentos solavancos.
Um dos homens rasgou o invólucro de um dos embrulhos e começou a
atirar para fora punhados de manifestos. Resolvemos imitá-lo. Nosso
caminhão, sempre correndo, mergulhava na escuridão da rua, deixando uma
esteira branca de manifestos, que voavam em todas as direções.
Os raros transeuntes que se viam pelas ruas nessa hora avançada
levantavam do chão os manifestos. As patrulhas, nas encruzilhadas,
precipitavam-se, com os braços estendidos para apanhá-los no ar.
De vez em quando, encontrávamos homens armados que nos mandavam
parar, gritando "Stói!" e apontando os fuzis. Mas nosso chofer dizia -lhes
qualquer coisa que não compreendíamos e o caminhão partia de novo em
disparada.
Apanhei um dos manifestos e, com dificuldade, aos solavancos, quando
passávamos pelos trechos iluminados, consegui ler:
"Cidadãos da Rússia:
"O Governo Provisório foi deposto. O poder passou para as mãos do
Comitê Militar Revolucionário, órgão do Soviete dos Deputados Operários e
Soldados de Petrogrado, que está à frente do proletariado e da guarnição de
Petrogrado.
"O povo pegou em armas para lutar pela proposta imediata de uma paz
democrática, pela abolição da grande propriedade agrária, pelo controle da
produção pelos trabalhadores, pela criação de um governo soviético. A causa
do povo, encarnada nesses princípios, triunfou definitivamente.
"VIVA A REVOLUÇÃO DOS OPERÁRIOS, DOS SOLDADOS E DOS
CAMPONESES
O Comitê Militar Revolucionário do Soviete dos Deputados Operários e
Soldados de Petrogrado."
Meu vizinho, homem de olhos oblíquos e rosto de mongol, avisou-nos:
— Cuidado! Neste lugar há sempre agentes provocadores, que costumam
atirar do alto da janela!
Chegamos à Praça Znamenskaia, sombria e semideserta. Quase fomos de
encontro à estátua de Trubetskoi. Entramos pela larga Avenida Niévski. Três
homens, com os olhos fixos no alto das janelas, estavam prontos para atirar.
Atrás do caminhão, pessoas corriam para apanhar os manifestos que
jogávamos. Já não ouvíamos o troar do canhão. E, quanto mais nos
aproximávamos do Palácio de Inverno, mais as ruas pareciam desertas e
tranqüilas. A Duma Municipal estava vivamente iluminada. Um pouco mais
longe, vimos, na sombra, a tropa. Um grupo de marinheiros interpelou-nos
energicamente. Fomos obrigados a parar. Diminuímos a marcha e saltamos.
Aos nossos olhos, desenrolava-se um espetáculo curioso. Na esquina do
canal de Catarina, sob o globo de luz artificial, um cordão de marinheiros
armados, no meio da Avenida Niévski, impedia a passagem de uma multidão
que formava em coluna por quatro. Ao redor, trezentas ou quatrocentas
pessoas aproximadamente: homens de fraque, senhoras elegantes, oficiais e
indivíduos de todas as condições sociais. Reconheci entre essa gente alguns
delegados do Congresso, chefes mencheviques e socialistas revolucionários:
o magro Avksentiev, com sua barba vermelha, presidente do Soviete dos
Camponeses, Sorokin, porta-voz de Kerenski; Khintchuk, Abrámovitch, o
velho Schreider, alcaide de Petrogrado, de barbas brancas, e Prokópovitch,
ministro do Abastecimento do Governo Provisório, que havia sido preso e
logo depois solto, naquela mesma manhã. Vi também Málkin,
correspondente do Russian Daily News. — Vamos ao Palácio de Inverno
buscar a morte! — disse-me ele, galhofando. A coluna parou. À sua frente,
Schreider e Prokópovitch começavam a discutir vivamente e a apostrofar um
marinheiro muito alto, que parecia comandar o destacamento.
— Queremos passar — gritavam. — Todos esses camaradas vêm do
Congresso dos Sovietes. Podem ver os seus cartões de identidade.
