O Diário de Anne Frank

PREFÁCIO

ANNE Frank pertencia a uma família judaica de Frankfort que, em 1933, fugindo às
perseguições do regime hitleriano, se refugiou na Holanda, onde supunha encontrar a paz e
a segurança. Mas, logo depois da invasão da Holanda pelos alemães, as perseguições aos
judeus continuaram ali com tal violência que os Frank resolveram - mergulhar -, designação
que então se dava ao desaparecimento voluntário de pessoas perseguidas-ou por razões
políticas ou por discriminações raciais-e que passavam a ter uma existência ilegal ou
clandestina. Durante dois anos, que abrangem o período de guerra de 1942 a 1944, não
podem sair à rua e vivem sob a constante ameaça de serem descobertos pela polícia.
Anne, rapariga em pleno período de desenvoLvimento físico, esse período delicado e
importante na vida de qualquer adolescente, mas especialmente decisivo quando se tem
uma sensibilidade e uma inteligência como a dela, escrevia com regularidade um diário, em
forma de cartas, a uma amiga imaginária. Este diário tornou-se não só um dos mais
comoventes depoimentos contra a guerra, contra a injustiça e a crueldade dos homens
como, também, um dos mais puros documentos psicológicos que todos, e sobretudo os que
contactam com gente nova, deviam ler.

Anne não escreveu o seu diário a pensar na publicidade, nem porque fosse incitada a
fazê-lo, mas única e simplesmente porque tinha de o escrever-para si própria, para - aliviar
- o coração, como ela diz várias vezes, por essa forte necessidade íntima que caracteriza o
artista e a que ela não se poderia furtar, nem que quisesse.
"Quando escrevo sinto um alívio, a minha dor desaparece, a coragem volta... Ao
escrever sei esclarecer todos os meus pensamentos, os meus ideais, as minhas fantasias".
Não se trata, portanto-e isto é fundamental-, de uma dessas produções de menino
prodígio, lançado e explorado pela família comercialmente, mas sim de uma autêntica obra
de arte a que um crítico suíço chamou - uma confissão clássica da puberdade de hoje, que
ultrapassa todos os limites do circunstancial.

Como é que foi possível escrever-se uma obra destas entre os treze e os quinze anos
de idade? Tão extraordinário caso tem a sua explicação: o isolamento, os sacrifícios diários,
as angústias, o medo e, principalmente, a morte, a pairar sobre esta criança de uma
inteligência e de um espírito de observação invulgares, fizeram com que ela amadurecesse
prematuramente e fosse assim, pouco a pouco, penetrando em regiões que, em
circunstâncias normais, só viria a explorar muito mais tarde. Ela própria sente isto e
explica-o: "Vim para o anexo quando tinha treze anos e, por isso, fui obrigada a reflectir mais cedo sobre o Mundo e a fazer a descoberta de mim mesma como de um ser humano
que deseja ser independente..No entanto é preciso notar: Anne não perde a frescura infantil
nem esses gostos próprios do adolescente, como por exemplo coleccionar fotografias de
artistas de cinema ou fantasiar-se com as roupas dos adultos. É que Anne não é um
monstro, Anne é apenas uma adolescente a quem quiseram roubar o direito de o ser.
.Nem a criança nem o adolescente sabem, em regra, compreender-se e analisar-se. É
o adulto que, com a distância dos anos, a experiência da vida, a cultura e a serenidade
indispensáveis, contempla e interpreta estes períodos passados da sua vida. Por isso Anne
Frank há-de ser um dos casos à parte na literatura universal, com um significado denso e
único.
Anne Frank vivia torturas que marcam qualquer indivíduo de qualquer idade mas
muito especialmente um indivíduo em formação. Forçada a viver como um pássaro na gaiola:

Sinto-me como um pássaro a quem cortaram as asas e que bate, na escuridão, contra as
grades da sua gaiola estreita -, afina os sentidos, concentra-os sobre o pequeno espaÇo em
que a sua vida e a dos companheiros de destino se move, procura não só desabafar a sua
revolta de adolescente, de judia expulsa da comunidade dos homens, vítima de uma guerra
impiedosa, mas, também, encontrar as explicações e as interpretaÇões de tudo isto.
Ao leitor atento não pode escapar o crescendo dos apontamentos de Anne, tanto no
que respeita ao seu espírito analítico como à própria força emocional. Se as primeiras
páginas, escritas ainda no período de liberdade, são puramente infantis e correspondem à
sua idade real, as últimas, que precedem a interrupção definitiva do diário, são de uma tal
maturidade que nos fazem estremecer pelo seu profundo poder de introspecção e
compreensão.

- Vejo-me em todos os meus actos como se se tratasse de uma pessoa estranha.
Enfrento esta Anne com absoluta imparcialidade, sem pretender desculpá-la e observo o que
ela faz de mal e de bem. Esta autocontempLação nunca me larga, e não posso pronunciar
uma palavra sem pensar logo em seguida: "devia ter dito isto de outra maneira", ou: "foi
bem dito...".
Os outros só nos podem dar conselhos ou indicar-nos o caminho a seguir. Mas a
formação definitiva do carácter está nas próprias mãos de cada indivíduo.
Reencontramo-nos em Anne! Sentimos a verdade, nua e crua, em cada uma das suas
palavras. E é precisamente por isso, pela identidade dos sentimentos humanos,
independentes de latitudes e de raças, que esta obra ganha cunho de universalidade, de
documento humano.
Eis a pergunta que nos surge: terá a morte, sempre à espreita, dado a Anne um
empurrão mais forte, obrigando-a urgentemente a apanhar e exprimir a vida em flagrante,
antes de esta lhe fugir?

Ao considerar que Anne se limita quase exclusivamente a apontar os acontecimentos
diários da vida no esconderijo, verificamos com espanto que nunca lhe falta assunto. Até
uma caneta, que por engano foi parar ao fogão e ardeu, lhe serve para escrever uma "Ode à
minha caneta". Num estilo simples, cristalino, invulgar em pessoas da sua idade, que
costumam usar uma linguagem pretensiosamente - literária -, desenha, com admirável
facilidade, o ambientt e as pessoas.

Todas as figuras se tornam nossas conhecidas, familiares, com as suas atitudes e os
seus comportamentos tantas vezes contraditórios e, justamente por isso, tão reais. Anne
não vê com sentimentalismo nem com ódio, e como no seu mundo não há ninguém perfeito
nem ninguém absolutamente imperfeito, todos são vivos, quase palpáveis.
É óbvio que as reacções de Anne dependem muito da sua disposição e que as suas
personagens surgem filtradas pelas suas dores, desânimos, alegrias, paixões e perspectivas,
de modo que umas vezes são mais aceitáveis do que outras. Mas não é assim, mesmo na
vida, e não vemos nós, ao fim e ao cabo, as pessoas não apenas como são, mas também
conforme a nossa disposição do momento?

