Capítulo I

OS BASTIDORES

Em fins de setembro de 1917, um professor de sociologia que percorria a
Rússia veio visitar-me em Petrogrado. Os homens de negócios e os
intelectuais haviam-lhe garantido que a revolução começara a declinar. O
professor acreditou em tais informações e escreveu um artigo sustentando
essa opinião. Entretanto, continuou a viajar pelo país, visitando cidades
industriais e pequenas aldeias do interior. Com assombro, verificou então
que a revolução parecia entrar em nova fase de desenvolvimento.
Entre os operários das fábricas e os camponeses pobres ouvia -se
freqüentemente falar de "todas as terras aos camponeses" e "todas as fábricas
aos trabalhadores". Se o professor tivesse visitado as trincheiras, verificaria,
também, que os soldados só falavam em paz...
O homem ficou aturdido, mas não havia razão para tal. Ambas as
observações eram corretas. Na Rússia, as classes dominantes tornavam-se
cada vez mais conservadoras, e as massas populares, cada vez mais radicais.
Os capitalistas, os negociantes e os intelectuais achavam que a revolução
não só já fora demasiado longe, como durara excessivamente... Era essa,
também, a opinião dos socialistas "moderados", que dominavam então, e dos
sociais-nacionalistas mencheviques e socialistas revolucionários, que
apoiavam o Governo Provisório de Kerenski.
Em 14 de outubro, o órgão oficial dos socialistas "moderados" escrevia:
"O drama da revolução tem dois atos: no primeiro, destrói-se o velho regime;
no segundo, cria -se o novo. O primeiro ato já durou muito tempo. Chegou o
momento de passarmos, quanto antes, ao segundo. Convém lembrar as
palavras de um antigo revolucionário: 'Amigos, precisamos terminar a
revolução imediatamente. Aqueles que a prolongam não colhem os seus
frutos...' "
Entretanto, os trabalhadores, os soldados e os camponeses não pensavam
do mesmo modo. Achavam, mesmo, que o "primeiro ato" ainda não havia
terminado. Na frente de combate, os comitês do Exército destituíam sem
cessar os oficiais que maltratavam os seus subordinados. Na retaguarda, os
membros dos comitês agrários, eleitos pelos camponeses, foram
encarcerados porque tiveram a "audácia" de pôr em prática os dispositivos
governamentais sobre a propriedade da terra. Nas fábricas, os operários
lutavam contra as listas negras e os lockouts*. Mas, não era tudo: emigrados
políticos que chegavam à Rússia tornavam a ser expulsos do país como
"elementos indesejáveis". Houve mesmo casos de pessoas que, voltando para
casa, foram presas por terem participado da Revolução de 1905.
*Coligação de patrões que, em resposta à ameaça de greve de seus operários, fecham as
suas fábricas. (N. do T.)
Ao crescente descontentamento popular, os socialistas moderados
respondiam com: "Esperemos a Assembléia Constituinte que se reunirá em
dezembro!" As massas, porém, não se satisfaziam com essa resposta. A
Assembléia Constituinte seria muito bem recebida, sem dúvida, mas
existiam certos problemas que tinham de ser resolvidos com Assembléia
Constituinte ou sem ela. Por tais questões, levantadas na Revolução Russa
— paz, terra, liberdade e controle das indústrias pelos operários —, é que
haviam tombado os mártires que dormiam para sempre no Campo de Marte.
A data de convocação da Assembléia Constituinte já fora prorrogada por
duas vezes e, com toda a certeza, seria protela da até que o povo se acalmasse
e renunciasse às reivindicações revolucionárias.
Enquanto isso, os soldados começavam a resolver a questão da paz a seu
modo: pela deserção em massa. Os camponeses incendiavam as casas dos
seus senhores e dividiam as grandes propriedades entre si. Os operários
paralisavam a produção industrial pela sabotagem e declaravam-se,
freqüentemente, em greve. Está claro que, como era de se esperar, os
proprietários e a oficialidade procuravam contemporizar, fazendo todos os
esforços e usando da sua influência para impedir qualquer concessão
democrática.
A política do Governo Provisório oscilava entre reformas sem o menor
sentido prático e a repressão sanguinária contra as massas revolucionárias.
Uma lei emanada do ministro socialista do Trabalho decretava que os
comitês de fábrica deveriam reunir-se somente à tarde, depois das horas de
trabalho. Nas trincheiras, eram presos os agitadores dos partidos da
oposição. Nenhum jornal radical podia circular livremente e os
propagandistas da revolução eram punidos com a pena capital. Tentou-se o
desarmamento da Guarda Vermelha, e os cossacos partiram para o interior, a
fim de restabelecer a "ordem" nas províncias.
Essas providências eram apoiadas pelos socialistas "moderados" e pelos
seus chefes que ocupavam pastas no ministério, que consideravam ser
necessária a cooperação com as classes conservadoras. O povo, porém,
abandonou-os, passando para o lado dos bolcheviques, que reclamavam paz,
terra, controle da indústria pelos operários e um governo proletário.
Em setembro de 1917, a crise agravou-se enormemente. Contrariando a
vontade de todo o país, Kerenski e os socialistas "moderados" formaram um
governo de coalizão com a burguesia. Em conseqüência deste ato, os
mencheviques e os socialistas revolucionários perderam para sempre a
confiança que o povo trabalhador depositava neles.
Até meados de outubro, o jornal Rabótchi Put (O Caminho do
Proletariado) publicava, diariamente, um artigo intitulado "Os ministros
socialistas", apontando às massas os atos contra-revolucionários dos
socialistas "moderados". Nesses artigos, entre outras coisas, lia -se:
"Tseretelli: com o auxílio do General Polovtsev, desarmou os operários,
chacinou os soldados revolucionários e aprovou a aplicação da pena de
morte no Exército.
"Skobeliev: inicialmente, decretou o imposto de cem por cento sobre os
lucros. Agora, procura dissolver os comitês de fábrica.
"Avksentiev: prendeu centenas e centenas de agricultores, membros dos
comitês agrários, além de proibir a circulação de grande número de jornais
de operários e de camponeses.
"Tchernov: assinou o manifesto 'Imperial', decretando a dissolução do
Parlamento da Finlândia.
"Savinkov: uniu-se abertamente ao General Kornilov. Este 'salvador da
pátria' só não vendeu Petrogrado por motivos alheios à sua vontade.
"Zarudni: com a aprovação de Aleksinski e de Kerenski, prendeu os
melhores e mais ativos revolucionários, soldados e marinheiros.
"Nikítin: agiu como simples agente de polícia contra os ferroviários.
"Kerenski: não vale a pena citar seus feitos. A lista dos seus 'serviços' é
interminável..."
Os delegados dos marinheiros da esquadra do Báltico reuniram-se em
congresso, em Helsinque, e aprovaram uma resolução que começava assim:
"Exigimos do Governo Provisório a imediata expulsão do aventureiro
político, o 'socialista' Kerenski, que procura assassinar a revolução e age
contra os interesses das massas trabalhadoras, mancomunando-se
vergonhosamente com a burguesia".
De tudo isso nasceu a Revolução Bolchevique.
Em março de 1917, avalanchas de operários e de soldados se apoderaram
do Palácio da Táurida, obrigando a débil Duma Imperial a assumir o poder
supremo da Rússia. As massas populares, operários, soldados e marinheiros,
passaram, assim, a dirigir a marcha da revolução. Derrubaram o Ministério
Miliukov. Foram seus sovietes que proclamaram ao mundo inteiro as
condições de paz da Rússia: "Nenhuma anexação, nenhuma indenização.
Direito de os povos disporem de si próprios". E em julho, a sublevação
espontânea e desorganizada do proletariado, que assaltou novamente o
Palácio da Táurida aos gritos de "Todo o poder aos sovietes!", demonstrou,
mais uma vez, que as massas estavam decididas a impor a sua vontade.
Os bolcheviques constituíam nesse momento um pequeno partido, mas
se colocaram, resolutamente, à testa do movimento de julho. O fracasso
dessa tentativa sediciosa ergueu a opinião pública reacionária contra eles.
Sem chefes, suas tropas retornaram ao bairro de Viborg, o Saint-Antoine de
Petrogrado. O governo começou então a caçar os bolcheviques de maneira
selvagem, prendendo centenas e centenas de militantes do partido de Lênin,
entre os quais Trótski, Kamenev e Aleksandra Kolontai. Lênin e Zinoviev,
perseguidos pela justiça, tiveram de se esconder. Os jornais bolcheviques
foram proibidos de circular. Reacionários e provocadores espalhavam aos
quatro ventos que os bolcheviques eram agentes dos alemães. Gritaram tanto
que acabaram sendo ouvidos.
Mas o Governo Provisório não conseguiu provar que os bolcheviques
serviam como agentes de Guilherme II. Ao contrário, ficou evidenciado que
os documentos a respeito da imaginária conspiração pró-Alemanha não
passavam de grosseira falsificação. Aos poucos, os bolcheviques foram
sendo libertados pelos tribunais, com ou sem fiança e sem julgamento. Só
seis permaneceram presos. Evidenciou-se daí por diante, aos olhos de todo
mundo, a total impotência e indecisão do governo.
Os bolcheviques lançaram, então, novamente, a palavra de ordem "Todo
o poder aos sovietes!", tão querida das massas, apesar de, nessa época, a
maioria dos sovietes estar nas mãos dos seus encarniçados inimigos, os
socialistas "moderados".
Os bolcheviques sondaram os desejos do povo. Compreenderam as
aspirações elementares e rudes dos trabalhadores, dos soldados, dos
operários. Levando-as em conta, elaboraram o seu programa.
Os social-patriotas mencheviques, ao contrário, estavam ao lado da
burguesia, em íntimo contato com ela, entrando em acordos, firmando
compromissos. Em conseqüência dessa ação, os bolcheviques conquistaram
rapidamente as massas da Rússia.
Em julho, eram caçados como animais ferozes, insultados, desprezados.
Mas, em setembro, os marinheiros da esquadra do Báltico e os soldados já
haviam sido conquistados para a sua causa. As eleições realizadas nessa
época mostraram isso de modo bem expressivo, pois os mencheviques e os
socialistas revolucionários, que, em junho, concentravam setenta por cento
dos votos, obtiveram apenas dezoito por cento...