Resolvemos instalar-nos no Palácio de Inverno.
O marinheiro ficou atrapalhado. Cocou a cabeça com a mão enorme e
franziu o cenho.
— O comitê ordenou-me que não deixasse ninguém entrar. no Palácio de
Inverno — murmurou. — Vou mandar um camarada telefonar para o
Smólni.
— Queremos passar imediatamente! Não estamos armados Passaremos
com ou sem autorização — gritou, excitadíssimo; o velho Schreider.
— Mas não posso deixar. Recebi ordens do comitê — repetiu o
marinheiro, já meio zangado.
— Atirem contra nós, se quiserem! Vamos passar! Para a frente! —
gritavam de todos os lados. — Estamos dispostos a morrer. Podem atirar, se
vocês têm coragem de atirar contra russos, contra camaradas. Apontem os
seus fuzis aos nossos peitos. Atirem!
— Não — respondeu o marinheiro com firmeza. — Vocês não podem
passar.
— E se passarmos? Que farão> vocês? Terão coragem de atirar?
— Não. Não queremos atirar em pessoas desarmadas. Não atiraremos em
russos desarmados.
— Queremos passar. Que podem vocês fazer?
— Vamos avisar — respondeu o marinheiro, já impaciente. — Não
podemos deixar vocês passarem. Vamos avisar.
— O que vocês vão fazer? Vamos! Digam!
Outro marinheiro, já irritado, não se conteve e interveio:
— Que vamos fazer? Vamos repelir vocês — disse em tom enérgico. —
E, se nos obrigarem, não tenham dúvidas, dispararemos. Voltem para suas
casas e deixem-nos em paz.
Um grande clamor de descontentamento e de raiva foi a resposta.
Prokópovitch subiu num caixão e, agitando o guarda-chuva, começou a
discursar:
— Camaradas! Cidadãos! Empregam a força contra nós. Não podemos
consentir que esses ignorantes manchem as mãos em nosso sangue inocente.
Isso seria incompatível com a nossa dignidade. Não podemos ser fuzilados
aqui por esses guarda-agulhas. — (Até hoje não sei o que ele quis dizer com
esta palavra "guarda-agulhas".) — Voltemos para a Duma a fim de estudar o
melhor meio de salvar o país e a revolução!
Ditas essas palavras, o cortejo voltou na direção em que viera, e, no meio
de um silêncio imponente, começou a subir a Avenida Niévski, sempre em
coluna por quatro.
Aproveitando a confusão, insinuamo-nos por entre as sentinelas,
encaminhando-nos para o Palácio de Inverno.
A escuridão era completa. Só entrevíamos os piquetes de cavalarianos
regulares e os guardas vermelhos, que montavam guarda atentamente. Nas
proximidades da Catedral de Kazan, no meio da rua, estava assentado um
canhão de três polegadas, na posição em que ficara depois do recuo do
último tiro, disparado por cima dos telhados.
Em pé ou sentados nas soleiras das portas, os soldados conversavam em
voz baixa, os olhos fixos na Ponte da Polícia. Ouvi um deles dizer: —
Talvez estejamos enganados... — Nos extremos das ruas, as patrulhas
detinham os transeuntes. Pormenor interessante: mesmo as patrulhas de
tropas regulares estavam sempre sob o comando de um guarda vermelho.
A fuzilaria cessara. Quando chegamos à Mórskaia, alguém gritou: — Os
junkers pediram para parlamentar.
Ouvimos vozes dando ordens. Em seguida, dentro da escuridão da noite,
vimos uma massa negra que se deslocava silenciosamente. O ruído dos
passos e o tilintar das armas era a única coisa que se ouvia. Nem risos, nem
cantos. Unimo-nos às primeiras fileiras. E, como um rio negro que corresse
por toda a rua, passamos sob o Arco Vermelho. Um homem que ia na minha
frente disse em voz baixa: — Cuidado, camaradas! Não devemos confiar
neles. Com toda a certeza vão atirar.
Depois de atravessarmos o Arco, começamos a andar mais depressa,
agachados, fazendo tudo para ficarmos tão pequenos quanto possível.