Não falta a Anne aquele raro dom que Thomas Mann considerava indispensável para
se seguir uma obra de arte: o sentido do humor. Estudando-se sempre a si própria, ela
reconhece os seus defeitos e as suas quaLidades. E quanto ao seu sentido do humor diz:

"...e mesmo nos momentos mais perigosos, vejo ainda o cómico da situação e não posso
deixar de me rir".,Se, por um lado, o próprio Thomas Mann está presente nesta frase, está-o
talvez mais ainda Charlie Chaplin..Não vê ele nos momentos mais trágicos, mais perigosos -
e mesmo na sua balada judaica "O Ditador" -o cómico das situações?
Assim, parece-nos verdadeiramente chaplinesca a descrição do assaLto ao armazém,
nessa terrível noite que ficará gravada na memória de todos como a mais angustiosa das
noites passadas no - anexo -, onde se pressente, apesar do abalo forte que Anne sofreu, o
sorriso a brincar-lhe nos lábios quando ela, por exemplo, conta como acordou com a cabeça
da sra. van Daan em cima dos seus pés. Chamamos também a atenção para cenas como
aquela em que o grupo - mergulhado - descasca as batatas, ou aquelas em que a sra. van
Daan desafia o marido com as suas conversas políticas. Em meia dúzia de traços, através de
diálogos vivos
e sem que a autora intervenha a explicar as personagens, elas são recortadas de modo
que se nos revelam com todas as suas virtudes, manhas e limitações.
Talvez haja momentos em que Anne possa parecer-nos demasiado dura, sobretudo
quando fala das suas relações com a mãe, ou se queixa do pai, este admirável homem que
ela, bem o sentimos, coloca acima de tudo e de todos. Mas a dureza de Anne não é mais do
que o resultado do conhecido conflito da adolescência a que ela, por ser inteligente e
incapaz de aceitar as coisas incondicionalmente, dá expressão. O choque com a mãe, pouco
atenta aos problemas íntimos da fiLha, é inevitável e agrava-se devido às circunstâncias em
que são obrigadas a conviver. Provavelmente, ter-se-ia atenuado numa vida normaL, como
aliás a própria Anne reconhece mais de uma vez.
Todos os - mergulhados - sofrem as consequências daqueLe isolamento.
Sentimos-lhes a tensão nervosa que, em grande parte, provém da saturação de um convívio
ininterrupto e forçado, em espaço tão restrito. E Anne, vendo como a mesquinhez se
apodera daquela gente a que falta a liberdade, põe-na em flagrante contraste com esses
corajosos holandeses, os protectores do pequeno grupo, que, sempre que entram em cena,
trazem consigo a aragem fresca do mundo exterior.
Mas, apesar de tudo, dá-se no pequeno mundo de sofrimentos do - anexo - o eterno
milagre da vida: o despertar do amor entre Anne e Peter. São de uma insuperável pureza as
descrições dos seus primeiros idílios. "Quando o Peter e eu estamos sentados num caixote
duro, no meio de ferros velhos e de pó, muito juntos, eu com um braço em volta dos seus
ombros, ele com um braço em volta dos meus ombros, quando ele brinca com uma madeixa
do meu cabelo, quando lá fora se ouve o chilrear dos pássaros, quando se vêem as árvores
a pintarem-se de verde, quando o Sol nos chama e o ar é todo ele azul, oh!, então os meus
desejos são infinitos". Mas sabemos desde logo que aquele rapaz bonito, bom, um tanto
simplório, não pode corresponder às ânsias e exigências de uma rapariga como Anne que,
em determinada altura, aponta no seu diário: "O melhor seria que ele, na maior parte das
vezes, estivesse acima de mim", e mais tarde: "O Peter e eu passamos os dois anos mais
importantes para a nossa formação aqui no anexo, falamos muitas vezes sobre o passado, o
presente e o futuro, mas, como eu já disse, sinto a falta de qualquer coisa de mais
autêntico; e eu tenho a certeza de que essa coisa existe". De resto, Anne, pela força e
intensidade da sua vida interior, pela sua imensa sede de penetrar nas profundidades da
vida e ainda pelo que nela há de extraordinário, digamos mesmo de maravilhoso, e, em
certa medida, de inacessível para pessoas como o Peter van Daan, está, desde logo,
condenada àquela solidão de todas as pessoas que ultrapassam os limites das normas
gerais.
Por tudo o que neste livro está expresso: os problemas comuns a todos nós - a nossa
coragem, as nossas fraquezas e, também, as nossas esperanças-, apercebemo-nos mais do
que nunca do absurdo de todas as teorias de discriminação racial..Ninguém pode deixar de
sentir, ao ler as cartas de Anne Frank, como, ao fim e ao cabo, as alegrias e as lágrimas
humanas são as mesmas em todos os seres humanos e em todas as partes do mundo.
Assim o sentiu, também, a juventude alemã de hoje, cuja reacção perante esta obra
talvez seja, desde há muito, o mais luminoso clarão de esperança que temos visto brilhar.
Anne Frank, vítima de uma época de injustiças e de violências desumanas, tornou-se
um símbolo. As várias manifestações de simpatia de que é objecto culminaram, em 1 de
Março último, com uma peregrinação de jovens alemães ao antigo campo de concentração
de Bergen-Belsen, onde o corpo de Anne foi atirado, com centenas de milhares de outros
corpos, para a vala comum. - Não queremos trilhar os caminhos dos nossos pais -, é o lema
desta nova juventude.
E vem-nos à mente esta frase que Anne escreveu pouco antes da sua deportação para
as fábricas da morte: "Creio no que há de bom no homem" frase que define toda a força e
generosidade dessa pobre criança, radiante da sua mocidade, que soube exprimir todo um
mundo de problemas da juventude dos nossos dias: "Eis a dificuldade do nosso tempo: mal
começam a germinar em nós ideais, sonhos, belas esperanças, logo a realidade cruel se
apodera de tudo isto para o destruir totalmente".
Mas não conseguiram destruir a força de Anne Frank. A sua obra, já traduzida em
dezanove línguas e estudada nas classes superiores dos liceus alemães, ergueu-se como
implacável libelo contra os seus assassinos. Anne Frank vive e continuará a viver ainda por
muito tempo. Em 4 de Abril de 1944 escreveu: - Quero continuar a viver depois da minha
morte. Cumpriu-se o seu desejo.

Para nossa orientação e para melhor podermos informar o leitor, pusemo-nos em
contacto com o sr. Otto Frank, pai de Anne, o único sobrevivente das oito pessoas que
viveram escondidas no - anexo -. Eis os esclarecimentos que nos deu: Os oito -
mergulhados - foram primeiro encerrados no campo de concentração de Westerbrok, na
Holanda, e depois transferidos para o campo de Auschwitz, na Alta Silésia, nos princípios de
Novembro de 1944. Anne e sua irmã foram levadas para o campo de Bergen-Belsen, no
norte da Alemanha, onde ambas morreram.

Nunca se pôde averiguar quem denunciou o esconderijo.
Os adultos falavam quase sempre em alemão, porém os adolescentes, que tinham
frequentado a escola de Amesterdão, preferiam falar e escrever em holandês.
Salvaram-se e ainda existem alguns dos contos de fadas e outras histórias que Anne
escreveu. Dois deles estão publicados em língua holandesa e alemã com os títulos - Wetje nog - e - Weisst du noch -, respectivamente.
ILSE LOSA

O Diário de Anne Frank

Na sexta-feira acordei às cinco horas. Não era de admirar, pois fazia anos; mas não
queriam que eu me levantasse tão cedo e tive de dominar a minha curiosidade até às sete
menos um quarto. Depois não pude mais.
Corri para a sala de jantar, onde o Mohrchen, o nosso gatinho, me cumprimentou com
grandes festas. Depois das sete fui ter com meus pais e com eles entrei na sala de estar,
para desembrulhar e ver as minhas prendas.
Foi a ti, meu diário, que vi em primeiro lugar, e eras, sem dúvida, a prenda mais
bonita. Tive um ramo de rosas um cacto, algumas begónias. Eram as primeiras prendas de
flores, mas, depois, recebi muitas mais. O pai e a mãe deram-me muitas coisas e os amigos
também me estragaram com mimos. Assim recebi, entre outras prendas, a - câmara escura
-, um jogo, muitas guloseimas, um jogo de paciência, um broche, - Os Mitos e Lendas
Holandeses de Joseph Gohen, e ainda um livro encantador - A viagem de férias de Daisys à
serra -, e dinheiro com que depois comprei os - Mitos gregos e romanos -. Estupendo!
Depois veio Lies buscar-me e fomos para a escola.
Primeiro ofereci rebuçados aos professores (2) e aos colegas e depois comeÇámos a
trabalhar.
Por hoje vou terminar.
Estou tão contente De te ter a ti.