Um fato intrigou imensamente os observadores estrangeiros: o Comitê
Central Executivo dos Sovietes, os comitês centrais do Exército e da
Marinha e a direção central de alguns sindicatos, principalmente dos
sindicatos dos Telegrafistas e dos Ferroviários, faziam violenta oposição aos
bolcheviques. Contudo, era um fenômeno perfeitamente explicável. Esses
comitês haviam sido eleitos no verão anterior, quando os mencheviques e os
socialistas revolucionários gozavam de enorme prestígio. Depois, a situação
se modificou. Sabendo que não contavam mais com o apoio das massas,
esforçavam-se agora para impedir novas eleições ou para retardá-las o mais
possível.
O Congresso Pan-Russo devia ser convocado em setembro pelo Tsik, de
acordo com a Constituição dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados.
O Tsik justificava o retardamento dessa convocação, alegando que,
dentro de dois meses, a Assembléia Constituinte estaria reunida. E, na sua
opinião, depois da eleição da Assembléia, os sovietes deveriam desaparecer.
Entretanto, pouco a pouco, os bolcheviques conquistavam os sovietes locais,
os sindicatos e as massas de operários, soldados e camponeses, cujos
sovietes eram ainda conservadores, porque a consciência política dos
camponeses desenvolvia -se lentamente. Além disso, é preciso considerar que
o Partido Socialista Revolucionário fora o partido tradicionalmente
camponês, pelo menos durante uma geração inteira. Apesar de tudo, porém,
a consciência revolucionária desenvolvia -se também no meio agrícola. Isto
ficou bem claro em outubro, quando o Partido Socialista Revolucionário se
cindiu, surgindo uma nova facção política, a Esquerda Socialista
Revolucionária.
Ao mesmo tempo, vários sintomas indicavam que a reação começava a
se tornar mais confiante. No Teatro Trótski, de Petrogrado, durante a
representação da comédia Os pecados do czar, um grupo de monarquistas
interrompeu o espetáculo e quase chegou a linchar os atores, por estarem
"insultando o imperador". Certos jornais já pregavam abertamente que a
Rússia precisava de um "Napoleão russo". Os intelectuais burgueses
ridicularizavam os sovietes de deputados operários (rabótchikh deputátov)
chamando-os de "sobátchikh deputátov", o que significa "deputados de
cães".
No dia 15 de outubro, entrevistei um grande capitalista, Stiepan
Gueórguievitch Lianosov, conhecido como o "Rockefeller russo", um cadete
convicto.
— A revolução — disse-me ele — é uma doença. Cedo ou tarde as
potências estrangeiras terão de intervir, exatamente como um médico que
trata de uma criança enferma, ou alguém que a ensina a andar. É claro que a
intervenção estrangeira não se fará de modo mais ou menos impróprio. Mas
os países acabarão compreendendo o perigo do bolchevismo em suas
próprias terras... como o perigo que representam para si as contagiosas idéias
de "ditadura do proletariado" ou de "revolução socialista". Acho que será
muito difícil evitar esta intervenção. As fábricas estão fechando, os
transportes paralisam-se. Os alemães avançam. Entretanto, é possível que a
fome e a derrota façam o povo russo voltar à razão...
O banqueiro Lianosov estava plenamente convencido de que os
fabricantes e comerciantes não poderiam, em hipótese alguma, permitir a
existência dos comitês de fábrica ou tolerar o menor controle operário na
indústria.
— Em relação aos bolcheviques — continuou Lianosov —, penso o
seguinte: ou o governo evacua Petrogrado, declara o estado de sítio e
autoriza o chefe militar do distrito a tratar esses senhores sem as
formalidades legais... ou, se a Assembléia Constituinte se deixar dominar por
tendências utópic as, o governo deverá contar com a força das armas para
dissolvê-la...
O inverno, o terrível inverno russo, chegava. Eu ouvi muitos homens de
negócios dizendo:. "O inverno foi sempre o maior amigo da Rússia. É bem
provável que nos livre da revolução". Sem o menor entusiasmo, os soldados
sofriam e morriam na linha de frente. Os transportes ferroviários cessavam
por falta de combustível. As fábricas fechavam suas portas. E, no auge do
desespero, o povo gritava que a burguesia era responsável pelos sofrimentos
do povo e pelas derrotas das tropas russas.
Riga foi sitiada logo após o General Kornilov ter dito publicamente:
"Será necessário perder Riga, para que a nação torne a ter o senso do seu
dever?"
Nós, americanos, custávamos a crer que a luta de classes fosse capaz de
gerar ódios tão intensos. Vi oficiais na frente norte, que preferiam
abertamente uma catástrofe militar a qualquer entendimento com os comitês
de soldados. O secretário da seção dos cadetes de Petrogrado garantiu-me
que o descalabro econômico geral era parte de um plano organizado para
desmoralizar a revolução aos olhos das massas. Um diplomata aliado, cujo
nome prometi não revelar, confirmou o que me dissera o oficial. Soube ainda
que algumas minas de carvão perto de Khárkov tinham sido incendia das e
inundadas por seus próprios donos, e que muitos engenheiros de fábricas
têxteis, antes de abandoná-las em poder dos operários, destruíram suas
máquinas. Empregados ferroviários haviam sido igualmente surpreendidos
por trabalhadores quando inutilizavam suas locomotivas...
Grande parte da burguesia preferia os alemães à revolução. Neste
número, contava-se o próprio Governo Provisório, que não escondia mais o
seu ponto de vista.
Na casa onde eu residia, durante as refeições só se falava na próxima
chegada dos alemães, que viriam restabelecer "a ordem, a lei", etc... Uma
tarde, tomando chá em casa de um negociante de Moscou, perguntei às onze
pessoas presentes se preferiam Guilherme II aos bolcheviques. Os votos
foram dez a um a favor de Guilherme...
Os especuladores aproveitavam-se da desorganização total para
amontoar fortunas, que eram dispendidas em fantásticas orgias ou no
suborno de altos funcionários do governo. Gêneros de primeira necessidade
e comestíveis eram armazenados clandestinamente ou exportados para a
Suécia. Nos quatro primeiros meses de revolução, por exemplo, as reservas
de gêneros de primeira necessidade desapareceram dos grandes armazéns
municipais de Petrogrado. Os cereais acumulados davam para abastecer a
cidade durante dois anos, mas, num mês, desapareceram! De acordo com um
informe oficial do último ministro da Alimentação do Governo Provisório, o
quilo de café, em Vladivostok, era comprado por quatro rublos, enquanto o
consumidor em Petrogrado pagava vinte e seis rublos. Em todos os depósitos
e armazéns havia toneladas de alimentos e roupas, que só os ricos podiam
adquirir.
Conheci, numa pequena cidade do interior, um negociante transformado
em revendedor — maradior (bandido), como dizem os russos. Seus três
filhos tinham conseguido escapar ao serviço militar. Um deles especulava
fraudulentamente com produtos alimentícios. O outro vendia ouro
ilegalmente nas minas de Lena, na Finlândia. O terceiro era o principal
acionista de uma fábrica de chocolate que abastecia as sociedades
cooperativas locais sob a condição de estas lhe fornecerem tudo de que
necessitasse. Assim, enquanto a massa popular só obtinha cento e vinte e
cinco gramas de pão negro, com cartões especiais de racionamento, ele
conseguia em abundância pão branco, chá, açúcar, café, manteiga... Não
obstante, quando os soldados nas trincheiras, vencidos pelo frio, pela fome e
pela miséria, não puderam mais combater, toda essa família gritou,
indignada: "Covardes!" e "Como nos indignamos de ser russos". E quando,
finalmente, os bolcheviques descobriram e requisitaram os vastos depósitos,
que "ladrões" eles eram...
Auxiliando essa putrefação moral, moviam-se as antigas forças
subterrâneas, agindo sempre com os mesmos métodos, desde a queda de
Nicolau II — secretamente, mas em plena atividade.
Os agentes da misteriosa Okrana* continuavam trabalhando como no
tempo do czar, pró ou contra Kerenski, a serviço de quem pagasse mais...
Secretamente, numerosas organizações clandestinas funcionavam, como, por
exemplo, os Cem Negros, ocupadíssimos em restabelecer, de uma forma ou
de outra, a reação.
* Polícia secreta. (N. do E.)
Nessa atmosfera de corrupção e de monstruosas incertezas, dia após dia,
ouvia-se cada vez mais forte o coro profundo dos bolcheviques: "Todo o
poder aos sovietes! Todo o poder aos representantes diretos de milhões e
milhões de operários, soldados e camponeses! Fim à guerra insensata e à
diplomacia secreta, à especulação e à traição! A revolução está em perigo, e
com ela a classe operária de todo o mundo!"
O embate entre o proletariado e a classe média, entre os sovietes e o
governo, que começara em março, estava no auge. Após um salto
gigantesco, da Idade Média ao século XX, a Rússia apresentou ao mundo
alarmado dois tipos de revolução — a política e a social — através de uma
luta sangrenta.
Que vitalidade demonstrou a Revolução Russa, depois de tantos meses
de miséria e de desilusões! A burguesia precisava conhecer melhor a sua
Rússia. _Se assim fosse, a "doença" revolucionária não teria chegado até
onde chegou...
Olhando para trás, vemos que a Rússia, antes do levante de novembro,
parecia viver em outra época histórica, inacreditavelmente conservadora. Por
isso teve que se adaptar com rapidez a uma existência nova e agitada. Num
salto brusco, passava a uma política que fazia considerar os cadetes como
"inimigos do povo"; Kerenski, como "contra-revolucionário"; os chefes
socialistas, Tseretelli, Dan, Lieber, Gotz e Avksentiev, como reacionários; e
homens como Victor Tchernov, e até Máximo Górki, como direitistas...
Em dezembro de 1917, um grupo de dirigentes socialistas
revolucionários fez uma visita privada a Sir George Buchanan, embaixador
da Inglaterra, pedindo-lhe que não mencionasse o fato de terem ido visitá-lo,
pois eles poderiam ser considerados como "elementos da extrema direita".