Tornamos a nos juntar por detrás do pedestal da Coluna de Alexandre.
— Quantos mortos vocês já tiveram? — perguntei.
— Não sei ao certo... Cerca de dez, mais ou menos.
Depois de ficar alguns minutos atrás da coluna, a tropa, composta de
várias centenas de homens, recobrou a calma. E sem novas ordens,
espontaneamente, tornou a avançar. Graças à luz que se coava pelas janelas
do Palácio de Inverno, pude verificar que os da frente eram duzentos ou
trezentos guardas vermelhos, entre os quais se encontravam espalhados
alguns soldados. Escalamos a barricada de toros de madeira que defendia o
palácio. Soltamos um grito de triunfo. Tropeçamos, do outro lado, com um
montão de fuzis, abandonados pelos junkers. Nos dois lados da entrada
principal, as portas escancaradas deixavam escapar um feixe de luz. O
enorme edifício estava mergulhado em profundo silêncio.
A tropa, impaciente, arrastou-nos para a entrada da direita, para uma
enorme sala abobadada, de paredes nuas. Era a adega do leste, de onde partia
um labirinto de corredores e escadarias. Os guardas vermelhos e os soldados
atiraram-se logo aos grandes caixotes de madeira, que se encontravam ali
depositados, e os abriram a golpes de carabina. Saltaram do interior tapetes,
cortinas, roupas, objetos de porcelana, cristais. Um deles mostrou aos
companheiros um grande relógio de bronze, que colocou sobre os ombros.
Outro enfiou no chapéu uma pena de avestruz.
A pilhagem ia começar, quando alguém disse com voz forte —
Camaradas! Não toquem nisto, não apanhem coisa alguma. Tudo isto
pertence ao povo! — Ouvi depois mais de vinte vozes, dizendo: — Alto!
Deixemos as coisas nos seus lugares! Não podemos tocar em nada, porque
tudo isto é propriedade do povo. — Todos aqueles que se tinham apoderado
de algum objeto foram obrigados a restituí-lo. As peças de damasco e os
tapetes voltaram aos seus lugares. Dois homens encarregaram-se do relógio
de bronze, que, como os demais objetos, foi novamente acondicionado às
pressas na caixa de onde havia sido tirado. Espontaneamente, soldados e
guardas vermelhos ofereceram-se para montar guarda e evitar o saque. Essas
medidas contra a pilhagem foram tomadas com admirável naturalidade. Nos
corredores e nas escadas, reboavam, amortecidos pelos recôncavos,
morrendo a distância, os gritos: — Disciplina revolucionária! Propriedade do
povo!
Dirigimo-nos para a entrada da esquerda, do lado oeste. Aí foi também
necessário tomar medidas contra o saque.
— Abandonem o palácio! — gritava um guarda vermelho. — Vamos,
camaradas! Mostremos que não somos ladrões nem bandidos! Todo mundo
para fora do palácio , com exceção dos comissários, até que tudo fique sob a
guarda de sentinelas!
Dois guardas vermelhos, um oficial e um soldado, ficaram de pé com os
revólveres na mão. Outro sentou-se numa mesa e começou a escrever.
Dentro da sala soavam gritos: —Todos para fora! Todos para fora!
Pouco a pouco, a tropa abandonou o palácio, aos empurrões,
murmurando, protestando. Todos os soldados foram revistados. Reviravamlhes
os bolsos e examinavam-lhes os capotes. Tudo o que, evidentemente,
não lhes pertencia era apreendido. O secretário, sentado à mesa, tomava
nota, e o objeto era depositado numa sala próxima.
Surgiram depois alguns junkers, que iam sendo revistados, de quatro em
quatro. A comissão tratava-os com cuidado especial Durante a revista e o
registro de seus nomes, eram aquinhoados com vários qualif icativos: —
Provocadores! Kornilovistas! Contra-revolucionários! Assassinos do povo!