Segunda-feira, 15 de Junho de 1942

Sábado à tarde foi a festa dos meus anos. Passámos
um filme - O guarda do farol - com Rin-tin-tin), que
agradou muito às minhas amigas. Fartámo-nos de fazer
tolices e estivemos divertidíssimas. Vieram muitos rapazes
e raparigas. A mãe teima em querer saber com quem
eu mais tarde gostaria de casar. Julgo que ela ficaria
espantada se soubesse que gosto do Peter Wessel, pois
eu faço-me sempre desentendida quando se fala nele. Com
a Lies Goosens e a Sanne Houtman convivo há anos
e até agora tinham sido elas as minhas melhores amigas.
Ultimamente conheci Jopie van der Waal no Liceu judaico.
Estamos muitas vezes juntas, e hoje é ela a minha melhor
amiga. A Lies anda agora mais vezes com uma outra
amiga, e a Sanne frequenta outra escola onde arranjou
uma amiga.

Sábado, 20 de Junho de 1942

Durante uns dias não escrevi nada porque, primeiro
quis pensar seriamente na finalidade e no sentido de um
diário. Experimento uma sensação singular ao escrever
o meu diário. Não é só por nunca ter - escrito -, suponho
que, mais tarde, nem eu nem ninguém achará interesse
nos desabafos de uma rapariga de treze anos. Mas na
realidade tudo isso não importa. Apetece-me escrever e
quero aliviar o meu coração de todos os pesos.
- O papel é mais paciente do que os homens -. Era
nisso que eu pensava muitas vezes quando, nos meus dias
melancólicos, punha a cabeça entre as mãos e sem saber
o que havia de fazer comigo. Ora queria ficar em casa,
ora queria sair e, a maior parte das vezes, ficava-me a
cismar sem sair do sítio. Sim, o papel é paciente! E não
tenciono mostrar este caderno com o nome pomposo de
- Diário - seja a quem for, a não ser que venha a encontrar
na minha vida o tal - grande amigo - ou a tal - grande
amiga -.

De resto, a mais ninguém poderá interessar o que
vou escrever. E pronto!, cheguei ao ponto principal de
todas estas considerações: não tenho uma verdadeira amiga!,
vou-me explicar melhor, pois ninguém pode compreender
que uma rapariga de treze anos se sinta só. É, de facto,
coisa estranha. Tenho pais simpáticos e bons, tenho uma
irmã de dezasseis anos, ao todo, por aí uns trinta conhecidos
ou o que se chama geralmente - amigos -. Tenho
uma comitiva de admiradores que me fazem todas as
vontades. Mesmo na aula tentam ver-me o rosto com um
espelhinho de bolso e só se dão por satisfeitos quando
lhes sorrio. Tenho parentes, tias e tios, muito simpáticos,
uma casa bonita, e, pensando bem, não me falta nada,
senão uma amiga! Com todos os meus numerosos conhecidos,
só consigo fazer tolices ou falar sobre coisas banais.
Não me é possível abrir-me, sinto-me como que "abotoada".
Pode ser que esta falta de confiança seja defeito meu.

Mas não há nada a fazer e tenho pena de não poder
modificar as coisas.
Por tudo isto é que escrevo um diário. E para evocar na
minha fantasia a ideia da amiga há tanto tempo desejada,
não quero, como qualquer pessoa, assentar só factos. Este
diário é que há-de ser a minha amiga, e vou-lhe pôr um
nome. Essa amiga chama-se Kitty.
Seria incompreensível a minha conversa com a Kitty
se eu não contasse primeiro a história da minha vida,
embora sem grande vontade.
Quando meus pais casaram tinha o meu pai trinta e
seis anos e a minha mãe vinte e cinco. Minha irmã Margot
nasceu em 1926 em Frankfort sobre o Reno; em 12 de
Junho de 1929 vim eu. como somos judeus, emigrámos,
em 1933, para a Holanda, onde meu pai se tornou director
da Travis A-G. Esta firma trabalha em estreita ligação
com a Kolen 82 Go., no mesmo edifício.

A nossa vida decorria com as aflições do costume,
pois as pessoas de família que ficaram na Alemanha não
escaparam às perseguições de Hitler. Depois dos "progroms"
de 1938 os dois irmãos de minha mãe fugiram
para a América. Minha avó veio viver connosco. Tinha
nessa altura setenta e três anos. A partir de 1940 foram-se acabando os bons tempos.
Primeiro veio a guerra, depois
a capitulação, em seguida a entrada dos alemães. E então
começou a miséria. A uma lei ditatorial seguia-se outra;
e, em especial para os judeus, as coisas começaram a ficar
feias. Obrigaram-nos a usar a estrela e a entregar as bicicletas, não nos deixavam andar nos
carros eléctricos e muito menos de automóvel.

Os judeus só podiam fazer compras das 3 às 5 horas - e
só em lojas judaicas. Não podiam sair à rua depois das
oito da noite e nem sequer ficar no quintal ou na varanda.
Não podiam ir ao teatro nem ao cinema, nem frequentar
qualquer lugar de divertimentos. Também não podiam
nadar, nem jogar tenis. ou hóquei, nem praticar qualquer
outro desporto. Os judeus não podiam visitar os criStãos.
As crianças judaicas eram obrigadas a frequentar escolas judaicas. cada vez saíam mais
decretos... Toda a nossa
vida estava sujeita a enorme pressão. Jopie dizia a cada
passo: "Já nem tenho coragem para fazer seja o que for
porque tenho sempre medo de fazer qualquer coisa que
seja proibida".

Em Janeiro deste ano morreu a avózinha. Ninguém
imagina quanto eu gostava dela e que falta me tem feito.
Em 1939, mandaram-me para o jardim-escola - Montessori -.
Depois estudei ainda as primeiras classes primárias naquela
escola. No último ano, a directora, a sra. K., era chefe da
minha turma. No fim do ano despedimo-nos comovidas,
e ambas chorámos muito. Desde o ano passado a Margot
e eu frequentamos o Liceu judaico; ela está no quarto
ano e eu no primeiro.

Nós, os quatro da família, ainda não temos muito de
que nos queixar. Estamos bem. E assim cheguei ao presente,
à data de hoje.

Sábado, 20 de Junho de 1942

Querida Kitty:
Vou começar já. Está tudo tão calmo! O pai e a mãe
saíram e a Margot foi a casa de uma amiga jogar o pingue
pongue. Também me apaixonei ùltimamente por este jogo.
Como nós, os jogadores de pinguepongue, gostamos imenso
de tomar sorvetes, o jogo acaba quase sempre numa excursão
a qualquer das confeitarias onde os judeus ainda podem
entrar: "Delphi" ou "Oasis". Não importa se temos muito
ou pouco dinheiro no porta-moedas. As duas confeitarias
estão tão cheias que entre toda aquela gente sempre se
encontram rapazes das nossas relações ou até um ou outro
admirador. E tantos sorvetes nos querem oferecer que nem
numa semana seríamos capazes de os tomar todos.
Presumo que ficaste admirada por eu, apesar de tão
nova, já falar em admiradores. Infelizmente esta desgraça
é inevitável na nossa escola. Quando um dos rapazes
pergunta se pode acompanhar-me a casa de bicicleta é
certo e sabido que se apaixona logo por mim e que não me
perde de vista durante algum tempo. Depois, pouco a
pouco, vai acalmando, sobretudo porque eu faço de
; conta que não vejo os olhares apaixonados e continuo
alegremente a pedalar. Se, por vezes, aquilo passa das
marcas, ponho-me a fazer umas habilidades na bicicleta,
a minha pasta cai ao chão e, por amabilidade, o rapaz
; vê-se obrigado a descer. Apanha a pasta e até ma entregar
tem tempo para se acalmar. Estes ainda assim são os mais
inofensivos, mas há também alguns que nos atiram beijos
ou nos tocam no braço. Mas comigo a coisa não pega.
Quando isso sucede, desço da bicicleta e declaro que lhes
dispenso a companhia ou finjo-me ofendida e mando-os passear.
E pronto, Kitty, foi colocada a primeira pedra da
nossa amizade. Até amanhã!

