Segunda-feira, 21 de Setembro de 1942

Querida Kitty :

Hoje vou contar-te coisas miudinhas da nossa vida
diária. A sra. van Daan é insuportável. A cada passo me
censura por eu falar tanto. Não perde uma ocasião para
nos irritar. Agora meteu-se-lhe em cabeça que não havia
de lavar a louça! E se uma ou outra vez se digna fazê-lo,
quando um resto de comida ficou na panela não o guarda
num pratinho de vidro como nós fazemos, deixa-o ficar.
Resultado: estraga-se e, além disso, a Margot que tem
de lavar a louça na vez seguinte, tem o dobro do trabalho.
E ainda por cima tem de ouvir da senhora :
- Coitadinha da Margot, tem tanto trabalho!
O pai e eu arranjámos agora um entretenimento engraçado.

Estamos a elaborar uma árvore genealógica da família
dele. Conta-me coisas de todos os parentes. Então sinto-me
muito ligada à família.
De quinze em quinze dias, o sr. Koophuis traz da
biblioteca alguns livros para raparigas. Gostei imenso da
série - Joop-ter-Heul - e acho bonito tudo o que escreve
Gissy von Marxveldt. Já li quatro vezes as Alegrias de
Verão e rio-me sempre com a mesma vontade das
situações cómicas.
Também voltámos aos estudos : dedico-me muito ao
francês e, só de verbos, meto todos os dias cinco dos irregulares na cabeça. Peter faz os
exercícios de inglês
a suspirar. Recebemos livros escolares novos. Eu tinha trazido de casa um sortido de lápis,
cadernos, etiquetas, borrachas de safar, etc.
Ouço muitas vezes a emissora de Orange. Ainda há
pouco acabou de falar o príncipe Fernando. Contou que
estão à espera de outro bebé... Aqui todos se admiram
da minha afeição aos reis holandeses. Há dias falou-se
dos meus estudos e que eu ainda tinha muito que aprender.
Por consequência atirei-me mais ao trabalho. Não quero
voltar, mais tarde, ao primeiro ano. Também veio à baila
que eu não tinha lido nada ultimamente. A mãe está a ler - Heeren, Vrouwen, Knechten -.
Mas este livro não mo
querem deixar ler. Para o poder ler tenho de ficar, antes
de mais nada, tão esperta e culta como a minha inteligente
e talentosa irmã. Falou-se também sobre filosofia,
psicologia e fisiologia (estas palavras tão complicadas
fizeram-me ir ao dicionário), coisas de que nada sei.
Oxalá no próximo ano já seja menos ignorante.
Verifiquei uma coisa desastrosa, é que para o Inverno
só tenho um vestido de mangas compridas e três "gilets".
O pai deu-me licença para fazer uma camisola de lã
branca de carneiro. A lã já não está grande coisa, mas o
principal é que seja quentinha. Muitas roupas nossas estão
nas casas de outras pessoas, mas só depois da guerra
poderemos ir buscá-las, se ainda existir alguma coisa.
Estava eu, outro dia, a escrever precisamente sobre
a sra. van Daan quando ela entrou. Imediatamente fechei
o caderno.
-Então, Anne, deixas-me espreitar?
-Não, sra. van Daan!
-Só a última págína, está bem?
-Não, também não!
Ai! Que susto que passei. Era mesmo naquela página
que se lhe faziam referências pouco lisonjeiras.
Tua Anne.
Sexta-feira, 25 de Setembro de 1942
Querida Kitty:
Ontem - visitei - os van Daan, lá em cima, para tagarelar
um bocadinho. De vez em quando tem graça. Comemos
"bolachas de naftalina" (a lata das bolachas está no guarda-roupa,
onde há bolinhas contra a traça) e tomámos
limonada.
Falámos do Peter. Eu disse-lhes que ele, por vezes,
se queria chegar de mais a mim e que isto não me agradava
nada e que eu detestava tais demonstrações. Com modos
paternais perguntaram-me se eu não queria, apesar de
tudo, ser muito amiga do Peter, pois ele gostava de mim.
Pensei de mim para mim : ah!, meu Deus. Mas disse
em voz alta:
-Oh, não!, de maneira nenhuma!
Peter é esquivo como todos os rapazes que não conviveram
bastante com raparigas.

A "comissão do mergulho", formada pelos nossos protectores,
é de facto engenhosa. Ouve o que os senhores
inventaram! Querem fazer chegar notícias nossas ao
sr. van Dijk, um amigo nosso e representante principal da
firma "Travis". Aliás, ele tem também muitas coisas nossas
guardadas em sua casa. Assim escreveram uma carta a
um farmacêutico na Zelândia Meridional com o pedido
de uma informação. Juntaram um envelope que este
cliente utilizará para a resposta. Ora, o endereço da nossa
casa comercial foi escrito à mão por meu pai. Quando a
carta voltar, eles tirar-lhe-ão a resposta do farmacêutico,
meterão uma carta escrita pelo pai e, assim, o sr. van Dijk
terá um sinal de vida nosso. Escolheram a Zelândia, na
fronteira belga, sítio onde se torna mais fácil fazer passar
cartas assim.
Tua Anne.

Domingo, 27 de Setembro de 1942

Querida Kitty:

Outra zanga com a mãe. Não sei já quantas foram
ùltimamente! A maior parte das vezes não nos entendemos.
Também com a Margot já não tenho a mesma intimidade.
Não que na nossa família se façam "cenas" como lá em cima,
mas, mesmo assim, não acho graça nenhuma a isto. Tenho
uma maneira de ser diferente da de minha mãe e de
Margot. Sempre compreendi melhor as minhas amigas
do que compreendo a minha própria mãe. É lamentável.
A sra. van Daan está outra vez de mau humor. fecha
à chave a maior parte das suas coisas destinadas ao uso
da casa. Eu gostava tanto que a mãe lhe pagasse na mesma
moeda!
Há pais a quem parece dar prazer especial não só
educar os seus próprios filhos mas, também, os filhos dos
outros. A esta categoria pertencem os van Daan. a Margot
já não precisa de ser educada, é o amor, a bondade e a
Inteligência em pessoa. Mas o que ela tem a mais tenho
eu a menos! A cada passo, durante as refeições, chovem
recomendações sobre a minha pessoa e eu, de vez em
quando, não posso deixar de dar uma das minhas respostas
atrevidas, malcriadas até por vezes. O paii e a mãe
tomam sempre o meu partido e sem eles eu não me aguentava
na luta. Muitas vezes, os dois repreendem-me, ou
por eu falar de mais, ou por meter o nariz em tudo, ou
por não ser bastante modesta, mas não há meio de me
corrigir destes defeitos. Se o pai não fosse sempre tão
paciente eu já não tinha esperanças de ser capaz de me
emendar. E, vistas bem as coisas, os meus pais não exigem
muito de mim.