— Os junkers não sofreram entretanto a menor violência. Apesar disso,
mostravam-se aterrorizados. Muitos foram encontrados com os bolsos
cheios. Os objetos apreendidos eram anotados numa folha e depositados
numa saleta, ao lado. Depois de desarmados, os junkers foram soltos. —
Vocês serão capazes de pegar novamente em armas contra o povo?
Respondiam, jurando, que não. A essa promessa, punham-nos em
liberdade. Perguntamos se podíamos entrar. A comissão vacilou. Depois, um
gigantesco guarda vermelho respondeu-nos com uma categórica negativa.
Disse-nos que a entrada fora terminantemente proibida.
— E, além disso... quem são vocês? Como podemos saber se são dos
nossos, ou se são aliados de Kerenski?
Éramos cinco, e, entre nós, duas mulheres.
— Passagem, camaradas. — Apareceram na porta um soldado e um
guarda vermelho, abrindo caminho no meio da multidão. Atrás deles havia
outros guardas, com as baionetas caladas, escoltando meia dúzia de homens
à paisana, enfileirados, que passavam de um em um. Eram os membros do
Governo Provisório. À frente vinha Kíchkin. Tinha o semblante rígido e
pálido. Logo em seguida, Rutenberg, cabisbaixo, olhando o chão. Atrás dele,
Terestchenko, deitando olhares ameaçadores para todos os lados. Ao cruzar
conosco, olhou-nos fixamente. Desfilaram em silêncio. Os insurretos
vitoriosos só se manifestavam por pequenos murmúrios apenas perceptíveis.
Soubemos mais tarde que o povo, na rua, quis linchá-los, tendo sido
necessário disparar alguns tiros para dispersar os atacantes. Mas, depois do
incidente, os marinheiros conseguiram conduzir os prisioneiros sãos e salvos
para a Fortaleza de Pedro e Paulo.
Aproveitando-nos da confusão, conseguimos penetrar no palácio.
Dentro, reinava ainda grande efervescência. Todas as salas estavam sendo
revistadas, à procura de junkers que poderiam estar escondidos. Todavia, não
se encontrou mais nenhum. Subimos e percorremos os salões. O palácio fora
invadido também pelo outro lado, por destacamentos da margem do Nievá.
Os quadros, as estátuas, os tapetes e os armários estavam como haviam sido
encontrados: intatos. Mas, nos gabinetes, as gavetas das secretárias e as
portas dos armários tinham sido abertas. Os papéis estavam espalhados pelo
chão. Nos dormitórios, as cobertas foram arrancadas das camas e os guardaroupas
completamente saqueados. A roupa era a mais cobiçada presa dos
trabalhadores, que dela tanto precisavam. Numa sala, onde guardavam
alguns móveis, encontramos dois soldados arrancando o couro de Córdoba
que forrava as poltronas e sofás. Disseram-nos que o tiravam para fazer
calçados.
Os velhos empregados do palácio, com os uniformes azuis, iam e
vinham, nervosos, repetindo automatic amente: — Por aqui não se entra,
senhor. É proibido! — Chegamos, por fim, à luxuosa sala de ouro e
malaquita, com ricos adornos de veludo carmesim, onde os ministros haviam
estado reunidos durante todo o dia anterior, toda a noite, e de onde só saíram
pouco antes, escoltados pelos guardas vermelhos. A grande mesa, coberta
com pano verde, encontrava-se como os ministros a deixaram no momento
de serem presos. Diante de cada cadeira, um tinteiro, uma pena e folhas de
papel em branco, ao lado de outra com planos de ação escritos às pressas,
com rascunhos de manifestos e de proclamações, naturalmente rejeitados
pela sua evidente inutilidade. A parte inferior das folhas de papel estava
coberta de linhas irregulares, desenhos geométricos e figuras toscas,
maquinalmente traçados pelos ministros, enquanto ouviam, já sem
esperanças, os quiméricos projetos dos colegas. Li, no canto de uma dessas
folhas, a seguinte frase, escrita pela mão de Konovalov: "O Governo
Provisório pede que todas as classes apóiem o governo.