— E pensar — disse Sir George — que há um ano atrás eu recebi
instruções do meu governo para não receber Miliukov, pois ele era um
perigoso esquerdista!
Setembro e outubro são os piores meses do ano na Rússia,
principalmente em Petrogrado. Sob um céu cinzento e nublado, nos dias
mais curtos, a chuva cai incessante, ensopando tudo. Amontoava-se a lama
em todas as ruas, cobrindo-as com uma camada movediça e pegajosa. A
falência completa da administração repercutiu enormemente na limpeza das
cidades. Do golfo da Finlândia soprava um vento úmido, que cobria as ruas
com um pesado manto de neblina gelada. Durante a noite, ao mesmo tempo
por economia e por medo dos zepelins*, Petrogrado ficava às escuras. Só
raramente se acendia uma lâmpada, e, assim mesmo, fraca. Nas casas, em
lugar de luz elétrica, empregavam-se velas ou lampiões de querosene das
dezoito horas à meia -noite. Das dezoito até as dez da manhã do dia seguinte,
a escuridão era tão densa nas ruas, que nada se via à distância de um passo.
Os roubos e os assaltos eram freqüentes. Nos hotéis, os hóspedes revezavamse
durante a noite montando guarda com um fuzil na mão. Isto acontecia sob
a gestão do Governo Provisório.
*Durante a Primeira Guerra Mundial, os alemães usaram dirigíveis para
bombardeamento aéreo. (N. do E.)
Semana após semana, os gêneros de primeira necessidade escasseavam.
A ração diária de pão foi diminuindo, de setecentos e cinqüenta gramas, para
quinhentos gramas, e, mais tarde, para duzentos e cinqüenta, e ainda par"a
cento e vinte e cinco. Afinal, veio uma semana em que se chegou a nada: não
havia mais pão. O açúcar ficou reduzido à ração de um quilo por mês, mas
consegui-lo era quase impossível. Uma barra de chocolate, ou quinhentos
gramas de caramelos da pior espécie, custavam em toda parte sete ou oito
rublos, isto é, um dólar, ao câmbio da época. O leite não dava senão para a
metade das crianças da cidade; a maior parte dos hotéis e das famílias não
teve leite durante meses. Na estação em que as frutas eram mais abundantes,
pêras e maçãs estavam sendo vendidas a um rublo cada uma.
Para comprar leite, pão, açúcar e fumo era necessário esperar, numa fila,
durante horas seguidas, sob uma gélida chuva. Chegando a casa tarde, de
volta de uma reunião que se prolongara pela noite adentro, antes do nascer
do dia, vi mulheres (muitas com crianças ao colo) chegando àquela hora para
serem atendidas mais cedo. Carlyle, na História da Revolução Francesa,
disse que o povo francês distingue-se, acima de todos os outros, pela
faculdade de esperar. Na Rússia, o povo estava acostumado a fazer isso
desde o reinado de Nicolau, o Santo. Daí por diante, com intermitência,
continuou a fazer filas, até o verão de 1917, quando se estabeleceu certa
ordem. Não se pode fazer idéia da situação desses pobres homens, que
ficavam o dia inteiro nas ruas frígidas de Petrogrado, em pleno inverno
russo! Nessas filas de homens à espera de pão, ouvi muitas vezes palavras de
descontentamento que, apesar de sua índole, as multidões russas deixavam
escapar...
É claro que os teatros funcionavam sem interrupção todas as noites,
inclusive aos domingos. Karsavina apareceu com um novo bailado no
Marinski, e todos os amantes da boa dança foram vê-la. Chaliápin cantava. A
morte de Ivan, o Terrível, de Tolstói, podia ser vista no Aleksandrinski,
representada por Meyerhold. E recordo-me de um estudante na Escola
Imperial de Pajens, que se manteve de pé, falando durante todo o espetáculo,
a olhar fixamente para o camarote vazio do czar, do qual haviam sido
arrancadas as águias imperiais... O Krivóie Zerkalo apresentou o Reigen, de
Schnitzler, com suntuosa montagem.
Apesar de o Hermitage e outros museus terem sido transferidos para
Moscou, todas as semanas realizavam-se exposições de pinturas. Grande
número de mulheres intelectuais assistia às conferências sobre arte, literatura
ou temas filosóficos para principiantes. Foi uma temporada bastante animada
para os teósofos. E o Exército da Salvação, admitido na Rússia pela primeira
vez na história, enchia as paredes com cartazes anunciando suas reuniões
protestantes, que distraíam e assombravam o auditório russo.
Como sempre acontece em casos semelhantes, a vida convencional e
fútil da cidade seguia o seu curso, ignorando a revolução tanto quanto
possível. Os poetas faziam versos, mas não sobre a revolução. Os pintores
realistas pintavam cenas históricas da Rússia medieval, mas não
reproduziam um só aspecto da revolução. As mocinhas das províncias
continuavam chegando à capital para aprender francês e estudar canto, e os
alegres oficiais exibiam nas antecâmaras os bordados dourados, os bachliki*
carmesins e as belas espadas caucasianas. Mulheres da pequena burguesia
saíam todas as tardes para o passeio ou o chá, levando consigo o minúsculo
açucareiro de ouro ou prata e um pãozinho escondido no regalo, repetindo
nas conversas fúteis que faziam votos pela volta do czar e pela entrada dos
alemães na Rússia. Ou que, pelo menos, aparecesse alguém capaz de
solucionar o problema das criadas... A filha de um amigo meu chegou um
dia a minha casa sufocada de indignação porque uma mulher, condutora de
bonde, a havia chamado de "camarada".
*A palavra deriva de "bach" (cabeça). Espécie de touca ou de echarpe. Usada por
certas tropas de cavalaria, ornada com borlas. (N. do E.)
No interior da imensa Rússia, tudo estava em atividade, preparando o
novo mundo. Os servos, que sempre haviam sido tratados como animais de
carga quase a troco de nada, já começavam a tornar-se independentes. Um
par de botinas custava mais de cem rublos e os salários eram quase sempre
inferiores a trinta e cinco rublos mensais: os criados não se sujeitavam mais
a permanecer nas filas e estragar os seus sapatos. Na nova Rússia, todo
homem e toda mulher podia votar; havia jornais operários que explicavam
esses novos e surpreendentes acontecimentos. Havia sovietes e sindicatos.
Os izvoztchiki (cocheiros), além do seu sindicato, possuíam até um
representante no Soviete de Petrogrado. Também os garçons de cafés e
restaurantes tinham sua organização e recusavam gorjetas. Nas paredes dos
restaurantes havia cartazes dizendo: "Não recebemos gorjetas", ou "Pelo fato
de ganhar a vida como garçom, um homem não merece ser insultado com o
oferecimento de gorjetas".
Nas frentes de combate os soldados estavam em luta contra os oficiais e
já conquistavam a autodeterminação pela formação dos próprios comitês. Os
comitês de fábrica tornavam-se mais experientes, aumentavam as suas forças
e preparavam-se para realizar sua missão histórica, combatendo a velha
ordem estabelecida. A Rússia inteira aprendia a ler, e lia política, história,
pois o povo queria "saber". Em cada cidade, em cada povoado, nas
trincheiras, cada agrupamento político possuía o seu jornal e, às vezes,
folhetos eram distribuídos aos milhares por centenas de organizações,
atingindo o Exército, as fábricas e os mais distantes rincões. A sede de
instrução, durante tanto tempo insatisfeita, lançou a Rússia num verdadeiro
delírio de manifestação de idéias. Só o Instituto Smólni, durante os primeiros
seis meses, expediu caminhões e trens abarrotados de brochuras e manifestos
de propaganda, que inundaram o país. A Rússia absorvia livros, manifestos e
jornais como a areia suga a água. Era insaciável. E não eram fábulas, história
falsificada, religião diluída ou novelas corruptoras, mas teorias econômicas e
sociais, filosofia, obras de Tolstói, Gógol e Górki.
O "aluvião dos discursos franceses", na palavra de Carlyle, era uma
simples gota d'água, ao lado desse oceano. Conferências, debates, discursos
nos teatros, circos, escolas, clubes, sovietes, salas de reunião, centros
sindicais, quartéis... Comícios nas trincheiras, nos bairros operários, nas
praças públicas, nas fábricas... que espetáculo maravilhoso ofereciam os
quarenta mil operários da fábrica Putilov reunidos, dispostos a ouvir
atentamente os social-democratas, os socialistas revolucionários, os
anarquistas, dissessem eles o que dissessem, sem se importarem com a
extensão dos discursos! Durante vários meses, em Petrogrado e em toda a
Rússia, cada esquina era uma trib una pública. No trens, nos bondes, em toda
parte, repentinamente, surgiam polêmicas e discursos.
A par disso, realizavam-se as conferências e os congressos pan-russos,
onde se reuniam habitantes dos dois continentes; as convenções dos sovietes,
das cooperativas, dos sindicatos, dos sacerdotes, dos camponeses, dos
partidos políticos: a Conferência Democrática, a Conferência de Moscou, o
Conselho da República Russa. Havia sempre em Petrogrado três ou quatro
convenções funcionando. Em todas as reuniões, eram rejeitadas as propostas
tendentes a limitar o tempo de intervenção dos oradores. Qualquer um podia
expressar livremente o seu pensamento.
Fui visitar postos avançados do 12.° Exército, perto de Riga, onde os
soldados extenuados, descalços, adoeciam no lodo das trincheiras. Quando
me viram, esses homens macilentos, com o sofrimento estampado nas faces,
padecendo o frio e a umidade que penetravam pelos vãos abertos nas vestes
esfarrapadas, correram para mim, perguntando ansiosos: — Você trouxe
algo para se ler?