Tua Anne

Domingo, 21 de Junho de 1942

Querida Kitty:
Toda a nossa turma treme: a Reunião de conselho dos
professores está à porta. Metade da turma passa o tempo
a apostar quem passa de classe e quem chumba. A Miep
de Jong e eu escangalhamo-nos a rir por causa das nossas
companheiras de carteira que já apostaram todo o seu
dinheiro de bolso. De manhã à noite andam a rezar: "Tu
passas, tu chumbas, sim, não..." Nem os olhares suplicantes
da Miep nem as minhas sérias tentativas para as meter
na ordem conseguem nada daquela gente. Há tantos
mandriões na minha turma que eu, se mandasse, reprovava
metade. Os professores são as pessoas mais caprichosas
do mundo, mas talvez sejam, neste caso, caprichosos no bom sentido.

Dou-me razoavelmente com os professores e com as
professoras. Ao todo são nove, sete homens e duas senhoras.
O sr. Kepler, o velho professor de matemática, ao princípio
embirrava comigo, por eu palrar muito. Andava
constantemente a avisar-me, até que me marcou um
trabalho de castigo. Mandou-me fazer uma redacção sobre
o tema: "Uma tagarela." Uma tagarela! O que se poderia
escrever sobre isto? Mas não me afligi. Meti o caderno de
exercícios na pasta e esforcei-me por estar calada. à noite,
depois de acabados todos os outros deveres, lembrei-me da
redacção. Roí um bocadinho a pena e pensei no assunto:
escrever umas tretas e com as palavras tanto quanto possível
distanciadas, toda a gente sabe. Mas encontrar uma razão
evidente da necessidade de palrar, aí é que estava o grande
problema. Pensei e tornei a pensar. De repente as palavras
surgiram. Enchi as três folhas obrigatórias, rapidamente,
sem cessar. Aquilo saiu-me bem. Como argumento aleguei que palrar era próprio das
mulheres e que eu de bom
grado faria esforços para me emendar se a minha mãe
não falasse tanto como eu. E, como era sabido, contra
defeitos hereditários pouca coisa se podia fazer.

O sr. Kepler riu-se da minha explicação. Quando na
próxima aula palrei de novo, foi-me marcada outra redacção:
a "tagarela incurável". Lá a escrevi como pude e
durante duas aulas portei-me lindamente. Mas na terceira
aula já não sucedeu o mesmo, e o sr. Kepler achou que
o meu mau comportamento passava das marcas:
- Anne, como castigo por causa da tua tagarelice, vais
fazer uma redacção: cá, cá, cá, cá, a menina que cacareja.
A turma riu a bandeiras despregadas. Também ri, embora
me parecesse que tinha esgotado o meu espírito inventivo
para redacções sobre o palrar. Tinha de encontrar alguma
coisa de novo, de original. A minha amiga Sanne, poetisa
consumada, aconselhou-me a tratar o assunto em verso
e pôs o seu talento à minha disposição. Fiquei entusiasmada.

O Kepler queria fazer pouco de mim, mas eu podia pregar-lhe
uma partida ainda pior.
Fizemos um poema que foi um sucesso. Tratava de
uma mamã de patos e de um "pai cisne". com três patinhos
que, por causa de tanto cacarejar, foram mordidos pelo
pai até morrerem. Felizmente o Kepler compreendeu a
brincadeira e leu o poema em voz alta na nossa e nas
outras turmas. Desde então posso palrar sem que o Kepler
me mande fazer redacções de castigo, mas passou a dizer-me
a cada passo uma piadinha.
Tua Anne

Quarta-feira, 24 de Junho de 1942

Querida Kitty:
Está a escaldar. Todos bufam e transpiram, e por um
calor destes tenho de andar a pé. só agora compreendo como é bom o carro eléctrico, sobretudo as carruagens
abertas. Mas é um prazer que já não existe para nós, os
judeus. Temos de nos contentar com "as irmãs perninhas".
Ontem,,à hora do almoço, tive de ir ao dentista na
Jan Luykenstraat. É uma caminhada longa desde a nossa
escola, que fica junto do jardim público. Na aula da tarde,
de cansada, por pouco, ia adormecendo. O que vale é que
ainda há pessoas amáveis que nos oferecem de beber
meSmo sem pedirmos nada. A "irmã" no dentista compreende
a nossa situação.
Só um meio de transporte nos é ainda permitido:
-a barca. No molhe de Joseph-Israel há um barquinho,
que a nosso pedido nos leva à outra margem. Em boa verdade,
não é por culpa dos holandeses que a vida é dura
para os judeus.
Ai, se não precisasse de ir para a escola! Durante
as férias da Páscoa roubaram-me a bicicleta, o pai pôs
a da mãe em segurança, em casa de gente conhecida!

Felizmente as férias estão à vista, mais uma semana e estou
livre disto!
Ontem, da parte da manhã, aconteceu-me uma coisa
engraçada. Quando passei por aquele sítio onde costumava
guardar a minha bicicleta, ouvi chamar. Virei-me. Atrás
de mim vinha um rapaz simpático que, na noite anterior,
tinha encontrado na casa da Eva, uma conhecida minha.
Um pouco tímido, disse-me o seu nome: Harry Goldberg.
Fiquei admirada, não sabia bem o que ele queria de mim.
Mas, num instante, fiquei a saber. Queria acompanhar-me
à escola.

Se tens o mesmo caminho, então está bem, disse eu
e caminhámos lado a lado. O Harryjá tem dezasseis anos
e sabe falar com graça sobre muitas coisas. Hoje, de manhã,
estava, de novo, à minha espera e, para já, penso que assim
há-de continuar algum tempo.
Tua Anne

Terça-feira, 30 de Junho de 1942

Querida Kitty:
Até hoje ainda não tive tempo para escrever. Quinta-feira
estive toda a tarde em casa de gente amiga. Sexta
tivemos visitas e assim por diante, até hoje. Harry e eu
conhecemo-nos melhor nesta semana. Contou-me muita
coisa dele. Veio cá para a Holanda com os avós. Os pais
estão na Bélgica.
Harry tem andado, até agora, com uma outra rapariga,
a Fanny. Ela é um modelo exemplar de meiguice e de
enfado. Desde que o Harry me conhece a mim, descobriu
que quase adormece ao lado de Fanny. Sou para ele uma
espécie de estimulante. Nunca a gente sabe para o que
é capaz de servir.
Sábado, a Jopie dormiu cá em casa. A tarde de domingo
passou-a com a Lies e eu aborreci-me de morte. à noite devia vir o Harry, mas às seis telefonou-me:
-Aqui, Harry Goldberg. Por favor posso falar com
a Anne?
-Sou eu mesma.
-Boa noite Anne. Como estás?
-Bem, obrigada.
-Infelizmente não posso ir aí à noite. Mas queria
muito falar contigo. Podes descer, daqui a dez minutos?
-Está bem. Até já.
Mudei num instante de roupa e dei um jeito ao cabelo.
Depois pus-me à janela, toda nervosa. Finalmente, veio.
É espantoso, mas não me precipitei logo escada abaixo.
Esperei calmamente que ele tocasse à campainha. Depois
desci. Saímos e ele foi direito ao assunto.
- Ouve, Anne, minha avó acha que tu és nova de mais
para mim. Acha que eu devia virar-me de novo para a Fanny Lours. Se calhar soube que eu
já não quero saber
da Fanny para nada.
-Então, zangaste-te com ela?
-Não, pelo contrário. Eu disse-lhe que não ligamos
lá muito bem um com o outro e que, por isso, não vale
a pena encontrarmo-nos tantas vezes. Que pode continuar
a vir à nossa casa e que também eu continuarei a ir à dela.

Desconfiei que a Fanny andasse com outros rapazes, mas
afinal não anda. Meu tio achou que devia pedir-lhe desculpa,
mas não me apetece. Achei preferível acabar assim.
A avó insiste; quer que eu mantenha a amizade com a
Fanny e que não comece a andar contigo, mas eu quero
lá saber disso para nada. Gente velha tem por vezes ideias
à antiga, que me não podem interessar. Não há dúvida
de que dependo de minha avó, mas, em certa medida, ela
também depende de mim. às quartas estou sempre livre.
Os avós julgam que vou às aulas de trabalhos manuais
mas eu tenho ido quase sempre às reuniões dos sionistas.
Não somos sionistas, mas interessava-me conhecer aquilo.
Ultimamente não me sentia à vontade naquelas reuniões
e resolvi não tornar a ir. Assim podemos encontrar-nos
nas quartas e sábados, à tarde e à noite, e no domingo,
à tarde, e talvez mais vezes ainda.