Convém lembrar que, apesar de o Palácio de Inverno ter sido cercado,
até o último momento o governo se mantivera em constante comunicação
com a frente e com as províncias. Os bolcheviques ocuparam o Ministério da
Guerra às primeiras horas da manhã. Mas ignoravam a existência de uma
linha telegráfica militar no sótão e de uma linha telefônica particular ligada
ao Palácio de Inverno. Um jovem oficial trabalhara durante o dia e a noite,
inundando o país de chamados, apelos e proclamações. Quando soube que o
Palácio de Inverno fora ocupado, apanhou o quepe, colocou-o na cabeça e
retirou-se calmamente do edifício.
Preocupados como estávamos, não percebemos que os soldados nos
observavam agora com desconfiança. íamos de sala em sala, acompanhados
por pequenos grupos. E, quando chegamos à galeria dos quadros, onde já
estivéramos à tarde com os junkers, vimo-nos repentinamente cercados por
centenas de pessoas. Um soldado de estatura colossal pôs-se à nossa frente e,
com a fisionomia a indicar graves suspeitas a nosso respeito, perguntou com
voz rouca:
— Quem são vocês? Que estão fazendo aqui?
Os outros foram-se aproximando cada vez mais, deitando sobre nós
olhares ameaçadores: — Provocadores — murmuravam alguns. — Ladrões
— disse outro. Apresentei-lhes os nossos salvo-condutos, passados pelo
Comitê Militar Revolucionário. O soldado arrebatou-os de minhas mãos,
virou-os por todos os lados, examinando-os sem compreender.
Evidentemente, não sabia ler. Depois, devolveu-os a nós com um gesto de
desprezo, cuspindo em atitude de quem sente nojo: — Papéis! Já sabemos o
que valem os papéis! — disse-me com uma cara medonha. Os outros
começaram a avançar para nós como um rebanho selvagem que tivesse
conseguido apanhar um cowboy desarmado e a pé. Por cima de suas cabeças,
vi um oficial que parecia não saber que partido devia tomar. Chamei-o.
Dirigiu-se para nós, abrindo caminho através da muralha humana que se
formara.
— Sou o comissário! — disse, dirigindo-se a mim. — Quem são vocês?
Que aconteceu aqui?
Os homens afastaram-se um pouco, em atitude de espera.
Mostrei-lhe meus papéis.
— São estrangeiros? — perguntou em francês. — Estão se arriscando
muito...
Em seguida, voltou-se para os soldados e, apontando nossos papéis,
disse-lhes, gritando:
— Camaradas! São nossos companheiros de outro país, dos Estados
Unidos. Vieram para depois contar aos companheiros a coragem e a
disciplina voluntária do exército proletário.
— Como foi que você soube disso? — perguntou um corpulento
soldado, pouco convencido com as palavras dele. — Eu digo que esses
homens são provocadores. Dizem que vieram ver a disciplina revolucionária
do exército proletário. Mas passeavam livremente pelo palácio. Quem sabe
se não estão com os bolsos cheios?
— É claro! Vamos revistá-los! O camarada tem toda a razão — gritaram
os outros, avançando para nós.
— Camaradas! Camaradas! — gritou novamente o oficial, com a fronte
molhada de suor. — Sou comissário do Comitê Militar Revolucionário.
Vocês têm ou não têm confiança em mim? Garanto-lhes que estes salvocondutos
estão com a mesma assinatura que o meu.
Acompanhou-nos, em seguida, através do palácio, até uma porta que se
abria para o cais do Nievá no qual funcionava uma comissão de visitas.
— Escaparam por um triz! — disse-nos várias vezes, passando o lenço
pelo rosto para enxugar o suor.
— Que aconteceu com o Batalhão Feminino? — perguntei.
— Ah, as mulheres?! — respondeu rindo. — Quando chegamos,
estavam todas trancadas numa sala dos fundos. A princípio, não sabíamos o
que fazer delas. Algumas tiveram crises de nervos... Finalmente, resolvemos
levá-las à Estação da Finlândia, donde seguiram para Levachovo, onde
possuem um acampamento, conforme disseram...