Muita coisa havia mudado. A estátua de Catarina, a Grande, diante do
Teatro Aleksandrinski, teve uma bandeira vermelha nas mãos. Outras foram
içadas nos edifícios públicos, com as águias imperiais arrancadas ou
cobertas. Nas ruas, em lugar da feroz Gorodovoie (Guarda Civil), via -se
agora uma polícia pacífica, desarmada, apenas patrulhando. Mas ainda havia
uns tantos anacronismos. Por exemplo, a Tabel o Rangov — a Mesa da
Hierarquia —, que Pedro, o Grande, criou com mão de ferro para subjugar a
Rússia, ain da existia. Quase todo mundo, dos alunos das escolas para cima,
ainda vestia os uniformes regulamentares, com a efígie do imperador nos
botões e nas ombreiras. Depois das quatro da tarde, as ruas enchiam-se de
homens já velhos, com pastas debaixo do braço, que voltavam
melancolicamente para casa. Eram os funcionários dos ministérios e das
repartições públicas, talvez calculando intimamente quantos colegas
precisavam morrer para que fossem promovidos e chegassem ao posto de
chefe da administração ou a conselheiro privado, com a perspectiva de uma
aposentadoria com bons vencimentos e a possibilidade de conseguir a Cruz
de Santa Ana...
Este é o caso do Senador Sokolov, que, em plena revolução, não pôde
um dia participar de uma sessão do Senado, porque não vestira os trajes
protocolares de serviço do czar!
A revolta das massas da Rússia ia dirigir-se, logo depois, contra essas
forças retardatárias, que detinham o avanço de um povo em fermentação e
desagregação.

Capítulo II

APROXIMA-SE A TEMPESTADE

Esperando tornar-se o ditador da Rússia, em setembro, o General
Kornilov marchou sobre Petrogrado. Por trás dele, aparecia o punho armado
da burguesia, procurando descaradamente esmagar a revolução. Alguns
ministros socialistas estavam, também, ligados à conspiração. Sobre o
próprio Kerenski pesavam sérias suspeitas. Savinkov foi chamado pelo
comitê central de seu partido, o Partido Socialista Revolucionário, para
explicar sua atitude. Negando-se à explicação, foi expulso. Alguns generais e
ministros seus aliados foram depostos.
Após a queda do gabinete, Kerenski tentou formar novo governo com a
participação dos cadetes, o partido da burguesia. Mas o seu partido, o
Socialista Revolucionário, exigiu que os cadetes fossem excluídos. Kerenski
era contra essa resolução e ameaçou pedir demissão se os socialistas
revolucionários insistissem. A agitação popular era tão intensa, porém, que,
momentaneamente, não se pôde fazer-lhe oposição. Formou-se, então, um
diretório de cinco velhos ministros, encabeçados por Kerenski, que assumiu
o poder em caráter provisório, até a solução definitiva do impasse.
O golpe de Kornilov colocou todos os grupos socialistas, tanto os
moderados como os revolucionários, numa extrema situação de combate.
Basta de Kornilov. Devia constituir-se um novo governo que fosse
responsável perante todos os elementos que apoiaram a revolução. Resolvido
isso, o Tsik convidou as organizações populares a enviar delegados para uma
conferência democrática, que se reuniria em setembro, na cidade de
Petrogrado.
No seio do Tsik nasceram imediatamente três correntes. Os bolcheviques
exigiam que se convocasse o Congresso Pan-Russo dos Sovietes, que
deveria assenhorear-se do poder. O centro socialista revolucionário, dirigido
por Tchernov, ao lado da esquerda socialista revolucionária, dirigida por
Kamkov e Spiridonova, dos mencheviques internacionalistas do grupo
Martov, do centro menchevique representado por Bogdanov e Skobeliev,
pedia um governo socialista puro. Tseretelli, Dan e Lieber, à frente da ala
direita menchevique, e a direita socialista revolucionária dirigida por
Avksentiev e Gotz, insistiam na participação da burguesia no novo governo.
Os bolcheviques conquistaram a maioria dos sovietes, quase
simultaneamente em Petrogrado, Moscou, Kiev, Odessa e em outras cidades.
Os mencheviques e socialistas revolucionários, senhores do Tsik,
alarmados, achavam que, em último caso, Kornilov era um mal menor, em
relação a Lênin. O plano da representação na Conferência Democrática foi
revisto. Nele foram incluídos em maior número os delegados das
cooperativas socialistas e de outras organizações conservadoras. Apesar de
tudo, essa assembléia heterogênea votou, desde os primeiros instantes, um
governo de coalizão sem os cadetes. Diante da ameaça de Kerenski, de pedir
demissão, e da atitude dos socialistas moderados, que gritavam "A República
corre perigo", a assembléia resolveu, por pequena maioria, manifestar-se a
favor do princípio da coalizão com a burguesia, aprovando a formação de
uma espécie de parlamento consultivo, sem nenhum poder legislativo,
denominado Conselho Provisório da República Russa. A burguesia,
praticamente, dirigia o novo ministério e possuía a maior parte dos votos do
Conselho Provisório.
Como conseqüência, o Tsik perdeu a confiança das massas dos sovietes.
Deixou de representá-las e ilegalmente opôs-se à convocação de outro
congresso pan-russo dos sovietes, que deveria reunir-se em setembro. O Tsik
não só não queria convocar o Congresso, como não consentia que alguém o
convocasse. Seu órgão oficial, o Izvéstia (Novidades), já insinuava que a
missão dos sovietes estava prestes a terminar e que, dentro em breve, seriam
eles dissolvidos. Enquanto isso, o novo governo anunciava, também, que um
dos pontos do seu programa era a liquidação das "organizações
irresponsáveis", isto é, dos sovietes.
Os bolcheviques responderam convocando o Congresso dos Sovietes
para 2 de novembro e convidando-o a tomar o poder. Ao mesmo tempo,
retiraram-se do Conselho Provisório da República Russa, declarando que seu
partido não podia colaborar com um "governo traidor do povo".
A saída dos bolcheviques, entretanto, não trouxe a calma ao infortunado
conselho. As classes abastadas, momentaneamente senhoras do poder,
começaram a mostrar-se arrogantes. Os cadetes declararam que o governo
não tinha nenhum direito de proclamar a república na Rússia. Dirigiam-se ao
Exército e à Marinha pedindo providências para a dissolução dos comitês de
soldados e de marinheiros, lançando acusações contra os sovietes. No outro
extremo da assembléia, os mencheviques internacionalistas e a esquerda
socialista revolucionária reclamavam a distribuição da terra entre os
camponeses e o controle operário da indústria. Defendiam, assim,
praticamente, o programa bolchevique.
Ouvi a resposta de Martov aos cadetes. Doente, sem esperança de cura,
curvado sobre a tribuna, dizia com voz rouca, quase ininteligível, à bancada
da direita:
— Vocês dizem que somos derrotistas. Mas os verdadeiros derrotistas
são os que esperam o momento mais favorável para assinar a paz. São os que
estão sempre propondo a paz, mas que a transferem indefinidamente, até que
o Exército russo fique totalmente exterminado e a Rússia dividida entre os
diferentes grupos imperialistas. Vocês querem apenas impor à Rússia uma
política ditada pelos interesses da burguesia. A questão da paz não pode ser
adiada! Apresentando-a ao povo, todos verão que o esforço desses que vocês
chamam de agentes alemães, os zimmerwaldianos*, que, em todos os países,
sempre lutaram para despertar a consciência das massas democráticas, não
foi inútil.
*Membros da facção de revolucionários internacionalistas dos socialistas da Europa,
assim chamados por causa de sua participação na conferência internacional realizada em
Zimmerwald, Suíça, em 1915. (N. do E.)
Os mencheviques e os socialistas revolucionários oscilavam entre os dois
grupos. Mas, apesar de tudo, eram impelidos para a esquerda pelo crescente
descontentamento das massas. A Câmara estava dividida em dois grupos
inteiramente hostis e irreconciliáveis.
Tal era a situação quando a notícia da realização da Conferência de
Paris, há tanto tempo esperada, colocou na ordem-do-dia o candente
problema da política externa.
Teoricamente pelo menos, todos os partidos socialistas da Rússia eram a
favor de uma paz democrática, conseguida o mais depressa possível. Em
maio de 1917, o Soviete de Petrogrado, que se achava sob o domínio dos
mencheviques e dos socialistas revolucionários, proclamou as célebres
condições de paz propostas pela Rússia. Nessa ocasião, insistiu-se na
realização de uma conferência dos Aliados, para discutir as finalidades da
guerra.
Chegou-se, até, a fixar o mês de agosto como data provável. Em seguida,
essa data foi transferida para setembro. Mas, logo depois, soube-se que a
conferência só se reuniria no dia 10 de novembro.
O Governo Provisório propôs dois representantes: o reacionário General
Aleksêiev e Terestchenko, ministro do Exterior. De sua parte, os sovie tes
nomearam um delegado, Skobeliev, a quem deram informações
pormenorizadas no famoso nacaz*. Entretanto, o Governo Provisório
objetou a ambos, Skobeliev e o nacaz. Os embaixadores dos Aliados
protestaram. Na Câmara dos Comuns da Inglaterra, Bonar Law, referindo-se
ao assunto, chegou a dizer, friamente:
* O nacaz era um documento que continha, em síntese, toda a pretensão política dos
sovietes. (N. do T.)
— Se depender de mim, a Conferência de Paris não discutirá, de
nenhuma forma, os objetivos da guerra, mas simplesmente a maneira de
fazê-la prosseguir.
Toda a imprensa conservadora da Rússia exultou; e os bolcheviques
gritaram: — Vejam até onde os mencheviques e os socialistas
revolucionários nos levaram com a sua política de compromissos!
Milhões de homens do Exército russo, cuja frente de combate se estendia
por mais de mil quilômetros, agitados como um oceano enfurecido,
enviavam à capital, por intermédio de centenas e centenas de delegações, o
grito de: "Paz! Paz!"
Atravessei o rio para ir ao Circo Moderno, onde ia ter lugar um dos
grandes comícios populares, comícios esses que se realizavam todas as
noites, por toda a cidade, em número cada vez maior. No interior do
anfiteatro, simples e triste, iluminado por cinco pequenas lâmpadas
pendentes de um fio, apinhavam-se até o teto soldados, marinheiros,
trabalhadores e mulheres, ouvindo atentamente os oradores, como se
estivessem em jogo suas próprias vidas. Falava um soldado da 548.a Divisão.
Tinha uma verdadeira angústia na fisionomia macilenta e nos gestos
desesperados: — Camaradas — gritou ele —, os que estão no poder exigem
de nós sacrifícios sobre sacrifícios. Mas os que tudo têm nada sofrem.