Quando acontece eu servir-me de pouca hortaliça, porque gosto pouco, mas de muitas
batatas, os van Daans
ficam todos enfurecidos com tais "mimalhices".
-Mais um bocado de hortaliça-diz a senhora
imediatamente.
-Obrigada, só queria batatas-respondo eu.
-Hortaliça faz bem à saúde, a tua mãe também assim
pensa. Vá, mais um bocadinho.
Insiste até que meu pai intervém e põe termo àquilo.
-Havias de ter visto como as coisas se passavam antigamente
em minha casa.-diz irritada-Coisas destas não
se admitiam. Isto não é educação! Estão a estragar a Anne.
Ai, se fosse minha filha!
É com estas palavras que termina sempre os seus discursos.
Ainda bem que não sou filha dela!
Ainda sobre educação. Ontem seguia-se um silêncio
depois de a sra. van Daan ter acabado o seu sermão. Por
fim meu pai disse :
-Acho a Anne uma rapariga bem-educada. Veja, ela
já compreendeu que o melhor é não responder aos seus
longos discursos. E no que respeita à hortaliça, só lhe digo
a si: vice-versa!
Ela sentiu-se totalmente vencida. Com aquele "vice-versa"
meu pai quis referir-se às pequenas porções que
ela própria costuma comer. Para se justificar, ela disse que
muita hortaliça à noite, como vai logo para a cama, lhe
fazia mal à digestão. Mas o que eu queria era que ela me
deixasse em paz! É divertido ver como a sra. van Daan
cora por tudo e por nada. Eu não, e ela inveja-me por isso.
Tua Anne.

Segunda-feira, 28 de Setembro de 1942

Querida Kitty:

Ontem não tinha acabado a carta mas tive de a interromper.
Vou contar-te mais outra zanga. Mas primeiro
deixa-me dizer-te que acho horrível e inconcebível que os
adultos se irritem e zanguem com tanta facilidade e por
causa das mais insignificantes bagatelas. Até há pouco
tempo eu julgava que só as crianças se zangavam e que isso
mais tarde já não acontecia. Já se vê, por vezes existem
motivos para grandes discussões. Mas eles ofendem-se uns
aos outros constantemente, com palavras veladas e isto
torna-se insuportável. Já me devia ter habituado porque
é o mesmo quase todos os dias. Mas não posso ficar indiferente
se as discussões (assim chamam àquilo, que é
apenas "barulho") giram em volta da minha pessoa. Dizem
de mim cobras e lagartos : a minha aparência, o meu
carácter, as minhas maneiras, tudo é remexido, criticado
e... condenado. Eu não estava habituada a ouvir palavras
duras e gritos. E agora querem que engula tudo isso?
Não, não posso! E não tenciono engolir tudo. Hei-de
mostrar-lhes que a Anne não é tola. Ainda se hão-de
admirar e calar o bico! Eles é que precisavam de ser
educados, não eu. De cada vez fico mais espantada com
tanta falta de correcção e tanta estupidez (a sra. van Daan!).
Mas hei-de me habituar também a isto e qualquer dia
ela há-de ouvir-me. Então serei de facto tão mal-educada,
atrevida, teimosa, estúpida e preguiçosa como me querem
fazer ver os de lá de cima. Bem sei que tenho muitos defeitos
e fraquezas, mas os de cima exageram de uma maneira
escandalosa.
Se tu soubesses Kitty como eu fervo cá por dentro quando oiço tantos insultos! Qualquer
dia a minha raiva
acumulada explode!
Se calhar estou a aborrecer-te, mas não posso deixar
de te contar ainda uma conversa à mesa, que foi muito
interessante e divertida. Estava-se a falar da grande modéstia
do Pim (Pim é a alcunha do pai). É tão evidente nele
a modéstia que até as pessoas mais broncas a notam. De
repente a sra. van Daan, que relaciona tudo, mas mesmo
tudo, consigo própria, disse :
-Eu também sou muito modesta, muito mais modesta
do que o meu marido.
O sr. van Daan quis atenuar esta frase e disse com
calma :
-Não quero ser muito modesto, porque creio que as
pessoas vaidosas vão muito mais longe na vida.

E depois dirigiu-se a mim:

-Não sejas demasiado modesta, Anne, não te servirá
de nada.
A mãe concordou, mas a Sra. van Daan teve que meter
de novo o bedelho e agora, em vez de falar para mim,
dirigiu-se aos meus pais :
-Vocês têm uma maneira estranha de dizer as coisas
à Anne. No meu tempo de rapariga isso era impossível.
Mas mesmo hoje não é assim que se educam os filhos,
excepto em famílias modernas como a vossa.
Com isso ela quis atacar o método de educação de
minha mãe, tantas vezes discutido. Estava vermelha como
fogo. Quando uma pessoa ferve daquela maneira quase
que já perdeu ojogo de antemão. A mãe, que estava muito
calma, quis pôr termo à discussão e disse :
-Sra. van Daan, acho também melhor não se ser
muito modesto. Meu marido, a Margot e o Peter são de
facto modestos de mais, seu marido, a senhora, Anne e eu
não somos precisamente vaidosos, mas não deixamos fazer
o ninho atrás da orelha.
-Mas eu sou modesta, sra. Frank! Como se atreve a
dizer o contrário?

A mãe :
-Não é precisamente vaidosa, sra. van Daan, mas
acho que modesta também não é.
A sra. van Daan:
- Então, já agora, gostava de saber quando é que
não sou modesta. Se não cuidasse um bocado de mim,
morreria provàvelmente de fome. Sou tão modesta como
seu marido.
Este auto-elogio fez com que minha mãe desse uma
gargalhada, o que irritou a "pobrezinha" de tal forma
que continuou a falar e a falar sem conseguir acabar.
Por fim atrapalhou-se de tal modo que perdeu o fio à
meada e, toda ofendida, levantou-se para sair do quarto.
Por acaso o seu olhar caiu sobre mim. Mal ela tinha virado
as costas, eu pus-me a abanar a cabeça, de um modo
meio piedoso, meio irónico, quase sem querer. Ela, ao
ver-me assim, já não saiu e começou a berrar, numa
linguagem feia e vulgar como uma velha e gorda peixeira.
Aquilo é que era um espectáculo divertido! Se eu soubesse
desenhar, tinha-a eternizado naquela atitude; que modelozinho
tão ridículo!
Uma coisa te vou dizer: se quiseres conhecer bem uma
pessoa, tens de te zangar uma vez com ela. Só então é
que podes julgá-la.
Tua Anne.