-Mas os teus avós não estão de acordo. Não deves
fazer isso às escondidas.
-No amor ninguém manda.
Passámos pela livraria e dobrámos a esquina. E lá
estava o Peter Wessel com mais dois rapazes. Era a primeira
vez que o tornava a ver e fiquei cheia de alegria.
Harry e eu andámos e tornámos a andar em volta do bairro
e, por fim, combinámos que ele me esperasse na tardinha
seguinte às sete menos cinco, em frente da sua casa.
Tua Anne

Sexta-feira, 3 de Julho de 1942

Querida Kitty:
Ontem esteve cá o Harry. Quis conhecer os meus pais.
Eu tinha ido buscar torta, doces e bolachas e tomámos
chá. Ao Harry e a mim não nos apetecia nada ficar em casa
quietinhos. Saímos, demos um passeio e eram oito e dez
quando ele me deixou em casa.
O pai estava zangadíssimo por eu chegar tão tarde,
que era muito perigoso, para judeus, andar pelas ruas
depois das oito.
Prometi de hoje em diante estar sempre em casa,
pontualmente, às oito menos dez minutos. Amanhã estou
convidada para ir a casa do Harry. A minha amiga Jopie faz
troça de mim por causa dele. Mas não estou apaixonada. Então
não posso ter um amigo? Ninguém acha mal que tenha um
amigo ou-como costuma dizer a mãe-um cavalheiro.
Eva contou-me que o Harry esteve o outro dia em casa
dela e que ela lhe perguntou :
- Quem achas mais simpática,.a Fanny ou a Anne?
-Não tens nada com isso-respondeu ele.
Então não falaram mais no assunto, mas ao despedir-se
o Harry disse:
-A Anne é mais simpática, claro, mas não precisas de
falar nisso a ninguém.
As últimas palavras já foram ditas na rua.
Sinto que o Harry está apaixonado por mim e, para
variar, isto é engraçado. A Margot dizia :
- Um tipo simpático.
- Acho-o também simpático, mais até do que simpático.
A mãe anda encantada com ele.
-Um rapaz bonito, muito gentil e bem educado.
Ainda bem que o Harry agrada tanto a toda a família.
Ele também nos acha a todos muito simpáticos. Só acha
a minha amiga infantil e não deixa de ter razão.
Tua Anne

Domingo, 5 de Julho de 1942

Querida Kitty:
A festa do fim do período correu lindamente. As minhas
notas não são nada más. A pior nota é um cinco em Álgebra;
tenho dois seis, sete em quase tudo e dois
oitos.
Cá em casa ficaram satisfeitos. Não ligam grande
importância às notas boas ou más, dão mais valor ao bom
comportamento e querem acima de tudo que eu tenha
saúde e seja alegre. Dizem eles que havendo saúde e boa
disposição, o resto vem por si, mas eu gostava de ser uma
boa aluna a valer.
Só me admitiram no liceu condicionalmente por me
faltar ainda o último ano da Escola Montessori. A coisa
foi assim:
Quando todos os alunos judaicos tiveram de mudar-se
para escolas judaicas, o reitor, depois de muito palavriado,
admitiu-me a mim e à Lies, mas com muitas reservas.

E agora não quero desiludi-lo. Minha irmã Margot teve
notas brilhantes, como de costume. Se houvesse louvores
ela passaria - com distinção e louvor, a mais alta classificação, pois é muito inteligente.
O pai, desde que não pode ir ao escritório, passa muito
tempo em casa. Deve ser uma sensação horrível, isto de
uma pessoa se sentir, de repente, posta de parte. O sr.
Koophus tomou conta da - Travis - juntamente com o
sr. Kraler, da firma Kolen & C.o, de que o pai também
era sócio. Quando, há uns dias, andávamos a passear, o
pai disse-me que decerto teríamos de - mergulhar -. Disse que nos iria custar muito viver
isolados do mundo.
Perguntei porque é que falava assim.
-Bem sabes - disse ele - que há mais de um ano estamos
a levar o vestuário, a mobília e os comestíveis para
casa de outras pessoas. Não queremos deixar cair o que é
nosso nas unhas dos alemães. E ainda menos queremos,
nós próprios, cair-lhes nas mãos. Por isso não vamos esperar
até que nos venham buscar.
O rosto muito sério do meu pai inquietou-me.
-Então, quando, pai?
-Não te preocupes, minha filha. Sabê-lo-ás a tempo.
Goza a tua liberdade enquanto for possível.
Foi tudo. Oxalá que o tal dia ainda venha longe!
Tua Anne

Quarta-feira, 8 de Julho de 1942

Querida Kitty:
Entre domingo de manhã e hoje foi como se se tivessem
passado muitos anos. Aconteceram imensas coisas. É como
se a Terra estivesse toda ela transformada. Contudo, Kitty,
ainda estou viva, e isto é o principal. Sim, estou viva, mas
não queiras saber de que maneira. É possível que hoje
nem me entendesses, por isso, antes de mais nada, vou-te
contar o que se passou.
às três horas (Harry tinha saído naquele mesmo
momento e queria voltar mais tarde) tocou a campainha.
Eu não tinha ouvido nada porque estava, numa preguiça
agradável, estendida na cadeira de repouso, a ler. Nisto
entrou a Margot, toda excitada.
- Anne, recebemos uma convocação das SS para o
pai - cochichou. - A mãe já foi ter com o sr. van Daan.
Senti um medo horrível. Uma convocação para o pai...
Toda a gente sabe o que isto significa: campo de concentração... Vi surgir diante de mim
celas solitárias para onde queriam levar o meu pai!
- Não pode ser - disse Margot categòricamente quando
nos encontrámos as duas na sala de estar, à espera da mãe.
-A mãe foi a casa dos van Daans para combinar se não
seria melhor - mergulhar - já amanhã. Os van Daans vão
connosco, somos, ao todo, sete.
Um grande silêncio. Não fomos capazes de dizer mais
uma palavra. A ideia de que o pai andava em visita aos
seus protegidos no asilo dos velhos judeus, sem suspeitar coisa alguma, a demora da mãe, o calor, a tensão... tudo
isso nos emudecia.
De repente, tocou a campainha.
-É o Harry - disse eu.
- Não abras!
A Margot quis deter-me, mas já não foi preciso. Ouvimos
a mãe e o sr. van Daan a falar com o Harry. Depois
de ele se ter ido embora, entraram e fecharam a porta.
A cada toque da campainha ou Margot ou eu tínhamos
de descer sem fazer o menor ruído, para ver se era o pai.
Não devíamos deixar entrar mais ninguém. Mandaram-nos,
às duas, sair do quarto. O van Daan queria falar a sós com
a mãe. Enquanto esperávamos no nosso quarto, a Margot
disse-me que a convocação não tinha sido para o pai mas
sim para ela. Apanhei, de novo, um susto horrível e desatei
a chorar desesperadamente. A Margot tem dezasseis anos.

E eles obrigam raparigas assim a partir sòzinhas. Felizmente
ela não se há-de separar de nós. A mãe já o tinha dito e
as palavras do pai, quando me falou em - mergulharmos -,
deviam querer dizer a mesma coisa.
- Mergulhar -! Onde havemos nós de - mergulhar -?
Na cidade, no campo, num edifício qualquer, numa cabana,
quando, como, onde? Estas perguntas não me era permitido
fazê-las em voz alta mas andavam-me constantemente
na cabeça.
Margot e eu começámos a meter nas pastas da escola
o que nos parecia mais necessário. A primeira coisa em que
peguei foi neste caderno, depois meti ao calhar: "bigondis",
lenços, livros escolares, um pente e cartas velhas. Ao
lembrar-me de que íamos - mergulhar -, meti ainda na pasta
coisas inconcebíveis mas não estou arrependida.
Recordações valem mais do que vestidos.
às cinco horas o pai chegou finalmente. Telefonou ao
sr. Koophuis e pediu-lhe que viesse à noite a nossa casa.
O sr. van Daan foi buscar a Miep que veio e meteu sapatos,
vestidos, casacos e roupas brancas numa malinha. Prometeu
voltar à tardinha. Depois disso reinou o silêncio na nossa
casa. Ninguém quis comer. O calor ainda apertava. Parecia-me
tudo tão estranho!