Estamos em guerra com a Alemanha. Podemos consentir que generais
alemães entrem para o nosso Estado-Maior? Pois bem, companheiros:
estamos também em guerra com os capitalistas. Entretanto, consentimos que
eles ingressem no nosso governo. O soldado quer saber por quem combate.
Por Constantinopla, ou pela liberdade da Rússia? Pela democracia, ou pelo
banditismo capitalista? Se me provarem que estamos lutando pela revolução,
marcharei para a frente, sem que seja preciso me ameaçarem com a pena de
morte. Quando a terra pertencer aos camponeses, as fábricas aos operários, e
o poder aos sovietes, então teremos o que defender, então teremos por que
lutar.
Nos quartéis, escritórios, em todas as esquinas, um número incontável de
soldados discutia, todos clamando pelo fim da guerra, declarando que, se o
governo não tomasse medidas enérgicas para obter a paz, o Exército deixaria
as trincheiras e voltaria para casa.
O orador do 8.° Exército disse: — Estamos esgotados. Em cada
companhia, os que ainda vivem são poucos. Se não nos derem alimentos,
calçados e reforços, daqui a pouco as trincheiras estarão vazias. Paz ou
víveres! Ou o governo acaba com a guerra, ou atende às pretensões do
Exército...
A seguir, em nome do 46.° de Artilharia da Sibéria, falou um orador: —
Os oficiais não querem reconhecer os nossos comitês. Vendem-nos ao
inimigo; condenam à morte os nossos agitadores. E o governo, contrarevolucionário,
apóia os oficiais... Julgamos que a revolução nos ia dar a paz.
Agora, o governo não quer nem que se fale nisso. E não nos dá pão sequer
para nos mantermos vivos, ou munições para enfrentarmos os combates...
Circulavam boatos, de origem européia, sobre propostas de paz à custa
da Rússia. E as notícias sobre os maus-tratos que as tropas russas estavam
sofrendo na França fizeram crescer o descontentamento geral. A exemplo do
que já se fizera na Rússia, a Primeira Brigada tentou substituir os oficiais por
comitês de soldados e não quis seguir para Salonica, exigindo repatriamento.
Foi isolada, sitiada pela fome e duramente bombardeada por pesado fogo de
artilharia. Inúmeros soldados ali tombaram.
Em 29 de outubro, na sala de mármore branco com decorações
vermelhas do Palácio Marinski, onde estavam sendo realizadas as sessões do
Conselho da República, ouvi a declaração de Terestchenko sobre a política
externa do governo, declaração que o país exausto e sedento de paz esperava
com grande ansiedade.
Um moço alto, elegantemente trajado, barba escanhoada e maxilares
salientes, lia, com voz suave, um discurso literário e oco.
Nada de concreto. Os mesmos lugares-comuns de sempre sobre a
destruição do militarismo alemão com o auxílio dos Aliados.
As mesmas frases de sempre sobre os "interesses nacionais" da Rússia e
algumas observações a propósito das dificuldades criadas pelo nacaz dos
sovietes a Skobeliev. Terminou com o chavão costumeiro: — A Rússia é
uma grande potência. Aconteça o que acontecer, sê-lo-á sempre. Precisamos
defendê-la e mostrar que somos soldados de um grande ideal e filhos de uma
grande nação.
Ninguém ficou satisfeito. Os reacionários batiam-se por uma enérgica
política imperialista. Os partidos democráticos queriam que o governo
fizesse declarações decisivas no sentido da paz. Eis um editorial do Rabótchi
i Soldat (O Operário e o Soldado), órgão do Soviete Bolchevique de
Petrogrado:
"A RESPOSTA DO GOVERNO ÀS TRINCHEIRAS
"O mais taciturno dos nossos ministros, o Sr. Terestchenko, acaba de
dirigir as seguintes palavras às trincheiras:
" '1. Continuamos fiéis aos nossos aliados'. (É claro que aos governos, e
não aos povos.)
" '2. É inútil discutir, como faz a democracia, a respeito da possibilidade
ou da impossibilidade de uma campanha durante o inverno. Só os governos
aliados podem resolver isso.
" '3. A ofensiva de julho deu ótimos resultados.' (Não diz que
resultados.)
" '4. É mentira que os Aliados não se preocupam conosco. O ministro
tem em seu poder importantes declarações que o demonstram.'
(Declarações? E os fatos? E o comportamento da Marinha inglesa? E as
conversações entre o rei da Inglaterra e o contra-revolucionário emigrado, o
General Kurkov? O ministro nada diz a esse respeito.)
" '5. O nacaz e os diplomatas russos são da mesma opinião. Na
Conferência Interaliada é preciso que todos falemos a mesma linguagem.'
"Somente isto? Só. Aonde iremos por este caminho? Basta de confiar
nos Aliados e em Terestchenko. E a paz, quando virá?
" 'Quando os Aliados o permitirem.'
"Eis como o governo responde ao desejo de paz das trincheiras!"
Nos bastidores da política russa, começou a erguer-se um poder sinistro:
os cossacos. O Nóvaia Jizn, o jornal de Górki, chamou a atenção para suas
atividades:
"No começo da revolução, os cossacos recusaram-se a atirar contra o
povo. Quando Kornilov marchou sobre Petrogrado, eles recusaram-se a
segui-lo. De uma passiva lealdade à revolução, os cossacos passaram a uma
ativa política ofensiva (contra ela)..."
Kaledin, ataman* dos cossacos do Don, fora deposto pelo Governo
Provisório em virtude de suas ligações contra-revolucionárias com Kornilov.
Mas Kaledin não obedeceu. Recusou-se a abandonar o posto. Protegido por
três exércitos de cossacos, instalou-se em Novotcherkask, começando a
ameaçar o governo e a organizar conspirações. Tão grande era o seu poder,
que o governo foi obrigado a ignorar-lhe a insubordinação. Mais ainda: teve
de reconhecer formalmente o Conselho da União dos Exércitos Cossacos e
declarar ilegal a seção cossaca dos sovietes, que acabava de surgir.
*Ataman, ou betman. Chefe cossaco. Primitivamente, chefe político e militar. A partir do
século XVIII, designações dos oficiais superiores das tropas cossacas do Exército russo. (N.
do E.)
Em princípios de outubro, uma delegação visitou Kerenski, insistindo
energicamente para que fossem desmentidas as acusações formuladas contra
Kaledin, e censurando o primeiro-ministro pela condescendência para com
os sovietes. Kerenski concordou e prometeu deixar Kaledin em paz. Parece,
também, que disse: — Os dirigentes dos sovietes vêem em mim um déspota,
um tirano. O Governo Provisório não só não depende dos sovietes, como
considera sua existência uma verdadeira calamidade.
Mais ou menos na mesma época, outra comissão de cossacos visitou o
embaixador britânico, apresentando-se cinicamente como representante do
"povo cossaco livre".
No Don, surgira uma espécie de República dos Cossacos. O Kuban,
igualmente, declarou-se Estado cossaco independente. Os sovietes de
Rostov-do-Don e de Ekatierinburg foram dissolvidos por bandos armados, e
as sedes dos sindicatos mineiros de Khárkov assaltadas. Em todas essas
manifestações, o movimento cossaco se apresentava como anti-socialista e
militarista. Os seus chefes, como Kaledin, Kornilov, Dutov, Karankov e
Bardije, eram sustentados pelos grandes negociantes e banqueiros de
Moscou. A velha Rússia desmoronava-se rapidamente.
Na Ucrânia, na Finlândia, na Polônia, na Rússia Branca, os movimentos
nacionalistas desenvolviam-se e fortificavam-se audazmente. Os governos
locais, sob a direção das classes ricas, pediam a autonomia e sobrepunhamse
às ordens enviadas de Petrogrado. A Câmara da Finlândia, em Helsinque,
recusou-se a conceder um empréstimo ao Governo Provisório, proclamou a
independência do país e exigiu a retirada das tropas russas. A Rada*
burguesa de Kíev estendeu as fronteiras da Ucrânia até o distante Ural,
englobando, assim, as mais férteis regiões do sul da Rússia. Além disso,
começou a organizar um exército nacional. Seu primeiro-ministro,
Vinnintchenko, chegou a falar em paz separada com a Alemanha. O
Governo Provisório estava reduzido à completa impotência. A Sibéria e o
Cáucaso queriam eleger suas próprias assembléias constituintes. No país
inteiro, desenvolvia -se a luta encarniçada das autoridades contra os sovietes
locais de deputados operários e soldados.
*Conselho Popular Cossaco. Conselho Geral da Ucrânia. (N. do E.)
A situação fazia -se cada vez mais caótica. Os soldados desertavam em
massa; centenas de milhares abandonavam as trincheiras, em bandos errantes
que, como formidável maré, se moviam em fluxos e refluxos pelo país. Os
camponeses das províncias de Tambov e de Tvier, cansados de esperar a
divisão das terras, desesperados pelas medidas de repressão do governo,
incendiaram as casas dos senhores e assassinaram os grandes proprietários.
Moscou, Odessa e a região mineira do Don estavam sempre convulsionadas
por greves e lockouts. Todos os transportes ficaram paralisados. O Exército
morria de fome. Nas grandes cidades, já não havia pão.
Pressionado, ora pelos democráticos, ora pelos reacionários, o governo
nada fazia. E, quando era obrigado a agir, fazia -o sempre no interesse da
burguesia. Encarregaram os cossacos de reprimir a revolta dos camponeses e
as "paredes" operárias. Em Tachkent, as autoridades governamentais
liquidaram o soviete.
Em Petrogrado, o Conselho Econômico, criado para reconstruir a vida
econômica do país, oscilou entre as forças antagônicas do capital e do
trabalho, tornando-se, assim, impotente. E acabou sendo dissolvido por
Kerenski.
Com o apoio dos cadetes, os velhos quadros militares reclamavam leis
draconianas para restaurar a disciplina no Exército e na Marinha. O
Almirante Verderevski, ministro da Marinha, e o General Verkhóvski,
ministro da Guerra, insistiam em vão em que só uma nova, voluntária e
democrática disciplina, baseada na cooperação com os comitês de soldados e
de marinheiros, poderia salvar o Exército e a Marinha. Mas essas sugestões
não foram levadas em consideração.