Terça-feira, 28 de Setembro de 1942

Querida Kitty:

Há sempre qualquer coisa para contar nesta casa!
Como não temos banheira, lavamo-nos numa celha.
E como no escritório (quero dizer em todo o andar de
baixo) há àgua quente, vamos os sete alternadamente para
baixo. Mas somos muito diferentes uns dos outros, no que
respeita ao pudor. Por isso, cada um, conforme a sua
maneira de ser, escolheu um ou outro lugar para o acto
de limpeza. Peter toma banho na cozinha, embora esta
tenha uma porta de vidro. Antes de começar a lavar-se,
avisa toda a gente e pede-nos que não passemos por
aquela porta durante uma meia hora.
O sr. van Daan prefere tomar banho em cima. Acha
que vale a pena carregar com a água quente, escada acima,
para poder gozar as comodidades do seu quarto. A sra. van
Daan, até hoje, ainda não tomou banho. Quer primeiro
estudar qual o lugar mais conveniente para ela. O pai
prefere o escritório particular e a mãe vai para detrás do
resguardo do fogão, na cozinha. A Margot e eu escolhemos
o escritório grande, para podermos chapinhar à vontade.
Todos os sábados, de tarde, fechamos as cortinas e assim,
no lusco-fusco, lavamo-nos. A que fica à espera, observa,
através de uma fenda das cortinas, o que se vai passando
lá fora e diverte-se com o vaivém tão patusco das pessoas.
Mas de há uma semana para cá, já não me agrada aquele
quarto de banho e tenho andado à procura de um sítio
mais confortável. O Peter teve uma ideia boa: propôs
que eu levasse as minhas coisas de banho para o grande
W.C. que pertence ao escritório. Aí, eu podia estar sozinha,
podia acender a luz, fechar a porta e, até, despejar a água
sem auxílio de ninguém. Hoje inaugurei o meu novo quarto de banho. Estou satisfeita.
Ontem esteve o picheleiro no andar de baixo para
deslocar os canos que ligam à canalização da nossa moradia.
Isto tinha que ser feito. De outro modo podia, no Inverno,
que talvez venha a ser rigoroso, gelar a água nos canos.
Essa visita foi para nós tudo, menos agradável. Não só
porque não se podia abrir uma torneira, mas também
porque não nos podiamos servir do W.C. Talvez não seja
lá muito elegante contar-te o que fizemos para remediar
o mal. Mas não sou tão pudica que não possa falar em tais
coisas. O pai e eu tínhamos tomado providências. Guardámos
alguns frascos de conserva de que agora nos servimos.

Forçosamente não podiam ser despejados e tinham de
ficar nos quartos. Mas achei isso menos repugnante do que
estar todo o dia quieta, sem poder falar. Tu não podes
imaginar quanto isto me custou a mim, que tanto gosto
de palrar. Vulgarmente já somos obrigados a falar muito
baixinho. Mas não falar mesmo nada e ficar sentada todo
o dia sem me mexer, acho que é dez vezes pior! Tinha o
rabo espalmado e nem o sentia; doeu-me durante três
dias. Passámos então a fazer ginástica todas as noites, o
que nos foi compondo.
Tua Anne

Quinta-feira, 1 de Outubro de 1942

Querida Kitty:

Ontem apanhei um susto terrível. às oito tocou a
campainha e eu já estava a imaginar o pior-já sabes o
que quero dizer com isto. Mas todos disseram que aquilo
deviam ter sido garotos, e eu acalmei.
Agora os dias passam num silêncio! Na cozinha do
escritório trabalha um farmacêutico, o sr. Lewin, que está
a fazer experiências para a firma. Conhece bem a casa
toda, e andamos sempre com o receio de que lhe venha
a ideia de entrar no laboratório antigo. Estamos muito
quietos. Quem, há três meses, teria adivinhado que a Anne,
sempre tão mexida, tinha de estar tanto tempo quieta
numa cadeira, sem falar?
No dia 26, a sra. van Daan fez anos: não houve grande
festa. Demos-lhe flores, umas prendinhas e um jantar
melhorado. Já é velha tradição o marido oferecer-lhe
cravos vermelhos. Falando da sra. van Daan, quero confessar-te
uma coisa. As suas tentativas de "flirtar" com
meu pai aborrecem-me do fundo do coração. Ela passa-lhe
a mão sobre a cara e o cabelo e mostra-lhe com preferência
as suas "lindas" pernas. Faz esforÇos para ser espirituosa
e tenta, sempre que pode, chamar a atenção do Pim sobre
ela. Pim não a acha bonita nem simpática e as seduções
dela deixam-no de todo indiferente. Não sou ciumenta,
palavra, mas aquilo custa-me a suportar. Já lhe disse a
ela na cara que minha mãe não se porta assim com o
sr. van Daan.

O Peter, por vezes, tem piada. Temos ambos a paixão
das brincadeiras de Carnaval e divertimo-nos bastante
com isso. Outro dia apareceu ele encafuado num vestido
muito apertado de sua mãe, com um chapelinho na cabeça.
Eu vesti o fato dele e pus a sua boina; os adultos quase
que morriam de tanto rír e nós estivemos também
divertidíssimos.
Elli comprou no armazém saias para mim e para a
Margot, de má qualidade e muito caras. E mais alguma
coisa engraçada ela nos prometeu: vai tratar de nos arranjar
lições de estenografia por correspondência. No ano
que vem seremos estenógrafas perfeitas. Que bom a gente
poder aprender esta espécie de "código" secreto.
Tua Anne.

Sábado, 3 de Outubro de 1942

Querida Kitty:

Ontem houve aqui grande zaragata. A mãe contou
todas as minhas travessuras ao pai, mas exagerou muito.
Chorou. Também chorei, e já tinha andado todo o dia
cheia de dores de cabeça. Eu então disse ao pai que gostava
mais dele do que da mãe. O Pim disse que isso havia de
passar, mas eu não acredito. Tenho de fazer grandes
esforços para ficar calma quando falo com a mãe. O pai
quer que a ajude, e lhe preste serviços quando ela se não
sente bem, mas eu não quero.
Estudo muito francês e estou a ler La belle Nivernaise.
Tua Anne.

Sexta-feira, 9 de Outubro de 1942

Querida Kitty!

Hoje só te posso dar notícias tristes e deprimentes.
Os nossos amigos e conhecidos judaicos são deportados
em massa. A Gestapo trata-os sem a menor consideração.
Em vagões de gado leva-os para yVesterbork, o campo
para judeus. Westerbork deve ser um sítio horrível. Estão
lá milhares de pessoas e nem há sequer lavatórios nem W.C.
que, de longe, cheguem para todos. Conta-se que as pessoas
dormem em barracas, homens, mulheres e crianças,
todos misturados. Não podem fugir: quase todos se podem
identificar pelas cabeças rapadas ou então pelo seu tipo
judaico.
Se já na Holanda as coisas se passam deste modo, como
há-de ser então nos sítios longínquos para onde levam
essa gente? A emissora inglesa fala de câmaras de gás.