O quarto grande, no andar de cima, estava alugado
a um tal sr. Goudsmit, um homem divorciado, de mais
ou menos trinta anos. Como nesse domingo parecia não
ter nada que fazer, foi ficando conosco até às dez horas,
não conseguimos despedi-lo antes. às onze horas chegaram
a Miep e o Henk san Santen. A Miep trabalha, desde 1933, no escritório do pai e tinha-se
tornado uma nossa
amiga fiel, assim como o seu marido Henk, com quem
casou há pouco. Na mala de Miep desapareceram sapatos,
meias, livros e roupas brancas e também nos bolsos fundos
do Henk. às onze e meia saíram carregados. Eu, cheia
de sono, já não me aguentava em pé e, embora soubesse
que era aquela a última noite que passava na minha casa,
adormeci num instante. Na manhã seguinte a mãe acordou-me
às cinco e meia. Felizmente já não estava tanto
calor como no domingo. Uma chuvinha, miúda, quente, caiu todo o dia. Vestimo-nos todos com tanta roupa como
se fôssemos meter-nos num frigorífico. Assim, foi-nos
possível trazer para cá uma data de roupas. Um judeu
na nossa situação não podia correr o risco de andar na rua
com uma grande mala. Eu trazia duas camisas, dois pares
de meias, três calcinhas e um vestido leve, com saia e
casaco por cima e ainda mais um casaco comprido de
verão. Calcei os meus melhores sapatos, pus cachecol, boina
e ainda mais coisas. Mesmo antes de sair de casa já me
sentia quase sufocada, mas ninguém quis saber disso.

A Margot meteu mais livros de estudo na pasta, foi
buscar a bicicleta e ia pedalando atrás da Miep, para
qualquer parte, que me era desconhecida. É que eu ainda
não sabia qual era o lugar misterioso onde nos havíamos
de abrigar... às sete e meia saímos e batemos a porta.
Só me despdi de Mohrchen, o meu querido gatinho, que
havia de encontrar um bom refúgio num dos vizinhos, se
o sr. Goudsmit cumprisse este nosso desejo que lhe deixámos
ficar escrito num papelinho.
Na mesa da cozinha ficou meio quilo de carne para
o gato, na mesa da sala ainda estava a louça do pequeno
almoço. As roupas das camas arejavam nas janelas. Tudo
isso dava a impressão de termos deixado a casa precipitadamente.
Mas era-nos indiferente o que os outros podiam
pensar. Queríamos desaparecer e chegar sãos e salvos ao
nosso destino.
Amanhã continuo!
Tua Anne

Quinta-feira, 9 de Julho de 1942

Querida Kitty:
Assim corremos debaixo da chuva, a mãe, o pai e eu,
cada um com uma pasta e uma saca de compras completamente
cheia, sabe Deus com quê. Os operários que iam
para o trabalho olhavam-nos. Bem se lhes lia nos rostos
que tinham pena de nós por irmos tão carregados e por
não nos deixarem andar nos carros eléctricos. A nossa
estrela amarela no braço falava por si. Pelo caminho fora,
os pais contaram-me, tintim-por-tintim, como nascera o
plano do nosso esconderijo. Havia já meses que parte da
nossa mobília e do nosso vestuário tinha sido posta a salvo.
Se não houvesse complicações, estariamos prontos para
desaparecer no dia 16 de Julho. Por causa da convocação
as coisas anteciparam-se uns dez dias e, por isso, os quartos
que íamos ocupar ainda não estavam preparados como
devia ser, mas tínhamos de nos conformar. O esconderijo
é na casa comercial do pai. Para quem está de fora, tudo
isto é difícil de compreender. Por isso vou explicar melhor.
O pai nunca teve muitos empregados. Os de agora eram
o sr. Kraler, o sr. Koophuis, a Miep e Elli Vossen, a dactilógrafa
de vinte e três anos. Todos sabiam que vínhamos.
Só o sr. Vossen, o pai da Elli, que trabalha no armazém, e os dois criados é que não estão no segredo.

O edifício é assim : no rés-do-chão há um grande armazém
que também serve para a expedição. Ao lado da
entrada para o armazém há a verdadeira porta de entrada.
Passada a porta, sobe-se por uma escada de poucos degraus,
até uma outra porta onde, sobre vidros foscos, existiu em
tempos, em letras pretas, a palavra "escritório". Trata-se do escritório grande, muito grande
mesmo, muito claro
e atravancado de móveis. Nele trabalham, durante o dia
a Miep, a Elli e o sr. Koophuis. Através de um quarto
de passagem que serve de vestiário, onde há um grande
armário e um cofre à prova de fogo entra-se num grande
quarto que dá para as traseiras, onde antes o sr. Kraler
trabalhava com o sr. van Daan. Agora só lá ficou o sr. Kraler.
Pode também passar-se do corredor directamente para
este quarto, atravessando uma porta de vidro que se
pode abrir por dentro com facilidade, mas que dificilmente
se abre do lado de fora. Do escritório do sr. Kraler,
passa-se, através do corredor e subindo quatro degraus, à
mais bonita sala da casa, o escritório particular. Móveis
de luxo, escuros, chão revestido de oleado e com tapetes;
um rádio, candeeiros catitas, vistosos, tudo estupendo.
Ao lado há uma cozinha grande, airosa, com um cilindro
de água quente e dois fogareiros a gás. E, ao lado da
cozinha, o W. C. Isto é o primeiro andar.

Do corredor comprido, uma escada de madeira conduz
a um vestibulo que acaba noutro corredor. Há uma
porta à direita e outra à esquerda. A da esquerda conduz
à parte da frente da casa onde se encontram os armazéns,
as águas-furtadas e o sótão. No edifício há ainda uma
outra escada comprida, íngreme de mais, perigosa, tipicamente holandesa.
A porta da direita conduz a um anexo. Ninguém podia
nem sequer suspeitar que, para além desta porta simples,
pintada de cinzento, ainda se encontrariam escondidos muitos quartos. Aberta a porta,
sobe-se um degrau, e
está-se dentro do anexo. Em frente da entrada há uma escada
íngreme. à esquerda, um corredorzito leva a um quarto
que vai ser o quarto de dormir e de estar do casal Frank
e a um outro quartinho : o quarto de trabalho e de
dormir das duas meninas Frank. Ao lado direito da
escada há um quarto sem janelas com lavatório e
um W. C. com uma outra porta que dá para o nosso
quarto.