Os reacionários demonstravam disposição em provocar o
descontentamento popular. Kornilov reabilitava-se. A imprensa burguesa,
cada vez mais insolente, defendia -o, chegando a chamá-lo de "o grande
patriota russo". O jornal de Burtzev, Obchtcheie Dielo (A Causa Comum),
reclamava uma ditadura do trio Kornilov, Kaledin e Kerenski.
Conversei, um dia, com Burtzev, na sala de imprensa do Conselho da
República. Era um homenzinho curvo, de cara enrugada, olhos escondidos
atrás dos óculos grossos, cabeleira desgrenhada e barba grisalha.
— Guarde bem o que digo, meu rapaz — disse-me ele. — A Rússia
precisa de um homem forte. Não mais devíamos pensar em revolução, mas
só cuidar dos alemães. Foi estupidez, grande estupidez, derrotar Kornilov.
Ele devia ter ganho a partida!
Na extrema direita, os órgãos dos vergonhosos monarquistas, Naródnii
Tribun (Tribuna do Povo), de Purichkiêvitch, Nóvaia Russ (A Nova Rússia),
e Jivóie Slóvo (A Palavra da Vida), advogavam abertamente a destruição
radical e imediata da democracia revolucionária.
A 23 de outubro, no golfo de Riga, navios russos travaram uma batalha
naval com a frota alemã. Sob pretexto de que Petrogrado corria perigo, o
Governo Provisório decidiu evacuar a capital. Em primeiro lugar,
disseminaria por toda a Rússia os depósitos de munições. O governo, em
seguida, iria para Moscou. Os bolcheviques, imediatamente, começaram a
gritar que o governo ia abandonar a capital para melhor esmagar a
revolução: — Riga foi entregue aos alemães! Agora querem entregar
Petrogrado!
A imprensa burguesa delirava de satisfação. O jornal cadete Rietch (A
Palavra) dizia:
''Em Moscou, o governo poderá continuar a trabalhar, numa atmosfera
tranqüila, sem ser perturbado pelos anarquistas".
Rodzianko, líder da ala direita do Partido Cadete, declarou no Utro
Rossíi (Alvorada da Rússia) que Petrogrado em poder dos alemães seria a
salvação da Rússia, porque destruiria os sovietes e a esquadra revolucionária
do Báltico:
"Petrogrado corre perigo. E eu digo: Deus proteja Petrogrado. É voz
corrente que, se perdermos Petrogrado, as organizações centrais
revolucionárias serão liquidadas. Tanto melhor. Assim não levarão a Rússia
à catástrofe...
"Com a queda de Petrogrado, a frota do Báltico também será destruída. E
isto só poderá alegrar-nos, porque a maioria dos seus navios já está
completamente desmoralizada..."
Diante da ameaça de uma grande tempestade popular, porém, o governo
abandonou o plano de evacuação.
Enquanto isso, o Congresso dos Sovietes aparecia no horizonte como
uma nuvem pressagiando tormenta, cheia de raios e trovões. Tanto o
governo como os socialistas moderados eram contra a realização do
Congresso. Os comitês centrais do Exército e da Marinha, os comitês
centrais de alguns sindicatos, os sovietes camponeses e, principalmente, o
Tsik lutavam com todas as forças para impedir sua realização. O Izvéstia e o
Golos Soldata (A Voz do Soldado), jornais publicados pelo Soviete de
Petrogrado, no momento dirigidos pelo Tsik, atacavam furiosamente o
Congresso, apoiados pela artilharia pesada do jornalismo socialista
revolucionário, ou seja, pelo Dielo Naroda (A Causa do Povo) e o Vólia
Naroda (A Vontade do Povo).
Delegados eram enviados a todos os cantos. As ordens telegráficas
voavam ao longo dos fios, enviando instruções aos comitês do Exército, aos
comitês dos distritos, para que fizessem o possível para suspender ou
retardar as eleições. Foram votadas publicamente diversas resoluções contra
o Congresso. Dizia -se, ainda, que a convocação do Congresso, nas vésperas
da Assembléia Constituinte, era contrária aos princípios democráticos.
Delegados das trincheiras, da União dos Ziemstvos, da União dos
Camponeses, da União dos Oficiais, dos Cavaleiros de São Jorge, dos
Batalhões da Morte, etc. protestavam, indignados contra a convocação... No
Conselho da República Russa, todas as vozes, num único coro,
manifestavam sua oposição. A máquina montada pela Revolução de Março
funcionava a todo vapor para impedir a realização do Congresso dos
Sovietes.
Por outro lado, muitos dos sovietes locais já eram bolcheviques, bem
como o eram muitos dos comitês de fábrica e organizações revolucionárias
do Exército e da Marinha. Em alguns lugares, o povo, não podendo eleger
livremente os delegados aos sovietes, improvisou reuniões para escolher
seus representantes e enviá -los a Petrogrado. Em outros, os comitês que se
opunham às eleições eram dissolv idos, e criados novos. Formidável onda de
revolta erguia -se, rompendo a crosta que lentamente se formara sobre a
chama revolucionária nos meses anteriores. Só mesmo um movimento
espontâneo das massas poderia garantir a realização do Congresso Pan-
Russo dos Sovietes.
Diariamente, nas fábricas e nos quartéis, os agitadores bolcheviques
atacavam violentamente o governo, qualificando-o de "governo de guerra
civil". Um domingo, fui a Obukóvski Zadov, fábrica de munições do
governo, situada na Avenida Schlusselburg.
O comício realizava-se entre as paredes de pedra e argamassa de um
edifício ainda em construção. Dez mil homens e mulheres, com trajes
escuros, espremiam-se sobre montões de lenha e tijolos, encarapitavam-se
sobre os andaimes ou aglomeravam-se em volta de uma tribuna forrada de
vermelho, ouvindo com atenção. De espaço a espaço, um sol desmaiado
apontava entre as nuvens e, atravessando as janelas, iluminava aquela massa
de rostos, simples, voltados para mim.
Lunatcharski, pequeno tipo de estudante com cara de artista, explicava
por que o poder devia ser tomado pelos sovietes. Só os sovietes podiam
assegurar a vitória da revolução e combater os inimigos que,
propositadamente, arruinavam o país e o Exército para facilitar o
aparecimento de um novo Kornilov.
Um soldado da divisão que combatia nas fronteiras romenas, fraco,
trágico, gritou com voz ardente: — Camaradas! Morremos de fome e de frio
nas trincheiras. Morremos inutilmente, sem razão alguma. Peço aos
camaradas norte-americanos, aqui presentes, que digam no seu país que os
russos lutaram até a morte em defesa da sua revolução. Permaneceremos
firmes, até que os outros povos venham em nosso auxílio. Companheiros!
Digam aos trabalhadores dos Estados Unidos que se levantem e lutem pela
revolução social!
Chegou a vez de Petróvski. Magro, voz apagada, mas implacável,
começou:
— A hora atual é de fatos e não de palavras. A situação econômica é
péssima. Precisamos aproveitar essa situação. Querem matar-nos de fome e
de frio. Provocam-nos. Mas, se ousarem tocar nas organizações do
proletariado, nós os varreremos como folhas secas da superfície da Terra.
De repente, a imprensa bolchevique aumentou. Além dos dois jornais
diários do partido, Rabótchi Put (O Caminho Operário) e Soldat (O
Soldado), apareceu um novo para os camponeses, o Deverênskaia Biednotá
(Os Camponeses Pobres), com uma tiragem diária de meio milhão de
exemplares. A 17 de outubro, surgiu outro diário, o Rabótchi i Soldat (O
Operário e o Soldado), que, no artigo de fundo, expunha o seguinte ponto de
vista bolchevique:
"O quarto ano de guerra aniquilará completamente com o país e com o
Exército. Petrogrado corre perigo. A contra-revolução exulta de contente
com a desgraça do povo. Desesperados, os camponeses revoltaram-se, mas
os proprietários e as autoridades governamentais estão chacinando nossos
irmãos do campo com as expedições de repressão. Fecham-se fábricas e
minas é os operários têm diante de si uma só perspectiva: morrer de fome. A
burguesia e seus generais querem restaurar uma disciplina de ferro no
Exército. Apoiados pela burguesia, os kornilovistas trabalham ativamente
para impedir a reunião da Assembléia Constituinte.
"O Governo Kerenski quer destruir a nação; está contra o povo, que só
poderá salvar-se continuando a revolução, levando-a até o fim. Por isso tudo,
o poder deve passar às mãos dos sovietes.
'' Reivindicamos:
"Todo poder aos sovietes, tanto na capital como nas províncias.
"A cessação de hostilidades em todas as frentes.
"Paz digna para todos os povos.
"Divisão das grandes propriedades entre os camponeses.
"Controle operário da produção industrial.
"Assembléia Constituinte eleita honestamente."
Vale a pena reproduzir aqui um trecho desse mesmo jornal, órgão dos
bolcheviques, que, nessa época, eram acusados de ser agentes a serviço da
Alemanha:
"O cáiser, imperador da Alemanha, responsável pela morte de milhões
de homens assassinados, quer agora atirar seu exército contra Petrogrado.
Devemos dirigir um apelo fraternal aos operários, soldados e camponeses da
Alemanha: 'Companheiros! Sigam o nosso exemplo! Levantem-se também
contra essa criminosa guerra!'
"Mas isso só pode ser feito por um governo revolucionário, que
represente verdadeiramente os operários, os soldados e os camponeses
russos, capaz de passar por cima da diplomacia e de dirigir-se diretamente às
tropas alemãs, enchendo suas trincheiras de manifestos impressos em
alemão. Nossa aviação poderá distribuí-los por toda a Alemanha."
No Conselho da República, o abismo que separava os dois extremos
tornava-se cada vez mais profundo.
— As classes proprietárias — gritava Karelin em nome da esquerda
socialista revolucionária — procuram servir-se da máquina do Estado para
atrelar a Rússia ao carro de guerra dos Aliados. Todos os partidos
revolucionários são contra tal política!