De qualquer forma talvez seja a câmara de gás a maneira
mais rápida de se morrer... A Miep falou-nos de acontecimentos
terríveis e está excitadíssima. Ainda há pouco
encontrou, em frente da sua porta, uma velhinha manca.
Estava à espera do automóvel da Gestapo que recolhe as
pessoas umas após outras. A velha tremia de medo. Os
canhões da defesa atroavam os ares. Os raios dos projectores
cruzavam-se no céu, a trovoada dos aviões ingleses ecoava
entre as casas. Mas a Miep não teve coragem de arrastar
a mulherzinha para dentro da sua casa. Os alemães castigam
com dureza tais procedimentos.
Também a Elli está desanimada e triste. O seu noivo
foi levado para trabalhar na Alemanha. Ela receia que o
seu Dirk possa ser atingido quando há bombardeamentos.
Os aviões ingleses despejam milhões de quilos de bombas.
Piadinhas como: "Descansem, não lhes cairá em cima um milhão delas", ou "só uma bomba
chega bem", acho-as
grosseiras. O Dirk não foi o único que teve de partir.

Todos os dias saem comboios de jovens, forçados a ir.
Um ou outro consegue fugir pelo caminho ou "mergulhar",
mas são tão poucos! A minha cantiga triste ainda não
acabou. Já ouviste falar em reféns? Pois inventaram esta
coisa requintada. Parece-me o pior de tudo o que inventaram.
Gente inocente é presa. Se em qualquer parte se
dá uma "sabotage" e os autores não se encontrarem, fuzilam
simplesmente alguns dos reféns. Depois publicam a
notícia no jornal. E lembrar-me que também já fui alemã!
Hitler tirou-nos a nacionalidade há muito. Entre aquela
espécie de alemães-os hitlerianos-e os judeus existe uma
inimmizade como não pode haver mais forte em todo o
Mundo!
Tua Anne.

Sexta-feira, 16 de Outubro de 1942

Querida Kitty:

Tenho imenso que fazer. Traduzi um capítulo de La beLle
,Nivernaise. Tirei todos os significados novos. Depois fiz um
problema de matemática e ainda estudei três páginas de
gramática. Não gosto nada dos problemas nem me apetece
pegar-lhes. O pai também os acha complicados e, por
vezes, resolvo-os melhor eu do que ele, mas, em boa verdade,
nem ele nem eu sabemos muito disto e acabamos quase
sempre por chamar a Margot para nos dar uma ajuda.
Na estenografia sou eu quem vai à frente dos três. Ontem
acabei de ler Os Salteadores. É um bom livro, mas não se
pode comparar a ooter-Heul. continuo a dizer que acho
a Gissy v. Marxveldt uma escritora brilhante. Os meus
filhos hão-de ler os seus livros. O pai deu-me algumas
peças de teatro de Krner: O primo de Bremen, A governanta,
O dominó verde. Um bom escritor.
A mãe, a Margot e eu voltámos a ser amigas, o que
não deixa de ser muito agradável. Ontem a Margot deitou-se
ao meu lado na minha cama. Quase não havia
lugar para as duas, mas não fazes ideia como foi bom.
Ela perguntou-me se podia ler o meu diário. Eu disse:
-Algumas passagens podes.
Perguntei-lhe pelo diário dela. Disse que também mo
dava a ler. Depois falámos sobre o futuro e perguntei-lhe
o que ela queria ser. Mas não quis dizer, é um segredo.
Ouvi vagamente dizer que quer ser professora e suponho
que deve ser verdade. Acho que sou curiosa de mais. Hoje
de manhã estendi-me sobre a cama do Peter depois de
o ter expulsado de lá. Ficou furioso, mas não fiz caso.
Acho que podia ser mais amável comigo, pois ainda ontem
lhe dei uma maçã.

Ontem perguntei à Margot se me achava feia. Ela
disse-me que eu tinha um ar patusco e os olhos muito
bonitos. Uma resposta um bocado vaga, não te parece?
Até à próxima.
Tua Anne

Terça-feira, 20 de Outubro de 1942

Querida Kitty:
As minhas mãos ainda tremem com o susto que apanhámos,
embora isto já se tenha passado há duas horas.
Temos em casa os aparelhos "Minimax" contra incêndios.
Ninguém nos tinha dito que vinha gente enchê-los. E já
se vê, nós não tínhamos tomado cuidados especiais. Nisto
ouvi martelar do outro lado, no vestíbulo. Pensei que fosse
o marceneiro. A Elli estava a almoçar connosco. Avisei-a
para não descer. O pai e eu resolvemos ficar de guarda
e escutar atrás da porta até o homem acabar o trabalho.
Depois de ele ter martelado um quarto de hora, pôs a
ferramenta em cima do armário (pelo menos foi o que
supusemos) e bateu à nossa porta. Ficámos ambos pálidos.
Teria ele dado por alguma coisa e queria agora decifrar
o mistério? Com certeza, pois nunca mais acabava de
bater, puxar, empurrar. Eu ia quase desmaiando ao
lembrar-me de que aquele estranho iria descobrir o nosso
belo esconderijo e estava precisamente a pensar que decerto
ia morrer dentro de pouco, quando ouvi a voz do sr. Koophuis :
-Por amor de Deus, abram a porta. Sou eu.
Imediatamente abrimos. O gancho com que se fecha
a porta por dentro e de que os iniciados se servem também
do outro lado, estava preso e, por isso, não tinha sido
possível avisar-nos de que vinha o operário. O homem
já descera e como o sr. Koophuis, que vinha buscar a
Elli, não conseguia abrir a porta, pôs-se a fazer aquele
barulho todo. Que grande alívio! Na minha imaginação
eu tinha visto o homem prestes a entrar no nosso anexo
e a crescer até parecer um gigante invencível. Enfim,
tivemos sorte, pois tudo se passou sem mais novidade.
A segunda-feira foi um dia divertido! A Miep e o Henk
passaram cá a noite. A Margot e eu dormimos no quarto
dos pais, e o jovem casal nas nossas camas. A comida
estava um mimo. Mas não faltou também um pequeno
incidente. Houve curto-circuito, causado pelo candeeiro
do pai, e, de repente, ficámos às escuras. A caixa onde
se encontram os fusíveis fica no fundo do armazém e
não é brincadeira chegar lá sem luz. Mas conseguiu-se
e, dentro de dez minutos, os estragos estavam reparados
e apagámos a iluminação das velas.