Saímos. Fazia um frio glacial. O silêncio dessa noite polar era de vez em
quando interrompido pelos ruídos de tropas invisíveis, pela marcha das
patrulhas. Do outro lado do rio, onde a Fortaleza de Pedro e Paulo aparecia
como uma massa escura, veio em nossa direção um ruído surdo,
indefinível... Sob nossos pés, estavam pequenos fragmentos do estuque da
cornija do palácio, onde caíram dois obuzes do couraçado Aurora*. Fora
disso, nada indicava que o palácio tivesse sido bombardeado, pois as balas
não causaram mais nenhum estrago senão esse.
*O couraçado Aurora, um navio de porte relativamente pequeno, continua ancorado no
mesmo lugar de onde bombardeou o Palácio de Inverno, transformado em monumento da
Revolução. (N. do E.)
Eram três horas da madrugada. Reverberavam todas as luzes da Avenida
Niévski. O canhão de três polegadas desaparecera. Víamos, agora,
unicamente, guardas vermelhos e soldados sentados de cócoras, ao redor das
fogueiras. Sem sua presença, ninguém seria capaz de dizer que, pouco antes,
Petrogrado fora agitada por uma insurreição. A cidade estava tranqüila, tão
quieta como talvez nunca tivesse estado em outra época da sua história.
Naquela noite, não houve um único crime; nem um só roubo.
O edifício da Duma Municipal estava com todas as luzes acesas.
Subimos à Sala de Alexandre, rodeada de tribunas e com as paredes
recobertas de retratos da família imperial, emoldurados a ouro, agora ocultos
por cortinas vermelhas.
Em torno do estrado, de onde Skobeliev falava, agrupavam-se umas cem
pessoas. Skobeliev propunha a união de todos os elementos e facções
antibolcheviques numa única e poderosa organização intitulada Comitê para
a Salvação do País e da Revolução. À minha vista, foi organizado esse
Comitê de Salvação, que, daí por diante, seria o mais temível inimigo dos
bolcheviques, ora atuando com o próprio nome, que indicava claramente
seus fins, ora acobertando-se sob o título de Comitê de Segurança Pública,
por meio do qual procurava simular neutralidade.
Dan, Gotz e Avksentiev estavam presentes. Viam-se também alguns
membros da oposição do Congresso dos Sovietes, outros do Comitê
Executivo dos Sovietes Camponeses, o velho Prokópovitch e até alguns
membros do Conselho da República, entre os quais Vinaver e seus
companheiros do Partido Cadete.
Lieber declarou que o Congresso dos Sovietes era ilegal e que o antigo
Tsik ia continuar funcionando... Redigiu-se, em seguida, um projeto de
manifesto, dirigido ao país.
Tomei um carro. Mal acabei de dizer ao cocheiro: "Vamos para o
Smólni", vi, com surpresa, que sacudia a cabeça e nos convidava a saltar: —
É impossível! Aquilo é um inferno!...
Depois de andar um tempo enorme à procura de condução, conseguimos
encontrar um cocheiro disposto a levar-nos. Cobrou-nos trinta rublos,
largando-nos dois quarteirões antes do Smólni.
As janelas do Smólni ainda estavam iluminadas. Os automóveis iam e
vinham. Encolhidas ao redor das fogueiras as sentinelas interrogavam
ansiosamente os recém-chegados sobre a marcha dos acontecimentos. Os
corredores estavam cheios de gente nervosa e atarefada, de olhos sonolentos,
suja. Em certas salas de reunião, vimos homens dormindo no chão,
abraçados aos fuzis. Alguns delegados haviam-se retirado do Congresso,
mas, assim mesmo, a sala de sessões ainda estava abarrotada e agitada como
um mar em borrasca. Quando entramos, Kamenev lia os nomes dos
ministros que tinham sido presos. O de Terestchenko foi recebido com uma
tempestade de aplausos, de risos, de gritos de alegria. Rutenberg obteve
menos êxito. O de Palchinski provocou um furacão de protestos, de gritos de
raiva, de hurras. Em seguida, comunicaram que Tchudnovski fora nomeado
comissário do Palácio de Inverno.