O velho Nikolai Tchaikóvski, representante dos socialistas populistas,
falou contra a divisão das terras entre os camponeses, adotando a opinião dos
cadetes:
— É preciso criar forte disciplina no Exército. Desde o começo da
guerra, tenho sempre afirmado que é um crime empreender reformas
econômicas e sociais em tempo de guerra. Estamos cometendo esse crime.
Eu, entretanto, não vou contra tais reformas, porque sou socialista! —
(Gritos à esquerda: "Não acreditamos!" Tempestade de aplausos à direita.)
Adzemov, em nome dos cadetes, declarou que não via necessidade de se
dizer ao Exército por que combatia. Cada soldado devia compreender que
seu primeiro dever era expulsar o inimigo do território da Rússia.
O próprio Kerenski usou duas vezes da palavra para defender
apaixonadamente a união nacional. No fim de um dos discursos, desfez-se
em lágrimas. A assembléia ouviu-o friamente, interrompendo-o com apartes
irônicos.
O Instituto Smólni, quartel-general do Tsik e do. Soviete de Petrogrado,
encontrava-se a vários quilômetros da cidade, às margens do Nievá. Tomei
um bonde lotado, que serpenteava e gemia, afundando-se no barro.
No fim da linha, elevavam-se as elegantes cúpulas azuis do Smólni,
grande edifício de três andares, com fachada de quartel, de duzentos metros
de comprimento. Ostentava, sobre a porta de entrada, enorme e insolente
brasão imperial, talhado na pedra, em alto-relevo. As organizações
revolucionárias de operários e de soldados tinham-se apossado do Instituto,
que, no antigo regime, fora convento-escola para os filhos da nobreza russa,
patrocinado pela própria czarina. No interior, havia para mais de cem quartos
e salas, brancos e vazios. Placas esmaltadas, no alto das portas, indicavam
aos visitantes que ali ficava a "Sala de aulas número 4", mais adiante a "Sala
dos professores", etc. Pedaços de cartão, em lugar de placas, com letreiros
mal desenhados, recentemente afixados nas portas, revelavam, no entanto,
que o edifício tinha novas funções: "Comitê Central dos Sovietes de
Petrogrado", "Tsik", "Departamento das Relações Exteriores", "União dos
Soldados Socialistas", "Comitê Central Pan-Russo dos Sindicatos", "Comitês
de Fábricas", "Comitê Central do Exército". Em outras salas, realizavam-se
as sessões dos departamentos centrais e as reuniões dos partidos políticos.
Através dos corredores, iluminados por lâmpadas colocadas aqui e acolá,
passava uma multidão apressada de operários e soldados. Alguns vinham
curvados sob o peso de grandes maços de jornais e de manifestos, isto é, de
materia l de propaganda de toda espécie. O ruído das grossas botas sobre o
assoalho lembrava um trovão surdo. Pelos cantos, viam-se cartazes com os
seguintes dizeres: "Camaradas! No interesse da sua própria saúde, cuidem da
higiene!" Em cada andar, no alto das escadas, haviam sido colocadas mesas
para a venda de folhetos e publicações políticas. No grande refeitório de teto
baixo, do andar térreo, estava instalado o restaurante. Comprei por dois
rublos um talão dando direito a uma refeição. Entrei na fila de milhares de
pessoas que esperavam a vez, encaminhando-se para o balcão onde vinte
homens e mulheres serviam sopa de verduras, pedaços de carne, montanhas
de cacha¹, que tiravam de imensos caldeirões, e pedaços de pão preto. Por
cinco copeques2, podia-se tomar uma xícara de chá. Cada pessoa, depois de
receber o prato, apanhava uma colher de madeira no interior de um cesto
sujo de gordura. Os bancos, ao lado das mesas, estavam repletos de
proletários famintos, que comiam trocando impressões, forjando planos ou
dizendo gracejos mais ou menos pesados.
1 Mingau de aveia. (N. do E.)
2 Moeda divisionária. A centésima parte do rublo.( N. do E.)
No primeiro andar havia outro restaurante, reservado ao Tsik, mas onde
todo mundo entrava. Nele, qualquer um podia servir-se de chá à vontade,
distribuído em grandes bules, e de pão com manteiga.
No segundo andar, na ala sul do edifício, ficava o antigo salão de baile,
transformado agora na grande sala de sessões. Era enorme, de teto alto e
paredes brancas, iluminado por centenas de lâmpadas elétricas pendentes de
candelabros de cristal e dividido ao meio por dois grandes lustres de vários
braços, atrás do que se via uma moldura de ouro, de onde fora retirado o
retrato do czar. Nos dias solenes, brilhavam nessa sala os reluzentes
uniformes dos oficiais, as vestes eclesiásticas... Havia até um lugar especial
reservado às grã-duquesas...
Do outro lado do corredor, justamente em frente ao grande salão de
sessões, instalara-se o Comitê de Credenciais do Soviete, no qual se
apresentavam os delegados: soldados fortes e bar: budos, operários de blusas
pretas, alguns camponeses com longa cabeleira caída sobre os ombros.
A moça encarregada do serviço, membro do grupo de Ple khânov, sorria
desdenhosamente:
— Não se parecem nada com os delegados do primeiro congresso —
disse-me ela. — Veja que fisionomias abrutalhadas e que expressões de
ignorância! Que gente inculta!
E não se enganava. A Rússia havia sido sacudida até as entranhas. Os
que se achavam nas maiores profundidades é que estavam agora vindo à
superfície.
O Comitê de Credenciais, nomeado pelo Tsik, procurava impugnar o
mandato de cada delegado, inventando motivos para declará-lo sem valor,
alegando quase sempre que as eleições tinham sido ilegais, etc. Karakan,
membro do Comitê Central Bolchevique, limitava-se a sorrir, dizendo aos
delegados:
— Não se assustem. Quando chegar o momento, faremos vocês
ocuparem seus lugares. Não se preocupem.
O Rabótchi i Soldai escrevia a respeito:
"Chamamos a atenção dos novos delegados do Congresso Pan-Russo
para o fato seguinte: certos membros do Comitê de Organização, desejando
impedir a realização do congresso, andam dizendo que ele não mais se
reunirá e aconselhando os delegados a embarcar de regresso. Não dêem
importância a esse amontoado de mentiras. Grandes dias se aproximam".
Era evidente que o quorum não seria atingido ainda a 2 de novembro.
Por isso, foi necessário transferir a abertura do congresso para o dia 7.
Mas o país estava grandemente excitado. Os mencheviques e socialistas
revolucionários, percebendo que iam ser derrotados, mudaram
repentinamente de tática. Começaram a telegrafar às organizações das
províncias, aconselhando-as a eleger o maior número possível de socialistas
moderados. Além disso, o Comitê Executivo dos Sovietes Camponeses
resolveu convocar, urgentemente, um congresso camponês, para o dia 13 de
dezembro, a fim de anular todas as resoluções adotadas pelo Congresso dos
Sovietes de Operários e Soldados.
Que iriam fazer os bolcheviques? Corria o boato de que os operários e
soldados estavam preparando uma demonstração armada. A imprensa
burguesa e reacionária profetizava uma insurreição e aconselhava o governo
a prender o Soviete de Petrogrado ou, ao menos, a impedir a reunião do
congresso. Alguns jornais, como o Novata Russ, preconizavam a matança
geral dos bolcheviques.
O jornal de Górki, Nóvaia Jizn, concordava com os bolcheviques na
afirmação de que os reacionários se esforçavam por destruir a revolução e
achava que, caso fosse necessário, os primeiros deveriam resistir pela força e
pelas armas, porém, todos os partidos da democracia revolucionária
deveriam formar uma frente única.
"Enquanto a democracia não tiver organizado suas forças mais
importantes e encontrar ainda forte resistência , não haverá vantagens em
atacar. Mas, se os elementos hostis recorrerem à força, então a democracia
revolucionária deverá travar a luta para tomar o poder e nesse
empreendimento será sustentada pelas camadas mais profundas do povo."
Górki assinalou que as duas imprensas, a reacionária e a governista,
incitavam os bolcheviques à violência. Acrescentava, outrossim, que uma
insurreição abriria o caminho para o advento de um novo Kornilov. Por isso,
aconselhava os bolcheviques a desmentirem os boatos que circulavam.
Petressov, no Dien (O Dia), órgão menchevique, publicou um artigo
sensacional, acompanhado de um mapa que, segundo ele, revelava o plano
secreto da insurreição bolchevique.
Como por encanto, as paredes encheram-se de avisos, manifestos,
convites, etc, dos comitês centrais dos moderados e conservadores, assim
como do Tsik, atacando qualquer "manifestação" e pedindo aos soldados e
operários que não dessem ouvidos aos agitadores.
Eis, por exemplo, a proclamação da seção militar do Partido Socialista
Revolucionário:
"Novamente, circulam boatos a respeito de um golpe de força que estaria
sendo planejado. Qual é a origem desses boatos? Que organização consente
que seus agitadores preguem a insurreição? Os bolcheviques, interrogados
pelo Tsik, afirmaram que não preparam nenhuma sublevação. Entretanto,
corremos perigo, porque essas notícias estão se espalhando. É possível que
alguns exaltados, contrariando os sentimentos e a vontade da maioria,
procurem excitar os operários, os soldados e os camponeses, e arrastá-los à
insurreição. Nos momentos graves, como o que presentemente atravessa a
Rússia revolucionária, qualquer levante pode desencadear uma guerra civil
de conseqüências funestas, que seria talvez a destruição total de todas as
organizações que o proletariado construiu com enormes sacrifícios. Os
conspiradores contra-revolucionários desejam a insurreição para exterminar
a revolução, abrir caminho para Guilherme II e impedir a convocação da
Assembléia Constituinte.
"Ninguém deve abandonar o seu posto!
"Abaixo a insurreição!"
Num dos corredores do Smólni, a 28 de outubro, falei com Kamenev,
homem baixinho, de barba ruiva e atitudes de latino. Ainda não sabia ao
certo se os delegados já eram em número suficiente para a abertura do
congresso.
— Se o congresso se realizar — disse-me ele —, será a expressão da
vontade de esmagadora maioria do povo. Se a maioria estiver do lado dos
bolcheviques, como espero, exigiremos que todo o poder passe aos sovietes.