Levantámo-nos cedo. O Henk tinha de se ir embora
às oito e meia e queriamos tomar o pequeno almoço
com ele e a Miep, sem pressas. Chovia a potes. A Miep
desceu ao escritório, radiante por não precisar de fazer
a caminhada do costume. O pai e eu fizemos as arrumações
e depois comecei a meter verbos franceses na cabeça.
Em seguida pus-me a ler Eternamente cantam as florestas,
um belo livro. Vou quase no fim.
Para a semana a Elli vem cá dormir!
Tua Anne

Quinta-feira, 26 de Outubro de 1942

Querida Kitty:
Estou aflita! O pai está doente. Tem muita temperatura
e manchas vermelhas pelo corpo, como acontece quando
se tem o sarampo. A mãe anda a tratá-lo e tem muito
cuidado para que ele transpire muito, porque assim talvez
a temperatura desça.
Hoje de manhã a Miep contou-nos que a casa dos
van Daans foi toda despejada pelos alemães. Ainda não
dissemos nada à sra. van Daan. Está muito nervosa ùltimamente
e não temos empenho nenhum em ouvir-lhe falar outra vez, durante horas, do seu lindo
serviço de porcelana e das mobílias valiosas que tinha em casa.
Também nós tivemos de abandonar tantas coisas bonitas!
E nada adiantamos com lamentações.
Já me deixam ler, de vez em quando, livros para adultos
e agora estou a ler A juventude de Eva de Nico van
Suchtelen. Não encontro grande diferença entre este livro
e a literatura para raparigas. Bem sei que neste livro
se fala de mulheres que vendem o corpo a homens estranhos
para ganhar um ror de dinheiro. Eu morreria
de vergonha! Também se conta que a Eva começou a
ter o "incómodo". Gostava de começar a ter o "incómodo"
É que isto dá-nos importância.
O pai foi buscar ao armário os dramas de Goethe e
de Schiller. Vai lê-los agora todas as noites em voz alta.
Começámos com Don Carlos. Para seguir o bom exemplo
do pai, a mãe entregou-me o seu livro de rezas. Eu não
quis ser indelicada e li umas páginas. Acho o livro bonito,
mas aquilo não me diz nada. Porque é que a mãe quer
que eu seja religiosa à força?
Amanhã acende-se o fogão pela primeira vez. calculo
o fumo que vai fazer, porque há muito tempo que não se
limpa a chaminé.
Tua Anne.

Sábado, 7 de Novembro de 1942

Querida Kitty:
A mãe está muito nervosa e isto é para mim como que
um perigoso escolho. Porque sou sempre eu quem paga as
favas.
Por exemplo, ontem, à noite : A Margot estava a ler um
livro com lindas ilustrações. Foi para cima e deixou ficar
o livro para quando voltasse. Comtinuá-lo-ia, então, a
lê-lo
não tinha nada de especial a fazer, peguei no livro
e pus-me a ver as gravuras. A Margot voltou, viu o "seu" livro
nas minhas mãos e franziu a testa. Queria-o outra vez. Eu
estava com vontade de o ver mais um bocadinho, mas a
Margot ficou zangada. Então a mãe disse :
-Era a Margot quem estava a ler áb á do quehse
Nesse momento entrou o pai. Nada se
tinha passado, mas pensou logo que quem tinha razão
era a Margot e disse para mim:
-Gostava de te ver, a ti, se a Margot folheasse um
livro teu.
Cedi imediatamente e pousei o livro. Então disseram
que eu fiquei ofendida. Mas eu não me sentia ofendida
nem zangada, apenas estava triste, muito triste.
O pai foi injusto, não devia julgar o caso sem o conhecer.
Eu teria devolvido o livro à Margot, de livre vontade
e muito mais depressa, se os pais não se tivessem metido
no assunto e tomado logo partido por ela. Enfim, que a
mãe se ponha do lado da Margot, é coisa natural. Morrem
uma pela outra. Já estou tão habituada que não me importo
com as descomposturas da mãe nem com o mau génio da
Margot. Sou amiga delas porque uma é minha mãe e a
outra minha irmã. Mas com o pai a coisa é diferente.
Quando ele dá preferência à Margot, quando acha bem tudo o que ela faz e lhe dá mimos,
então roo-me toda
por dentro, pois o pai é tudo para mim! É o meu ideal,
e amo-o como não amo a mais ninguém neste mundo.
Bem sei que ele nem se apercebe de que trata a Margot
de maneira diferente. Também não se pode negar que
a Margot é mais inteligente, mais bonita e melhor. Mas
não terei o direito de ser tomada a sério? Eles acham que
eu sou o palhaço da família e sofro duplamente por apanhar
tantos raspanetes e por ainda não conseguir compreender-me
bem a mim própria. Os carinhos superficiais já
não me satisfazem, nem sequer as tais conversas chamadas
sérias. Espero do pai alguma coisa mais, que ele decerto
me poderá dar. Não que tenha inveja da Margot.
Não cubiço a sua inteligência nem a sua beleza. O que
eu queria era o amor do pai, não só como sua filha, mas
como Anne, o ente humano que sou.
Agarro-me ao pai por ser ele o único que me faz conservar
o sentimento da família. Mas ele não compreende
que eu, por vezes, tenha necessidade de abrir-me, de
falar sobre a mãe. O pai não quer falar dos defeitos da
mãe e esquiva-se propositadamente a qualquer conversa
sobre o assunto. E, no entanto, a maneira de ser da mãe
pesa-me no coração. Por vezes não consigo dominar-me,
e faço-lhe ver o seu desprezo, ironia e dureza. Pois, decerto,
a culpa não será sempre minha, não é verdade?

Sou em tudo o contrário da mãe e, por isso, é inevitável
que nos choquemos. Não estou a criticar o seu carácter,
pois isso não me compete. Vejo-a apenas como minha mãe.
E ela não é para mim a mãe que idealizei. Parece que tenho
de ser eu própria a minha mãe. Desprendi-me deles,
sigo o meu próprio caminho. Quem sabe aonde chegarei
um dia? Na minha imaginação vejo o ideal de mulher
e de mãe, mas naquela a que tenho de dar o nome de
mãe nada disso encontro.
Proponho-me constantemente não reparar nos seus
defeitos, ver sòmente as suas qualidades e desenvolver
em mim o que nela procuro. Mas não é fácil, e o pior é
que nem o pai nem a mãe querem ver o que me falta
e é isto que lhes tomo a mal. Será possível que haja pais
capazes de contentarem inteiramente os filhos?
Por vezes penso que Deus quer pôr-me à prova. Tenho
de me aperfeiçoar sòzinha, sem exemplo e sem ajuda, só
assim hei-de ser um dia forte e resistente.
Quem, além de mim, lerá estas coisas? Quem pode
ajudar-me? Necessito de ajuda e de consolo! Sou muitas
vezes fraca e incapaz de ser aquilo que gostava de ser.
Sei-o e tento todos os dias, de novo, melhorar-me.
Nem sempre me tratam da mesma maneira. Um dia
pertenço à classe dos adultos e posso saber tudo, e no dia
seguinte a Anne não passou de um ser inexperiente que
julga ter aprendido alguma coisa nos livros mas que, na
realidade, não sabe coisa de jeito. Ora eu não sou um
bebé nem uma boneca para os divertir. Tenho os meus
ideais, o meu modo de pensar e os meus planos, embora
ainda me falte a capacidade de traduzir tudo isto em palavras.
Ai! tantas, tantas dúvidas que se me levantam quando
estou só, à noite, ou mesmo durante o dia quando estou
encerrada com toda esta gente quejá não posso ver à minha
frente e de que estou farta até não poder mais. Eles nada
compreendem dos meus problemas. Assim, volto sempre
ao meu diário. É ele o meu princípio e o meu fim. A ti,
Kitty, nunca te falta a paciência e prometo-te que hei-de
aguentar. Hei-de vencer a minha dor e seguir o meu
caminho. Só gostava de ter, de vez em quando, um pouco
de sucesso, de ser estimulada e encorajada, por alguém
que me tivesse amor!