Essa declaração foi interrompida por um acontecimento dramático. Um
camponês de elevada estatura, o rosto barbudo convulsionado pela raiva,
subiu à tribuna e desferiu formidável murro na mesa da presidência:
— Nós, socialistas revolucionários, exigimos a liberdade imediata dos
ministros socialistas presos no Palácio de Inverno. Camaradas! Quatro
companheiros nossos, que arriscaram a vida combatendo a tirania czarista,
acabam de ser atirados à Fortaleza de Pedro e Paulo, o histórico túmulo da
liberdade!
No meio do tumulto, esmurrando a mesa e gritando, outro delegado
colocou-se ao seu lado, e, dirigindo-se à presidência, indagou:
— Os representantes das massas revolucionárias poderão continuar
sentados nesses bancos, enquanto a Okrana dos bolcheviques tortura seus
chefes?
Trótski, de pé, pedia silêncio. Depois de alguns minutos, conseguiu falar:
— Esses "camaradas" foram presos em flagrante, quando conspiravam
para esmagar os sovietes, em aliança com o aventureiro Kerenski. Não
podíamos ser tolerantes. Eles, depois dos dias 16 e 18 de julho, agiram
contra nós sem a menor cerimônia, abertamente. Agora, os partidários da
guerra até o fim e os pusilânimes estão escondidos ou presos. Temos sobre
nossos ombros imensas responsabilidades. Temos de salvar a revolução.
Mais do que nunca, neste momento, é necessário trabalhar, trabalhar e
trabalhar. Não podemos ceder... Antes a morte!
Um comissário, recém-chegado a todo galope de Tsárskoie-Tseló,
substituiu-o na tribuna. Estava ofegante e coberto de lama.
— A guarnição de Tsárskoie -Tseló está às portas de Petrogrado, disposta
a lutar pelos sovietes sob a direção do Comitê Militar Revolucionário —
disse ele. — (Repetidos hurras de entusiasmo.) — O Corpo de Ciclistas,
enviado da frente, acaba de chegar a Tsárskoíe -Tseló. Os soldados estão do
nosso lado. Reconhecem o poder dos sovietes. Concordam com a entrega
imediata da terra aos camponeses e o controle das fábricas aos operários. O
5° Batalhão de Ciclistas, aquartelado em Tsárskoie -Tseló, também está do
nosso lado...
Falou, em seguida, um delegado do 3.° Batalhão de Ciclistas. Em meio
de delirante entusiasmo, disse que o destacamento havia recebido da frente
sudoeste ordem para vir defender Petrogrado. Essa ordem foi julgada
suspeita, desde os primeiros momentos. Na estação de Peredólnaia, os
representantes do 5.° Batalhão de Tsárskoie -Tseló, que esperavam pelos
ciclistas, puderam verificar, no comício ali realizado, que "os ciclistas se
recusavam unanimemente a verter o sangue dos seus irmãos para defender
um governo de burgueses e de grandes proprietários de terras".
Em nome dos mencheviques internacionalistas, Kapelinski propôs a
eleição de um comitê para tentar resolver pacificamente as questões que
estavam sendo solucionadas pela guerra civil:
— Não pode haver nenhuma solução pacífica — gritou a assembléia . A
única solução possível é a vitória! — A proposta de Kapelinski foi rejeitada
por maioria esmagadora. Os mencheviques internacionalistas, depois disso,
abandonaram o Congresso, debaixo de uma saraivada de injúrias e de
zombadas. A assembléia vencera o temor dos primeiros momentos. Agora,
não hesitava mais. Estava decididamente pela vitória armada da insurreição.
Resolveu não levar em consideração a retirada de algumas facções. Em
seguida, começou a discutir o seguinte manifesto, dirigido aos operários,
soldados e camponeses de toda a Rússia:
"OPERÁRIOS, SOLDADOS, CAMPONESES
"O Segundo Congresso Pan-Russo dos Sovietes dos Deputados
Operários e Soldados acaba de iniciar seus trabalhos. Representa a imensa
maioria dos sovietes e no seu seio estão, também, alguns delegados de
sovietes camponeses. O antigo Tsik oportunista não tem mais qualquer
poder. Apoiando-se na vontade da imensa maioria dos operários, soldados e
camponeses e na vitória dos operários e da guarnição de Petrogrado, o
Congresso assume o poder.