Desse modo, o Governo Provisório desaparecerá.
Volodarski, jovem, alto, pálido, de óculos, aspecto doentio, disse-me
categoricamente:
— Lieber, Dan e os demais oportunistas estão sabotando o congresso.
Caso consigam impedir sua realização, seremos suficientemente realistas
para passarmos por cima.
Nos meus apontamentos, com a data de 29 de outubro, encontro os
seguintes trechos dos jornais do dia:
"Moguilev (Quartel-General): Concentraram-se aqui os regimentos leais
da Guarda, a Divisão Selvagem, os cossacos e os Batalhões da Morte.
"Os junkers* das escolas militares de Pavlóvski, Tsárskoie -Tseló e
Peterhof receberam ordens do governo para se aprontarem a fim de, ao
primeiro sinal, marcharem sobre Petrogrado. Os junkers de Oranienbaum já
estão na capital.
* Rapaz nobre, aluno oficial. (N. do E.)
"Parte da divisão de carros blindados foi concentrada no Palácio de
Inverno.
"Mediante uma ordem assinada por Trótski, a fábrica de armas de
Sastroretsk entregou aos delegados dos operários de Petrogrado muitos
milhares de fuzis.
"Numa reunião da guarda municipal, no bairro do Baixo-Liteinii,
aprovou-se uma moção, pedindo a transferência de todo o poder aos
sovietes."
Tais notas dão uma idéia exata da confusão reinante nesses dias febris.
Todos sentiam que alguma coisa ia acontecer, mas ninguém sabia o quê.
Na noite de 30 de outubro, numa sessão do Soviete de Petrogrado, no
Smólni, Trótski repeliu com desprezo as afirmações da imprensa burguesa.
Os jornais burgueses diziam que o Soviete considerava a insurreição armada
como uma tentativa dos reacionários para desacreditar e provocar a falência
do congresso. O Soviete de Petrogrado — disse Trótski — não está
preparando nenhuma demonstração armada. Mas, se for necessário, nós a
faremos, e teremos ao nosso lado a guarnição de Petrogrado. O governo
prepara a contra-revolução. A nossa resposta será uma ofensiva implacável e
decisiva.
De fato, o Soviete de Petrogrado não ordenara qualquer demonstração.
Mas o Comitê Central do Partido Comunista estudava a insurreição. Passou
a noite do dia 23 reunido. Estavam presentes todos os intelectuais do Partido,
os dirigentes e os delegados dos operários e da guarnição de Petrogrado.
Entre os intelectuais, só Lênin e Trótski eram pela insurreição. Os próprios
militares manifestavam-se contra. Passou-se à votação. Os partidários da
insurreição ficaram em minoria. Levantou-se, então, um trabalhador, de
aspecto rude, terrivelmente indignado, furibundo:
- Falo em nome dos proletários de Petrogrado — disse brutalmente. —
Somos pela insurreição. Vocês façam o que bem entenderem. Mas eu os
previno: se deixarem que os sovietes sejam destruídos, vocês morrerão para
nós.
Alguns soldados o apoiaram. A questão foi novamente posta em votação.
E venceu!
A ala direita dos bolcheviques, contudo, dirigida por Riazanov, Kamenev
e Zinoviev, continuou a bater-se contra a sublevação armada.
O Rabótchi Vut, a 31 de outubro, pela manhã, começou a publicar a
"Carta a meus camaradas" de Lênin, um dos mais audaciosos escritos de
agitação política de todos os tempos.
Lênin defendia a insurreição, rebatendo as objeções formuladas por
Kamenev e Riazanov.
"Ou renunciamos à nossa palavra de ordem 'Todo o poder aos sovietes' ",
escrevia, "ou fazemos a insurreição. Não há outra alternativa."
Nesse mesmo dia, à tarde, Miliukov, dirigente dos cadetes, pronunciou
brilhante e violento discurso no Conselho da República. Apontou o nacaz de
Skobeliev como documento germanófilo, e declarou que a democracia
revolucionária estava levando a Rússia à ruína. Ridicularizou Terestchenko e
chegou a dizer que preferia a diplomacia alemã à russa. Na bancada da
esquerda houve tumulto.
Mas o governo, por seu lado, não podia ignorar o efeito da propaganda
bolchevique. No dia 29, uma comissão mista de representantes do governo e
do Conselho da República redigiu apressadamente dois projetos de lei. Um
deles entregava a terra temporariamente aos camponeses. O outro lançava as
bases de uma enérgica política de paz. No dia 30, Kerenski aboliu a pena de
morte no Exército. Nesse mesmo dia, à tarde, realizou-se, com a maior
solenidade, a sessão inaugural da nova Comissão para o Fortalecimento do
Regime Republicano e para a Luta contra a Anarquia e a Contra-Revolução,
que, aliás, não deixaria nenhum vestígio na história.
No dia seguinte, pela manhã, em companhia de um grupo de jornalistas,
entrevistei Kerenski. Foi sua última entrevista, como chefe do governo:
— O povo russo — disse, com amargura — sofre em virtude do
esgotamento econômico e está desiludido com os Aliados. O mundo pensa
que a Revolução Russa está terminando. Engana-se. A Revolução Russa mal
começou...
Essas palavras foram bem mais proféticas do que o próprio Kerenski
supunha.
A reunião do Soviete de Petrogrado, que durou toda a noite de 30, foi
agitadíssima. Eu estava presente. Socialistas moderados, intelectuais,
oficiais, membros dos comitês do Exército e do Tsik, em grande número,
assistiam à sessão. Os operários, camponeses e soldados, na sua linguagem
simples, levantavam-se contra eles atacando-os com veemência.
Um camponês referiu-se às desordens de Tvier, causadas, segundo disse,
pelas prisões dos comitês agrários.
— Esse Kerenski nada mais é que um testa-de-ferro dos grandes
proprietários — gritou. — Sabem que na Assembléia Constituinte nós lhes
arrebataremos as terras. É por isso que tentam dissolvê-la.
Um mecânico da fábrica Putilov disse que os diretores estavam fechando
as seções da fábrica, uma por uma, sob o pretexto de que não havia mais
combustível nem matérias-primas. Mas o comitê da fábrica descobria,
escondida, grande quantidade de combustível e de matérias-primas.
— Estamos sendo provocados — acrescentou. — Querem aniquilar-nos
pela fome e obrigar-nos a agir violentamente.
Outro orador, soldado, começou assim:
— Camaradas! Trago-lhes as saudações daqueles que, nas trincheiras,
estão cavando as próprias sepulturas.
Em seguida, ergueu-se outro soldado, moço, alto, porém alquebrado, e
de olhos relampejantes. Foi recebido por uma tempestade de aplausos. Era
Tchudnovski, que passava por morto desde os combates de julho e que,
agora, ressuscitava.
— As massas do Exército não têm mais nenhuma confiança nos oficiais.
Os próprios comitês do Exército, que se opuseram à reunião do nosso
soviete, também nos traíram. Os soldados querem que a Assembléia
Constituinte se reúna na data fixada! E ai daqueles que procurarem transferila!
Não é uma ameaça platônica o que afirmo, porque o Exército tem
canhões!
Falou, depois, da campanha eleitoral, em pleno desenvolvimento no 5°
Exército.
— Os oficiais, principalmente os mencheviques e os socialistas
revolucionários, trabalham sistematicamente pela derrota dos bolcheviques.
Nossos jornais não podem circular livremente nas trincheiras. Nossos
oradores são presos...
— Por que não menciona a falta de pão? — gritou outro soldado.
— Não se vive só de pão — respondeu Tchudnovski, rispidamente...
Um oficial, menchevique até a raiz dos cabelos, delegado do Soviete de
Vitebsk, falou a seguir:
— A questão do governo não é a mais difícil de resolver. A questão da
guerra, sim. Antes de pensar em realizar reformas, precisamos cuidar de
levar a guerra até o fim, até a vitória. — (Assobios e exclamações irônicas.)
— Os agitadores bolcheviques — continuou — são uns demagogos! —
(Gargalhada geral.) — Precisamos esquecer momentaneamente a luta de
classes...
Mas não pôde continuar. Uma tempestade de protestos, gritos,
zombarias, assobios e ameaças abafou-lhe as palavras. Uma voz gritou: —
Não pense que esquecemos!
Petrogrado apresentava curioso aspecto nesses dias. As salas dos
comitês, as fábricas, estavam cheias de fuzis. Os estafetas iam e vinham. A
Guarda Vermelha exercitava-se. Havia comícios todas as noites, em todos os
quartéis. Passavam-se os dias em discussões longas, intermináveis. Ao cair
da tarde, o povo enchia as ruas, uma onda imensa invadia a Avenida Niévski
e disputava os jornais da noite. Os assaltos aos transeuntes eram cada vez
mais freqüentes. Fora das ruas centrais, corria -se perigo.
Vi, certa tarde, no Sadovaies, uma multidão de centenas de pessoas que
atacava aos socos e pontapés um soldado, preso quando roubava. Em volta
das mulheres, que, tiritando de frio, esperavam horas e horas em longas filas
para conseguir pão e leite, circulavam misteriosos indivíduos murmurando
que os judeus tinham açambarcado os estoques de víveres e que os membros
dos sovietes viviam na opulência.
Para a entrada no Smólni, era preciso apresentar uma senha à Guarda
Vermelha. Nas salas de reunião, dia e noite, pairava um zumbido constante.
Centenas de soldados e operários dormiam no chão limpo, onde pudessem
achar lugar. Na grande sala do primeiro andar, mais de mil pessoas
esperavam o momento de tomar parte nos tumultuosos debates dos sovietes.
Desde o anoitecer até alta madrugada, os cassinos e os clubes
regurgitavam de freqüentadores que jogavam febrilmente no meio de
verdadeiras torrentes de champanha. Havia paradas até de vinte mil rublos.
Os cafés do centro da cidade continuavam também cheios de prostitutas
cobertas de jóias, exibindo custosos casacos de pele. Conspirações
monarquistas, espiões alemães, contrabandistas forjando planos...
A cidade imensa, sob um céu pardacento de chuva, envolvida pelo frio
implacável, caminhava, caminhava sempre, cada vez mais depressa. Para
onde?

3ª parte »»»