Não me condenes! Por favor, compreende que, às
vezes, não posso mais!
Tua Anne.

Segunda-feira, 9 de Novembro de 1942

Querida Kitty :
Ontem o pai fez anos. Teve prendas bonitas, entre outras
um aparelho para fazer a barba e um isqueiro, não porque
fume muito, mas por ser chique.
Foi o sr. van Daan que lhe fez a maior surpresa: deu-lhe
a notícia de que os ingleses desembarcaram na Tunísia,
em Casablanca, na Algéria e em Orão.
-É o princípio do fim-disseram todos.
Mas Churchill, o Primeiro-Ministro da Inglaterra que,
decerto sabe mais disso, declarou num discurso:
- Este desembarque é uma fase importante, mas
ninguém deve convencer-se que ele significa o princípio
do fim. Eu, talvez gostasse antes de dizer que significa o
fim do princípio.
Compreendes a diferença? Mas, mesmo assim, há
motivos para sermos optimistas. Estalinegrado, a grande
cidade russa, que os alemães já estão a cercar há três
meses, ainda não se rendeu.
Voltaremos agora aos assuntos quotidianos : quero
descrever-te como nós, cá no anexo, nos abastecemos de
géneros. Antes de mais nada tenho de dizer-te que os
"de cima" são uns gulosos terríveis. O pão é-nos fornecido
por um padeiro simpático que o sr. Koophuis conhece
muito bem. Não podemos receber tanto como antigamente
em nossa casa, mas é o suficiente. Os talões de
aLimentação compram-se clandestinamente. Estão cada
vez mais caros. Primeiro pagávamos por eles vinte e sete
florins e agora já custam trinta e três. Imagina, um simples
pedacinho de papel!
Para termos, além das conservas, alimentos em casa
que não se estraguem, comprámos 35 quilos de legumes
secos que pendurámos em sacos no corredor, atrás da
porta giratória. Mas com o peso as costuras rompem-se e,
por isso, resolvemos levar todas essas reservas de Inverno
para o sótão. Confiámos ao Peter a tarefa de carregar
com os sacos. Ele já tinha levado cinco para o sítio e
estava prestes a carregar com o sexto quando rebentou
a costura inferior. Uma chuva, não, uma saraivada de
feijão vermelho desabou sobre a escada. Os outros, lá
em baixo (felizmente não havia estranhos no prédio),
julgavam que a casa ia ruir. O Peter apanhou um susto,
mas quando me viu a mim, ao pé da escada, coberta de
feijões que se iam amontoando no chão até acima dos
tornozelos, desatou numa grande gargalhada. Depressa começámos
a apanhar os feijões com desembaraço, mas estes são tão
pequenos e escorregadios que nos passavam pelos dedos
e desapareciam em todos os buracos e buraquinhos. Agora,
sempre que alguém sobe a escada, encontra um ou outro
feijão que entrega lá em cima à sra. van Daan.
Quase me ia esquecendo do mais importante: o pai já
está completamente bem!

Tua Anne.

P. S. Na rádio acabam de anunciar que a Algéria
caiu. Marrocos, Casablanca e Orão também estão nas
mãos dos ingleses. Agora não deve tardar a queda da
Tunísia.

Terça-feira, 10 de Novembro de 1942

Querida Kitty:
Uma novidade sensacional! Vamos meter mais um
"mergulhador". Já tinhamos dito muitas vezes que ainda
havia lugar e comida para mais uma pessoa. Só o que não
queríamos era dar tanto incómodo ao Kraler e ao Koophuis.
Mas como as notícias sobre as medonhas perseguições
aos judeus se tornam de dia para dia piores, o pai resolveu
sondar as possibilidades :
Resultado : Os dois senhores ficaram logo de acordo
com a ideia. "O perigo é o mesmo para sete ou para oito",
disseram e com razão.
O problema a resolver em seguida era saber qual das
pessoas isoladas das nossas relações ligava melhor com a
nossa "família mergulhada". Não foi difícil a escolha.
Depois de o pai ter rejeitado todas as propostas do sr. van
Daan para se receber uma pessoa da sua família, optou-se
por um dentista bastante conhecido,. de nome Albert
Dussel, que tem a mulher no estrangeiro. Tem fama de
pessoa agradável e tanto nós como os van Daan simpatizamos
com ele. Como a Miep também o conhece bem,
pode tratar de tudo. Se ele aceitar tem de dormir no meu
quarto no lugar da Margot que dormirá na cama-sofá,
no quarto dos pais.
Tua Anne.

Quinta-feira, 12 de Novembro de 1942

Querida Kitty:
O Dussel ficou muito contente quando a Miep lhe
falou de um bom esconderijo. Ela aconselhou-o a vir o
mais depressa possível, de preferência depois de amanhã.
Mas ele hesitou porque ainda precisava de pôr as fichas
em ordem, acabar o tratamento de dois clientes e pôr
as contas em dia. Foi o que a Miep nos contou hoje de
manhã. Não achámos nada bem aquilo, pois qualquer
demora pode ser prejudicial. Tais preparativos podem
exigir, da parte do Dussel, explicações a pessoas que não
queríamos que desconfiassem de nada. Pedimos à Miep
que o aconselhasse a vir no sábado. Ele disse que não,
que vinha na segunda-feira. É ridículo. Devia ter aproveitado
logo. Se o prenderem na rua, também não pode
pôr em dia a caixa ou acabar o tratamento dos clientes.
Quanto a mim, acho que o pai não devia ter cedido. De
resto, nada de novo.
Tua Anne.