Quando se sobe a escada e se abre a porta de cima
fica-se admirado ao ver numa casa tão velha, um quarto
tão grande, bonito e airoso. Neste quarto há um fogão
de gás e uma banca. Aqui estava instalado, até há pouco,
o laboratório da firma. Agora serve de cozinha, de sala
e de quarto de dormir do casal van Daan.
Um quartinho minúsculo de passagem o ladeia também
de Peter van Daan. Como na casa, aqui há águas-furtadas e um
sótão. Vês, agora fiz-te a
apresentação de todo o nosso anexo.
Tua Anne

Estivemos ocupados durante todo o dia. Até quarta feira nem tempo tive para pensar nesta
grande reviravolta que se deu na
minha vida. Só então, pela primeira vez desde que aqui
chegámos, consegui arranjar tempo para ficar em mim,
para te descrever o que tinha acontecido e para falar no
que ainda poderá vir a acontecer.
Tua Anne

Sexta-feira, 10 de Julho de 1942

Querida Kitty:
Se calhar aborreci-te mesmo, com a descrição extensa
da casa. Mas acho que deves saber onde nos aninhamos.
E agora deixa-me continuar, pois ainda não acabei. Quando
chegámos a Prinsengracht, a Miep fez-nos subir depressa
para o anexo e fechou a porta atrás de nós. Cá estávamos.
Margot tinha chegado muito mais depressa de bicicleta
e já estava à nossa espera. O nosso quarto de estar e os
outros também pareciam arrumos atravancados. A desordem
era indescritível! Os caixotes e as malas que, no decorrer
dos últimos meses, se tinham mandado para aqui,
alastravam numa grande confusão. O quartinho, apinhado
até ao tecto com camas e roupas brancas. Se queríamos
dormir à noite em camas bem feitas, tínhamos de deitar
já mãos à obra. A mãe e a Margot não foram capazes de
mexer numa palha. Atiraram-se para cima dos colchões;
sentiam-se muito infelizes. O pai e eu, os dois
"arrumadores" da família, desatámos a trabalhar. Despejámos as
malas e os caixotes, colocámos tudo nos sítios próprios,
martelámos, esfregámos, e quando a noite chegou caímos, mais
mortos que vivos, nas camas limpinhas. Não tomámos uma só
refeição quente durante todo o dia. Também não era
preciso. A mãe e a Margot estavam nervosas de mais para comer e o pai e eu não tivemos
tempo. Na terça-feira de
manhã continuámos. A Elli e a Miep fizeram as compras
com os nossos talões de racionamento, o pai melhorou
a ocultação das luzes que tinha ficado imperfeita e
esfregámos os azulejos da cozinha. Estivemos todos bem.
Tua Anne

Sábado, 11 de Julho de 1942

Querida Kitty :
O pai, a mãe e a Margot ainda não conseguiram habituar-se
ao sino da - Torre-Oeste -, que toca de quarto em
quarto de hora. Eu já me habituei, até acho bonito. Principalmente de noite tem algo de
calmante para mim.
Decerto gostavas de saber se este refúgio me agrada.
Para ser franca, ainda não sei. Creio que nunca me sentirei
aqui como em nossa casa. Mas com isto não quero dizer que o acho lúgubre ou triste. Por vezes quer-me parecer
que estou numa pensão estranha. Uma concepção singular do
"mergulhar" não achas? Esta casa é realmente um esconderijo ideal. Apesar de ser um
bocado húmida, torta e
sinuosa, será difícil encontrar coisa mais confortável em
Amesterdão ou mesmo em toda a Holanda.
O nosso quarto até agora estava nu completamente.

O pai trouxe toda a minha colecção de postais de estrelas
de cinema e de vistas, e eu transformei-os, com cola e
pincel, em lindos quadros para as paredes. Agora o quarto
tem um aspecto alegre. Logo que cheguem os van Daans
havemos de construir armarinhos para as paredes e outras
coisas úteis com a madeira que está no sótão.
A Margot e a mãe vão-se habituando. Ontem, pela
primeira vez, a mãe quis cozinhar. Sopa de ervilhas!
Mas enquanto tagarelava em baixo esqueceu-se da sopa
por completo, e esta esturrou toda, as ervilhas ficaram
negras como carvão e era impossível despegá-las do fundo
da panela. É pena que eu não possa contar esta história
ao meu professor Kepler... teoria da hereditariedade.
Ontem à noite fomos todos ao escritório particular para
ouvir a emissão da B. B. C. Estava com muito medo de
que alguém na vizinhança pudesse dar por ela e supliquei
ao pai que voltasse conosco para cima. A mãe compreendeu-me
e veio comigo. Estamos sempre com receio de que
alguém nos possa ver ou ouvir. Logo no primeiro dia
fizemos cortinas. São simplesmente retalhos de diferentes
formas e cores, ajuntados e cosidos pelo pai e por mim.
Estas peças de luxo estão pregadas aos caixilhos das janelas
com "punaises" e aí ficarão enquanto durar o nosso
"mergulho".
à direita da nossa habitação há uma grande casa
comercial e à esquerda uma carpintaria. Nestes edifícios
não fica ninguém depois das horas de trabalho, mas nunca
se sabe ao certo se os nossos ruídos não chegam a ouvir-se.

Por isso proibimos a Margot, que anda terrivelmente
constipada, de tossir de noite. Coitada da rapariga,
volta e meia obrigam-na a engolir codaína. Na terça-feira
chegarão os van Daans. Estou contente. Será mais agradável assim e menos monótono.
Esta calma enerva-me, principalmente
de noite; muito gostava eu que algum dos nossos protectores
também aqui dormisse. Aflige-me a ideia de não se
poder sair daqui e tenho medo de que nos descubram
e nos fuzilem. É isto que pesa sobre mim de um modo
horrível. Durante o dia não nos podemos mexer à vontade.
não podemos pisar o chão com força e temos quase de
cochichar em vez de falar, pois lá em baixo, no armazém,
não nos devem ouvir. Desculpa. Estão a chamar-me.
Tua Anne

Sexta-feira, 1 de Agosto de 1942

Querida Kitty :

Há um mês que não tenho feito caso de ti, mas nem
todos os dias acontecem coisas novas. No dia 13 de Julho
chegaram os van Daans. Só os esperávamos no dia 16.,
mas como justamente naqueles dias toda a gente andava
muito agitada por os alemães convocarem de cada vez
mais judeus, os van Daans preferiram partir da sua casa
antes que fosse tarde de mais. Pela manhã, às nove e meia
- estávamos ainda a tomar o pequeno almoço - entrou o
Peter van Daan, um rapazote de dezasseis anos, enfadonho,
bastante tímido, que não promete vir a ser um companheiro
interessante. Meia hora mais tarde apareceu o
casal van Daan. Rimo-nos muito por a sra. van Daan
trazer na chapeleira um vaso de noite. "Sem vaso de noite
não posso viver", disse ela, e pôs a peça valiosa no seu
lugar debaixo da cama. Ele, o sr. van Daan, não trazia
váso, mas apareceu com uma mesinha de chá de dobrar,
debaixo do braço. No primeiro dia estivemos sentados
todos juntos, num ambiente simpático, e passados três
dias, tínhamos a impressão de termos sido sempre uma
grande família. Os van Daans assistiram a muita coisa
em toda aquela semana que ainda passaram fora da toca,
e era disso que nos falavam. A nós interessava-nos muito,
em especial o que tinha sucedido à nossa casa e ao sr.
Goudsmit.
E o sr. van Daan contou :
-Segunda-feira, às nove horas da manhã, o sr. Gouds
mit telefonou-me para ir ter com ele. Mostrou-me o papelinho que vocês tinham deixado
ficar (para ele levar o
gato ao vizinho). Ele tinha um medo terrível de que a
polícia revistasse a casa e, por isso, limpámos um bocado
a mesa. De repente descobri no calendário em cima da
escrivaninha da sra. Frank um apontamento com uma
direcção qualquer em Maastricht. Eu sabia este "desleixo"
intencional, mas fingi-me admirado e assustado e pedi
ao sr. Goudsmit para, com toda a urgência, queimar aquele
malfadado papel. Ao mesmo tempo ia dizendo que não
fazia a menor ideia da vossa intenção de desaparecer.
De repente foi como se se fizesse luz no meu espírito.
- Sr. Goudsmit -, disse, - agora estou a perceber o que
quer dizer essa direcção. Há mais ou menos meio ano apareceu-nos no escritório um oficial
alemão de alta patente, um amigo de infância do sr. Frank. Ora, esse oficial prometeu
ao sr. van Daan ajudá-lo se ele, um dia, estivesse
em perigo aqui. E esse oficial estava precisamente estacionado
em Maastricht! Suponho que cumpriu a promessa
e que levará os Franks à Bélgica e de lá para junto dos
parentes deles na Suiça. Pode contar isso aos amigos
que perguntem pelos Franks, mas não mencione Maastricht,
por favor.
Depois fui-me embora. A história correu e até já me
foi contada a mim próprio por várias vezes, segundo esta
mesma versão.
Achámos a coisa deliciosa e rimo-nos ainda bastante da
força de imaginação dalgumas pessoas! O sr. van Daan
contou que uma família pensava ter-nos visto quando
partimos de bicicleta de manhã cedo, todos juntos. Uma outra senhora sabia categòricamente que um automóvel
militar nos foi buscar em plena noite.
Tua Anne