"O Governo Provisório foi deposto. A maior parte dos seus membros já
está presa.
"O poder soviético vai propor uma paz democrática imediata a todas as
nações e um armistício imediato em todas as frentes. Vai proceder à entrega
dos bens dos grandes proprietários de terras, da Coroa e da Igreja aos
comitês de camponeses. Vai defender os direitos dos soldados e estabelecer
uma completa democracia no Exército. Vai instituir o controle operário da
produção, assegurar a convocação da Assembléia Constituinte na data fixada
e agir com presteza no sentido de abastecer as cidades de pão e as aldeias de
todos os gêneros de primeira necessidade. Vai também assegurar a todas as
nacionalidades da Rússia o direito absoluto de disporem de si próprias.
"O Congresso resolve transferir em todas as províncias o exercício do
poder aos sovietes dos deputados operários, camponeses e soldados, que
devem manter a mais perfeita disciplina revolucionária.
"O Congresso convida os soldados das trincheiras a se conservarem
vigilantes e firmes. O Congresso dos Sovietes está firmemente convencido
de que o Exército revolucionário se acha disposto a lutar em defesa da
revolução, repelindo os ataques imperialistas, até que o novo governo possa
firmar, definitivamente, a paz democrática que proporá imediatamente a
todos os povos. O novo governo vai cuidar imediatamente de satisfazer as
necessidades do Exército revolucionário, através de uma firme política de
requisições e de taxação das classes de proprietários, em favor do
melhoramento da situação das famílias dos soldados.
"Os kornilovistas — Kerenski, Kaledin e outros — esforçam-se para
atirar as tropas contra Petrogrado. Vários regimentos, que haviam sido
enganados por Kerenski, já. passaram para o lado do povo insurreto.
"Soldados! Lutem ativamente contra o kornilovista Kerenski! Alerta!
"Ferroviários! Parem todos os trens de tropas enviadas por Kerenski
contra Petrogrado!
"Soldados, operários, funcionários: o destino da revolução e da paz
democrática está em suas mãos!
"Viva a revolução!
"O Congresso Pan-Russo dos Sovietes dos Deputados
Operários e Soldados. "Os delegados dos sovietes camponeses
presentes."
Eram exatamente cinco horas e dezessete minutos da manhã, quando
Krilenko, cambaleando de cansaço, subiu à tribuna com um telegrama na
mão: — Camaradas! Acabamos de receber o segundo telegrama da frente
norte. — E leu: — "O 2° Exército saúda o Congresso dos Sovietes e
comunica a formação do Comitê Militar Revolucionário, que assumiu o
comando da frente norte..." — (Delírio indescritível. Os delegados atiraramse
uns nos braços dos outros, chorando.) Krilenko continua: — "O General
Tcheremissov reconheceu o comitê. O comissário do Governo Provisório,
Voitinski, pediu demissão..."
A situação, pois, era a seguinte: Lênin e os operários de Petrogrado
haviam-se resolvido pela insurreição; o Soviete de Petrogrado derrubara o
Governo Provisório e colocara o Congresso dos Sovietes ante um fato
consumado, ante um vitorioso golpe de Estado. Faltava, agora, conquistar a
imensa Rússia... e, depois, o mundo. A Rússia iria apoiar a insurreição de
Petrogrado? Iria também sublevar-se? E o mundo? Os povos iriam atender
ao apelo que se lhes dirigia? A onda vermelha iria erguer-se da mesma forma
no resto do mundo?
Já haviam soado as seis horas da manhã, mas ainda era noite fechada.
Fazia frio. Lentamente, uma estranha claridade pálida invadiu as ruas,
amortecendo a luz das fogueiras. Eram os primeiros clarões da intensa
madrugada que começava em toda a Rússia!
4ª parte »»»