Terça-feira, 17 de Novembro de 1942

Querida Kitty:
O Dussel chegou. Tudo correu bem. A Miep tinha-lhe
dito que esperasse em frente do correio geral. Pontualmente
lá apareceu. Então o sr. Koophuis, que o conhece,
foi ter com ele. Disse-lhe que o senhor com quem se queria
encontrar vinha um bocado mais tarde e que ele, Dussel,
esperasse antes junto da Miep, no escritório. Koophuis
meteu-se num carro eléctrico, enquanto o Dussel seguia
a pé. Chegou ao escritório às onze e meia. A Miep fez-lhe
tirar o sobretudo para que ninguém visse a estrela amarela
e depois pediu-lhe que esperasse no escritório particular
do sr. Koophuis.
Queria ela que a mulher das limpezas se fosse primeiro
embora. Mas, claro, o Dussel de nada sabia. Depois a
Miep levou-o para o andar de cima. Disse-lhe que não
podia estar mais tempo naquele escritório porque, daí
a um bocado, os chefes tinham uma reunião. O espanto
do homem foi grande quando viu a porta giratória abrir.
Ambos entraram.
Nós estávamos todos lá em cima, com os van Daan,
para receber o nosso companheiro com café e conhaque.
Entretanto a Miep fê-lo entrar na nossa sala de estar.
Ele reconheceu logo a mobília, mas, mesmo assim, não suspeitou
que estivéssemos tão próximos. Quando a Miep
lhe disse ficou de boca aberta, e ela nem lhe deu tempo
de a fechar: fê-lo subir imediatamente a escada.
O Dussel deixou-se cair numa cadeira, cravou os olhos
em cada um de nós e não quis acreditar no que viu.
Depois começou a balbuciar:
- Mas... não... mas então, não estão na Bélgica?

O tal oficial não os veio buscar? E o automóvel? Não
foram bem sucedidos na fuga?...
Explicámos-lhe que nós próprios tínhamos feito constar
a história do oficial para despistar as pessoas, em especial
os alemães, que podiam andar à nossa procura. O
Dussel ficou varado com tanto engenho e mais varado ainda
ficou quando se meteu a esquadrinhar todo o nosso esconderijo
tão bem imaginado e tão bem montado. Comemos
todos juntos. Depois ele deitou-se um bocado, tomou
o chá connosco e pôs nos devidos lugares as suas coisas,
que tinham trazido antes de ele chegar. Depressa se sentiu
como em sua casa, sobretudo depois de lhe terem
sido entregues os regulamentos do anexo (o plano foi
feito pelo sr. van Daan).
Prospecto e guia do anexo
Fundação criada propositadamente para a estadia
provisória de judeus e outros que tais.
Aberta todo o ano

Belamente localizada, calma, com arredores sem florestas
no coração de Amesterdão. Acessível pelas linhas
19 e 17; de automóvel ou bicicleta; e a pé para aqueles
a quem os alemães proibiram o uso de qualquer veículo.
Renda Gratuita.
Cozinha de dieta sem gorduras
Água corrente
No quarto de banho (sem banheira) e, infelizmente,
também em várias paredes.
EspaÇo largo reservado a bens de toda a espécie.
Central de rádio, com emissões directas de Londres,
New-York, TelAviv e muitas outras estações. O aparelho
está à disposição dos habitantes das seis horas da tarde
em diante.
Horas de repouso: Das dez horas da noite às sete e trinta da manhã. Domingo até às dez
horas. Atendendo a certas circunstâncias, também se intercalam outras horas de repouso,
conforme indicações da Direcção. Estas indicações devem ser
rigorosamente seguidas, no interesse da segurança comum!!!
Até novas ordens não há.
em surdina!
Todos os dias.
Uma lição de estenografia por semana. Inglês, Francês
e Matemática a qualquer hora do dia.
Pequeno almoço todos os dias, com excepção de domingos
e feriados, pontualmente às nove horas.
Almoço: da 1 e 15 à 1 e 45. Jantar: frio ou quente, não
tem horas fixas devido às notícias da rádio.
A "Celha" está à disposição dos habitantes todos os
domingos desde as nove horas. Pode tomar-se banho no
W.C., na cozinha, no escritório particular ou no outro
escritório, conforme o gosto de cada um.
Bebidas alcoólicas fortes Só permitidas por ordem médica.
Tua Anne.

Quinta-feira, 19 de Novembro de 1942

Querida Kitty:
Não estamos desapontados. O Dussel é de facto um
homem simpático. Para dizer com franqueza, não acho
lá muito agradável que um estranho se sirva das minhas
coisas no quarto, mas, para fazer uma boa acção, toda a
gente se deve sacrificar. Nada importa se pudermos salvar
alguém, diz o pai, e tem toda a razão.
Logo no primeiro dia o Dussel perguntou-me uma
série de coisas, por exemplo, quais eram as horas da mulher
da limpeza, e quais as do W. C. e onde me parecia a mim
o melhor sítio para se tomar banho. Não te rias, Kitty,
mas no esconderijo todas estas coisas são importantes.
Estão tantas vezes pessoas lá em baixo que não conhecem
o segredo! É necessário saber bem as horas de trabalho
delas para não fazermos barulho. Já expliquei tudo isto
ao Dussel, mas fiquei pasmada por ele ser tão lento.
Pergunta as coisas duas vezes e mesmo assim não as fixa.

Talvez ainda esteja um pouco atrapalhado, a surpresa
foi muito grande, e é natural que ele se tenha de adaptar.
O Dussel tem-nos contado muitas coisas do mundo
exterior, de onde partimos há tanto tempo. Tudo que
conta é triste. Inúmeros amigos e conhecidos foram levados
das suas casas e um destino terrível os espera. Noite após
noite os automóveis cinzentos e verdes dos militares
atravessam as ruas a toda a velocidade. Os "verdes (a SS
alemã) e os "pretos" (a Polícia Nazi holandesa) procuram
os judeus. Se encontram algum, levam-no, e a toda a
família. Tocam, por exemplo, numa porta e se não encontram
lá nenhum judeu, tocam na do vizinho e assim por
diante. Por vezes, andam com listas de nomes e procuram
os "marcados" sistematicamente. Só consegue escapar-lhes
quem "consegue fugir" a tempo. Por vezes aceitam um
resgate, mas são poucos os que conseguem escapar.
Fazem, hoje, o que há muitos anos foi feito com os
escravos. Maltratados, torturados, mortos enfim. O que
aconteceu com eles, nos tempos antigos, está hoje a
acontecer com os judeus.
Não poupam ninguém, homens, mulheres, velhos, crianças.
E nós aqui tão bem guardados! Podiamos fechar os olhos a toda
esta miséria, mas estamos sempre
em aflição por aqueles que nos são caros e a quem não
podemos dar uma ajuda.

Quando estou deitada na minha cama, cama tão quente
e confortável, enquanto as mais queridas amigas sofrem
lá fora, talvez expostas ao vento e à chuva, mortas até,
sinto-me quase má. Tenho medo ao pensar em todas as
pessoas às quais tanta coisa me liga e ao lembrar-me de que
estão entregues aos mais cruéis carrascos que a história
dos homens já conheceu. E tudo isto só por serem judeus!
Tua Anne.