Sexta feira, 21 de Agosto de 1942

Querida Kitty:
O nosso "esconderijo" é agora perfeito. O sr. Kraler
teve a boa ideia de tapar a porta de entrada do anexo.
A polícia anda a fazer muitas buscas às casas por causa
das bicicletas escondidas. O sr. Vossen executou um plano:
construir uma estante giratória que abre para o lado como
uma porta. É claro que, para isso, o sr. Vossen teve de
"entrar no segredo" e está a ser muito prestável. Agora, antes
de descermos, temos de nos curvar e depois damos um saltinho
porque o degrau desapareceu.
Ao cabo de três dias tínhamos todos a testa cheia de
galos, porque como não tomávamos cautela e não estávamos
habituados, batíamos quase sempre contra a portinha.
Agora pregámos-lhe uma almofadinha de serrim.
Vamos a ver se serve para alguma coisa.
Não leio muito. Tem-me esquecido quase tudo o que
aprendi na escola. A nossa vida aqui é pouco variada.
O sr. van Daan e eu pegamo-nos a cada passo. Ele, já se vê,
acha a Margot muito mais engraçada do que eu. A mãe
trata-me como se eu fosse um bebé, coisa que não suporto.
O Peter também não tem piada. É aborrecido e mandrião.
Passa a maior parte do dia estendido na cama, por vezes
levanta-se, carpinteira um bocado e volta de novo a dormitar.
Um autêntico palerma!
Está calor e nós preguiçamos na cadeira de lona, lá
em cima, no sótão grande.
Tua Anne

Quarta-feira, 2 de Setembro de 1942

Querida Kitty:
O sr. van Daan zangou-se com a mulher. Nunca vi
tal coisa na minha vida. O meu pai e a minha mãe não
eram capazes de gritar assim um com o outro. O motivo
foi tão insignificante que nem vale a pena falar nele.
Mas enfim, cada um é como é. Para o Peter não deve
ser nada agradável assistir a zangas dessas. Mas ele, de
resto, ninguém o toma a sério por ser tão preguiçoso
e tão mimalho. Ontem estava todo aflito porque tinha a
língua azul. Mas pouco depois já lhe tinha passado, e
hoje anda com um cachecol grosso à volta do pescoço,
diz que tem lumbago e dores nos pulmões, no coração
e nos rins. Calcula, mais nada! Este jovem está-me a
sair um belíssimo hipocondríaco! (É assim que se diz,
não é?)

A minha mãe e a sra. van Daan não se dão lá muito
bem, e realmente há razões bastantes para isso. Só um
exemplo: a sra. van Daan só deixou ficar três lençóis no
armário das roupas brancas, usado em comum por eles
e por nós. Tinha ela a intenção simpática de poupar os
lençóis dela e de usar os nossos. Há-de ficar muito espantada,
quando descobrir que a mãe lhe seguiu o bom
exemplo... Madame também se enfurece toda quando pomos
a uso a louça dela e não a nossa. Anda constantemente a
ver se descobre o que foi feito da nossa porcelana e nem
suspeita que esta se encontra tão perto dela, no sótão,
atrás de vários materiais de reclame, onde está bem guardadinha
e onde ficará "mergulhada" tanto tempo como
nós. A pouca sorte persegue-nos. Ontem deixei cair um
prato de sopa.

-Oh! - gritou ela, furiosa - toma cautela. É tudo que me resta!-Mas o sr. van Daan é agora
a amabilidade
em pessoa para comigo.
A mãe voltou a pregar-me um grande sermão, hoje
pela manhã. Acho isto horrível. As nossas opiniões são
demasiado diferentes. O pai tem mais compreensão, mesmo
se às vezes fica zangado durante cinco minutos.
Na semana passada houve um incidente. O motivo
foi um livro sobre mulheres e... o Peter. Ainda não te disse
que a Margot e o Peter têm licença para ler quase todos os
livros que o sr. Koophuis nos traz da biblioteca. Mas esse
tal livro os "grandes" não lhos queriam dar.
claro está, a curiosidade do Peter ficou espicaçada.
O que estaria escrito num livro proibido? Tirou-o, à
sucapa, à sua mãe quando ela estava cá em baixo. Escondeu-se
com a presa debaixo do telhado. Durante dois dias
tudo correu bem. A mãe tinha dado fé, mas não o traiu.
Mas depois o pai descobriu tudo. Zangou-se, tirou-lhe o
livro e pensou que o assunto estava resolvido. Não contava
com a curiosidade do filho que não achou a intenção
do pai razoável e por isso não desistiu. Procurou, por todos
os meios, apanhar o livro outra vez. A sra. van Daan,
entretanto, tinha falado com minha mãe sobre o assunto.
Minha mãe também achava que aquele livro não era
próprio para a Margot, apesar de a deixar ler todos os
outros livros.

-Entre a Margot e o Peter há uma grande diferença,
sra. van Daan,-disse a mãe.-Em primeiro lugar, as raparigas
são quase sempre mais desenvolvidas do que os rapazes
e depois a Margot já leu muitos livros, livros sérios e
notáveis, e, além disso, ela está mais avançada no que
respeita ao raciocínio e à cultura. Não se esqueça de que ela
tem o curso dos liceus quase completo.
Em princípio, a sra. van Daan concordava, embora
não achasse necessário darem-se aos jovens os livros que,
na realidade, eram destinados aos adultos.
O Peter aproveitou a ocasião para se apoderar do livro.
Quando, à noite, toda a família se reuniu no escritório
particular, para ouvir rádio, levou ele o seu tesouro para
o sótão. às oito e meia devia voltar para baixo, mas o livro era tão palpitante que não reparou nas horas. Vinha
precisamente a descer a escada do sótão com muita cautela quando o seu pai entrou no
quarto. Podes imaginar
o que se seguiu... Ouviu-se o estalar de uma bofetada
retumbante. Um empurrão, o livro voou por cima da
mesa e o Peter para o canto do quarto. O casal van Daan
apareceu à mesa sem Peter, que foi obrigado a ficar em
cima. Ninguém fez caso. Diziam que, de castigo, ia para
a cama sem comer. Passámos à ordem do dia e comemos.
De repente... um assobio penetrante... Ficámos como que
petrificados e pálidos. Olhámos uns para os outros. Os
talheres cairam-nos das mãos. Depois ouvimos a voz de
Peter através do cano do fogão :
-Se pensam que desço, estão muito enganados.
O sr. van Daan deu um pulo da cadeira e gritou,
vermelho como um tomate:
-Agora basta!
O pai, receando zaragata, agarrou-lhe no braço e
subiram assim os dois. Depois de muita resistência e demasiado
barulho, o Peter acabou por voltar ao seu quarto,
onde ficou fechado à chave. A sua boa mãezinha quis
guardar-lhe um pão com manteiga, mas o sr. papá mostrou-se
inflexível.

-Se ele se não resolve a pedir desculpa imediatamente,
irá dormir para o sótão!
Protestámos e dissemos que já era castigo suficiente
ter o rapaz ficado sem jantar. E se o Peter se constipasse
não havia possibilidade de ir buscar um médico.
O Peter não pediu desculpa e ficou no sótão. O sr.
van Daan não lhe ligou importância, mas na manhã
seguinte pôde verificar que o Peter, afinal, tinha dormido
na sua cama. às sete horas, porém, o rapaz subiu,
de novo, para o sótão e foi preciso o meu pai intervir com
algumas palavrinhas conciliadoras para que ele descesse.
Durante três dias tivemos caras carrancudas e um silêncio
teimoso. Depois tudo regressou à velha ordem.
Tua Anne


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