Sexta-feira, 20 de Novembro de 1942

Querida Kitty:
Estamos todos um pouco desconcertados. Até agora
só recebíamos de longe em longe notícias sobre os judeus.
E daí, talvez fosse melhor assim. Quando a Miep por vezes
falava do destino trágico de pessoas nossas conhecidas, a
mãe e a sra. van Daan punham-se logo a chorar, de modo
que ela achou melhor não contar mais nada. Mas fizemos
muitas perguntas ao Dussel e o que ele conta é medonho,
é bárbaro. Não se consegue pensar em outra coisa. Será
possível que alguma vez mais possamos sair e divertir-nos
como outrora, mesmo quando tudo isto tiver passado?
Mas a verdade é que se transformarmos o nosso esconderijo
numa casa de luto, se ficarmos sempre melancólicos, não
adiantamos nada, nem para nós nem para os que lá fora
sofrem. Não posso fazer coisa nenhuma sem pensar naquela
gente que partiu. Se dou comigo a rir despreocupadamente,
assusto-mA e acho-me injusta por estar alegre. Mas hei-de
chorar todo o dia? Não, não posso. E o desânimo decerto
passará. Allém destas misérias, há outra coisa desagradável,
assunto pessoal e que, já se vê, nenhuma importância tem
comparado às tragédias de que acabo de falar: quero dizer
que me irrito tão só ùltimamente! Sinto um vácuo enorme
dentro de mim. Antigamente não pensava muito nisto.
Os divertimentos e as amizades prendiam-me o tempo.
Mas agora preocupam-me problemas sérios. Reconheci,
por exemplo, isto: o pai, embora me seja tão querido, não
pode substituir todo o meu mundo de outrora.
Achas-me ingrata, Kitty? Por vezes tenho a impressão
de não poder suportar mais: ouvir todas estas coisas
horríveis, ter as minhas próprias dificuldades e ainda por
cima ser o bode expiatório para tantas coisas que acontecem!
Tua Anne.

Sábado, 28 de Novembro de 1942

Querida Kitty:
Gastamos electricidade de mais, ultrapassamos os limites.
Temos de fazer economia, caso contrário cortam-nos a
corrente e estaremos quinze dias sem luz. Das quatro e
meia em diante não podemos ler mais. Matamos então o
tempo com várias distracções : adivinhas, ginástica, falar
inglês ou francês ou sobre os livros que acabamos de ler...
Com o tempo tudo se torna monótono. Descobri uma coisa
nova: com o binóculo posso espreitar para os quartos
iluminados dos vizinhos da frente. Durante o dia não
podemos abrir as cortinas nem um centímetro, mas à
noite já pode ser. Eu antes nunca sabia que os vizinhos
são pessoas tão interessantes. Observei alguns enquanto
comiam; numa outra família passavam um filme e o dentista,
mesmo em frente, estava a tratar uma velhinha
cheia de medo.
A propósito de dentista! O sr. Dussel, de quem se dizia
saber lidar tão bem com crianças e gostar muito delas,
revela-se um bota de elástico. A cada passo faz sermões
sobre boas maneiras e bom comportamento. Como sabes,
tenho a pouca sorte de partilhar o quarto com este senhor
tão "respeitável" e, como sou tida como a mais mal-educada
dos três jovens daqui, ele dá-me que fazer e por vezes
nem sei como escapar a tantas descomposturas e avisos.
Olha, faço-me surda! Mas tudo isto ainda se suportava
se o homem não fosse um "denunciante" de grande categoria
e se não tivesse escolhido precisamente a mãe para as suas
reclamações. Assim, recebo primeiro uma ensaboadela dele,
depois a mãe junta outra e, se estou com sorte, a sra. van
Daan também mete o bedelho para me censurar.
Ai! Kitty, não é fácil ser-se a pessoa mais mal-educada ou antes: o pára-raios de uma
família "mergulhada"
sempre a criticar e a educar! à noite, na cama, quando
passo em revista todos os meus pecados e todos os defeitos
que me são atribuídos, perco-me nessa abundância de
queixas e, quase sempre, começo a chorar... ou a rir,
conforme a disposição. Depois adormeço com a ideia tola
de querer ser diferente do que sou ou de que não sou como
queria ser e de que faço tudo ao contrário. Queria agir
de outra maneira e não ser como sou. Santo Deus! Agora
estou a baralhar tudo, não te zangues! Mas não risco o
que está escrito e rasgar a folha também não posso, porque
há grande falta de papel. Seria mesmo pecado! Assim
só te posso aconselhar a não voltares a ler a última frase
nem tentares aprofundá-la, que és capaz de não conseguir
voltar à superfície!
Tua Anne

Segunda-feira, 7 de Dezembro de 1942

Querida Kitty :
Chanuca e São Nicolau coincidem quase este ano.
O Chanuca festejámo-lo apenas com as velas, mas como
estas são agora uma preciosidade só as acendemos durante
dez minutos. As velas acesas e nós a cantarmos a canção
de Chanuca! O sr. van Daan construiu um lindo candelabro.
O São Nicolau, no sábado, ainda foi mais lindo.
A Elli e a Miep vinham para cima cochichar com o pai
e, assim, andávamos todos muito curiosos, pois compreendíamos
que estavam a preparar alguma surpresa. E, de
facto, às oito horas descemos a escada, através do corredor
escuro (arrepiei-me toda; tinha medo de não voltar inteirinha), para o escritório, no outro
andar. É um quarto
sem janelas e, assim, podíamos acender a luz. O pai abriu
o armário e todos exclamaram: "Que lindo!" No centro
estava um grande cesto, enfeitado com papéis coloridos,
e guarnecido simbòlicamente com a máscara do Pedro,
o negro. Transportámos o cesto para cima. Cada um
recebeu as suas prendas acompanhadas de uma quadra.
Tenho a certeza de que conheces bem esse género de
poemas e, por isso, não os vou aqui transcrever. Recebemos:
eu um "Pieferkuchen" enorme, em forma de
boneca; o pai, suportes para livros; a mãe, um calendário;
a sra. van Daan, uma bolsa para o pano do pó; o sr. van
Daan um cinzeiro... Todos os presentes tinham sido bem imaginados e, como festejávamos
o S. Nicolau pela primeira
vez, achámos a nossa estreia bem sucedida.
Também demos prendas aos nossos amigos lá de baixo,
coisas que tínhamos ainda dos velhos tempos. Disseram-nos
hoje que o sr. Vossen fez com as próprias mãos o cinzeiro
para o sr. van Daan e os suportes para o pai. Acho admirável
alguém fazer coisas tão bonitas.
Tua Anne


3ª parte »»»